Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6
Os nativos pelos olhos cristãos: “encontros” entre Indígenas e Religiosos, do
século XVI ao XVIII
Thiago Henrique Mota Silva∗
Entre os séculos XVI e XVIII, várias ordens religiosas enviaram missionários às
terras do Novo Mundo, com o objetivo de civilizar os indígenas e salvar-lhes as almas. A
nosso ver, a primeira questão a ser colocada quando se pretende analisar a compreensão dos
ameríndios por parte dos missionários europeus é: esses europeus percebiam a missão que se
lhes apresentava como um trabalho devocional ou civilizador? Os “encontros” podem ocorrer
nas duas perspectivas, e em cada uma delas a alteridade será dada de forma diferenciada. O
olhar quase etnográfico que dispensaram sobre os indígenas permite-nos buscar compreender
o processo de aculturação sofrido pelo nativo, por um lado, e, por outro, a forma como o
europeu se coloca ao entrar em contato com a alteridade. As fontes a serem utilizadas nessa
pesquisa, que se encontra em fase inicial, são relatos: no final do século XVI, do jesuíta
Fernão Cardim; no século XVII, do capuchinho Cláudio d’Abbeville; e no século XVIII, do
também jesuíta André João Antonil.
Buscamos associar duas frentes: a aculturação do indígena e a forma como o europeu
coloca-se diante dele, analisando seus sucessivos “encontros” e buscando compreender o
desenvolvimento da sociedade brasílica: indígena e européia, gentílica e religiosa.
Pretendemos, aqui, contextualizar a discussão na qual essa pesquisa se coloca.
A priori, as duas possibilidades de resposta à pergunta inicial são latentes. Se
analisarmos as formas como os religiosos buscaram promover a aculturação e integração dos
indígenas à cultura européia (como aldeamento e sedentarização, promoção do trabalho e do
comércio, entre outros), notamos que havia um objetivo civilizador em suas ações. Por outro
lado, atendo nosso olhar à natureza dessas formas (como a propagação do imaginário, medos
e anseios cristãos, pregação de valores e condutas morais), percebemos que a devoção é o
objetivo-mor dos missionários, que se dedicam ao fortalecimento da fé católica. Civilizar vem
a ser um passo no sentido da salvação.
Como citado por Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, “em vão
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trabalha quem os quer fazer anjos antes de os fazer homens”. O que se percebe é que tanto o
Graduando em História, na Universidade Federal de Viçosa (UFV).
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caráter civilizador quanto o devocional das missões religiosas na América buscavam incluir
esse novo homem à ordem mundial estabelecida pela Europa: um sistema complexo de trocas
comerciais e intercâmbio cultural e religioso, acontecido entre Europa-África-Ásia-América.
E como os missionários viam o indígena? Cristina Pompa nos diz que
(...) não constitui nenhuma novidade, hoje, dizer que o indígena descrito nos relatos de
viajantes e missionários é a alteridade radical que a Europa já conhece bem de toda
uma literatura clássica, medieval e renascentista. As observações dos cronistas não
surgem a partir da realidade indígena, mas, ajudadas pela peculiaridade das culturas
nativas, contam algo sobre seu próprio sistema de crenças e valores (POMPA, 2003:
35).
Nesse mesmo sentido, Serge Gruzinski nos diz que os religiosos que se propuseram a
descrever as relações indígenas “exploram o mundo indígena utilizando esquemas e
vocabulários europeus” (GRUZINSKI, 2003: 17). Portanto, faz-se necessário, antes de
adentrar nas fontes, buscar compreender os movimentos que levaram os europeus a buscar
mundos fora da Europa e, encontrando-os, como se colocaram diante dessas novas realidades,
e como levaram sua realidade a esses mundos.
EXPANSÃO: UM ESTÍMULO RELIGIOSO.
