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“QUEREMOS DEIXAR DE SOBREVIVER, QUEREMOS VIVER COM DIGNIDADE EM NOSSA TERRA”
O PAPEL DO CAPITAL SOCIAL NAS ESTRATEGIAS DE REPRODUÇÃO SOCIAL DOS
PRODUTORES FAMILIARES DO PLANALTO JUJEÑO, ARGENTINA.
CARLOS COWAN ROS
SERGIO SCHNEIDER
RESUMO
Nos anos 90, produto da radicalização do modelo neoliberal, importantes
transformações sociais e institucionais ocorreram na Argentina.
Tais mudanças
afetaram as estratégias de reprodução social dos produtores familiares rurais do
país, sobretudo aqueles localizados no planalto jujeño – extremo norte da Argentina.
Estas famílias, com a diminuição da procura de mão-de-obra nos destinos
tradicionais
de
migração
(safra
nos
engenhos
açucareiros
e
complexos
mineradores), viram-se privadas da sua principal fonte de renda. Perante esta
situação, estes agentes defrontaram-se com uma crise nas suas estratégias de
geração de renda, o que demandou a necessidade de implementação de novas
formas de gerar ingressos econômicos. O objetivo geral deste artigo é identificar as
novas estratégias de reprodução social das famílias rurais do planalto jujeño - em
particular as de geração de renda - que surgiram como conseqüência das
transformações sociais ocorridas nos anos 90 na Argentina. Em particular, deseja-se
analisar o papel do capital social na definição e implementação destas estratégias.
Na realização da pesquisa utilizou-se o método qualitativo, sendo a técnica de
análise o estudo de caso. Para o recolhimento de dados utilizou-se de entrevistas
semi-estruturadas e da observação em diferentes eventos das organizações sociais
do território.
PALAVRAS
familiares.
CHAVES:
estratégias de reprodução social, capital social e
produtores
2
1.
INTRODUÇÃO
O território onde se localiza o objeto de estudo está compreendido por duas regiões
andinas: i) a Puna, planalto situado entre 3000 e 4000 metros acima do nível do mar –
m.a.n.m.- e ii) a Quebrada de Humahuaca, vale de altura que se estende entre os 600 e 3700
m.a.n.m. Ambas as regiões – conhecidas como as terras altas- estão localizadas no norte da
Província de Jujuy, noroeste da Argentina e caracterizam-se por apresentar um clima frio e
seco e uma geografia acidentada1.
A população que vive neste território é de origem indígena –coyas- e está dispersa no
âmbito rural em comunidades - que ainda mantêm muitas das instituições sociais das etnias
pré-existentes a chegada dos espanhóis - e no meio urbano, nas seis pequenas cidades que
existem no território.
A realidade social que apresenta na atualidade o território tem sido modelada ao longo da
história pelas visões de mundo dominantes, que através das políticas publicas têm
condicionado suas possibilidades de “desenvolvimento” e, naturalmente, as estratégias de
reprodução social de seus habitantes2. De fato, no final do século XIX ocorreu um processo de
integração e especialização produtiva entre as diferentes regiões do país, sendo dominante a
lógica centro-periferia. O planalto jujeño, ao ser considerado como “improdutivo” e “estéril”
-devido a suas características climáticas e geográficas-, acabou por ser marginalizado das
políticas de investimento em infraestrutura e serviços. Em contraposição, o sul da província as terras baixas - onde o clima e a geografia são apropriados para a produção de cana-deaçúcar e fumo, foi priorizado pelas políticas públicas e converteu-se no pólo produtivo da
Província. Em decorrência desta visão de mundo, o território constituiu-se numa das zonas do
país onde os habitantes encontram muitas dificuldades para atingir a qualidade de vida que
desejam seus habitantes.
Assim, na visão de mundo dominante tem-se outorgado ao território o papel de “extração
de minerais” e de “reprodução de mão-de-obra” para trabalhar nos pólos econômicos da
Província e do país. No meio rural desenvolveu-se uma produção agropecuária de
subsistência, isto é, orientada principalmente ao autoconsumo familiar sendo caracterizados
os produtores agropecuários como “minifundistas”, “camponeses semi-proletarios” ou
“semiassalariados” segundo os diferentes pesquisadores3. Desta forma, incentivou-se nos
nativos a disposição a emigrar sendo esta uma das características mais distintivas do território.
De fato, ao longo do século XX, a venda de mão-de-obra constituiu-se na principal fonte
de renda das famílias rurais do território. Por sua parte, as famílias que migravam
temporariamente - de maio a outubro - para trabalhar na safra de cana-de-açúcar, retornavam
à comunidade de origem durante o resto do ano e através da produção agropecuária
complementavam a renda obtida na safra. Nestes casos existiu um processo de semiproletarização (ABDUCA, 1995 e REBORATTI, 1997). No caso dos nativos que emigraram
1
Doravante utilizar-se-á indistintamente o termo “território” ou “planalto jujeño” para fazer referencia à zona
geográfica compreendida pela Puna e a Quebrada de Humahuaca.
2
Refere-se às visões de mundo dos setores ou classes sociais dominantes da Província –donos de engenhos
açucareiros, empresários de minas, latifundiários, etc.- que têm conseguido impor seus interesses nas políticas
públicas.
3
O debate sobre a forma de denominar aos produtores agropecuários tem sido muito importante, embora não se
tenha chegado a um consenso. Porém, este debate não é tema do presente artigo, portanto, faremos uso do termo
“pequenos produtores familiares” para referir-nos aos produtores de mercadorias agropecuárias e não
agropecuárias - principalmente artesanatos - que realizam o processo produtivo principalmente com mão-deobra familiar.
3
permanentemente aos complexos mineiros localizados no território registrou-se um processo
de proletarização, pois, abandonaram a produção agropecuária e a sua renda passou a
depender exclusivamente de seu salário.
Em outros casos, a família ou algum membro desta emigrava definitivamente a uns dos
principais centros urbanos do país para procurar emprego como operário em industrias,
pedreiros ou faxineiras, conforme fosse a migração. Freqüentemente, uma parte do salário era
enviado ao resto dos parentes que tinham permanecido na comunidade para complementar a
renda familiar.
Não obstante, a partir da segunda metade da década de 1970, começa no país a
implantação de políticas de corte neoliberais, fato que dá início ao retraimento da atividade
industrial nacional e, conseqüentemente, da atividade mineradora. Por outro lado, nessa
década começou o processo de mecanização da colheita de cana-de-açúcar (REBORATTI,
1997). Ambos os processos promoveram a diminuição na procura de mão-de-obra e a queda
do salário nos destinos tradicionais de migração dos nativos do território. Perante este
contexto os nativos começaram a mudar gradualmente os destinos da migração para outros
cultivos (fumo, hortas, etc.), atividades não agropecuárias (construção de barragens, pontes,
etc.) e também se intensificou a migração às grandes cidades do país.
Contudo, na década de 1990, com a radicalização das políticas neoliberais, fecharam dois
dos três complexos mineradores do território, acelerou-se o processo de mecanização da
colheita da cana-de-açúcar e as taxas de desemprego nas principais cidades do país atingiram
20 %. Perante esta situação as famílias do território viram-se impossibilitadas de vender mãode-obra e, portanto, com a dificuldade de garantir sua própria subsistência. Em outras
palavras, na década passada, evidenciou-se uma crise ou desajuste entre as estratégias de
reprodução social dos nativos e as oportunidades que oferecia o contexto, fato que nos leva a
formular o seguinte problema de pesquisa: como foram reformuladas as estratégias de
reprodução social dos nativos ante o contexto de crise social e institucional que se instalou na
Argentina nos anos 90?
Neste sentido, o presente artigo tem por objetivo identificar as novas estratégias de
reprodução social das famílias rurais do planalto jujeño. Em particular, deseja-se analisar “o
papel que tem jogado” o capital social nas estratégias de reprodução social destes agentes.
