SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 13(1-2) 1999
SÃO PAULO NA OBRA DE
FLORESTAN FERNANDES
RENAN FREITAS PINTO
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas
E
ntre os diferentes elementos que Florestan Fernandes elege para construir sua interpretação da
formação e desenvolvimento do Brasil certamente está a cidade de São Paulo. Em primeiro lugar, porque
para compreender a formação da sociedade brasileira é
necessário partir do presente, da constituição da ordem
social competitiva, portanto, do Brasil das grandes cidades em processo de urbanização e de industrialização. São
Paulo é a cidade que melhor representa esse conjunto de
processos e fenômenos, correspondentes a essa nova ordem social e econômica.
A perspectiva sociológica de Florestan Fernandes é a de
compreender, a partir de uma posição “de baixo”, de que
modo a sociedade brasileira está se desenvolvendo, o que
marca esse desenvolvimento em relação à posição que nela
ocupam os grupos sociais identificados como “o povo”.
A rigor não existe na obra do autor uma parte dedicada especialmente a estudar e a desvendar a questão da
formação da sociedade brasileira. Em todos os momentos
de seu desenvolvimento, desde a década de 40 até os últimos artigos de jornal que publicou, está presente a idéia
de compreender e apontar que tipo de sociedade o Brasil
conseguiu produzir, considerando as condições e os limites em que se desenrola a história de seus diferentes grupos sociais, de suas populações etnicamente diferenciadas, de suas regiões, desde o marco zero da colônia até os
dias de hoje.
Nos diferentes momentos de construção de sua teoria
e interpretação do Brasil, seu alvo principal é destacar o
sentido incompleto, inacabado, dessa formação, de uma
sociedade produzida a partir de longa herança colonial,
escravista e patriarcal e, no presente, da condição do subdesenvolvimento e da dependência.
Os títulos de duas de suas mais conhecidas obras – A
integração do negro à sociedade de classes (1964) e A
revolução burguesa no Brasil (1975) – referem-se exatamente a essas situações problemáticas de uma integração social que transcorre de forma insatisfatória para o
negro, da mesma forma que a revolução burguesa não se
efetiva de modo a tornar-se uma possibilidade aberta à
maioria do povo brasileiro para sua inclusão, por meios
democráticos, no processo de constituição de nação.
Um dos aspectos que certamente chama a atenção do
leitor que passa a conhecer em extensão e profundidade
a obra de Florestan Fernandes é a posição, sob vários aspectos destacada, que ocupa a cidade de São Paulo. Essa
posição especial, já assinalada desde seus primeiros estudos da década de 40, não deixa de se manifestar ao longo do trajeto de sua obra, que envolve um conjunto bastante amplo de temas e problemas.
Além do fato de reconhecer a relevância da cidade
como um tema que está nas obras de diferentes pensadores da sociedade moderna, ele aponta as razões particulares que fizeram da cidade de São Paulo, por assim dizer,
o lugar de referência sobre o qual se projeta a construção
teórica de sua interpretação do Brasil.
É ele próprio que revela ter despertado para a sociologia ainda menino, ao viver nas ruas de São Paulo o duro
embate da vida. Aliás, toda sua trajetória pessoal ajuda a
elucidar uma sociologia que se pretende comprometida
com os “de baixo”, ou seja, com a vida da maioria do
povo brasileiro. Uma das marcas distintivas da obra de
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SÃO PAULO NA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
estudo inaugural revela elementos que o situam em uma
perspectiva crítica em relação aos estudos do folclore. O
leitor já encontra aí referências que apontam para a construção de uma hegemonia cultural no interior da qual a
cultura popular é representada basicamente pela situação
de inferioridade de seus agentes e, sobretudo, pelas tensões que se manifestam nas relações entre os grupos envolvidos. No caso das congadas e batuques, as tensões se
manifestam nas representações das três etnias envolvidas
– brancos, negros e índios –, com ênfase nos conflitos
entre as duas primeiras. O estudo busca destacar que não
é apenas a dinâmica do folclore que contribui para alterações das formas dessas manifestações coletivas, mas principalmente as rápidas mudanças motivadas pela crise do
mundo agrário, os intensos movimentos populacionais e
a urbanização – que contribuem, com diferentes intensidades, para uma nova organização da cultura, na qual se
reflete, cada vez mais a nova ordem social em pleno desenvolvimento.
