Ernesto Che Guevara
CHE
guerrilha
diário da bolívia
Tradução de
João Pedro George
lisboa:
tinta­‑da­‑china
MMIX
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Che Guevara e Aleida March
Fotografias © Aleida March e
Centro de Estudios Che Guevara
Título original: El Diario del Che en Bolivia
Tradução: João Pedro George
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Capa e composição: Vera Tavares
Sobrecapa: adaptação do cartaz promocional
do filme Che — Guerrilha
1.ª edição: Abril de 2009
isbn 978­‑972­‑8955­‑94‑6
Depósito Legal n.º 290637/09
Índice
Nota Introdutória 7
Diário da Bolívia 11
Comunicados Militares 273
Glossário 295
Nota Introdutória
N
o dia 9 de Outubro de 1967, aos 39 anos de idade, Ernesto
Guevara de la Serna morreu assassinado pelo exército boli‑
viano. Fora capturado dois dias antes, e com ele uma agenda verde,
onde registara os acontecimentos e as reflexões sobre a actividade
diária da guerrilha, desde havia aproximadamente um ano.
O diário foi confiscado pelos militares, mas logo em 1968 foi
tornado público, por vias não inteiramente esclarecidas. Faltavam­‑lhe no entanto algumas páginas, que os serviços de informa‑
ções bolivianos tinham conseguido manter inacessíveis e que são
agora editadas pela primeira vez.
Evidentemente, Che foi redigindo estes textos em circuns‑
tâncias extraordinariamente adversas e é de supor que não tivesse
a intenção de os publicar, pelo menos não sem antes os submeter
a uma revisão. Assim se explicam alguns trechos de interpretação
ambígua, bem como uma ou outra palavra impossível de decifrar.
Em relação a este último caso, todas as ocorrências foram assina‑
ladas com parênteses rectos em branco.
Na edição castelhana, os textos foram inteiramente cotejados
com os fac-símiles do diário, o que permitiu algumas correcções
sobre a edição original de 1968.
No final do livro inclui-se o conjunto de comunicados que
Che dirigiu à população boliviana (apenas o primeiro foi efectiva‑
mente divulgado), bem como um pequeno glossário, para o qual se
remete sistematicamente através de numeração.
[]
Mapa da Bolívia
mostrando as zonas da guerrilha
n
Bolívia
brasil
peru
América
do Sul
bolívia
Lago Titicaca
Guaqui
Caranavi
Chapare
La Paz
Cochabamba
Oruro
Catavi
cí fi co
Oce a n o Pa
Potosí
Santa Cruz
Vallegrande
Sucre
Puerto
Suárez
Camiri
Tarija
Villazón
chile
Salta
Yacuiba
paraguai
argentina
zona de operações
da guerrilha
Santa Cruz
Cochabamba
Samaipata
Peña Colorada
M
izq
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El Filo
Vallegrande
Florida
Masicuri
Alto
Seco
ran
oG
Cabezas
Ri
Rosita
Pucará
de
Moroco
Jagüey
La Higuera
Abapocito
Abapó
Muchiri
Vado del Yeso
El Espino
Caraguatarenda
Iripití
Itai
Base
Ipitacito
Camp
Gutiérrez
El Pincal
Iquira
El Mesón
Acero
Ñancahuazú
e
and
Gr
Rio
Puerto Camacho
Lagunillas
Ticucha
Taperillas
Monteagudo
0
Muyupampa
10
20
30 km
1966
Novembro
7 de Novembro
Hoje começa uma nova etapa. Chegámos à fazenda durante a noi‑
te. A viagem foi óptima. Assim que entrámos, convenientemente
disfarçados, por Cochabamba, Pachungo [1] e eu estabelecemos
os contactos e viajámos de jipe, em dois dias e em dois veículos.
Ao chegarmos perto da fazenda, parámos as viaturas e só uma
é que se aproximou, para não levantar suspeitas num proprietá‑
rio vizinho, que tem espalhado o boato de que a nossa actividade
talvez se dedique à produção de cocaína. Dado curioso, o inefável
Tumaini [2] é indicado como o químico do grupo. Quando ia em
direcção à fazenda, na segunda viagem, Bigotes [3], que acabava
de saber a minha identidade, quase caiu por um despenhadeiro,
deixando o jipe encalhado na borda do precipício. Caminhámos
cerca de 20 quilómetros e, quando passava já da meia­‑noite, che‑
gámos à herdade, onde há três trabalhadores do partido.