Nesta pesquisa propõe-se que o investimento em capital social e sua conversão em outros
tipos de capital – em particular, o econômico - têm tido um papel fundamental nas estratégias
de reprodução social dos pequenos produtores familiares do planalto jujeño. Em alguns casos,
esta acumulação de capitais não só serviu para garantir a subsistência das famílias, mas
também, para tentar ascender posições no espaço social em que eles vivem.
Na realização da pesquisa utilizou-se o método qualitativo, sendo a estratégia de pesquisa
o estudo de caso. As fontes de informação foram primárias e secundarias. As fontes primárias
foram relevadas em duas etapas no ano 2002, sendo as técnicas de coleta de dados: as
entrevistas semi-estruturadas a 40 agentes do território e a observação participante e não
participante em diferentes eventos das organizações sociais do território - congressos,
reuniões institucionais, caminhadas públicas, etc.
2.
O
CAPITAL SOCIAL NAS ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO
ABORDAGEM DESDE A PERSPECTIVA DE BOURDIEU
SOCIAL,
UMA
A utilização do capital social como um conceito que se refere às relações de
reciprocidade e cooperação no interior de determinados grupos sociais não representa
4
exatamente uma novidade, pois se trata de uma dimensão dos estudos sociológicos que
remonta à época de Durkheim no período do final do século XIX. Mais recentemente, a
contribuição teórica do conceito de capital social fundamenta-se em abordar estas relações,
não pelas suas características intrínsecas, mas pelo seu valor como capital, ou seja, como
recurso dos agentes para cumprir determinados fins.
Entre os sociólogos contemporâneos, deve-se a Bourdieu a introdução desta noção no
começo dos anos 1980. O autor, interessado na construção de uma teoria social geral,
identifica diferentes tipos de capitais - econômico, cultural, simbólico e social – os quais são
acumulados pelos agentes. Neste marco, o autor define ao capital social como,
“(...) o agregado dos recursos atuais ou potenciais que estão vinculados à posse de
uma rede duradoura de relações mais ou menos institucionalizadas de mútuo
conhecimento e reconhecimento que providencia a cada um de seus membros, com o
respaldo do próprio capital da coletividade; uma afiliação que dá direito a um crédito
nos diferentes sentidos da palavra” (BOURDIEU, 1986 p. 249)4.
Na perspectiva do autor, o capital é trabalho acumulado -na sua forma materializada ou
corporizada- que quando é apropriada em forma privada, individual ou coletivamente,
possibilita ao/s agente/s apropriar-se do poder contido nesse capital para a concreção de seus
interesses.
Em 1988, Coleman incorpora a noção de capital social na corrente sociológica anglosaxônica5. O autor procura com esta noção evitar a sobre-dimensão que a teoria da ação
racional faz da perspectiva individual e pretende ampliar a aplicação desta teoria a outros
sistemas sociais além do econômico. Como Bourdieu, Coleman identifica a produtividade
como uma das propriedades do capital social, porém segundo este último autor o capital
social – entendido como um bem comunitário - faz parte da estrutura social e, portanto, está
disponível de igual maneira para todos os indivíduos da sociedade. Nesta perspectiva, o
capital social compreenderia a confiança e a cooperação mutua contribuindo assim à coesão e
integração social6.
De fato, o autor não coloca ênfases na possibilidade de ocorrer uma distribuição
desigual do capital social entre os agentes. Esta perspectiva supõe a existência de interesses
4
Tanto esta citação como as seguintes foram traduzidas pelos autores do presente artigo sendo responsabilidade
destes os erros de tradução e interpretação que puderem eventualmente existir.
5
Coleman, ao conceitualizar a noção de capital social, propõe que este “(...) é definido por sua função. Não é
uma entidade particular, mas uma variedade de diferentes entidades com dois elementos em comum: todos eles
fazem parte de alguns aspectos das estruturas sociais e facilitam determinadas ações dos atores – sejam pessoas
ou atores coletivos - dentro da estrutura. Da mesma forma que outras formas de capital (financeiro, físico e
humano) o capital social é produtivo, fazendo possível a concreção de determinados fins que na sua ausência não
se poderiam atingir” (COLEMAN, 1988 p. 98). Nesta perspectiva, o capital social manifesta-se através: i) dos
canais de comunicação ii) das obrigações, expectativas e lealdades e iii) das normas e sanções sociais que fazem
parte da estrutura social (COLEMAN, 1988).
6
Esta perspectiva ganhou grande difusão a partir do momento em que Putnam publica uma pesquisa realizada na
Itália, na qual se tenta responder os motivos que levaram ao norte da Itália a ter um desempenho institucional
melhor que o sul do país, diante de uma reforma política e institucional no sentido da descentralização. A tese de
Putnam propõe a existência de uma relação positiva entre desempenho institucional, modernidade
socioeconômica de uma região, participação cívica e vida coletiva. Nesta perspectiva, a participação cívica e a
vida coletiva de uma sociedade estão determinados pela dotação de capital social desta última. No entanto,
Putnam entende que o capital social, como uma característica cultural, é um recurso comunitário construído e
moldado ao longo da história, sendo difícil sua criação ao curto prazo (PUTNAM et al 1996). A abordagem
realizada por Putnam e as conclusões resultantes de sua pesquisa, têm sido questionadas por vários autores por
seu determinismo histórico, por sua leitura culturalista e pela tautologia que introduziu o autor na
conceitualização da noção de capital social. Para aprofundar sobre este debate recomenda-se ler HIGGINS,
(2003) e ABU-EL-HAJ (1999).
5
comuns entre os membros de uma sociedade cumprindo assim este tipo de capital a função da
integração e coesão social. Desta forma, o capital social, como recurso teórico, não é
utilizado para estudar o conflito social mas para analisar como este tipo de capital contribui
para melhorar a eficiência e o funcionamento da sociedade.
Diferentemente de Coleman, Bourdieu entende o capital como um ativo pessoal e
salienta que não se encontra disponível em igualdade de condições para os agentes. Assim, a
dotação de capital social que possui cada agente depende dos investimentos que ele realiza
para ampliar ou manter suas relações sociais e do capital (econômico, cultural, etc.) que
possuem seus parceiros. Portanto, o capital - entendido como poder - está distribuído
assimetricamente entre os agentes, fato que explica a estruturação hierárquica da sociedade,
isto é, a existência de grupos sociais – ou classes – que, segundo a dotação de capital que
possuem, encontram-se numa posição dominante ou dominada na disputa por tentar impor a
sua própria concepção de mundo.
De fato, Bourdieu, em sua análise da realidade social entende a sociedade como um
campo de disputas, no qual os agentes envolvem-se em disputas por impor suas visões de
mundo. Neste sentido, a sociedade é vista como um mundo de lutas e conflitos onde as
relações de dominação - isto é, de imposição de pontos de vistas - são inerentes a toda relação
humana; o que, por sua vez, explica a existência de agentes em posições dominantes e outros
em posição de dominados. No entanto, estas disputas não se dão em um vazio social, mas se
estabelecem em um espaço social no qual os agentes ocupam diferentes posições ocupando as
hierárquicas aqueles agentes que possuírem maior dotação de capital (BOURDIEU, 1985).
Bourdieu identifica os seguintes tipos de capitais: o econômico (em suas diferentes
formas), o cultural7, o simbólico8 e o social. O capital social, como foi dito, é a soma dos
capitais e poderes contidos nas relações sociais estabelecidas por um grupo de agentes. Assim,
“Estas relações podem existir apenas no estado pratico, nos intercâmbios materiais
e/ou simbólicos que ajudam a mantê-los. Também podem estar instituídas socialmente
e garantidas pela aplicação de um nome comum (a família, a classe, a tribo, a escola, o
partido, etc.) e por um conjunto de atos institucionalizados que são designados para
formar e informar simultaneamente àqueles que estão sujeitos; neste caso, elas estão
mais ou menos explicitadas e, portanto, mantidas e reforçadas nos intercâmbios. Ao
estar sustentadas em intercâmbios simbólicos e materiais insolúveis, seu
estabelecimento e manutenção pressupõe o reconhecimento de proximidade, elas são,
também, parcialmente irreduzíveis às relações objetivas de proximidade no espaço
físico (geográficas) ou também no espaço econômico e social” (BOURDIEU, 1986
p.249).
