UM TEATRO MORAL EM AZULEJOS:
O CLAUSTRO DO CONVENTO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS DA BAHIA
Humberto José FONSECA
Uesb*
Um dos maiores dramaturgos do “Século de Ouro” espanhol, Calderón de la Barca
(1600-1881), escreveu no preâmbulo a um de seus mais conhecidos autos:
Comédia é a vida humana, onde cada qual representa o seu papel. O Mundo é o Teatro; o
Autor é Deus, cuja Providência distribui os papéis e os trajes; os homens são os atores, e a
Morte, a que desnuda igualmente a todos.[1]
Para Calderón de la Barca, o mundo é um grande palco; nele entramos pela porta do
nascimento e dele saímos pela porta da morte. O diretor desta Companhia do Grande Teatro do
mundo (“o autor”) é nada menos do que Deus, criador do universo e juiz dos homens. A
comparação da vida real com o teatro, segundo a qual os homens representam o drama da história
do mundo, foi um modelo muito recorrente pelos fins do século XVI, por todo o século XVII e
mesmo glosado tardiamente, no início do século XVIII. [2]
O claustro do convento de São Francisco de Salvador, na Bahia, já foi chamado de “Sermão
de Azulejos”.[3] Talvez fosse mais apropriado chamá-lo de “Teatro em Azulejos”. Ele possui em
seu andar térreo um conjunto de azulejos que reproduz parcialmente as pinturas do artista holandês
Otto van Veen. As estampas de Otto van Veen foram publicadas pela primeira vez em 1608, sob o
título de Emblemas de Horácio, “por ser fundados em los Versos Latinos de aquel author”[4] e mais
tarde, pouco depois de 1648, no Theatro Moral de la vida humana y toda la philosofia de los
antiguos y modernos, editado por autor anônimo[5].
Os emblemas gravados nos azulejos, embora guardem o apelo moral, comum às obras
artísticas, literárias ou pictóricas, característico do barroco, diferem dos sermões, das vânitas e das
ars moriend.
Os azulejos do claustro do Convento de São Francisco, à primeira vista, parecem destoar do
ambiente claustral pela roupagem mitológica pagã greco-romana com que se revestem os seus
personagens. Mas apenas a roupagem externa é pagã; seu conteúdo interno é profundamente cristão.
O autor anônimo procurou “cristianizar” o poeta latino Quinto Horácio Flacco (165 a 8 a.C.) –
segundo ele, a sabedoria de Horácio muito se aproxima da sabedoria bíblica e a ética do estoicismo
muito se assemelha às virtudes morais do cristianismo – e escolheu bem o título de sua publicação:
Theatro Moral de la vida humana e de toda la philosophia de los antiguos y modernos.
Para expressar o Theatro Moral no Claustro do Convento de São Francisco foram
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Antiguidade e no Medievo.
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encomendados em Portugal, em meados do século XVIII, azulejos especiais e selecionados 37 dos
103 Emblemas de Horácio. Não consta da documentação consultada os critérios desta seleção, mas
quatro grandes temas surgem no conjunto, distribuídos nas quatro alas do claustro inferior do
convento: a primeira ala, que fica ao lado da igreja e leva à Via Sacra, em direção ao Altar-mor,
lembra que Deus é o princípio de toda sabedoria; a segunda, que dá para o cemitério dos frades,
expressa a sabedoria do bem viver como único “seguro” face à morte; o terceiro conjunto, que fica
na ala que leva ao convento, tem como enfoque a amizade recíproca, ou o convívio fraternal; e, por
fim, o quarto conjunto, na ala que conduz à portaria (ao mundo exterior), retrata as vaidades do
mundo insensato que busca mais a riqueza que a sabedoria.
Um dos temas centrais do pensamento barroco refere-se à antítese vida-morte. Daí o
sentimento da brevidade da vida, da angústia da passagem do tempo, que tudo destrói. O homem do
barroco oscila entre a renúncia e o gozo dos prazeres da vida. Quando pensa no julgamento de
Deus, foge dos prazeres e procura apoio na fé. Quando seu pensamento se afasta, a atração dos
prazeres o envolve e cresce o desejo de desfrutar a vida.