Bigotes mostrou­‑se disposto a colaborar connosco [4], inde‑
pendentemente daquilo que o partido deliberar, mas mostrou­‑se
também leal a Monje [5], pelo qual tem respeito e, ao que pare‑
ce, estima. Segundo ele, Rodolfo [6] está na mesma disposição,
o mesmo acontecendo com Coco [7], mas é preciso conseguir que
o partido se decida a lutar. Pedi­‑lhe que não informasse o partido
até à chegada de Monje, que está de viagem para a Bulgária, e que
nos ajudasse. Acedeu a ambas as coisas.
Ciro Algarañaz Leigue era o proprietário da herdade El Pincal, a mais próxima da‑
quela que fora utilizada como primeira base da guerrilha. (N. da edição original)
[17]
e r n e s t o c h e g u e va r a
8 de Novembro
Passámos o dia na manigua, a escassos cem metros da casa e pró‑
ximo de uma ribeira. À nossa volta, agitava­‑se uma espécie de
yaguasas muito incomodativas, embora não piquem. Até agora
encontrámos as seguintes espécies: a yaguasa, o jején, o mariquí ,
o mosquito e a carraça.
Bigotes desencalhou o seu jipe com a ajuda de Algarañaz e
ficou de lhe comprar algumas coisas, como porcos e galinhas.
Planeava escrever e dar informações sobre as peripécias, mas
deixo­‑o para a próxima semana, altura em que esperamos receber
o segundo grupo.
9 de Novembro
Dia sem novidades. Juntamente com Tumaini, fizemos uma ex‑
ploração seguindo o curso do Rio Ñacahuazú (na realidade, um
riacho), mas não chegámos à sua nascente. Corre por margens
estreitas e a região, aparentemente, é pouco frequentada. Com a
disciplina adequada, pode­‑se estar ali muito tempo.
Durante a tarde, uma forte chuvada obrigou­‑nos a abandonar
a manigua e a procurar abrigo na casa. Arranquei seis carraças do
meu corpo.
Terreno pantanoso coberto de plantas tropicais. (N. do t.)
Insecto pequeno da zona, muito frequente quando o tempo está nublado. (N. do t.)
Nome dado a várias espécies de mosquitos de pequenas dimensões que abundam
nas Antilhas e na América do Sul. (N. do t.)
Insecto de cor amarela e asas grandes. (N. do t.)
Também conhecido como Ñancahuasú, Ñacahuasú, Ñacahuasu, Ñacahuazú, Ña‑
cahuazo… (N. da edição original)
[18]
diário da bolívia
10 de Novembro
Pachungo e Pombo [8] saíram em exploração com um dos compa‑
nheiros bolivianos, Serafín. Chegaram um pouco mais longe que
nós e encontraram a bifurcação do riacho, um pequeno desfila‑
deiro que parece estar em boas condições. No regresso, ficaram a
mandriar na casa e o motorista de Algarañaz, que vinha trazer os
homens com umas compras que lhe tinham feito, viu­‑os. Dei­‑lhes
uma grande descompostura e decidimos mudar de manhã para
a manigua, onde iremos montar o nosso acampamento fixo. Tu‑
maini deixar­‑se­‑á ver, porque já o conhecem, e fingirá ser mais um
dos empregados da fazenda. A situação está a deteriorar­‑se rapi‑
damente; veremos se nos permitem trazer, pelo menos, os nossos
homens. Com eles estarei tranquilo.
11 de Novembro
Dia sem novidade, passado num novo acampamento, do outro
lado da casa, onde dormimos.
A praga é infernal e obriga uma pessoa a proteger­‑se na rede
com um mosquiteiro (que só eu possuo).
Tumaini foi visitar Algarañaz e comprou­‑lhe algumas coisas:
galinhas, perus. Parece que da parte dele ainda não há grandes sus‑
peitas.