Destarte, a existência de uma rede de vínculos não está nem natural nem socialmente
dada, mas faz parte de estratégias de investimento que realizam os agentes por reproduzir ou
ampliar seus vínculos.
Bourdieu manifesta que uma das propriedades do capital é sua possibilidade de
conversão de uma forma para outra. “A conversão dos diferentes tipos de capitais é a base das
estratégias dirigidas a garantir a reprodução do capital (e a posição ocupada no espaço social)
7
“O capital cultural pode existir em três formas diferentes: no estado incorporado, por exemplo, na forma de
disposições duráveis da mente e do corpo; no estado objetivado, na forma de bens culturais (quadros, livros,
dicionários, instrumentos, máquinas, etc.), os quais são a marca ou realização de teorias ou críticas dessas
mesmas teorias, problemáticas, etc.; e no estado institucionalizado, a forma de objetivação que deve ser
estabelecida aparte porque confere propriedades inteiramente originais sobre o capital cultural que se presume
que o possui” (BOURDIEU, 1984 p.243).
8
O capital simbólico - comumente chamado prestigio, reputação, renome, etc. - é o capital, de qualquer espécie,
quando é percebido por um agente dotado de categorias de percepção (BOURDIEU, 1986).
6
com a ajuda do menor custo em termos de trabalho de conversão e as perdidas inerentes à
própria conversão” (BOURDIEU, 1986 p. 252-253).
Neste sentido, os agentes conseguem reproduzir-se na posição que ocupam no espaço
social a partir de um sistema de estratégias de reprodução social as quais são definidas como
o conjunto de estratégias “através das quais a família visa se reproduzir biologicamente e,
sobretudo, socialmente, isto é, reproduzir as propriedades que lhe permitem conservar sua
posição, sua situação no universo social considerado” (BOURDIEU, 1990 p.87).
Para analisar a lógica de ação dos agentes e o modo em que definem suas estratégias, o
autor propõe a utilização da noção de habitus, que é entendida como:
“as estruturas sociais de nossa subjetividade que se constituem inicialmente por meio
de nossas primeiras experiências (habitus primário), e depois, de nossa vida adulta
(habitus secundário). É a maneira como as estruturas sociais se imprimem em nossas
cabeças e em nossos corpos pela interiorização da exterioridade. É um sistema de
disposições duráveis e transponíveis”9 (CURCUFF, 2001, p. 50).
Para a realização desta pesquisa, optou-se pela abordagem teórica proposta por
Bourdieu. Esta eleição funda-se no fato de que esta perspectiva, ao considerar o capital como
poder que pertence aos agentes individuais ou coletivos - e não às sociedades como é
considerado na proposta de Coleman – e, portanto, considerar a distribuição assimétrica dos
capitais entre os agentes sociais, permite, ter uma maior compreensão das lógicas de ação dos
agentes, em especial as estratégias que desenvolvem para garantir sua reprodução social e as
disputas que se estabelecem na luta por tentar impor seus interesses e ascender posições no
espaço social.
3.
A VOLTA AO TERRITÓRIO
Na década de 1990, com a queda da procura de mão-de-obra e, conseqüentemente, dos
salários nos destinos tradicionais de migração dos nativos do território -complexos
mineradores, engenhos açucareiros e grandes cidades- estes agentes defrontaram-se com o
desafio de encontrar algum meio de subsistência em seu lugar de origem.
De fato, na década passada evidenciou-se no território uma “migração de retorno”, isto é,
a volta ao território daqueles agentes que tinham emigrado para procurar suas fontes de renda
em outras regiões. No mesmo sentido, tanto aqueles produtores que migravam
temporariamente à safra como aqueles agentes mais novos que já estavam em idade de
começar a migrar foram desestimulados perante esta conjuntura. Neste novo contexto o
aumento da permanência da população no território ao longo do ano repercutiu na rede de
relações sociais gerando um processo de intensificação destas, ou seja, uma densificação do
tecido social do território.
Estes dois fenômenos serão analisados na presente seção, pois nos permitem entender
como surgiram novas estratégias de reprodução social e o papel que tem tido o capital social
neste processo.
9
“Disposições, isto é, inclinações a perceber, sentir, fazer e pensar de uma certa maneira, interiorizadas e
incorporadas, geralmente de maneira inconsciente, para cada indivíduo, decorrentes de suas condições objetivas
de existência e de sua trajetória social. Duráveis, pois se estas disposições podem se modificar no curso de
nossas experiências, elas são, no entanto, fortemente enraizadas em nós e tendem, por isso, a resistir à mudança,
marcando assim uma certa continuidade na vida de uma pessoa. Transponíveis, pois disposições adquiridas ao
longo de certas experiências (familiares, por exemplo) têm efeitos sobre outras esferas de experiências
(profissionais, por exemplo) é o primeiro elemento de unidade da pessoa”. (CORCUFF, 2001, p. 51).
7
3.1. O DESAFIO DE ENCONTRAR UMA FORMA DE SUBSISTÊNCIA NO TERRITORIO
As famílias que migravam temporariamente à colheita de cultivos agrícolas, com a queda
na procura de mão-de-obra, viram-se privadas da sua principal fonte de renda. Embora estas
famílias historicamente realizarem atividades agropecuárias – ovelhas, lhamas, hortaliças e
milho - o destino de sua produção era eminentemente para o consumo familiar, portanto, era
preciso procurar uma nova remuneração que possibilitasse cobrir as necessidades (de
alimentação, saúde, educação, etc.) da família.
Assim, como forma de contornar esta situação, muitas destas famílias tentaram iniciar
uma produção agropecuária visando colocar seus produtos no mercado. Evidentemente, a
procura de uma fonte de renda através da produção agropecuária é explicada pelo habitus
destas famílias que, historicamente, estiveram em relacionadas com o trabalho da terra. Por
outro lado, estas famílias contavam com alguns recursos – em especial a terra - para iniciar o
empreendimento produtivo. No entanto, existe uma grande diferencia entre produzir produtos
agropecuários para o consumo familiar e a vender destes no mercado, foi este o desafio com
que se defrontaram estes agentes.
Em primeiro lugar, os produtos que tradicionalmente produziam as famílias, nem sempre
eram factíveis de serem comercializados. Isto obrigou a incorporar novos cultivos, em
especial, hortaliças. Porém, para iniciar o processo produtivo, os nativos não só precisavam
de recursos financeiros para a compra das sementes e dos insumos agropecuários, mas
também, do conhecimento técnico que demandavam estes cultivos. Além disso, é importante
ressaltar que, em decorrência das características climáticas e geográficas do território, a
produção agropecuária exige a realização de uma série de práticas complementares como:
construção de barreiras contra a erosão fluvial dos rios, adubação permanente do solo,
manutenção dos canais de irrigação, entre outras atividades. Porém, após décadas de
emigração contínua das famílias e, também, devido ao conseqüente processo de abandono da
produção agropecuária, a “infraestrutura comunitária” encontrava-se fortemente deteriorada.
Além disso, às dificuldades que as famílias encontravam no âmbito da comunidade para
levar adiante uma produção agropecuária orientada ao mercado deve considerar-se a
adversidade que oferecia o contexto territorial. De fato, cabe destacar que, perante a falta de
uma “tradição agropecuária orientada ao mercado”, no planalto jujeño existia uma carência de
canais de comercialização - tanto de produtos como de insumos - de infraestrutura
(matadouros, etc.), entre outros fatores estruturais.