A consciência de que a vida se consome em direção à morte leva, assim, a dois tipos de
atitudes. A primeira demonstra um forte apego à vida material e ao gozo mundano. Uma atitude
hedonista se impõe, a afirmar o prazer no que é transitório, e que, por ser assim, deve ser usufruído
e fruído até a exaustão. A esse tipo de comportamento chamamos de Tendência Epicurista. Na
segunda, muito freqüente no declínio da Idade Média, e que se encontra exposta na obra Orto do
Esposo, a vida humana é concebida como um combate, de cujo resultado dependem a salvação ou a
danação eterna.[6]
Encarar a vida humana como um combate era um lugar comum na mundividência do
cristianismo e está presente em toda a literatura fundada sobre os moldes desta religião. Esta
concepção já aparecera anteriormente no Livro de Job, na Psychomachia de Prudêncio, em S.
Gregório Magno, na Regra dos Monges, no Livro da Vida Solitária de S. Lourenço Justiniano e
impregnava os sermões medievais.[7] Para Portugal, os sermões de Frei Paio de Coimbra são
ilustrativos a esse respeito.[8] A essa forma de comportamento chamamos de Tendência Estoicista.
O objetivo deste trabalho é desenvolver uma leitura dos azulejos do Convento de São
Francisco de Assis da Bahia a partir da sensibilidade de tendência estoicista. Aqui nos ocuparemos
apenas do conjunto de azulejos que fica na ala que leva ao lugar que durante muito tempo serviu de
cemitério dos frades, cujos azulejos representam cenas da morte. No centro de todos os painéis
deste ala constam os dizeres: Caemiterium Fratrum.
Segundo Huizinga, desde o final da Idade Média “o contraste entre o sofrimento e a alegria,
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Antiguidade e no Medievo.
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entre a adversidade e a felicidade, aparecia mais forte”. Para o homem do período, segundo ele,
todas as experiências possuíam o caráter direto e absoluto do prazer e da dor. Todas as ações,
quotidianas ou esporádicas, integravam-se “em formas expressivas e solenes, que elevavam à
dignidade de um ritual. Porque não eram somente os grandes acontecimentos do nascimento,
casamento e morte que, pela santidade do sacramento, eram elevados ao nível dos mistérios”;
também incidentes menores, como visitas, viagens, um empreendimento, eram, da mesma forma,
rodeados por mil formalidades: bênçãos, cerimônias, fórmulas.[9]
O orgulho hierárquico, segundo Huizinga, continua forte no fim da Idade Média, ligado ao
crescente pecado da cobiça, e é, segundo ele, a mistura dos dois que dá à “Idade Média moribunda
esse tom de paixão extravagante que nunca mais volta a aparecer”.[10] É que, no declínio da Idade
Média, para o autor, “pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia”, que ele descreve com
cores fortes:
Será de surpreender que o povo considere o seu destino e do mundo apenas como uma infinda
sucessão de males? Mau governo, extorsões, cobiça e violência dos grandes, guerras, assaltos,
escassez, miséria e peste – a isto se reduz, quase, a história da época aos olhos do povo. O
sentimento geral de insegurança causado pelas guerras, pela ameaça das campanhas dos
malfeitores, pela falta de confiança na justiça, era ainda por cima agravado pela obsessão da
proximidade do fim do mundo, pelo medo do Inferno, das bruxas e dos demônios. O pano de fundo
de todos os modos de vida parecia negro. Por toda a parte as chamas do ódio se alteiam e a
injustiça reina. Satã cobre com as suas asas sombrias a Terra triste. Em vão a Igreja militante
combate e os pregadores fazem sermões; o mundo permanece inconvertido. Segundo uma crença
popular, corrente nos fins do século XV, desde o começo do Grande Cisma do Ocidente que
ninguém mais tinha entrado no Paraíso.[11]
Ainda segundo Huizinga, mesmo “com os humanistas o otimismo é ainda temperado
com o velho desprezo dos cristãos estóicos do mundo”.
À época Moderna coube a grande tarefa de deixar de ser plenamente medieval, sem
ser mais renascentista, para constituir uma outra cultura. Essa não prescindiu do passado acumulado
pelo homem, mas introduziu certos valores que até então não haviam ocupado o centro de suas
atenções. Essa cultura enfatizou com determinação uma questão que já ocupava a sensibilidade do
fim do medievo: A efemeridade do tempo terreno e a eternidade do tempo espiritual. Coube aos
homens da época Moderna captar esse sentido precário do tempo mundano, viver no cotidiano as
reflexões agostinianas que demonstraram que o futuro passa pela brevidade do presente e que,
deste, resulta a morte de tudo que já foi e não é mais: o passado. Daí, deste sentimento da brevidade
da vida, da angústia da passagem do tempo, que tudo destrói, decorre que o carpe dies, expressão
latina que quer dizer “aproveita o dia (presente)”, tenha sido um dos temas freqüentes da arte
barroca.[12]
Além da espiritualidade, um dos traços fundamentais da cultura barroca é o
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Antiguidade e no Medievo.