12 de Novembro
Dia sem nenhuma novidade. Quando fazíamos uma breve explo‑
ração para preparar o terreno destinado ao acampamento, che‑
garam os seis do segundo grupo. A zona escolhida fica a uns cem
metros do princípio do fosso, sobre um montículo, e lá perto há
[19]
e r n e s t o c h e g u e va r a
Em cima: Che com um fuzil na margem do Rio Ñacahuazú. Em baixo: Guerri‑
lheiro cruzando o rio.
[120]
diário da bolívia
7 de Abril
Embrenhámo­‑nos na zona do riacho, levando a vaca sobreviven‑
te, já que a outra foi sacrificada para ser secada ao sol. Rolando
permaneceu na emboscada do rio com ordem para disparar con‑
tra tudo o que mexesse; não aconteceu nada durante todo o dia.
Benigno e Camba seguiram o trilho que nos deverá conduzir a
Pirirenda e informaram ter ouvido uma espécie de motor de uma
serração, num estreito próximo do nosso riacho.
Enviei Urbano e Julio com uma mensagem para Joaquín. Não
regressaram durante todo o dia.
8 de Abril
Dia de poucas novidades. Benigno foi e voltou ao seu trabalho sem
que o tivesse terminado e diz que amanhã tão­‑pouco conseguirá
acabá­‑lo. Miguel foi procurar uma passagem que Benigno vira a
partir do alto e ainda não regressou.
Urbano e Julio voltaram com Polo. Os guardas tomaram o
acampamento e estão a percorrer os montes para explorar a zona;
passaram pelo elevador vindos da parte de cima. Joaquín informou­
‑nos sobre estes e outros problemas no documento anexo (d. xix).
Tínhamos três vacas, com os seus vitelos, mas uma fugiu­‑nos.
Restam­‑nos agora quatro animais, dos quais um ou dois serão aba‑
tidos para serem secados ao sol com o sal que ainda nos sobra.
9 de Abril
Polo, Luis e Willy saíram com a missão de entregar uma nota a
Joaquín e ajudá­‑los a regressar, para que depois se coloquem num
lugar secreto, a montante do riacho, o qual será escolhido por
[121]
e r n e s t o c h e g u e va r a
Ñato e por Moisés Guevara. Segundo Ñato, há bons lugares, em‑
bora próximos do riacho, a uma hora e picos da nossa posição ac‑
tual. Miguel chegou; segundo o que conseguiu perceber da explo‑
ração que realizou, a passagem vai dar a Pirirenda e é preciso um
dia para a percorrer, com mochila, razão pela qual disse a Benigno
para suspender o que estava a fazer, já que para terminar precisaria
de, pelo menos, mais um dia.
10 de Abril
Amanheceu e durante a manhã não houve grandes acontecimen‑
tos, além dos nossos preparativos para abandonar as imediações
do riacho, sem deixar vestígios da nossa passagem, e atravessar de‑
pois a passagem que Miguel descobriu, para irmos dar a Pirirenda­
‑Gutiérrez. A meio da manhã chegou El Negro, muito agitado,
dizendo que vinham 15 soldados rio abaixo. Inti tinha ido avisar
Rolando, que estava posicionado na emboscada. Restava­‑nos
apenas esperar e foi isso que fizemos; ordenei que Tuma estivesse
sempre a postos para me ir informando da situação. Não demo‑
rou muito até chegarem as primeiras notícias, com um resultado
desagradável: Rubio, de nome verdadeiro Jesús Suárez Gayol, es‑
tava gravemente ferido, quase a morrer. Quando chegou ao nos‑
so acampamento, já estava morto; tinha sido atingido com uma
bala na cabeça. A coisa passou­‑se assim: na emboscada estavam
oito homens da retaguarda, mais um reforço de três elementos
da vanguarda, distribuídos em ambos os lados do rio. Quando foi
avisar da chegada dos 15 soldados, Inti passou pelo local onde es‑
tava Rubio e comentou que a posição dele era péssima, pois era
claramente visível a partir do rio. Os soldados avançavam sem
grandes precauções, mas iam explorando as margens em busca de
[122]
diário da bolívia
caminhos, e foi entrando num desses carreiros que acabaram por
dar de caras com Braulio ou Pedro, antes de penetrarem na em‑
boscada. O tiroteio durou uns segundos, ficando no terreno um
morto e três feridos, mais seis prisioneiros; passado um bocado,
seria também abatido um suboficial e quatro conseguiriam esca‑
par. Próximo de um dos feridos encontraram Rubio já agonizante;
o seu Garand estava travado e ao seu lado havia uma granada com
a espoleta solta, mas que não tinha explodido. Não foi possível
interrogar o prisioneiro devido à gravidade dos seus ferimentos,
e tanto assim era que pouco depois acabou por morrer, o mesmo
acontecendo com o tenente que os comandava.