Somado a isso, o mercado local apresentava-se muito reduzido para absorver a
totalidade da produção local, sendo San Salvador de Jujuy – capital provincial situada nas
terras baixas a 300 km do centro do planalto jujeño - o mercado mais próximo onde se
poderia vender a produção. Por fim, é preciso ainda considerar, a existência de um marco
legislativo adverso e hostil para o pequeno produtor de mercadorias, devido à existência de
uma política fiscal regressiva e, também de medidas sanitárias e jurídicas que não são
apropriadas a realidade produtiva destes pequenos produtores.
No que diz respeito às famílias que trabalhavam nas minas, embora algumas
retornaram a suas comunidades de origem, a maior parte destas deslocaram-se para as
principais cidades do território em busca de algum emprego. Estas famílias, após anos de
garantir sua reprodução social a partir da venda de mão-de-obra (tendo como conseqüência o
abandono da produção agropecuária como forma de subsistência), ao serem fechadas as
minas, a lógica seguida por elas foi procurar algum outro lugar onde vender sua mão-de-obra.
Em outras palavras, as disposições para a venda de mão-de-obra - contidas no habitus -
8
primaram e marcaram a estratégia a seguir. Por outro lado, a venda de mão-de-obra era o
único que tinham para oferecer pois na maioria das vezes careciam de capital econômico para
a realização de um empreendimento produtivo ou comercial.
Não obstante, a única atividade produtiva de relevância no planalto jujeño era a
atividade mineradora que, de alguma forma, ativava a pequena economia das cidades do
território. Porém, com o retraimento do setor minerador também se viu afetada a economia
urbana e em decorrência deste processo, as taxas de desemprego atingiram o índice de 50%
nas cidades do território.
Como se percebe, as dificuldades com as quais se defrontaram estes agentes não foram
menores que aquelas enfrentadas por aqueles que tentaram gerar a sua fonte de renda através
da produção agropecuária. Em ambos os casos, a carência de capital converteu-se em uma
limitante para gerar capital e, assim, garantir a reprodução social da família.
3.2. A DENSIFICAÇÃO DO TECIDO SOCIAL DO TERRITÓRIO
As relações de compadrio, amizade e de vizinhança são relações diádicas de
reciprocidade, isto é, de troca de favores nas quais, pelo geral, também existe uma carga
afetiva. Como em toda sociedade, este tipo de relações tem estado amplamente esparzidas no
planalto jujeño. Porém, para que este tipo de relações se mantenha vigente, precisa-se da
renovação continua dos contratos sociais entre as partes, fato que se realiza em cada nova
prestação de favores e na retribuição destes.
Contudo, este tipo de relações foi enfraquecido no território devido aos contínuos fluxos
migratórios que afastavam os nativos de suas comunidades. De fato, embora a maior parte dos
nativos que residiam em outras regiões mantinham o vínculo com suas comunidades, apenas
podiam visitar seus parentes uma vez no ano, nas ferias. No mesmo sentido, muitas das
instituições comunitárias –minga10, señalada11, festas comunitárias, manutenção de canais de
irrigação, etc.- foram perdendo intensidade tanto na freqüência de sua realização como no
numero de pessoas que participam12. Porém, nos anos 90, a partir do momento que começa o
“retorno ao território” dos nativos, este tipo de relações sociais e instituições comunitárias
começaram-se a reforçar.
O fato mais significativo no território na década de 1990 é o fortalecimento das formas de
organização social tradicionais e o surgimento de novas modalidades de articulação social.
Este processo de fortalecimento das relações diádicas de reciprocidade e cooperação e de
incremento do número de organizações sociais do planalto jujeño será denominado:
densificação do tecido social do território (figura 1).
10
Minga: evento de trabalho e festivo no qual uma família convoca a seus amigos e parentes para que ajudem na
realização de lavouras ou na construção ou reparação de uma moradia. No final da jornada de trabalho a família
agradece aos que vieram com uma festa e assume o compromisso de ajudar a seus parceiros quando o
precisarem.
11
Señalada: evento semelhante à minga mas relativo à marcação de animais.
12
No caso das instituições comunitárias originadas na cultura nativa a perda de sua vigência não só se explica
pelo despovoamento das comunidades rurais, mas também, pela desvalorização que desde a cultura dominante –
a ocidental - faz-se da cultura nativa. Porém, na Argentina, a luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de
seus direitos adquiriu um vigor especial em 1992 a partir da realização dos contra-festejos pelos 500 anos da
colonização hispânica do continente. Este fato, contribuiu a promover um lento processo de revalorização da
cultura nativa numa parcela da sociedade.
9
Figura 1 Densificação do tecido social do território
INTENSIFICAÇÃO DE RELAÇÕES DIÁDICAS
(compadrio, familiais, vizinhança, amizade, etc.)
NOVOS VÍNCULOS ENTRE
FORTALECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES E
COMUNIDADES
(redes, organizações sindicais, org.
indigenistas, ONG de apoio,
cooperativas etc )
DENSIFICAÇÃO DO
TECIDO SOCIAL DO
TERRITÓRIO
INSTITUIÇÕES COMUNITÁRIAS
(centros
de
vizinhança,
mingas,
señaladas, festas comunitárias, grupos
políticos
e
religiosos,
refeitórios
comunitários, clubes, etc.).
NOVAS MODALIDADES ORGANIZATIVAS NAS COMUNIDADES
(org. de produtores agropecuários, grupos de artesãos, botequins
sanitários, grupos de jovens, grupo de mulheres, org. comunitárias
aborígines, etc.)
Este processo não só foi possível pela disposição dos nativos do território a estabelecer
relações de reciprocidade e à diminuição da taxa de emigração do território, mas também,
pela convergência de outros três fenômenos: i) a necessidades dos nativos de se articularem
para viabilizar novas estratégias geração de renda -aspecto analisado na seção anterior- ii) a
sanção de um novo marco legislativo que possibilita o acesso à propriedade da terra das
comunidades indígenas, e iii) o trabalho realizado pelos mediadores sociais.
A sanção de um novo marco legislativo foi produto da reforma da Constituição Nacional
de 1994. Na nova Constituição incluiu-se o reconhecimento do direito dos povos indígenas a
obter o título de propriedade das terras onde residiam. A implementação desta lei deveria ser
executada pelos governos províncias, porém, no caso da Província de Jujuy, a lei não se
executou. Perante esta situação, na província, formaram-se organizações indigenistas com o
objetivo de pressionar o governo para que se efetivasse a entrega do título de propriedade das
terras às comunidades indígenas que o solicitassem. Estas organizações têm tido um papel
muito importante no assessoramento legal e na promoção da organização e mobilização das
comunidades rurais.
Por mediadores entendemos a aqueles agentes que articulam mundos sociais diferentes.
Conforme Neves, “os mediadores não atuam como elo de união de mundos diferenciados e
deles distanciados como tais. Eles próprios constroem as representações dos mundos sociais
que pretendem interligar e o campo de relações que viabiliza este modo específico de
interligação” (NEVES. 1998 p. 155). No ato de mediar estão implícitas relações de poder, de
fato, o mediador ao ser quem transmite a informação e ser o nexo através do qual os mediados
se articulam com o outro universo, encontra-se numa situação privilegiada em relação a estes
últimos estabelecendo-se assim relações assimétricas entre ambas as partes.
Os representantes de partidos políticos e os agentes vinculados à Igreja Católica,
historicamente têm ocupado o papel de mediadores sociais no território. Entende-se que estes
agentes têm desempenhado o papel de mediadores sociais por: serem o porta-voz das
demandas ou reivindicações dos nativos ante o governo provincial e nacional, e por serem os
executores dos programas nacionais de assistência sociais, entre outras funções que assumem.
Entre os políticos destacam-se os prefeitos e comissionados municipais que estabeleciam
vínculos clientelísticos com os moradores do território. Estes mediadores, a partir dos favores
10
realizados aos moradores de “sua jurisdição”, têm recebido o apoio eleitoral e, assim, têm
conseguido reproduzir-se na sua posição social, por certo, privilegiada se se tem em conta a
qualidade de vida dos habitantes do território.