O expansionismo português parte de questões de fé (a expulsão dos mouros da
Península Ibérica) levando os ideais religiosos das cruzadas para o embate com o islã no norte
da África e, depois, expandindo-o para povos ditos gentílicos, mais ao sul. As estratégias de
expansão portuguesa aos poucos vão tomando novos contornos, o que pode ser percebido no
próprio caráter das expedições rumo à África que se realizam nos anos seguintes à conquista
de Ceuta, em 1415. Em 1448, de fato, mudanças efetivas na expansão se efetuam: é criada a
primeira feitoria permanente, em Arguim, na costa oeste africana, os primeiros mercadores
surgem e instaura-se a primeira organização para o comércio, visto que antes o foco central
era a pilhagem aos infiéis (THOMAZ, 1994: 19-35). Embora a expansão já tenha outros
objetivos, mais materiais que espirituais, a justificação moral continua sendo a salvação da
alma dos gentios.
Com a descida do Atlântico, na carreira das Índias, chega-se às terras brasileiras. Em
sua famosa carta, Pero Vaz de Caminha, ao finalizar sua descrição da terra do Brasil, diz a D.
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Manuel que “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta
deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. É a fé justificando as
ações portuguesas, sendo que nos anos que se seguem feitorias são instaladas, é feita a
extração do pau-brasil e os índios participam do processo.
Notadamente, essa pluralidade de ações – estabelecimento de redes mercantis,
expansão dos ideais de civilização, salvação das almas dos povos gentílicos – passa a exigir
estratégias mais eficazes por parte dos europeus. A evangelização é uma das formas de
conduzir dois povos (europeus e ameríndios) a um objetivo comum – a salvação – impondo a
ambos os mesmos limites e valores temporais de um deles – o seguimento da fé católica. A
construção da unidade tem na religião um de seus pilares mais fortes, visto que, ao mesmo
tempo que constrói o cristianismo nas terras americanas, promove a salvação dos europeus
empenhados com a evangelização, afinal Jesus Cristo pregou aos homens, incumbindo-lhes da
missão de catequizar: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo” (Mateus, 28: 19).
Percebemos, então, a duplicidade das missões: se, por um lado, os missionários
entregam-se à vida em missão para catequizar os povos encontrados, com o objetivo de
salvar-lhes as almas, por outro, têm isso como missão redentora de sua nação, de forma geral,
e a possibilidade particular de salvação de sua alma. O empenho dedicado à salvação do
gentio como forma de redenção e glorificação da nação pode ser notado no texto do padre
Cláudio d’Abbeville, capuchinho francês que veio ao Brasil, em 1612, em missão destinada a
catequizar os índios e legitimar o domínio francês na Nova França, o qual diz:
Quem me fez tão fecunda, sendo eu tão estéril? Quem me deu tantos filhos, tantos
povos e tantas nações, eu que era só, e que me contentava com meu único reino? Fezse isto por minha virtude? Foi somente meu poder, que operou tal maravilha?
Escuta o que disse o grande Deus: (...) “Levantarei minhas mãos para os gentios, disse
Deus, dando-lhes minhas graças e fazendo obras sobrenaturais por meio de meus
serviços que mandarei para convertê-los à fé, os quais hão de erguer o meu sinal e
plantar meu estandarte da Cruz entre os povos, e eles carregarão nos braços teus
filhos, e nos ombros tuas filhas (...)”.
São pois, ó França, de teus súditos, os filhos do seráfico São Francisco, que este
grande Deus, por teu intermédio, enviou ultimamente às Índias Ocidentais.
Foi por eles que a Divina Majestade fez o que lhe aprouve naquele país, arvorando e
plantando o estandarte da Santa Cruz no meio dessas nações selvagens.
(d’ABBEVILLE, 2002 [1614]: 31).
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Tendo consciência do lugar compartilhado no discurso religioso, no qual o indígena é
tanto o agente da salvação da alma do europeu quanto o europeu é da sua, dentro da visão do
missionário, retornemos: os religiosos europeus que se deslocaram para o Novo Mundo
percebiam a missão que se lhes apresentava como um trabalho humanitário ou devocional?
Tendo em vista as duas possibilidades de resposta, passemos a considerar cada uma delas.
INDÍGENA E EUROPÉIA.