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sentimento da fragilidade humana e a ânsia desesperada pela salvação da alma. A profunda
consciência da fugacidade do tempo mundano não está relacionada apenas com sua rigorosa
mensuração e a busca de racionalização da produção material. Diz respeito, sobretudo, à aguda
subjetividade que toma conta do homem moderno. Nessa consciência de ser, um relativo
distanciamento psicológico permitiu ao homem refletir e até ironizar sua situação no mundo. A
representação da Dança Macabra, em fins da Idade Média, é a estruturação primeira da reflexão e
ironia que o homem faz de sua situação. Ela vem mostrar o quanto impotente é a vida diante da
morte, que leva indistintamente reis, papas, pobres, ricos, velhos, crianças, que já venceram sua
temporada na terra. Portanto, ela aponta para a desduração do tempo e para a fragilidade do
homem.[13]
Dos 37 emblemas dispostos nas quatro alas do Convento de São Francisco de Salvador,
nove (da 10º a 19º) encontram-se na ala do cemitério e referem-se à desduração do tempo, às
vanidades e à morte. Ao lado de cada uma deles vem sempre a explicação da cena, escrita pelo
autor anônimo, e o texto de Horácio no qual se baseia o quadro. Tanto o texto em espanhol do
Theatro moral quanto sua tradução, nos azulejos do claustro, encontram-se estragados em função
do tempo, o que prejudica a leitura das explicações. Todavia, um supre as deficiências do outro. Por
este motivo, não apresentamos as explicações tal como aparecem no Theatro ou nos azulejos, mas
os resumimos, preservando, no entanto, a linguagem dos textos dos azulejos do claustro.
Estampa 10: VOLAT IRREVOCABILE TEMPUS (Horat. Lib. 4, Od. 7).
O Tempo Voa Irrevogavelmente. Uma criança, representando o tempo, voa conduzindo um
relógio de sol. A inconstância e a fugacidade da vida estão figuradas pelo crescente e pelas asas da
borboleta. As quatro figuras em marcha – um menino, um adolescente, um adulto e um ancião –
representam, respectivamente, a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno. A serpente engolindo a
própria cauda, que se vê no primeiro plano, representa o calendário, segundo os egípcios o
simbolizaram, demonstrando que, no último dia de cada ano, começa imediatamente o outro. O
tempo não para.
Passa el Tiempo ligero,
Dexandonos de si, memória escassa.
Y sigue el mesmo fuero
Todo lo humano, pues com el se passa,
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Y por vario modo,
Todo lo acaba, y lo consume todo.
(Theatro Moral, p. 169)
Estampa 11: TEMPORA MUTANTUR ET NOS MUTATUR IN ILLIS (Horat. Lib. 3, Od. 2).
O Tempo Muda e nós Mudamos com ele. O tempo, um ancião com grandes barbas e
enormes asas, conduzindo uma ceifadeira, avança em pleno vôo. Traz pela mão uma criança com
elmo e espada simbolizando a Virtude, à qual outras se agarram. Estas figuram a inveja, a vaidade,
a lisonja, a avareza e a intemperança. Em torno, cidades e templos em ruínas mostram que nada
resiste à ação do tempo. O homem, que em todas as idades paga o seu tributo às paixões, na velhice
inclina-se à virtude, que só ela é eterna.
Viendo la instabilidad,
Huvo bastante razon,
Para dezir com verdad,
Que com el tiempo y la edad
Muda el Hombre de passion.
(Theatro Moral, p. 171)
Estampa 12: MORTIS FORMIDO (Horat. Lib. 3, Od. 1).