Tradicionalmente, os políticos articulavam-se com os moradores das comunidades através
dos “centros de vizinhança” nos quais as famílias reuniam-se em assembléia e formulavam
suas petições aos políticos. Destarte muitas comunidades encontravam-se identificadas com
diferentes “cores políticas” que evidenciavam sua “fidelidade” a um determinado político.
Esta situação intensificou-se na década passada. A urgente necessidade das famílias de
garantir sua subsistência favoreceu o fortalecimento de seus vínculos com os políticos para
aceder ao beneficio de algum programa público de assistência social13.
Os mediadores religiosos também tiveram um papel ativo na promoção da organização da
população do território. Estes mediadores promoveram a formação de grupos religiosos e de
refeitórios comunitários em torno das capelas das comunidades rurais e das cidades. Em
particular destaca-se o trabalho que realizou a Igreja Católica através da Organização
Claretiana para o Desenvolvimento – OCLADE - uma ONG de promoção social que chegou a
assistir a 3000 famílias do planalto jujeño. Paralelamente, nos anos 90 surgiram no território
as Igrejas Evangélicas, as quais também organizaram grupos de fieis em torno dos templos.
Na perspectiva de diferentes entrevistados - na sua maioria lideranças de organizações de
produtores - a forma de agir dos mediadores políticos e religiosos, embora promovessem a
organização de uma parte da população, por outro lado, geraram conflitos entre as famílias
devido às diferenças partidárias ou religiosas. Além disso, através das relações clientelísticas
que estes mediadores estabelecem com os “mediados”, fomentam entre os nativos atitudes
submissas e de autodesvalorização.
Nos anos 90, surgiram novos mediadores sociais no território, em particular, técnicos de
programas públicos de assistência social e de ONGs de promoção social. O surgimento de um
número significativo de ONGs ao longo do país explica-se pela política do governo de
terceirizar a execução de alguns programas sociais a organizações da sociedade civil. Esta
política significou uma nova fonte de financiamento para as ONGs, fato que fortaleceu o agir
das organizações que já existiam e promoveu o surgimento de novas (COWAN ROS, 2000).
Assim, ao trabalho de promoção social que vinha realizando OCLADE, somaram-se: 6
ONGs – três integradas na sua totalidade por técnicos originários fora do território e três
integradas por nativos -, 3 programas públicos de desenvolvimento rural – Unidad de
Minifúndio, Programa Social Agropecuário e Programa Cambio Rural - e a Agência de
Cooperação Técnica Alemã – GTZ -. Isto é, na década de 1990, aproximadamente, 50
técnicos começaram a trabalhar na promoção social do território.
Estas organizações concentraram-se em dar uma resposta à critica situação econômica dos
nativos. A estratégia de ação, na maior parte dos casos, foi a promoção da produção
agropecuária e artesanal visando sua comercialização e o fortalecimento do consumo familiar.
Outro aspecto de grande importância na estratégia de intervenção destes mediadores sociais,
13
Na Argentina, na década de 1990, na medida que se radicalizavam as políticas neoliberais e se avança na
concepção do “Estado mínimo”, um número significativo de programas públicos de assistência social começou a
executar-se. Embora isto possa parecer uma contradição no próprio modelo neoliberal foi justamente, uma
componente chave deste modelo. De fato, o papel que estes programas deviam cumprir era “conter” o processo
de exclusão social decorrente das políticas de liberalização e apertura econômica, daí que estes programas foram
chamados na literatura acadêmica de “programas paliativos”. Porém, a parcela da sociedade que ficou excluída
do mercado de trabalho incrementou-se ano a ano e foi muito além do que orçamento público podia assistir – ou
“conter” - fato que contribuiu ao ciclo ascendente de protestos que culminaram no 21 e 22 de dezembro de 2001
e na conseqüente perda de legitimidade do modelo neoliberal entre a maior parte da população Argentina.
11
foi a promoção da organização dos nativos. O agir destes novos mediadores sociais – embora,
em muitos casos também promoveram vínculos clientelísticos - contribuiu ao fortalecimento
das organizações pré-existentes e ao surgimento de novas modalidades de organização e
articulação social no território.
No interior das comunidades rurais, surgiram diversos espaços de articulação social
visando solucionar as problemáticas produtivas, de infraestrutura, de saúde, de educação, etc.
das famílias. Entre estes espaços destacam-se as organizações de produtores agropecuários,
grupos de artesãos, grupo de jovens, grupos de mulheres, entre outras. É importante salientar
que no planalto jujeño, antes da década de 1990, praticamente, não existiam organizações
sindicais de produtores agropecuários. Isto se explica porque a produção agropecuária
ocupava um papel marginal na economia do território e, por outro lado, a emigração
temporária das famílias à colheita de cultivos convertia-se em um empecilho para a
participação em organizações.
Não obstante, o fato mais significativo é o estabelecimento de vínculos entre comunidades
rurais os quais se formalizaram em organizações sindicais de produtores, em cooperativas ou
em redes de cooperação. A articulação entre comunidades rurais através de organizações
formais é um fato pouco freqüente no planalto jujeño. A partir do momento que este
fenômeno começa a acontecer, a vida social, política e econômica do território ganhou uma
nova dinâmica.
No entanto, é importante salientar o papel da Red Puna na promoção da articulação dos
nativos. A Red Puna, é uma rede que articula a 40 organizações sociais do território nas quais
participam 1200 famílias. Esta organização surge em 1995 como uma rede de ONGs de
promoção social que trabalhavam no território, mas sua composição foi mudando, ao mesmo
tempo em que se retiravam as ONGs ingressavam organizações sociais de base, sendo
integrada na atualidade apenas por uma ONG. Esta rede tem um papel muito importante no
apoio a promoção produtiva e social de seus membros14.
É difícil expressar quantitativamente o fenômeno de densificação do tecido social do
território devido à impossibilidade de quantificar as relações diádicas entre pessoas e à falta
de bases de dados que dêem conta do número de organizações sociais existentes no território.
Porém, em um estudo realizado na província de Jujuy pelo BID e o PNUD (2000) manifestase que 46% das organizações da sociedade civil que existem nesta província foram criadas no
período 1990-2000. Neste mesmo período, criaram-se 62.6% das organizações de base que
existem na província. Embora o estudo não especifica a dimensão quantitativa deste
fenômeno para o planalto jujeño, segundo o observado no trabalho de campo, entende-se que
o processo que ocorreu no âmbito provincial teve seu correlato, ou ainda foi mais
significativo, no contexto territorial.
4.
NOVAS ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO SOCIAL
As estratégias de reprodução social compõem-se de um conjunto de estratégias que
visam a reprodução biológica e social da família. No caso analisado a mudança nas estratégias
14
A Red Puna e a Associação Warmis Sayasunjo –ONG criada por nativos do território- são as organizações
sociais mais importantes do planalto jujeño se se considera o número de famílias que as integram e o número de
projetos que executam. De fato, atualmente, estas organizações têm maior capacidade de assistência social aos
nativos que as próprias prefeituras. Entre estas organizações da sociedade civil e os mediadores políticos,
freqüentemente, existem rivalidades motivadas pela disputa pela execução dos programas sociais do governo
nacional e devido às diferentes visões de mundo que têm sobre a realidade social do território.
12
reprodução social dos nativos ocorre principalmente pela crise na economia familiar. Embora
o estudo das estratégias de reprodução social não se esgota na análise das formas como se
gera a renda, na presente seção emprestaremos especial atenção nestas últimas por entender
que têm tido um papel decisivo na mudança das estratégias de reprodução social dos nativos
do território.
4.1. NOVAS ESTRATÉGIAS DE GERAÇÃO DE RENDA
As famílias que voltaram às comunidades rurais conseguiram gerar uma fonte de renda
através da produção agropecuária por intermédio do associativismo e do apoio -financeiro e
técnico- que receberam dos mediadores sociais. Em um primeiro momento fortaleceu-se o
consumo familiar e, na medida que se foram consolidando as organizações de produtores,
começou-se a comercializar a produção no mercado local e, posteriormente, na capital
provincial.