Retornar aos trabalhos iniciais de Florestan Fernandes
permite ao leitor constatar não apenas que aí já estão presentes alguns dos temas que marcarão sua obra, mas também que neles se inicia um novo tipo de reconhecimento
da formação do pensamento brasileiro, em um momento
de mudanças sociais intensas, a partir do exame de autores nos quais ele identifica pontos de fragilidade e inconsistências e igualmente contribuições muitas vezes decisivas para o desenvolvimento de trabalhos de investigação
futuros. Vale assinalar que, nesses primeiros trabalhos,
Florestan Fernandes compartilha a visão culturalista, que foi
marcante nesse momento das ciências sociais no Brasil.
Em Representações coletivas sobre o negro. O negro
na tradição oral, de 1943, constata-se um importante avanço em relação à obra anterior. O ponto forte desse estudo
reside na escolha acertada do tema e dos materiais utilizados – de autoria desconhecida e reconhecidos pela população por sua larga difusão. Estas referências colocavam o pesquisador numa posição privilegiada para
identificar as representações do branco sobre o negro e
as do negro sobre si mesmo. O resultado do estudo é tornar evidente a existência de preconceito, comum a todos
os estratos sociais. Assim, partindo de uma pesquisa sobre folclore em São Paulo, Florestan Fernandes demonstrava a inconsistência da crença de que no Brasil existe
democracia racial.
Assinale-se que nesse breve estudo estão colocadas
questões que serão aprofundadas quase duas décadas depois. O autor mostra, por exemplo, que a hegemonia cul-
Florestan Fernandes é, portanto, voltar-se constantemente sobre si mesma, para reafirmar ou retificar idéias, para
reexaminar e recolocar questões. Este constante reexame
da obra é operado de maneira crítica, indicando que o
sociólogo está sempre sujeito a equívocos, ao buscar compreender os processos quase sempre complexos das sociedades em processo de intensas mudanças.
Nesta incessante autocrítica, São Paulo aparece como
o teatro onde se desenrola a trama de tantas mudanças,
positivas e negativas, produzidas pela nova ordem social
e econômica, que é, na verdade, a questão central que quer
elucidar. É essa nova ordem social que constitui o problema central de sua investigação sociológica, ou seja,
ele busca compreender a natureza das transformações que
estão ocorrendo, mas, principalmente, as razões pelas
quais esses processos não se desenvolvem plenamente,
identificando os bloqueios e as limitações que se interpõem em seus percursos.
OS PRIMEIROS TRABALHOS
Para uma abordagem satisfatória desse núcleo principal da contribuição da obra de Florestan Fernandes para
a formação do pensamento sociológico brasileiro, será
sempre necessário buscar seus pontos de partida nos seus
primeiros trabalhos, da década de 40. Embora se possa
considerar essa fase como de aprendiz de sociólogo, já se
encontram, nesses primeiros ensaios, as questões essenciais de um empreendimento que se desenrola ao longo
de mais de 50 anos, assim como importantes sugestões
teóricas.
Esses primeiros trabalhos têm sido freqüentemente
pouco destacados, ou mesmo esquecidos, diante de obras
como Organização social dos tupinambá, A integração
do negro à sociedade de classes e A revolução burguesa
no Brasil. Pretendemos demonstrar que naqueles estudos
encontram-se as bases da interpretação do Brasil proposta por Florestan Fernandes. Em sua maior parte, eles se
referem ao desenvolvimento de novos padrões culturais
que caracterizam a vida na cidade, com destaque para as
relações raciais que aí se expressam.
Em Congadas e batuques em Sorocaba, de 1942, o
autor se aproxima dos padrões usuais das pesquisas em
torno do folclore, concentrando seu interesse sobre um
determinado evento – dança, festa ou ciclo da literatura
oral. Esta obra estaria sujeita, portanto, às restrições do
próprio aos trabalhos dos folcloristas, que considera sociologicamente limitados. Lido com atenção, entretanto, esse
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“classes baixas”. O que Florestan Fernandes vai demonstrar, a partir dos materiais estudados, é que os fatos recolhidos nas camadas mais baixas ocorrem também nos níveis mais elevados da sociedade. O ponto mais importante
que se evidencia a partir desse estudo é a permanência,
ou convivência, no meio urbano de novos padrões de “racionalidade” típicos da nova ordem social, ao lado de formas tradicionais, “não científicas”, por exemplo, de medicina, assim como procedimentos de tipo “irracional”
de conduta. De modo amplo, o estudo aponta para a existência de esferas irracionais como parte da dinâmica social e do comportamento dos indivíduos.