O Temor da Morte. O motivo deste painel foi tirado da história grega, e lembra as vaidades
do mundo. Dionísio, o tirano, farto das adulações e da inveja de Dâmocles, quer mostrar-lhe a
insegurança da sua própria glória e prega-lhe uma peça. Convida-o a ocupar o seu lugar em um
banquete, ordenando que o sirvam e acatem como se fora este verdadeiramente o rei. No meio da
abundância e da delícia dos manjares, no auge das honrarias, percebeu Dâmocles, aterrado, que
sobre sua cabeça pendia, no centro do dossel, longa espada sustentada por um único fio de crina. O
grande perigo despertou o cobiçoso para a grande verdade sobre a aparente felicidade dos
prepotentes.
Quien las vanas Riquezas apeteze,
Ciego del lustre, e parezer hermoso,
Com que el mundo a los néscios adormeze,
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Para despues privarlos del reposo;
Viene a pagar la pena que mereze,
Como se vèe em Damocles ambicioso,
Que em médio de la esplendida comida
Reconoze el peligro de su vida.
(Theatro Moral, p. 85)
Estampa 13: MORTE LINQUENDA OMNIA (Horat. Lib 2 Od. 14).
Com a morte tudo se deve deixar. A morte arrasta o homem para longe da mulher e dos
filhos que choram. O morto não leva consigo nada das riquezas; a morte só carrega um cipreste para
plantá-lo sobre a sepultura. Numa taverna, ao fundo, estão alegres bebedores; são os companheiros
do morto ou os herdeiros satisfeitos que esbanjam as riquezas dele; ou talvez a taverna indique o
negócio do morto.
Poco te importa el llorar
La perdida de um Marido,
Quo no puedes recobrar:
Mas si supo bien obrar,
No le llores por perdido.
(Theatro Moral, p. 195)
Estampa 14: MORS ULTIMA LÍNEA RERUM (Horat. Lib. 1, Ep. 16).
A Morte é o último fim das coisas. Ante uma sepultura, sobre a qual está construído um
mausoléu, jaz estendida a morte. Com ela, tudo tem seu fim: dominação, poder, riqueza e liberdade,
prisão e opressão; também o trabalho e o esforço terminam. Só as virtudes ficam eternamente e
triunfam da morte.
Este es el fin de tu suerte.
Peregrino! Si reparas,
Que los Ceptros Y Tiaras,
Todo jace com la Muerte,
No pierdas tiempo, y advierte
Que em lo que es mortal no esperes;
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Antiguidade e no Medievo.
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Y que siempre consideres
Em el Cadáver que vees;
Que tu serás, logo lo que èl es,
Com èl fue, lo que tu eres.
(Theatro Moral, p. 207)
Estampa 15: POST MORTEM CESSAT INVIDIA (Horat. Lib. 1, Ep. 1).
Depois da morte cessa a inveja. Hercules, o herói dos doze trabalhos, vestindo a pele do
leão de Nemea e armado de clava, pisa vitorioso sobre o dragão de Lerna. Mas ele não pôde vencer
a inveja, durante a sua vida; por isso aponta para a morte, que sozinha põe por terra a inveja.
De Alcides la Fortaleza
Rinde a sus pies el infernal Cérbero;
Y cede a sua destreza
El Xavali montès, y el leon fiero.
Mas la Embidia es tan fuerte,
Que solo es el despojo de la muerte.
(Theatro Moral, p. 167).
Estampa 16: TUTE, SI RECTE VIXERES (Horat. Lib. 2, Od. 13).
Estarás seguro, se viveres bem. O poeta trágico ateniense Ésquilo consultou, certa vez, uma
advinha da Sicília; ela predisse que ele iria perder a vida na queda de uma caixa. Por este motivo, o
poeta não quis mais viver na cidade e retirou-se para um lugar solitário. Acampado perto de um
riacho, escrevia os seus poemas. Mas mesmo assim não escapou ao seu destino. Certo dia, veio
voando sobre ele uma águia que carregava uma tartaruga. A águia tomou a careca do sábio por uma
pedra e deixou cair a tartaruga, para arrebentá-la; mas com isso, quem morreu foi o poeta. A morte
pode encontrar-nos em qualquer parte; por isso, só vive seguro quem vive bem.
Si la anunciada cahida
De la cassa te da pena;
Tem por cosa muy sabida,
Que qualquiera muerte es buena,
De quien fue buena la vida.
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(Theatro Moral, p. 187).
Estampa 17: VERA PHILOSOPHIA MORTIS EST MEDITATIO (Horat. Lib. 1, Ep. 4).