Embora a pluriatividade15 sempre foi uma característica intrínseca das estratégias de
geração de renda dos nativos, nesta nova conjuntura, constituiu-se numa componente chave
de suas estratégias. De fato, ante a impossibilidade de ter uma atividade produtiva que gere
ingressos econômicos que satisfaçam as necessidades de reprodução social do núcleo familiar,
os agentes deveram diversificar suas fontes de renda tentando aproveitar as poucas
possibilidades que oferecia o contexto. Assim, a venda ocasional de mão-de-obra, a captação
de recursos de programas públicos e/ou de ONGs e, a produção de artesanatos em lã para a
venda converteu-se em fonte de renda - permanentes ou ocasionais - da maior parte das
famílias do território.
Para diversificar suas fontes de renda muitas famílias diversificaram seus lugares de
moradia, quer dizer, enquanto uma parte do núcleo familiar residia nas cidades tentando
captar recursos através da venda de mão-de-obra ou sendo beneficiário de algum programa
social, a outra parte ficava na comunidade rural trabalhando na produção agropecuária.
No caso das ex-famílias mineradoras que após décadas de estar radicadas nos complexos
mineradores deslocaram-se às cidades - seja porque perderam o vínculo com suas
comunidades de origens ou, simplesmente, por uma opção- sua renda passou a depender
exclusivamente das escassas oportunidades de venda de mão-de-obra que oferecia o contexto
e, principalmente, dos benefícios dos programas sociais16.
4.2. O CAPITAL SOCIAL COMO PONTO DE PARTIDA PARA A CONVERSÃO A OUTROS TIPOS
DE CAPITAIS
Conforme Bourdieu (1986), uma das propriedades do capital é sua possibilidade de
conversão a outros tipos de capitais. Assim, os nativos do território ao defrontaram-se com a
15
Entende-se por pluriatividade ao “fenômeno através do qual membros das famílias de agricultores que
habitam no meio rural optam pelo exercício de diferentes atividades, ou mais rigorosamente, optam pelo
exercício de atividades não-agrícolas, mantendo a moradia no campo e uma ligação, inclusive produtiva, com a
agricultura e a vida no espaço social” (SCHNEIDER, 2003 p.91)
16
O Plano Chefes e Chefas de Lares Desempregados é o programa social de maior importância no território.
Este programa outorga um salário básico por mês aos chefes/as de lares desempregados a troca de que realizem
alguma atividade produtiva ou algum serviço comunitário. Muitas das organizações sociais do território, entre as
quais se destaca a Cooperativa PUNHA –cooperativa de trabalho de artesãos- têm aproveitado este programa
para capacitar a desempregados na confecção de artesanatos em lã e, assim, gerar uma fonte de renda para as
famílias.
13
necessidade de implementar outra estratégia de geração de renda deveram procurar uma
solução a partir dos recursos que tinham, quer dizer, a partir da dotação de capitais que
possuíam, o capital cultural e o capital social.
No que diz respeito ao capital cultural, destaca-se a forma em estado incorporado –isto é
as disposições, habilidades e destrezas dos nativos- o qual é produto da trajetória de vida dos
agentes. Embora muitas famílias tinham uma trajetória como produtores agropecuários e
conheciam o trabalho da terra, o fato de seus produtos terem sido destinados para o consumo
familiar explica as dificuldades que tiveram estes agentes para iniciar a produção orientada
ao mercado, pois desconheciam as praticas culturais que precisam os cultivos que podem ser
comercializados, assim como, a lógica de mercado e o marco legal e fiscal que o regula.
Assim, o capital social, constitui-se no principal recurso com que contavam os agentes
para dar respostas às problemáticas que se apresentavam e, portanto, gerar uma renda que
permitisse a subsistência do grupo familiar. Em outras palavras, o que estamos sugerindo é
que a mobilização de recursos a partir da rede de relações sociais na qual interagem os nativos
converteu-se no caminho mais accessível para dar uma resposta a seus problemas
socioeconômicos, fato que não é outra coisa que a conversão de capital social em capital
econômico ou cultural.
A continuação se descreveram algumas das formas como aconteceu este fenômeno. Estes
exemplos correspondem à trajetória desenvolvida pelos membros da Red Puna. Nesta
descrição não se pretende esgotar a basta experiência desenvolvida nesta organização, nem
tampouco, resumir as das outras organizações do território, pretende-se apenas descrever
umas das formas como tem ocorrido este processo de conversão de capitais no planalto
jujeño.
Uns dos principais empecilhos que tiveram os produtores agropecuários foi a escassez de
capital econômico, não só para garantir a sobrevivencia da família, mas também, para iniciar
o processo produtivo. De fato, os bancos não se apresentavam como uma alternativa onde
solicitar um crédito devido à incapacidade dos produtores de darem garantias de pago – de
fato, nem tinham o título de propriedade de suas terras-, portanto, a única possibilidade de
conseguir apoio financeiro era por intermédio dos mediadores sociais dos programas públicos
e, principalmente, das ONGs.
Estas organizações contavam com fontes para outorgar micro-créditos às famílias rurais,
porém entre os critérios que as ONGs têm para dar apoio financeiro destaca-se que os futuros
beneficiários participem de algum âmbito organizativo. No discurso destas organizações este
critério funda-se no fato que somente através da organização os nativos poderão melhorar
suas condições de vida.
Ainda que muitos nativos –em particular, as lideranças das organizações sociais- têm-se
apropriado desta proposta, outros parecem entender este critério como um “capricho” das
ONGs porém, igualmente participam dos âmbitos organizativos sendo a sua principal
motivação a obtenção de um micro-crédito.
As relações de mediação são relações de poder e nestas o mediador, freqüentemente se
encontra em uma situação dominante e pode impor seu ponto de vista. Assim, estes vínculos
sociais são relações recíprocas assimétricas, que no território muitas vezes adquirem a forma
de relações clientelísticas17. Sendo assim, a expectativa ou lógica imanente que está no modo
17
Isto se explica por uma disposição dos nativos a relacionar-se com uma atitude “submissa”, “complacente” e
“silenciosa” com aquelas pessoas que possuem uma dotação maior de capitais –seja econômico ou cultural-. Esta
atitude dos nativos é produto do processo histórico de dominação simbólica, no qual a cultura ocidental impôs-se
à originaria modelando no habitus dos nativos estas disposições (COWAN ROS, 2003).
14
de agir dos nativos que participam das organizações sem convicção é de “comprazer” os
desejos dos mediadores sociais para serem “premiados” ou “recompensados” com o apoio
econômico.
Esta mesma explicação serve para entender a lógica de ação de aqueles agentes que se
articulam com mediadores políticos, religiosos e, inclusive, técnicos de ONGs, e através
destes vínculos conseguem um emprego estável na prefeitura ou como promotor social da
Igreja ou da ONG, conforme fosse a situação. De fato, obter um emprego estável no território
significa garantir a subsistência do grupo familiar.
Mas, não só as relações recíprocas assimétricas tiveram um papel relevante na conversão
de capitais, de fato as relações sociais entre pares -relações sociais simétricas- também
possibilitaram a realização de uma produção agropecuária orientada ao mercado. Através do
associativismo alguns produtores conseguiram superar muitos dos empecilhos que se
apresentavam como: realizar compras comunitárias de insumos agropecuários a um menor
preço, comercializar de conjunto a sua produção, fato que permitiu não só entrar no mercado
com maior poder de negociação mas também aceder a mercados situados fora do território –
San Salvador de Jujuy e Buenos Aires- onde a mercadoria é comercializada a um preço maior.
No mesmo sentido, no âmbito urbano, tem-se desenvolvido uma experiência inovadora. A
Cooperativa PUNHA –integrante da Red Puna- através da captação de recursos dos
programas públicos e de ONGs internacionais tem realizado uma série de oficinas de
capacitação em fiação de lã e confecção de artesanatos. Esta experiência tem-se convertido
em um espaço gerador de emprego para muitas dos agentes –em especial mulheres- que
residem nas cidades e estão desempregados18.