Podemos responder nossa questão dizendo que o trabalho missionário no Brasil
caracterizou-se mais como civilizador que religioso. Assim, teremos encontro entre indígenas
e europeus, bárbaros e colonizadores.
O termo bárbaro se origina na Grécia, onde é utilizado de forma etnocêntrica: o que
não corresponde aos valores gregos é bárbaro, ou seja, inferior, decaído. Aplica-se ao
estrangeiro, passível de ser escravizado devido à sua natureza inferior, ao seu estado apolítico,
ao desconhecimento da língua grega. No Medievo, o termo adquire, além da irracionalidade já
presente, características pagãs. As filosofias cristãs que se desenvolvem, sobretudo patrística e
escolástica, pregam que a racionalidade e humanidade estão presentes na Revelação Divina,
para a primeira, e na realização da essência, sendo essa proveniente da vontade de Deus, ou
seja, da razão, para a segunda. Humanidade é um conceito relacionado à cristandade.
Na clássica Controvérsia de Valladolid, Las Casas e Sepúlveda discutem sobre a
natureza dos ameríndios. Juan Ginés de Sepúlveda, teólogo e humanista espanhol, defendia a
bestialidade e escravidão indígena, pautado nas filosofias aristotélica e tomista. Dizia que os
indígenas não tinham auto-governo, logo não seriam humanos, pois a essência da humanidade
estava em se organizar em cidades, em polis, nas quais se manifesta o espírito divino. Padre
Bartolomé de Las Casas, defendendo a natureza humana dos ameríndios, diz que as diferenças
entre os homens não se dão em essência, mas em costumes, tradições culturais. Por serem
todos filhos de Deus, possuem os mesmos aparelhos mentais e as mesmas capacidades.
Embora a tese defendida por Las Casas apresentasse as semelhanças naturais entre
os homens, havia algo que distinguia europeus e ameríndios: a capacidade de apreensão da
realidade. Trabalhando com o conceito de cultura proposto por Edward Tylor, a saber, que a
cultura é singular, sendo as diferenças encontradas decorrentes de diferentes estágios da
evolução das sociedades (LARAIA, 2006: 33-34), percebemos que Las Casas propunha aos
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europeus que levassem os ameríndios a galgar os passos seguintes rumo à civilização. Ronald
Raminelli nos deixa claro essa perspectiva no pensamento de Las Casas:
O tempo passaria e as comunidades humanas avançariam em direção à verdadeira
civilização e ao estádio final de tudo. Viver cada um desses patamares permitiria ao
homem ter um entendimento cada vez maior do mundo. No entanto, a capacidade de
apreensão da realidade seria um dom divino, pois o Criador era o responsável por esta
característica eminentemente humana. No estádio final da escalada, encontrar-se-ia o
cristianismo, a forma mais complexa do mundo cultural, a verdadeira scientia
(RAMINELLI, 1996: 68).
Como Las Casas, outros europeus entendiam a missão na América como
civilizadora. As próprias missões, criando aldeias e sedentarizando o índio, inculcando o
imaginário e os ideais cristãos e aplicando a concepção européia de ética e trabalho, buscavam
localizar os índios na organização do mundo proposto pelos europeus. Eles, então,
Associando-se aos colonos, abandonariam gradativamente suas terras, esquecendo
seus “costumes bárbaros e domesticando aos usos e exercícios europeus” de modo a
adotar “com gosto” esse modo de vida e atrair outras nações a virem voluntariamente
unir-se a eles sob o domínio português (KARASCH in CUNHA, 1992: 401).
Associando-se aos colonos, os índios deixariam de ocupar o lugar de “outro” e
passariam a ser o “mesmo”, tendo outros indígenas não convertidos como a alteridade de si. A
idéia de outro é volátil e culturalmente entendida como alguém sem identidade com o eu.
Como podemos notar,
En la Historia (...) lo que se ha llamado el otro es una alteridad que no se estabiliza,
que cae en un círculo dialéctico. Es el
outro en una relación ordenada
jerárquicamente, en la cual el mismo es quien rige, denomina, define y asigna su otro
(CIXOUS, apud ALVARAY, in HIRSZMAN, 2004: 103).