Entre esses vários elementos, o estudo indica os modos pelos quais a “magia branca” vai se adaptando e se
alterando para se adequar aos padrões de “racionalidade”
cada vez mais dominantes no novo meio urbano. Se, a
primeira vista, as transformações da sociedade estão impondo uma restrição a essas práticas e, portanto, condenando-as ao desaparecimento a longo prazo, o desenvolvimento da investigação revelará que esses elementos
vistos como “irracionais”, longe de desaparecer, revelam
um grau bastante desenvolvido de articulação e interação
com as esferas vistas como racionais.
“Este fenômeno, que uma análise superficial poderia
tomar como desintegração e até desaparecimento da magia nas sociedades relativamente urbanizadas como São
Paulo, é apenas um processo de reajustamento desses elementos a uma nova configuração sócio-cultural. Trata-se
de um processo de peneiramento dos elementos da magia
branca, lentamente reajustados a um novo tipo de vida,
que se está precisando em São Paulo com a urbanização
da população citadina e a secularização progressiva da
cultura. Os elementos da magia branca que não mais correspondem às necessidades dos indivíduos, que os podem
substituir por outros de maior eficiência, são eliminados
progressivamente. Enquanto outros, associados à vida e
a motivos predominantemente urbanos, tendem a persistir e a aumentar”(Fernandes, 1979:350-51).
A leitura atual destes estudos, além do acesso aos dados referentes aos processos de mudança da cultura popular no meio urbano brasileiro, não apenas torna possível o contato com temas como cultura popular e identidade, hegemonia cultural e classes sociais, mas traz à
tona contribuições pioneiras desta fase inicial da obra de
Florestan Fernandes no terreno da sugestão de novos temas e problemas para a pesquisa sociológica.
Ainda a respeito desses primeiros trabalhos do autor,
chamamos a atenção para uma particularidade de seu en-
tural pertence ao branco e que, mesmo nos casos em que
o negro sobrepõe-se ao índio, isto acontece através do
branco. Segundo ele, o estudo da tradição demonstrava
que na nova ordem social estava assinalado “o lugar do
negro”, que a este estavam destinadas posições inferiores
e que suas oportunidades se reduziam cada vez mais em
favor dos imigrantes e de seus descendentes. O autor identifica atitudes e representações que se articulam com outras atitudes negativas, como o ressentimento, a marginalidade e a discriminação.
Nestes estudos sobre o folclore, Florestan Fernandes
fornece sugestões para transformar os materiais etnográficos, muitas vezes limitados pelo modo como eram
trabalhados pelos folcloristas, em novos pontos de partida para uma sociologia da cultura, com ênfase sobre a
cultura popular.
Em Mentalidades grupais e folclore, de 1944, a preocupação central é revelar o conteúdo valorativo das noções das classes cultas em relação à cultura popular e sobre as quais se apóia um sistema de representações em
torno da “cultura dos incultos”. Ele busca demonstrar que
esses elementos considerados como pertencendo às “classes baixas” fazem parte da cultura da sociedade, mesmo
que as situações vividas apresentem as desigualdades que
impregnam a estrutura da sociedade brasileira. O que faz
com que esses elementos estejam disseminados de forma
hegemônica por toda a sociedade é a existência do que é
identificado como “ideal social” e que, sendo produzido
e vivido pela sociedade sob a forma de valores, não poderia deixar de se manifestar no folclore. Tais padrões de
ideal social certamente não se manifestarão de maneira
homogênea no sistema de valores das diferentes classes e
grupos sociais.
Essas diferenças de mentalidade não expressam simplesmente a polarização entre o arcaico e o moderno e o
mundo rústico e o civilizado, mas explicitam, em muitos
casos, de forma dramática, a complexidade dos processos envolvidos na formação brasileira, com suas assimetrias, desigualdades e tensões, e como essas situações tomam forma nas representações que os indivíduos produzem de si mesmos enquanto partes de grupos étnicos e
sociais.