A verdadeira filosofia é meditar sobre a morte. Um sábio e justo ancião, cujo fio da
existência já se acha dentro da tesoura das Parcas, sentado medita... De um lado, a vida esperançosa
em marcha e do outro, o pavor da morte. O tempo voa apresentando-lhe a cornucópia dos bens
naturais e aos seus pés rosna o basilisco das paixões. Ao fundo, castelos em chamas e a figura da
vingança, de espada em riste e facho erguido, não o desviam da sua meditação. O justo não tem de
que temer. Aguardando que a Natureza conclua sua grande obra, nada lhe altera a calma filosófica.
Al que em la Muerte piensa
Iamas podrà cogerle descuydado;
Porque advierte suspensa
Nuestra vida de um hilo muy delgado:
Y de la Parca el filo,
Que à todas horas amenaza el hilo.
(Theatro Moral, p. 181)
Estampa 18: MORTIS CERTITUTO (Horat. Lib. 2, Od. 3).
A certeza da morte. Jovens e velhos, sãos e enfermos, ricos e pobres, reis e vassalos, homens
e mulheres, todos recebem da morte a moeda passaporte para o barqueiro do Aqueronte. A morte
não falha, e os bens materiais da vida são inúteis na hora do eterno transporte.
De que servirà el Caudal,
Que amontonas de contino;
Viendo que todo mortal,
Lleva al porcion igual,
Em el ultimo camino.
(Theatro Moral, p. 199).
Estampa 19: CUNCTOS MORS UNA MANET (Horat. Lib. 1. Od. 2).
A Morte é igual para todos. A morte não faz exceções. Quer nas humildes oficinas dos
operários ou nos palácios dos príncipes magnificentes; quer no campo aberto ou nas torres
blindadas, ela se apresenta, imparcial e onipresente, zombando de qualquer veleidade de resistência.
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No es segura guarida,
La Purpura Real, Ceptro, y Corona,
Contra tal Homicida,
Que de quanto al mortal, nada perdona;
Pues su fatal azero,
Iguala com el Rey el Zapattero.
(Theatro Moral, p. 197)
O Theatro Moral inspira, pois, o comportamento de tendência estoicista. Se a idéia
de brevidade da vida fazia aumentar a sede de gozar a vida, nos emblemas dos azulejos do convento
franciscano servia para chamar a atenção sobre a ilusão dos prazeres e a constante mudança das
coisas do mundo. E se tudo passa, menos Deus, surge a advertência de que é preciso pensar no que
pode acontecer depois da morte.
O homem que adota a postura de tendência estoicista sofre profundamente com as
mudanças do mundo sensível, que são vistas apenas em sua negatividade, por isso utiliza a reflexão
para superar esse mundo feito de fragilidade. Desse modo ele se destemporaliza, escapando da
concepção agostiniana do tempo. Vive em Deus e nele nada muda, portanto não há tempo. Essa
postura manifesta uma intensa vontade de ser e uma carência ontológica do absoluto.
A tendência estoicista não teve vigência apenas no ocaso da Idade Média,
manifestando-se também na mentalidade do homem barroco, como em Calderon de La Barca, Padre
Antônio Vieira, e de autores não tão moralistas, como o escritor português d. Francisco Manuel de
Melo e o baiano Gregório de Matos, dentre outros.
Remetido ao essencial – a meditação sobre a sua condição – o homem do barroco vai
desempenhar o seu papel de ator num mundo que é um teatro, um labirinto confuso, pois tudo não
passa de um jogo dramático. Consumido por uma constante luta interior, consciente da
circunstancialidade da vida, a obsessão pela morte tornou-se um fato de natureza particular.[14] A
este hábito de interiorização e de meditação moral (o que constitui uma espécie de retorno a uma
certa linha da Idade Média que o Barroco tanto apreciou) deve juntar-se uma sofrida ânsia de
evasão para outra realidade onde tudo é impreciso e misterioso. Acossado agora por uma solidão
individual quase insuportável, o que poderia dizer-se uma volta do teocentrismo, resulta que, mais
do que nunca, Deus está no centro de tudo no período barroco. Um tanto paradoxalmente, Ele é, de
novo, esse pólo organizador e aglutinador da ordem social que nunca deixou de ser.[15]
O pensamento de Calderon de La Barca, por exemplo, projeta o mundo como uma ilusão,
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uma sombra, que se aproxima da alegoria da caverna de Platão. O mundo sensível não é dono de
uma inteligibilidade própria; essa reside no mundo das idéias, ou seja, em Deus. A vida, portanto,
não tem um sentido imanente, não se justifica em si mesma, mas torna-se justa por ter tido sua
origem em Deus. É ele o diretor desse teatro que é a vida, cujos papéis são representados pelos
homens.[16] É Deus que faz a escolha dos papéis, introduzindo-os na cena, por meio do
nascimento, e também quem os retira dela, por meio da morte.
