O USO DO CRUZEIRO COMO SÍMBOLO
NA DOUTRINA DAIMISTA
Luiz Carlos C. Teixeira de Freitas
A cruz de dois braços horizontais, ou “cruzeiro”, adotada pela doutrina daimista
em seus rituais religiosos, é um dos mais antigos símbolos cristãos, tendo percorrido a
cristandade desde os seus primórdios.
Sendo assim, não é exclusiva da doutrina daimista e nem parece ter, nela, um papel diferente daquele que teve em outras manifestações cristãs.
Basta lembrar que chama a atenção o fato de a única foto conhecida de mestre
Irineu no ataúde, quando de seu passamento, em 06 de julho de 1971, apresentar
pousada sobre seu peito uma cruz de um braço horizontal apenas e não a cruz de dois
braços, como seria de esperar se o “cruzeiro” fosse o mais importante símbolo da
doutrina ensinada por ele – embora atrás dele e fora do caixão, em sua “cabeceira”, se
veja uma cruz de dois braços como a que conhecemos (esta foto está disponível em
vários endereços na rede internet, como em www.mestreirineu.org/galeriamestre.htm,
na imagem “21.jpg”).
Como aqui ou acolá diferentes irmãos e irmãs solicitam esclarecimento sobre o
papel do “cruzeiro” na doutrina daimista, decidi elaborar este pequenino estudo.
UM POUCO DE HISTÓRIA – A cruz de dois braços horizontais parece ter surgido na
cristandade oriental nos primeiros séculos de nossa era, com forma derivada da cruz
bizantina (de Bizâncio, hoje Constantinopla, a primeira capital cristã, que seria depois
suplantada por Roma quanto à extensão de seus “domínios”), razão pela qual é chamada de cruz patriarcal, ou “cruz dos patriarcas”.
A cruz bizantina
Segundo algumas fontes, o segundo braço da cruz patriarcal, o braço superior que
seria aposto depois, teria sido simbolização da inscrição INRI (“Iesus Nazarenus Rex
Iodesus”, ou “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”), supostamente afixada no topo da cruz
a mando de Pôncio Pilatos quando da crucifixão de Jesus Cristo.
De todo modo, bispos e cardeais a utilizaram desde o início da organização da
igreja cristã, tanto na oriental quanto na romana, como sinal de distinção eclesiástica.
Pois, feita de forma a poder ser aposta peitoralmente, dado as suas pequenas dimensões, costumava indicar episcopados ou mesmo jurisdição sobre amplas demarcações
eclesiásticas, como certos patriarcados (Rússia, Grécia, etc).
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Na Idade Média, ordens como a dos Templários a recuperaram: neste sentido, registra-se que em 1118, nove anos antes de seu reconhecimento oficial pela Santa Sé, a
Ordem dos Templários definiu que uma cruz patriarcal de dois braços fosse afixada
sobre o ombro esquerdo do manto branco de seus membros, os Templários ou “Cruzados”, embora portassem no peito a cruz convencional de um braço horizontal apenas, como a indicar certa “hierarquia de santidade” entre os dois símbolos (sendo a
cruz de um braço mais “importante”).
Cruz patriarcal dos Templários
Conforme se acreditava na época, a cruz de dois braços (com braços horizontais
de 10 cm e 7 cm e um madeiro vertical com 17 cm) fora formada no ano 326 com cinco pedaços de madeira extraídos da cruz sobre a qual Jesus Cristo entregara seu espírito a Deus, tendo permanecido na Igreja do Santo Sepulcro (Jerusalém) até 1227,
quando desapareceu.
Quatro anos mais tarde, esta cruz, também chamada de “a verdadeira cruz”, porque composta por troços da cruz onde Jesus Cristo expirara, reapareceu na cidade espanhola de Caravaca, então entregue à administração dos Templários pelos reis espanhóis, santificando a cidade, elevando-a à categoria de “centro espiritual do mundo”
na época e dando início à tradição da Cruz de Caravaca, que viria a se espalhar por
todo o mundo cristão ocidental.
A crença no poder milagroso desta cruz tem origem em um relato, segundo o qual
o sultão mouro que dominava o reino de Múrcia (hoje na Andaluzia espanhola) solicitara em maio de 1232 a um sacerdote católico (Gines Pérez Chirinos) que oficiasse
uma missa na cidade de Caravaca, com intenção de aprender qual mistério se ocultava
na Eucaristia e dispondo todo o necessário para a celebração. O sacerdote, porém,
não foi capaz de dizer uma só palavra até conseguir exprimir não ser possível oficiar
por não haver ali cruz alguma.
Naquele exato instante, dois anjos teriam baixado do céu portando uma cruz de
dois braços, o que fez com que o sultão de imediato se convertesse (até hoje, em
inúmeras ilustrações, a Cruz de Caravaca é desenhada com um anjo em cada lado do
madeiro vertical, abaixo dos braços horizontais).