Em Aspectos mágicos do folclore paulistano, também
de 1944, Florestan Fernandes tem como preocupação principal demonstrar a inconsistência da maior parte dos autores que, ao estudar o campo das superstições e crendices populares, tendem a considerá-las como manifestações
típicas das camadas “iletradas” e do tradicionalismo das
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SÃO PAULO NA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
restan Fernandes. Pode-se mesmo considerar que este
conjunto de estudos constitui um momento bem delimitado do desenvolvimento de sua obra, tendo como tema
mais geral as mudanças sociais e culturais que se processavam em São Paulo.
saio “As trocinhas do Bom Retido”, que é seu caráter nitidamente autobiográfico. Produzido juntamente com
outros estudos sobre São Paulo dos anos 40, este ensaio
mostra que na formação dos grupos de rua existe um espaço próprio onde as crianças desenvolvem processos de
socialização, ao mesmo tempo em que se configura uma
cultura infantil, como uma subcultura, na qual se expressam conteúdos referentes aos padrões culturais da totalidade da sociedade.
A vizinhança aparece como o tecido social básico para
a formação das “trocinhas”, pois é a contigüidade espacial das famílias que torna possível a síntese social dos
indivíduos. Outro aspecto considerado fundamental para
o reconhecimento dessa forma de agrupamento infantil
refere-se a processos de cooperação e competição, que,
na verdade, são complementares, pois os jogos entre os
grupos de crianças implicam a cooperação interna de seus
participantes, necessária para a competição externa. O
autor assinala que a formação desses agrupamentos entre
as crianças era sempre consentida pelos adultos, pois estes, de algum modo, percebiam neles uma forma positiva
de convívio entre as crianças. Esse tipo de convivência
se baseava em relações marcadas por um tipo de participação homogênea, ou seja, diferentes das relações assimétricas estabelecidas com os adultos, sejam pais, professores ou vizinhos, pois suas regras asseguravam a todos, mesmo quando reconhecidas as diferenças (como
saber jogar futebol), a oportunidade de participação.
O aspecto mais importante desse ensaio talvez seja
mostrar o quanto são importantes, no processo de socialização de indivíduos que crescem em uma sociedade cada
vez mais competitiva, as condutas solidárias, extremamente positivas para o desenvolvimento integral da personalidade. O relacionamento das crianças ocorria num clima
de cooperação e de espírito coletivo, reduzindo seu isolamento do convívio social e de comportamentos egoístas.
Ao desenvolver esta espécie de código de ética, segundo o qual um conjunto de normas orienta as ações dos
indivíduos, o agrupamento das crianças passa a ser regido por obrigações dos indivíduos em relação ao grupo,
implicando, portanto, reciprocidades e sanções, que de
certo modo apresentam-se como uma oportunidade de
ajustamentos mais “realistas” a uma sociedade crescentemente regida pela competição e pelo individualismo.
Esses primeiros trabalhos da década de 40 possuem,
portanto, um interesse particular quando se pretende compreender o quanto a cidade de São Paulo foi marcante para
o desenvolvimento do pensamento sociológico de Flo-
O RURAL E O URBANO NO
DESENVOLVIMENTO DA CIDADE
Tendo por base alguns dados do recenseamento de l950
e de estudos que ele próprio desenvolveu sobre a formação histórica e social de São Paulo, em Mudanças sociais
no Brasil (1960:191), Florestan Fernandes se propõe a
examinar os processos que orientam o desenvolvimento
dessa cidade em direção aos padrões de urbanização da
metrópole, considerando seu papel na constituição do novo
padrão de urbanização no Brasil, e, em especial, sua configuração como o lugar onde passam a interagir com a
nova ordem econômica e social elementos do mundo tradicional e agrário em mudança.
A preocupação do autor é mostrar que o desenvolvimento de São Paulo interfere não apenas sobre o território, a organização ecológica e os grupos sociais da cidade. Há, na verdade, um conjunto bastante amplo e diferenciado de efeitos produzidos e recebidos a partir da expansão desse novo modelo de grande centro urbano.
Ele vê a cidade dotada “de uma complicada rede de comunicações e de transportes, de uma extensa área urbana,
consideravelmente diferenciada, de um sistema comercial,
industrial e bancário altamente complexo e com tendências
expansivas, de meios modernos de educação, de assistência
e de recreação. Centro de grandes operações financeiras, para
ela convergem os capitais do Estado de São Paulo e dela
dependem as mais importantes iniciativas de desenvolvimento das regiões rurais de várias zonas do país, principalmente
nos Estados do Paraná, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais.