Nos textos dos religiosos podemos perceber a circulação dos índios entre o outro e o
mesmo. Cláudio d’Abbeville espanta-se ao relatar as guerras e a vingança presentes na
realidade dos nativos, dizendo:
Não julgo haver debaixo do céu nação mais bárbara e cruel do que a dos índios do
Maranhão e suas circunvizinhanças.
(...)
Haverá por ventura maior crueldade, e como tal sempre aborrecida por todas as nações
bárbaras, qual a de distribuir sangue humano por entre os convivas?
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Haverá maior barbaridade do que estar sempre irritado com seus vizinhos, e não
contentar-se só em guerreá-los sanguinolentamente, mas também, para extinguir-lhes
a raça, comer, até vomitar, a carne de seus inimigos? (d’ABBEVILLE, 2002 [1614]:
275).
E, mais adiante em sua descrição, o capuchinho coloca-os em condição de igualdade
aos europeus, visto que aceitaram a religião católica e, assim, tornaram-se civilizados:
O verdadeiro caminho destes novos regenerados não era seguir dora em diante Aquele
que é o caminho, a verdade e a vida? Assim seguiram alegres e contentes nesta
procissão cristã, com suas vestes de tafetá branco, com seu cinto de cetim branco, com
seus bonitos chapéus de diversas flores, empunhando um ramo de lírio no meio de
várias flores de diferentes matizes, sendo cada um conduzido por um dos nossos
padres, revestidos de alva com quando foram para o batismo (d’ABBEVILLE, 2002
[1614]: 345).
André João de Antonil, missionário jesuíta italiano, nos mostra, já no século XVIII,
alguns índios bastante incluídos no modo português de viver. O autor nos fala, por exemplo,
de índios boiadeiros: “aos índios que de Jacobinas vêm para Capoame se dão quatro até cinco
mil réis, e ao homem que com seu cavalo guia a boiada, oito mil réis.” Em seu texto, em
outras passagens, a inclusão do indígena na estrutura portuguesa se dá através da escravidão.
Em vários momentos, ao se referir ao ciclo minerador e às atividades agropecuárias, o
indígena é apresentado como mão-de-obra, que leva os paulistas ao sertão à sua captura.
Percebemos a transição de um índio outro para um mesmo, que é colocado dentro
dos sistemas de funcionamento do mundo europeu. A representação fantástica, que apenas dá
forma ao imaginário europeu pré-existente, como vimos com Cristina Pompa, aos poucos dá
lugar a um ente que compõe o cenário social, sendo o exotismo que o caracteriza utilizado
para legitimar as ações que sobre ele se executam, como a conversão e a civilização.
GENTÍLICA E RELIGIOSA.
Por outro lado, podemos responder nossa pergunta inicial dizendo que as missões
religiosas no Brasil foram focos de devoção e expansão da fé cristã católica. Então os
“encontros” passam a ser compostos pelos gentios e pelos religiosos. O termo gentio, no
vocabulário português do século XVII, é utilizado entre os cristãos para definir a pessoa “que
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fica na mesma forma que foi gerada; e assim não foi circuncidada, como são os judeus, nem
são batizadas, como são os cristãos; mas permanecendo in puris naturalibus, está como saiu
do ventre da mãe, e não conhece a Deus nem coisa sua”1. A gentilidade, ou a falta de religião
entre os ameríndios, é tomada como um degrau na desigualdade entre esses e os europeus. Os
“encontros”, dessa forma, acontecem em perspectivas desiguais.
Essa desigualdade é explícita na forma de se conceber as aproximações que se
sucedem: é o europeu que vai ao encontro do nativo, e não o contrário. O próprio ato de ir
traz, em si, um tom de superioridade cultural. Ao se dizer que Portugal encontrou a África ou
a América é renegar esses últimos ao status de inferioridade. Podemos perceber esse aspecto
no pensamento português quando do retorno de Vasco da Gama para Portugal, vindo da Índia
e, ao exibir a D. Manuel II os produtos daquela terra, o monarca exclama: “Ao que parece,
não fomos nós que os descobrimos, e sim eles que nos descobriram”. Percebemos que o termo
descobrir é colocado como ação unilateral, que pressupões supremacia do agente descobridor
sobre o objeto descoberto. Ao proclamar as riquezas indianas, D. Manuel II coloca-se como
inferior àquele povo, sofrendo a ação de ser descoberto. Já quanto à África e América, o
discurso é inverso: são os portugueses os descobridores.