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A cruz, suportada pelos anjos
A EXPANSÃO PELO MUNDO CATÓLICO – Pela expansão catequética jesuíta (que haviam
fundado um colégio de noviços na cidade espanhola de Caravaca), a cruz de dois braços se espalhou pelo mundo. Assim, se no século XII a cruz de dois braços já integrava
os símbolos nacionais da Hungria, na Europa Central, a partir da época da Conquista
ela surge em imagens registradas por toda a Europa (Alemanha, Inglaterra, Bélgica e
França), sendo levada para as Filipinas em 1668 por missionários espanhóis.
Para o Brasil, parece ter vindo em 1532, com a expedição de Martim Afonso de
Souza, espalhando-se por todo o Nordeste e desde o início obtendo forte adesão junto às populações católicas.
Algo depois, em 1549, os jesuítas começaram a chegar ao Brasil, indo para as regiões do Sul (as “Missões”, entre Rio Grande do Sul e Paraguai), trazendo consigo efígies da cruz de dois braços e dando início à disseminação local, bem como por toda a
América espanhola (Flórida, em 1567, Peru, em 1568, Argentina, em 1586, e Paraguai,
em 1588).
Cruz missioneira, em São Miguel (RS)
Além de relatos de santos venerando a Vera Cruz de Caravaca, como santo João da
Cruz e santa Teresa de Ávila, muitos foram os papas que apoiaram o culto a este símbolo: Clemente VII (1392), Clemente VIII (1597), Paulo V (1606), Alexandre VIII (1690),
Clemente XI (1705) e Clemente XIII (1768). Em 1736 foi estabelecido o direito de culto
à Cruz de Caravaca. Leão XIII ratificou em 1893 os mesmos privilégios dos séculos XV
e XVII e até mesmo João Paulo II, mais recentemente, promulgou um jubileu a ser
comemorado a cada sete anos.
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Por sua aceitação oficial pela Sé romana, o simbolismo religioso da cruz de dois
braços penetrou em profundidade todas as manifestações de catolicismo popular na
América do Sul, entranhando-se com vigor nas culturas de perfil católico mais conservador, como a peruana e a colombiana e, no Brasil, as do Nordeste, com rapidez sincretizando-se também com outros sistemas de crença, inclusive os de matriz africana,
como o candomblé, os tambores-de-mina e a posterior umbanda.
SINCRETISMO, CURAS E MILAGRES – No decorrer dos séculos, a cruz de dois braços ganhou notoriedade por sua associação direta a milagres e “curas” diversas em toda a
América do Sul, especialmente pelas lendas milenares envolvendo santo Cipriano e
seus rituais de exorcismo, supostamente “feitos com o auxílio da Cruz de Caravaca”.
Porquanto se narra que Cipriano, antes de sua conversão ao cristianismo nos primeiros séculos da cristandade, fora um profundo estudioso de rituais de magia e
exorcismo, razão pela qual se contam às dezenas e em todos os países da América espanhola e portuguesa os “Livros de são Cipriano”, todos de autoria duvidosa e repletos de sincretismos os mais variados, de pactos de sangue para enriquecimento a sortilégios para apaixonamento ou cura de moléstias.
Como exemplo contemporâneo, em uma de minha viagens aos países andinos, à
busca de material para meu estudo Tahuantinsuyo, o Estado Imperial Inca, comprei
em um ambulante colombiano um pequenino livro editado no Peru:
Tesoro de Milagros y Oraciones de la Cruz de Caravaca
Nele, entre dezenas de orações a inúmeros santos e santas (inclusive santo Cipriano), além de trechos em espanhol medieval, se encontra a seguinte loa à Cruz de Caravaca:
De esta Cruz soberana
oigan, señores,
milagros y prodigios
com mil primores;
pues son tan grandes
que no hay pluma que pueda
bien numerarlos.
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De los cielos bajaron
com alegria
los Angeles em coros
a conducirla;
y pues son tantos
los milagros que obra,
que es um encanto.
Hombres, niños y mujeres
llevan consigo
la Cruz que fue bajada
del cielo Empíreo,
para consuelo;
lívranos de las garras
del Dragón fiero.
Una mujer afligida
se vea em el parto,
ponga sobre su vientre
ese retrato;
com facilidad
esta Cruz amorosa
la saca del parto.
Cojos, mancos, tullidos,
ciegos y sordos,
em la Cruz hallan
consuelo todos;
que es tan hermosa
que la escogió Cristo
para su esposa.
Del cielo fué enviada
del Padre Eterno,
para que conozcamos
el gran Misterio
que es el que encierra;
que así nos conceda
Dios em la tierra.
