A DOR E O MITO
Suzana Maria da Silva Ferreira Lima
Psicóloga clínica
RESUMO
É duro a dor do parto, mas eu tenho que partir o dito popular revela a sutileza da vida frente a questão da dor,
mostrando a íntima relação entre o sentimento de perda ou separação com a dor. E como já nascemos nos
separando daquela que nos pariu, corroboramos com o comentário freudiano A humanidade é dolorida. A dor
tem a função de defesa contra ameaças externas ao organismo, ela protege anunciando um perigo próximo.
Identificamos que a dor pode estar presente no mecanismo de defesa contra a própria dor. Este é um de seus
paradoxos. A mulher ao engravidar passa a construir para o bebê, um mito de sua existência. Surgem as
questões: ele será desejado ou não; que lugar ocupará na constelação familiar; será parto normal ou cesárea;
apresentará alguma doença congenita; será menino ou menina. Essas definições contribuem para construção
do mito singular de cada humano. Qual importância ou a influência da dor na constituição desse mito? Essa
será a questão norteadora de nossa reflexão neste trabalho.
Uma vez que a dor é inerente a todo ser humano, aquele que não sente dor, como no
caso da doença chamada analgesia, é considerado um ser patológico, pois não possui um
instrumento importante para sua sobrevivência. Segundo Berlinck “Não sentir dor coloca o
ser humano num radical desamparo. Sem ela, a existência fica gravemente ameaçada, já
que a dor acusa os estímulos potencialmente lesivos do presente, contidos no aqui e agora”.
(BERLINCK, 1999: 9-10)
A dor tem a função de defesa contra ameaças externas ao organismo, ela protege
anunciando um perigo próximo. Identificamos que a dor pode estar presente no mecanismo
de defesa contra a própria dor, podendo causar até dores físicas, tais como as doenças
somáticas. Não que seja possível fazer uma separação entre físico e psíquico. A dor
qualifica a existência humana, pois ela em excesso, ou em falta, leva o humano ao
adoecimento colocando em risco sua própria vida.
Uma das possibilidades do surgimento da dor psíquica se dá diante de um
acontecimento externo, que provoca uma perda ou separação de algo que mantém uma
relação de intimidade e de alguma forma nos pertence. Freud (1914/1987) faz referência ao
surgimento da dor psíquica, a partir da passagem do homem primitivo para humano. Isso
ocorreu no período da era glacial, em que a terra foi coberta por gelo, e resultou em novas
estratégias de sobrevivência diante das adversidades. O homem passou a utilizar os pés,
ficando ereto; os órgãos sexuais ficaram expostos; a regularidade sexual é modificada e a
busca do parceiro também, essa deixou der se guiar pelo olfato tendo a visão como
norteador. Como conseqüência dessas reformulações do estilo de vida, se constituiu o
aparelho psíquico que possibilitou o surgimento da criatividade para lidar com as agruras
do período. A dor surge como conseqüência dessa catástrofe, pois o estado de nirvana em
que supostamente se vivia antes da era glacial foi perdido.
E quando a dor se encontra com o mito? Para Rocha
" O mito é uma narrativa, é um discurso, uma fala. É uma forma das sociedades
espalharem
suas contradições,
exprimirem
seus paradoxos,
dúvidas e
inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a
existência, o cosmo, as situações de "estar no mundo" ou as relações sociais”.
( ROCHA:2006, 7)
Esta definição nos faz pensar na sua abrangência, por isso se torna possível refletir
sobre o mito individual de cada humano. Como cada um pôde ressignificar sua existência a
partir da catástrofe glacial? Como sobrevivemos às catástrofes que nos são impostas?
As vezes, não sabemos quem somos e o que queremos, outras vezes pensamos que
somos de um jeito e os outros nos vêem de uma maneira bem diferente daquilo que
pensamos ser. O mito, enquanto narrativa, nos faz pensar que a história individual de cada
um pode ser vista de diferentes maneiras. Essas diferenças são possíveis devido a
criatividade que cada um pode experienciar diante da sua dor existencial.
O autor continua e nos remete ao "O mito da existência. Resiste a tudo, fazendo no
fundo com que suas interpretações sejam, quase sempre, matéria prima para novos mitos".
(Idem p. 16)
O ser humano é um ser mítico, pois os mitos contribuem para que ele se constitua.
Relataremos agora uma vinheta de caso clínico para pensarmos sobre a dor e o mito
da existência.