A partir do interrogatório realizado aos prisioneiros, ficámos
com a seguinte ideia: estes 15 homens pertencem à companhia que
estava mais acima do Rio Ñacahuazú, que atravessara pelo desfiladei‑
ro, recolhera as ossadas e depois invadira o acampamento. Segundo
os soldados, não encontraram nada, embora a rádio refira a existência
de fotos e de documentos que ali foram descobertos. A companhia
era formada por cem homens, dos quais 15 foram acompanhar um
grupo de jornalistas ao nosso acampamento e estes saíram com a
missão de explorar as imediações, regressando às 17.00. O grosso das
forças está em Pincal, ao passo que em Lagunillas estão cerca de 30
soldados, e supõe­‑se que o grupo que andou por Tiraboy tenha sido
levado para Gutiérrez. Contaram a odisseia dos elementos desse gru‑
po, que se perderam nos montes e ficaram sem água, tendo sido ne‑
cessário enviar pessoal para os resgatar; calculando que os fugitivos
chegariam tarde, resolvi manter a emboscada que Rolando avançara
uns 500 metros, mas contando agora com o auxílio de toda a vanguar‑
da. Num primeiro momento, ainda ordenei a retirada, mas pareceu­
‑me lógico deixá­‑la assim. Por volta das 17 horas chegou a notícia de
que o Exército avançava com grandes efectivos. Restava­‑nos apenas
[123]
Última anotação do diário de Che Guevara.
Glossário
Ernesto Guevara de la Serna (Che, Mongo, Ramón, Fernando).
Nasceu em Rosario, Argentina, no dia 14 de Junho de 1928. As‑
sim que terminou a licenciatura em medicina, foi até à Bolívia,
em 1953, fazendo uma segunda viagem pela América Latina. Par‑
ticipou no processo revolucionário da Guatemala e, depois de esta
ter sido esmagada, foi para o México, onde integrou a expedição
do iate Granma, que chegou a Cuba a 2 de Dezembro de 1956,
para participar na luta de guerrilha contra a ditadura de Fulgen‑
cio Batista. Desde os primeiros momentos da batalha na Sierra
Maestra que se distinguiu como chefe militar e político, para de‑
pois assumir altas responsabilidades na revolução cubana, que
se concretizou no dia 1 de Janeiro de 1959. Em 1965, renunciou a
todos os seus cargos e patentes militares e foi clandestinamen‑
te até ao Congo, à frente de um contingente cubano, para apoiar
a luta anticolonialista. Posteriormente, em Novembro de 1966,
mudou­‑se para a Bolívia, onde dirigiu o movimento guerrilheiro
até ao dia 8 de Outubro de 1967, altura em que foi capturado —
ferido — pelo Exército no Desfiladeiro de Yuro. Foi assassinado no
dia seguinte, numa pequena escola da povoação de La Higuera, per‑
to de Vallegrande. Os seus restos mortais, finalmente encontrados
após uma longa busca, regressaram a Cuba em Julho de 1997.
1. Alberto Fernández Montes de Oca (Pacho ou Pachungo). Cuba‑
no. Nasceu nos arredores de Santiago de Cuba em 1935. Terminou
a campanha da Sierra Maestra com a patente de capitão. Assumiu
diversas funções no governo cubano, incluindo a de director de Mi‑
nas, no Ministério da Indústria. Chegou a La Paz no dia 3 de Setem‑
bro de 1966, com instruções de Che para tratar da transferência dos
[295]
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