Como se desprende do exemplo anteriormente citado, a conversão de capital social em
capital cultural, isto é, as oportunidades de capacitação e formação que se apresentam aos
agentes a partir que participam em uma organização ou estão vinculados com algum mediador
social, converte-se não só em uma oportunidade para aumentar a própria dotação de capital,
mas também, em um primeiro passo para logo converter esse capital cultural em capital
econômico. De fato, obter um título acadêmico – capital cultural no estado institucionalizado
- ou novas capacidades e habilidades – capital cultural no estado incorporado - deixa aos
agentes em melhores condições para iniciar um empreendimento produtivo, realizar uma
nova atividade profissional ou aceder a um emprego no território19.
Nesta lógica, enquadra-se a experiência de duas comunidades que logo de organizar-se e
solicitar, em um primeiro momento, e logo pressionar aos respectivos prefeitos, ao governo
provincial e ao nacional, conseguiram a abertura de duas escolas de segundo grau nas
respectivas comunidades. Na atualidade, outras duas comunidades estão realizando gestões no
mesmo sentido.
Mas, também a educação não formal teve um papel importante no incremento do capital
cultural dos membros da Red Puna. De fato, a assistência técnica produtiva - realizada pelos
18
Atualmente na Cooperativa PUNHA trabalham 80 artesãos. Por outro lado, existem 5 grupos de fiadoras de lã
que abastecem à Cooperativa e dois grupos de artesãos que vendem sua produção através dos canais de
comercialização da Cooperativa nas principais cidades do país. Adicionalmente a Cooperativa compra sua
matéria prima –a lã- aos produtores de ovelhas que participam da Red Puna. É de destacar que para os
produtores da Puna, a lã não representava um produto gerador de renda, porém a partir do momento que a
Cooperativa começou a produzir em maior escala passou a converter-se em uma nova fonte de ingressos para as
famílias rurais.
19
É importante salientar que o território tem uns dos índices mais altos de analfabetismos do país – atingindo em
algumas jurisdições o patamar de 20 % -, portanto, saber realizar uma atividade profissional, redigir, ler, ou
operar um computador coloca ao agente em uma situação mais favorável para aceder a um emprego.
15
técnicos das ONGs - foi de fundamental importância para viabilizar a produção e
comercialização agropecuária, em especial, de aqueles produtos não tradicionais na zona.
Por outro lado, a realização de diferentes oficinas e cursos de capacitação de lideranças
que se realizaram no marco da Red Puna, tiveram um papel muito importante para que as
lideranças adquirissem maior autonomia na tomada de decisões e a capacidade de planejar e
negociar financiamento para a execução de projetos. Em alguns agentes, esta experiência
contribuiu para que mudem suas disposições a aceitar a realidade do território – em especial,
as relações clientelísticas - como natural. Em particular, nestas oficinas trabalhou-se sobre a
falta de auto-estima dos nativos, fato que contribuiu para que estes agentes se relacionassem
com os políticos desde uma atitude menos submissa e expectante, e assumissem uma atitude
mais ativa, isto é, romper com o “encantamento” do patrão.
Muitos outros exemplos poderiam citar-se nos quais os agentes, através da organização e a
articulação com os mediadores sociais, acederam: a capacitações em reprodução e
planificação familiar, a consultas clínicas com médicos, etc. Isto é, um número de exemplos
onde se verifica que através da mobilização dos recursos contidos na sua rede de relações
sociais os agentes podem aceder a benefícios que vão além da dimensão econômica.
Resumindo, através deste conjunto de ações as famílias têm configurado suas estratégias
de geração de renda, de acesso a capacitação e, em alguns casos, de acesso a educação formal,
enfim, uma parte do conjunto de estratégias que possibilita a reprodução biológica do núcleo
familiar, mas também, a posição que ocupam estes agentes no espaço social.
5.
A DIMENSÃO SIMBÓLICA DA LUTA PELA REPRODUÇÃO SOCIAL
Como se evidenciou na seção anterior o processo de ampliação de capitais e de conversão
dos mesmos, não é um processo simples nem pouco oneroso, de fato, apesar do investimento
que os nativos realizaram em participação de reuniões, gestão de recursos, negociações com
os prefeitos e os técnicos dos programas sociais, além do próprio trabalho produtivo apenas
conseguiram reproduzir-se na posição que ocupam no espaço social, isto é, o lugar de
marginados e postergados na própria terra.
De fato, muitos entrevistados consideram que sua situação é mais precária na atualidade
que quando trabalhavam nos complexos mineradores ou quando viajavam para trabalhar na
safra de cana-de-açúcar. Porém, perante esta situação as atitudes dos entrevistados são
diferentes, enquanto alguns “resignavam-se” ou aceitavam como natural esta situação outros tanto no seu discurso como nas ações que realizavam- evidenciavam a vontade de sair da
posição que ocupam no espaço social –isto é, escalar posições na hierarquia social- não são
em termos econômicos más também no que se refere a dimensão simbólica.
Diferentes membros da Red Puna -na sua maioria lideranças das organizações sociais que
integram esta rede- a partir do momento que começaram a participar em espaços de formação
política onde se analisa a realidade social do país e do território, puderam objetivar-se como
agentes que vivem em uma realidade que é socialmente construída e, portanto, é arbitraria.
Nestes sentido, evidenciaram e que eles ocupam as posições menos favorecidas na hierarquia
social e que estão sujeitos as relações de dominação simbólica. Em outras palavras, é o que
Bourdieu denomina processo de auto-socioanálise.
Assim, a Red Puna converteu-se em uma organização através da qual estabelecer disputas
com outros agentes e ao mesmo tempo ela mesma converteu-se em um âmbito de disputas
entres seus membros. De fato, no interior da Red Puna, diferentes disputas de gênero e entre
16
agentes de diferentes faixas etárias ganharam espaço. Por um lado, as mulheres passaram a
disputar frente aos homens, o reconhecimento como trabalhadoras e geradoras de renda na
economia familiar, como assim também o reconhecimento para que elas também participem
nos espaços de debate, planejamento e de coordenação de atividades das organizações. No
mesmo sentido, os jovens –que na atualidade, com a diminuição da migração aumentaram
muito em número nas comunidades rurais- passam a reclamar que não são considerados nos
espaços de tomadas de decisões e, por outro lado, colocam as dificuldades que eles têm para
lograr a sua independência econômica solicitando a organização que também atenda seus
interesses e necessidades.
Os técnicos da Red Puna – que na sua maioria têm entre 30 e 40 anos, sendo
aproximadamente a metade mulheres - tiveram um papel importante para que estes agentes
possam canalizar as suas reivindicações no âmbito da Red Puna. De fato, realizaram-se
diferentes oficinas de gênero e destinadas a jovens que culminaram na criação da Área Jovens
e da Área Mulher na estrutura organizacional da Red. Por outro lado, no ano 2001 realizou-se
um Congresso de Jovens e no ano 2003 um de mulheres, fatos que implicam na
institucionalização e, portanto, reconhecimento, das reivindicações destas categorias sociais
na Red Puna.
A Red Puna ganhou um importante reconhecimento –capital simbólico- na Província, não
só pela quantidade de pessoas que articula e mobiliza mas também pelo número de projetos produtivos, educativos, de assistência sanitária, etc.- que executa. Assim, esta rede, converteuse no porta-voz de muitas das reivindicações dos agentes que pretendem deixar de ser
reconhecidos pelos setores dominantes como “pobres”, “ignorantes”, “incultos”, enfim, como
agentes que não têm nada mais a oferecer à sociedade ao não ser sua força de trabalho e que,
portanto, não têm nada mais a reclamar que não seja seu salário, isso quando estes têm
emprego.
Esta reivindicação ganhou forma de protesto público no dia 21 de novembro de 2002
quando os membros da Red Puna, mobilizaram-se a capital provincial e detrás de uma
bandeira que tinha a seguinte palavra de ordem “Queremos deixar de sobreviver. Queremos
viver com dignidade em nossa terra” realizaram uma caminhada frente aos Ministérios
Provinciais e entregaram um abaixo assinado com as suas reivindicações na Casa de Governo
Provincial.