Los Serafines todos
cantan y alegran
a esta Cruz soberana,
fina diadema;
nuestro consuelo,
es el hecho de Cristo.
Dichosa, Caravaca,
puedes llamarte,
pues goza de los cielos
el estandarte,
que es la Santa Cruz
donde su vida y sangre
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dió nuestro Jesús.
Todos los caminantes
y marineros
por la mar y caminos
andan sin miedo
como se valgan
de llevar em el pecho
la Cruz amada.
Son grandes los mistérios
de esta relíquia,
y así digamos todos
que sea bendita;
para que tiemble
el infierno y la gente
que dentro tiene.
De muertes repentinas,
incêndios, robos,
y otros peligros
nos livre a todos
la Cruz sagrada
que em los brazos de Cristo
fué desposada.
O PAPEL DO CRUZEIRO NA DOUTRINA DAIMISTA – Na doutrina daimista, porém, a cruz de
dois braços, ou “cruzeiro”, parece apenas retratar o principal símbolo cristão de fé,
qual seja a cruz, desgarrando-se do aspecto mais popular e supersticioso de milagre,
“cura” ou sortilégio.
Embora haja quem interprete que o segundo braço do “cruzeiro” simbolize “a segunda vinda do Cristo”, no conjunto de versões banalizadas sobre uma suposta “reencarnação de Jesus Cristo em mestre Irineu”, e por isso o “cruzeiro” teria sido adotado
por mestre Irineu, não há indicativo algum de tal sentido ter sido atribuído ou propalado por ele ou pelos hinos da base doutrinária, como analiso no livro “O Mensageiro
– o replantio daimista da doutrina cristã” e principalmente no “A Rainha da floresta –
a missão daimista de evangelização”.
Nunca coligi depoimento específico algum sobre a importância do “cruzeiro” na
doutrina daimista, mas mais provavelmente mestre Irineu o adotou a partir de algum
momento, para centralizar os serviços religiosos que realizava, dada a grande aceitação da cruz de dois braços e seu simbolismo no Nordeste (mestre Irineu era maranhense e a população acreana era, em sua origem, constituída de forma maciça por
nordestinos), no amplo âmbito da religiosidade popular.
Indo adiante, o que se encontra nos hinos da base doutrinária e poderia ser de boa
indicação ou ensinamento sobre o “cruzeiro”, ou cruz de dois braços horizontais, já
que a informação passa a não mais depender de depoimentos e versões pessoais?
Apenas dois hinários da base doutrinária mencionam a palavra “cruzeiro”: os de
mestre Irineu e de Germano Guilherme, sendo que no de mestre Irineu, em cinco hinos e, no de Germano, duas vezes em um hino só.
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No hino 27 do seu hinário, Germano Guilherme apenas confirma sua fé pessoal:
“estou ao pé deste cruzeiro, meu mestre me colocou, este cruzeiro é divino, é de Jesus
Cristo Redentor”.
Já no hinário de mestre Irineu, por sua vez, os hinos 52 e 97 se referem diretamente ao hinário que estava em curso de recebimento e seria por ele mesmo chamado de
“Cruzeiro universal”, segundo depoimento de dona Percília Matos da Silva, braçodireito do Mestre e, depois, zeladora do hinário até seu próprio passamento: “completei o meu cruzeiro com 132 flores” e “completei um centenário no Cruzeiro universal”).
Já os hinos 93 e 117 de mestre Irineu parecem se referir especificamente, mas
também de forma simbólica ou alegórica, ao “cruzeiro” que centraliza o espaço interno da sede de serviços, sobre a mesa: “no cruzeiro tem rosário para quem quiser rezar,
também tem a santa luz para quem quer viajar” e “eu vivo aqui neste mundo, encostado a este cruzeiro”.
Por sua vez, o hino 31 de mestre Irineu parece oferecer outra leitura: “olho para o
firmamento, o cruzeiro, a santa luz”, propondo ensinamento análogo ao que está no
seu hino 107: “esta cruz no firmamento, que radeia a santa luz, todos que nela firmar
é para sempre, amém, Jesus”.
Leitura, aliás, também presente no hino 27 de Germano Guilherme: “neste divino
cruzeiro, nele está a santa luz”, embora aqui Germano possa estar se referindo ao
“cruzeiro” da mesa de serviços.
Por derradeiro, sabe-se que “cruzeiro” é expressão que caracteriza “uma grande
cruz” e não especificamente a cruz de dois braços (a título de exemplo, veja-se o nome da constelação austral “Cruzeiro do sul”).
Assim, embora a Cruz de Caravaca tenha sido adotada como símbolo de fé por
mestre Irineu, para centralizar serviços religiosos, o “cruzeiro” parece ser nada mais na
doutrina daimista senão uma representação do principal símbolo cristão, a cruz.
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