João, tem 20 anos, é filho único. Seus pais estão desesperados, pois o filho não sai
de casa, vê vultos, escuta vozes de comando que mandam ele se jogar pela janela. Na
maioria do tempo João Pedro parece normal, é carinhoso, conversa tranqüilamente
chegando a suscitar dúvidas de seu adoecimento para os pais, que não aceitam sua
internação quando lhe é prescrita.
O rapaz quando é contrariado fica agressivo já tendo agredido a mãe fisicamente
algumas vezes.
Sua mãe teve uma gravidez anterior. Foi uma gravidez de risco e o bebê nasceu
morto. Seu nome era Antônio e foi enterrado pelos parentes, pois os pais não aguentaram
vê-lo morto.
Sua mãe engravidou em seguida e João nasceu exatamente um ano depois, no
mesmo dia do irmão. A gravidez também fora de risco devido à fragilidade física da mãe,
ela ficou internada por mais de quinze dias não podendo cuidar do filho nesse período. A
ansiedade por estar hospitalizada era grande. Após o nascimento a mãe parou de trabalhar
pois tinha muito medo de perdê-lo.
João sonha com o irmão que não conheceu, imagina-se convivendo com ele. Pedi
para ir o cemitério ver o túmulo, mas encontra resistência dos pais em levá-lo.
O pai de João é agressivo e já ameaçou a mãe de morte várias vezes. Ela, por sua
vez, tem medo de separação, pois o marido prometeu matá-la se isso acontecesse. Ela
alimenta o desejo de separação desde de quando João tinha quatro anos de idade. Eles estão
separados, mas moram na mesma casa.
Hoje João domina os pais e a casa, dando ordens a todos e quando seus desejos não
são satisfeitos tem picos de agressividade. Sente-se rejeitado pelos pais e gostaria de ser
tratado como uma criança de um ano, pois assistiu sua fita de aniversário deste período e
acha que era muito feliz naquela época.
Nos parece que o nascimento de João veio para aplacar a dor dos pais pela perda de
seu primeiro filho. Grande responsabilidade tem ele que cobra, a peso de ouro dos pais, por
realizar uma tarefa tão árdua. Hoje sua mãe tem o desejo de mudar de casa, mas não
consegue sair, pois tem medo que o filho se mate ou o marido a mate. Vemos a morte, mais
uma vez, direcionando os destinos dessa família. Seria a dor da separação um mito
insuportável para eles?
A mãe de João se relacionou de forma tão intensa com o filho, não deixando espaço
para o pai, pois ele poderia separar a sedução narcísica entre mãe e filho, não sendo assim
bem vindo. O pai não conseguiu ocupar seu lugar no triângulo edípico, ele sabia apenas
trabalhar para sustentar a família.
Segundo Naouri (2001) na relação mãe-bebê há uma propensão incestuosa natural
que faz parte do desejo feminino. Porém quando os pais carregam intensas questões
edípicas podem enfraquecer o engendramento positivo da sedução narcísica entre mãebebê, impossibilitando a elaboração do luto originário da separação entre mãe e filho. A
separação é associada a morte, assim como ocorre no mito de Narciso que afoga-se em si
mesmo. Como existir sem a completude do outro?
João ora parece querer sair dessa relação, mas tem medo de morrer, tendo o mesmo
destino de seu irmão, que não conseguiu separar-se da mãe com vida. Sua mãe, mesmo
querendo romper com essa relação com o filho, tem medo de perde-lo como perdeu
Antônio que parece ter dito “ Mãe é duro a dor do parto, mas tenho que partir”.
Assim o mito existencial de João vem carregando a dor experienciado pela
catástrofe da perda de seu irmão. Seus pais não elaboraram o luto de seu primeiro filho, o
casal ainda padece da dor da perda de Antônio, e enquanto isso, João também se encontra
imerso no seu mito existencial, que tenta, sem sucesso, aplacar a sua dor.
BIBLIOGRAFIA
BERLINCK, M. T. (Org.) Dor. São Paulo: Escuta, 1999.
FREUD, S. Neurose de transferência: uma síntese, trad. de Abram Eksterman. Rio de
Janeiro, Imago, 1914/1987.
NASIO, J.-D. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
NAURI, A.Un inceste sans passage à l'acte: la relation mère-enfant. In Héritier, F: De
L'inceste. Paris.Odile Jacob.2000.
ROCHA. E. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 2006.
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