Esta caminhada teve um valor altamente simbólico na Província. Em primeiro lugar
porque é a primeira vez em décadas que moradores do território reivindicando-se como
camponeses mobilizam-se à capital da província para exigir a execução de políticas públicas
dirigidas a promover o desenvolvimento da atividade agropecuária no território.
Este ato para os nativos implica, por um lado, “voltar a ter palavra”, quer dizer, deixar de
canalizar suas reivindicações pelos mediadores tradicionais e assumir o papel ativo na luta por
fazer valer seus direitos, e por outro lado, tem o simbolismo de deixar de reconhecer ao
território como improdutivo e estéril para passar a reconhecer que pode cumprir um papel: ser
produtor de alimentos. Além disso, na palavra de ordem denuncia-se o tipo de vida que se
lhes impõe aos nativos do território, “a sobrevivencia”, e o desejo de passar a ter uma “vida
digna”, expressão que implica não só melhorar as condições matérias de vida mas também
sair da posição de desvalorização social na que se encontram. E finalmente enfatizam: “em
nossa terra” fato que implica em rejeitar a emigração como forma de aceder a fontes de renda.
Assim, um aspecto que não pode deixar de ser considerado nesta analise é o fato que o
abaixo assinado é entregue ao governo provincial o que implica uma denuncia na qual
identificam ao responsável –o governo- de que a situação continue assim, ou mude. Isto é uma
forma de evidenciar publicamente a arbitrariedade social na qual vivem.
17
No abaixo assinado os membros da Red Puna, denunciam que as condições de vida em
que vivem são produto de: a desvalorização que a cultura dominante –a ocidental- faz da
cultura nativa, do clientelismo político que historicamente tem existido no território e na
província, da marginalização do território das políticas de investimento em infraestrutura e
desenvolvimento produtivo, em fim, de uma série de fatos que evidenciam como a realidade
social do planalto jujeño, faz parte de uma arbitrariedade que tem sido historicamente
construída, na qual os setores dominantes apropriando-se do aparelho do estado tem
construído um mundo que apenas responde a seus interesses.
Não obstante, no plano individual, isto é, desde as estratégias individuais dos agentes, esta
energia –ou capital simbólico- contida na Red Puna, é utilizada de diferentes formas.
Enquanto, alguns agentes almejam ampliar o processo de organização social e de autosocioanalise para que os nativos que ocupam as posições menos privilegiadas possam
estabelecer uma luta simbólica ou, em outras palavras, possam disputar a forma de ver e
conceber o mundo - que conforme Bourdieu, é a forma de construir o próprio mundo -, outros
membros da Red Puna têm-se apropriado dos capitais contidos nesta organização para
ascender posições na hierarquia social.
O caso mais significativo, é o de uma liderança da Red Puna que embora tinha uma
trajetória em um partido político, nos últimos anos ganhou muito reconhecimento e
visibilidade pública a partir do momento que assumiu diferentes responsabilidades nesta rede,
de fato, o prestigio de uma organização geralmente é personificado nos agentes que a
representam. Porém, na última eleição municipal para prefeito da cidade de Abrapampa –a
segunda em importância no território- esta pessoa postulou-se e ganhou o cargo20.
Um tema que tem gerado muito debate no interior da Red Puna e que ainda não tem sido
consensual é a participação na vida política partidária como forma de aceder a cargos públicos
– espaços de poder - para mudar a realidade social do território21. No entanto, a decisão deste
agente de participar nas eleições não só não foi decidida no âmbito da Red Puna mas
tampouco foi informada, de fato, muitos agentes inteiraram-se de sua candidatura na semana
de eleições. No entanto, o agente, ao aceder ao cargo de prefeito, não só ganhou a retribuição
econômica, isto é, o salário que o cargo oferece mas principalmente ganhou o reconhecimento
por parte do resto da sociedade – capital simbólico - e acede a um novo âmbito – campo
político - onde se amplia a sua rede de relações sociais de onde mobilizar recursos. Enfim,
embora este agente tenha conseguido por esta via escalar posições no espaço social, os
fundamentos sobre os quais se funda a ordem social do território não têm sido questionados e
somente dependendo do uso que este agente faça deste espaço de poder contribuirá ou não a
reproduzir a ordem vigente ou a subverter-la.
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como ironiza Higgins, “o capital social está na moda”. E isto é possível pelo auspicio que
a abordagem teórica liderada por Putnam tem recebido dos organismos multilaterais de
financiamento - Banco Mundial, BID, PNUD, etc. -. De fato, nas últimas décadas, perante o
fracasso dos diferentes programas de desenvolvimento rural no terceiro mundo, o capital
20
É importante destacar que a família deste agente tem uma importante trajetória política no território, fazendo
parte das disposições deste agente visualizar nos cargos políticos espaços de poder. Assim, este agente faz oito
anos concorreu para a eleição de prefeito desta cidade mas perdeu perante o outro concorrente.
21
De fato, muitas lideranças da Red Puna já ocuparam cargos nos governos locais mas na maioria das vezes a
rigidez e a hierarquia própria do campo político impôs–se aos interesses destes agentes.
18
social erguesse como a nova “panacéia do desenvolvimento”. Mas, é importante lembrar que
esse lugar no pódio, já foi ocupado pela “tecnologia” - nos primórdios da Revolução Verde -,
e foi seguido pelo “crédito” e pela “capacitação técnica” nas décadas seguintes. Destarte, é de
esperar que em breve, o capital social perca seu lugar no pódio, no caso dos programas que
procuram gerar o “desenvolvimento” não orientem suas estratégias a erradicar a pobreza
precisamente onde se origina, isto é, no processo de exclusão social decorrente das políticas
neoliberais.
Embora, a noção de capital social tenha sido “vitima” do uso normativo em algumas
abordagens, acredita-se que seu potencial teórico, como categoria analítica, para estudar os
processos sociais ainda está vigente e oferece um amplo campo de pesquisa para aprofundar o
seu conhecimento. Assim poder-se-á ter uma maior compreensão do processo de geração dos
capitais e de sua conversão. De fato, o capital social converte-se em um conceito de vital
importância na pesquisa sociológica para entender as lógicas de ação dos agentes, em
especial, suas estratégias de reprodução social, pois, entende-se que só a partir da
identificação da dotação de capitais que os agentes têm e as disposições inscritas em seus
habitus, pode-se entender os diferentes caminhos percorridos pelos agentes na luta pela sua
reprodução social.
Não obstante, é importante salientar que para que a noção de capital social possa ter um
papel relevante na análise sociológica, é preciso liberta-la da conotação “positiva” ou
“valorativa” que tem recebido na abordagem normativa. De fato, no caso analisado
evidenciou-se os diferentes usos que os agentes fazem do poder que reside nas suas relações
sociais, assim, este pode contribuir para reproduzir a ordem social ou para tentar subverti-la.
O primeiro caso evidencia-se nas relações clientelísticas que ao serem reforçadas, embora
gerem algum tipo de beneficio para os agentes envolvidos, reproduzem as relações de
dependência e, portanto, a posição subordinada ocupada pelos agentes no espaço social.
Contudo, sempre que medeie um processo de auto-socioanálise abre-se a possibilidade
que os agentes que ocupam as posições de dominados possam objetivar o mundo no qual
vivem e, assim, contestar a arbitrariedade social que os mantém na posição que ocupam.
Nestes casos, novas lutas simbólicas surgem e aprofundam-se no contexto social, e desta
maneira, abre-se a possibilidade de uma mudança social. Porém, para que esta última situação
possa acontecer precisa-se que os agentes que ocupam as posições menos favorecidas no
espaço social, gerem um processo de ampliação e acumulação de poder muito mais
abrangente do observado no caso analisado.
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1 Nos anos 90, produto da radicalização do modelo