Aos que não desempenham bem o seu papel, Deus impinge-lhes o Purgatório, aos que se
mortificam em vida, concede-lhes a companhia celestial. Mário Martins, referindo-se ao Grande
Teatro do Mundo, em poucas palavras define o pensamento de Calderón de la Barca:
Não eram. Representavam. Como todos nós, doutra maneira, desde o berço até a cova do cemitério,
sob o signo do tempo que vai morrendo para nós e em nós, até morrermos de todo. E na morte,
findará a representação. Então sentiremos, dramaticamente, a temporalidade de empréstimo. O rei
porá de um lado o cetro e a coroa. O boieiro cá deixará os bois e a charrua. O professor, as lições e
os livros. E o psiquiatra poderá verificar que também ele (como os loucos, embora doutro modo)
vivem num reino de aparências e de sonhos. A morte será o acordar para a realidade autêntica – la
vida es sueño. Em ambos os significados: dormir e sonhar.[17]
* Professor adjunto do Departamento de História da UESB. Doutor em História Social da Cultura
pela FAFICH/UFMG. e-mail: [email protected]
[1] Calderón
de la Barca, El Gran Theatro del Mundo. In: Real, J. Alonso del (Org.) Calderón segun
sus obras, sus críticos y sus admiradores y crônica del segundo centenário de su muerte. Barcelona,
1881, p. 264-312.
“Um faz de rei. Outro faz de rico. Outro faz de pobre e outro de menino. Deus não representa. É
Deus. Quanto aos homens, estão num mundo de ‘fazer de conta’. Desempenham um papel de teatro,
bem ou mal. As insígnias do rei cá ficarão. E o rei passará as portas da morte, tão pobre como o
mendigo. Sem coroa, nem cetro, nem manto de arminho”. Martins. Mario (S.J.). Introdução
histórica à vidência do tempo e da morte. v. 2. Braga: Cruz, 1969. p. 61.
[2]
Sinzig, Frei Pedro. Maravilhas da religião e da arte na Igreja e no Convento de S. Francisco da
Bahia. Rio de Janeiro, Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 1933, p. 170.
[3]
[4] Theatro
Moral, Proêmio 1, p. 208.
[5] Não
sabemos a data exata porque no exemplar do Convento de São Francisco falta o frontispício.
Todavia, o autor diz, no Proêmio 10, ter assistido ao Congresso de Paz de Münster, em 1648, o que
nos dá um ponto de referência para a determinação do ano de sua publicação.
[6] “E pore
tu, Christaão cosura que es caualeyro de Jhesu Christo e que a vida do home he caualaria
e lyde em quanto uiuer sobre a terra”. Maler, Bertil (Ed.). Orto do Esposo. Rio de Janeiro, 1956,
vol. I, p. 144.
[7] Le Goff.
[8]
Jacques. O Imaginário medieval. Lisboa: Ed. Estampa, 1994.
Sousa. Frei Luís de. Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. v. 1. In: Antologia Portuguesa.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na
Antiguidade e no Medievo.
10
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1920.
[9] Huizinga,
Johan. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo;Edusp, 1978. p. 13
[10] Huizinga,
Johan. Op. Cit. p. 29.
[11] Idem,
p. 30.
[12] Ariès.
Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. v. 1. p. 358.
[13] Martins,
[14]
Mário (S. J.) Op. Cit. v. 1. p. 15.
Cf. Maravalll, José Antonio. A cultura do barroco, São Paulo: Edusp, 1999. cap. 6, p. 309 et
all.
[15] Cf.
Chaunu, Pierre, A Civilização da Europa Clássica. cap. XII, p. 397-438.
[16] Calderón
[17] Mário
de La Barca, El Gran Teatro del Mundo. Apud. Martins, 1969. v. 2 pp. 60-69.
Martins (S.J.). Op. Cit. v. 2, p. 79.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na
Antiguidade e no Medievo.
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