Considerando-se como os agentes dos processos de descobrimento e, por isso, como
detentores de direitos sobre os povos conquistados, os europeus sentem-se no dever de
conduzir os objetos de suas ações, os nativos, ao ideal da fé cristã. A fé não é somente o que
conduz o homem ao céu, mas também aquilo que o torna, de fato, homem. A fé cristã é, de
certa forma, o amálgama da humanidade, pela perspectiva européia católica, como se percebe
abaixo:
Em 1493, o papa Alexandre VI expediu uma série de decretos (conhecidos como
bulas) que cediam a Fernando e Isabel o controle sobre todas as terras “descobertas ou
por descobrir”. Embora o papa insistisse em que deviam ser bem tratados e
conduzidos, do modo mais pacífico possível, ao rebanho cristão, os povos que
habitavam essas regiões careciam de identidade. Não eram cristãos, e ainda não
estavam sob o domínio de um líder cristão. (PAGDEN, 2001: 90) 2.
O termo identidade não se enquadra na forma que hoje o lemos: aquilo que identifica
o indivíduo ou o grupo enquanto tal, em suas características. Carecer de identidade, conforme
1
BLUTEAU, Raphael, Dicionário Português e Latino, IN http://www.ieb.usp.br/online/dicionarios/
Bluteau/imgDicionario.asp?arqImg=5880&vol=7&vvcont=37101&vtabela=tabBluteauS
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Grifo nosso.
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Pagden no trecho acima, é essencialmente não identificar-se com a cristandade. Só há
identidade em Cristo e na fé católica. Daí a necessidade de cristianizar para civilizar.
Por outro lado, como todo processo dialogal, há um ente no extremo oposto ao dos
portugueses: os nativos. Como vimos até aqui, eles são vistos pelos europeus como o objeto a
que se destinam suas ações. Porém, Manuela Carneiro da Cunha nos mostra que na concepção
indígena o contato com o branco e a própria gênese desse são decorrentes da vontade e ação
dos índios. Eles não se vêem como vítimas da História, e sim seus agentes, como podemos
notar:
A gênese do branco nas mitologias indígenas difere em geral da gênese de outros
“estrangeiros” ou inimigos porque introduz, além da simples alteridade, o tema da
desigualdade no poder e na tecnologia. O homem branco é muitas vezes, no mito, um
mutante indígena, alguém que surgiu do grupo. Frequentemente também, a
desigualdade tecnológica, o monopólio de machados, espingardas e objetos
manufaturados em geral, que foi dado aos brancos, deriva, no mito, de uma escolha
que foi dada aos índios. Eles poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos,
mas fizeram uma escolha equivocada. Os Krahô e os Canela, por exemplo, quando
lhes foi dada a opção, preferiram o arco e a cuia à espingarda. (...) O que isto indica é
que as sociedades indígenas pensaram o que lhes acontecia em seus próprios termos,
reconstruíram uma história do mundo em que elas pesavam e em que suas escolhas
tinham conseqüências (CUNHA, 1992: 18-19).
As formas de se ver o mundo nos encontros entre europeus e ameríndios possuem
dois lados distintos, que se representam mutuamente, dentro de sua cosmologia, religiosidade
e cultura. Incluir os ameríndios no mundo europeu seria oferecer-lhes (ou impor-lhes) novas
formas de compreensão da realidade, novas chaves de leitura para o mundo, novos padrões de
comportamento. Sabemos que, num processo extenso e duradouro como esse, não há
assimilação de todos os aspectos culturais europeus por parte dos ameríndios e que o
colonizador não permanece da forma que chegou. Há trocas culturais de ambos os lados.
