Oftalmologia - Vol. 35
Nota do Editor
O SISTEMA DE FINANCIAMENTO DA SAúDE - UMA VISãO MICRO A PARTIR DO TERRENO DA PRáTICA CLíNICA (PARTE I)
Caso 1. O doente e acompanhante deslocaram-se de ambulância a uma distância de cerca 100Km. Chegou ao hospital
às 8H para fazer a efectivação da consulta e estar em condições de iniciar a consulta pelas 9H. O médico ou técnico avalia
a AV e o doente é atendido em consulta logo de seguida. Após a consulta inicial o médico faz um plano de estudo. O doente
realiza, neste exemplo, um OCT, uma retinografia e angiografia fluoresceínica. O médico volta a avaliar o doente e faz um
plano terapêutico. De seguida o médico realiza um laser térmico ao OD e ao OD na sala de laser. De seguida associa uma
injecção sub tenoniana de Triamcinolona na sala de tratamento. E volta a sentar-se com o doente a marcar a consulta subsequente, a planear a terapêutica seguinte e a prescrever a medicação anti-glaucoma. Finalmente pelas 13h o doente teve
alta da consulta tendo passado pelos serviços administrativos para efectivar os actos médicos realizados. Veio à consulta e
numa deslocação, numa manhã é avaliado e tratado. O acompanhante perdeu uma manhã.
Caso 2. Um vizinho do doente e acompanhante deslocaram-se de ambulância a uma distância de cerca 100Km, 6 vezes,
em dias diferentes para realizar a consulta, a angiografia, o OCT, o tratamento laser do OD e o tratamento laser do OE e
ainda a injecção de triamcinolona no OD e no OE. Mas, neste frenesim de consultas, passaram-se pelos menos 6 meses, pois
os hospitais estão em “over booking” e não é fácil marcar consultas, exames e tratamentos. No fim o quadro clínico está
degradado e vai obrigar a mais consultas e consumo de recursos hospitalares. O resultado clínico foi pobre e o doente tem
cegueira legal (< ou igual a 1/10).
No primeiro caso a perspectiva foi centrada no doente – o hospital realizou uma Consulta de Alta Resolução resolvendo o problema do doente, proporcionando ao doente o máximo de amenidades, evitando deslocações, ocupando o médico
durante uma a duas horas e facturando somente o valor de uma consulta.
No segundo caso a perspectiva foi centrada no hospital – o hospital realizou 6 consultas, o doente deslocou-se 6 vezes
ao hospital (foi feito o “splitting” da consulta), não foi proporcionado ao doente as amenidades possíveis, o médico ocupou-se do doente 15 a 30 min e assim conseguindo fazer muitas consultas nesse dia que o hospital facturou ao mesmo preço da
Consulta de Alta Resolução realizada no caso 1.
Se fosse responsável da gestão como optava?
Então, se o colega tiver que gerir o seu hospital ou serviço, se lhe disserem que tem x consultas contratualizadas, que
se as não fizer não terá verbas para manter o seu hospital em funcionamento ou deixará de poder operar os seus doentes,
o que fará? Achará, com certeza que, no caso 1 o doente desloca-se menos vezes e fica mais económico ao país! Pensará
que se se tratar de doenças sensíveis ao tempo de espera, como a Retinopatia Diabética ou outras patologias da retina, no
caso 1 terá muitíssimos mais possibilidades de o tratamento ser mais fácil, menos dispendioso e usando menos recursos
do que no caso 2, onde ao atraso no tratamento poderá conduzir a situações clínicas irreversíveis próximas da cegueira!
Pensará que no caso 1, o médico não poderá fazer o mesmo número de consultas do que fará no caso 2 e que essa consulta
tem um maior valor.
Se o colega tiver responsabilidades de gestão pensa no doente ou pensa no seu hospital?
Quando se pensa no bem saúde, provavelmente entrará em conflito com os seus princípios de gestão baseada na clínica,
centradas nas necessidades do doente, na melhoria contínua de qualidade, na eficácia, eficiência e equidade que adquiriu
como bons. Mas, provavelmente não lhe resta alternativa e terá mesmo que fazer consultas, quantas mais melhor, senão
fecham-lhe o hospital ou despedem-no das suas funções por má gestão!
Vol. 35 - Nº 4 - Outubro-Dezembro 2011 |
VII
O anacronismo do modelo de financiamento!
Mas, se nos interrogarmos um pouco, aonde está a causa desta atitude contrária à mais elementar lógica de governação
clínica? A resposta é rápida - trata-se do anacronismo do modelo de financiamento!
Sim! O financiamento feito somente à consulta conduz a esta situação!
A consulta médica é um acto nobre em medicina. Mas foi absolutizada com este modelo de financiamento, pois passou a
englobar tudo o que for feito ao doente. É como se estivéssemos há cem anos atrás a tratar doentes só com um estetoscópio
e tudo se resumisse a isso.
Claro que os defensores deste modelo de financiamento dirão que então o valor da consulta deveria ser menor, pois
o valor actual já engloba os exames e alguns tratamentos. Claro que sim, então baixe-se o valor da consulta simples e
passe-se a financiar uma consulta de Alta Resolução Diagnóstica (CARD) e uma Consulta de Alta Resolução Diagnóstica
e Terapêutica (CARDT), onde cada especialidade definirá os procedimentos que cabem numa ou noutras e que terão uma
valorização adequadas aos procedimentos e consumo de recursos (tempo, humanos, equipamento, consumíveis e diferenciação médica especializada).E, naturalmente proceda-se a uma contratualização ponderada onde cada CARD valerá, no
mínimo, 3x o valor de uma consulta de baixo valor e o valor de uma CARDT valerá 5x o valor de uma consulta de baixo
valor. Mas seria necessário financiar outros componentes da consulta: formação médica contínua pré e pós graduada,
formação de internos de especialidade, investigação clínica, publicações, comunicações nacionais e internacionais, etc.
(continuaremos no próximo número).
José Henriques
Editor da OFTALMOLOGIA
Director Clínico do IRL Instituto de Retina de Lisboa
Oftalmologista do Instituto de Oftalmologia Gama Pinto - Lisboa
Pós Graduação em Gestão Unidades Saúde (FCEE – UCP)
VIII
| Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
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