Entre gentílicos e religiosos, tem-se uma sociedade com imaginário cristão em formação, que
acredita serem os missionários seus caraíbas, assimilando e construindo sua lente, através da
qual passará a ver o mundo e relacionar-se com ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A SOCIEDADE BRASÍLICA.
Serge Gruzinski, em A colonização do imaginário, nos diz que
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A ocidentalização não pode ser reduzida aos caminhos da cristianização e à imposição
do sistema colonial, pois rege os processos mais profundos e mais determinantes,
como a evolução da representação da pessoa e das relações entre os seres, a
transformação dos códigos figurativos e gráficos, dos meios de expressão e de
transmissão do saber, a mutação da temporalidade e da crença e, finalmente, a
redefinição do imaginário e do real, no qual os índios deviam expressar-se e
sobreviver, entre a obrigação e o fascínio (GRUZINSKI, 2003: 410).
O processo de ocidentalização, segundo o autor, é mais forte que a aculturação ou,
dentro dessa, a síntese religiosa, por ser um processo dinâmico, ocupando-se constantemente
em integrar o indígena ao mundo “civilizado”, com seus valores transitórios e ajustando-se ao
ritmo da Europa, não da América. A ocidentalização, devido a essa dinamicidade, oferece
brechas para os indígenas constituírem-se enquanto uma sociedade, mista em vários aspectos.
Embora o estudo de Gruzinski seja sobre a Nova Espanha, percebemos que o podemos
associar a nossos objetos, notadamente pela sociedade que se forma também no Brasil:
indígena e européia, gentílica e religiosa. É essa a sociedade brasílica.
Como são os nativos pelos olhos religiosos? Talvez, a pergunta que deva anteceder
está é: o que vêem os olhos missionários? Assim como os ameríndios se transformam ao
entrar em contato com o mundo europeu, os que de lá se dirigem às terras brasileiras também
sofrem mudanças em suas concepções, crenças e modos de vida.
Entre o gentio de Cardim, que
que não tem conhecimento algum de seu Creador, nem e cousa do Céo, nem se ha
pena nem gloria depois desta vida, e portanto não tem adoração nenhuma nem
ceremonias, ou culto divino, mas sabem que tem alma e que esta não morre e depois
da morte vão a uns campos onde há muitas figueiras ao longo de um formoso rio (...)
(CARDIM: 1925, p.161-162).
O de d’Abbeville, com seus rituais bárbaros e o de Antonil, que trabalha afeiçoado
ao sistema europeu, não há somente mudanças na forma de ser do índio, mas também na de
ser e ver dos europeus. Para entender a sociedade que se formava, não nos basta conhecer
quem eram os entes que articulavam as relações que se estabeleciam: precisamos saber como
eles se viam, como se entendiam e a partir de quais chaves de leituras se punham em contato.
Estamos falando, além de gentílicos e religiosos, indígenas e europeus, do encontro (ou
choque) entre o Novo e do Velho Mundo.
FONTES.
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ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil São Paulo: Edusp, 1982.
CARDIM, Fernão. Tratado e Terra da Gente do Brasil. Rio de Janeiro: Leite & Cia. 1925.
d’ABBEVILLE, Cláudio. História da Missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e
suas circunvizinhanças. São Paulo: Siciliano, 2002 [1614].
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Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Ave Maria, 2008.
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Trad. Ilka Stern Cohen. Bauru, SP: Edusc,
2006.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras. 1992.
GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário. Sociedades indígenas e ocidentalização
no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
HIRSZMAN, Leon; ECHEVARRÍA, Nicolás; LAMATA, Luis Alberto; CARRI, Albertina.
Memória, história, identidade. Org. Revista de cine mais outras questões audiovisuais.
Nº37. Outubro/dezembro de 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa. São Paulo: Companhia
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar
Editor. 2006.
PAGDEN, Anthony. Povos e Impérios: Uma História de Migrações e Conquistas, da Grécia
até a Atualidade. Trad. Marta Miranda O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001
THOMAS, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.
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