Aberta a todas as influências, está em comunicação econômica e cultural contínua com a maioria dos países europeus
e americanos, sendo ela própria uma das aglomerações mais
cosmopolitas do Brasil e América Latina” (Fernandes,
1960:166-67).
As mudanças, ao se processarem com essa intensidade, tendem a produzir efeitos de difícil controle. Paralelamente a essa expansão, ocorrem situações críticas, por
exemplo, os serviços públicos não conseguem acompanhar o crescimento da cidade, que, na avaliação de alguns urbanistas, foi além do que seria necessário e prudente (Fernandes, 1960:186).
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liberdade, a manifestação das idéias, a existência e o pleno funcionamento das instituições, enfim, o desenvolvimento de uma sociedade democrática:
“Com ela é que se inicia o aparecimento de condições
sociais que comportam o livre exercício do voto, a organização de partidos de massas, a ascensão política das classes
médias e das camadas populares, o advento de correntes e
instituições políticas compatíveis com a instauração de um
regime democrático” (Fernandes, 1960:191).
Apesar do ritmo acelerado das construções, já se constata uma crise habitacional; o sistema de abastecimento
apresenta-se deficiente e compromete o nível de vida; o
sistema escolar não consegue acompanhar o crescimento
da população. No mundo do trabalho ocorre, com grande
freqüência, a utilização de mão-de-obra não especializada para atender a funções que exigiriam especialização.
Um dos efeitos que Florestan Fernandes identifica nas
relações humanas é o choque de concepções de mundo, diferentes e até antagônicas, que se manifestam como tensões
emocionais e insatisfações morais, de tal modo que “os laços de solidariedade são crescentemente substituídos por
considerações racionais de interesses e fins” (Fernandes,
1960:187).
Ele mostra também que a desorganização do espaço
urbano e das relações sociais e culturais que aí tem lugar
não se restringe aos seus contornos, mas implica a desorganização de outras comunidades, “das quais extrai as
substâncias ativas de sua própria expansão, pois parte
substancial da mão-de-obra da cidade vem de fora e particularmente das zonas rurais” (Fernandes, 1960:l88), o
que significa que a expansão urbana de São Paulo gera o
despovoamento do campo, em particular quando se soma
a mudanças que estão se processando no próprio mundo
agrário, como o declínio da agricultura tradicional e o
surgimento de novos setores agrícolas.
A cidade vai, assim, rapidamente, se sobrepondo ao
campo, de onde retira “capitais e agentes humanos de trabalho, propaga necessidades de consumo que são essenciais para a existência dela, mas que ainda não estão ao
alcance do nível médio de vida rural no Brasil” (Fernandes,
1960:189).
Florestan Fernandes refere-se ainda à significação subjetiva da urbanização – o que representa uma contribuição valiosa para sua sociologia da cidade no Brasil. Anota, por exemplo, que, sendo essa significação subjetiva
extraordinariamente variável, como em qualquer outra
grande cidade, a vida urbana vai desenvolvendo nos indivíduos e grupos diferentes sentimentos e comportamentos. Se, de um lado, o conforto, a autonomia, a satisfação
mais prática das necessidades e a eficiência passam a ser
buscados como signos da vida moderna, começam a se
manifestar também sentimentos opostos de insegurança,
irritação e desconforto, decorrentes da crescente impessoalidade das relações e do estado de contínua tensão em
que passam a viver os indivíduos.
O que a cidade apresenta de novo, segundo o autor, é
que ela passa a ser o lugar onde é possível o exercício da
SÃO PAULO, CIDADE-METRÓPOLE
Ao se buscar compreender o papel que a cidade de São
Paulo ocupa na construção do pensamento de Florestan
Fernandes sobre a formação do Brasil moderno, é necessário situar com bastante clareza os vínculos que ele vai
desvendando entre o processo de revolução social e suas
conexões com a emergência da cidade-metrópole.
O autor enfatiza a importância do tempo presente, que
é de profunda revolução social, desencadeada pela crise
da ordem senhorial e escravocrata, cujo marco principal
é o movimento abolicionista. O que vai acontecer ao longo de todo o século está relacionado com esse processo
bastante problemático da revolução burguesa no Brasil –
que é examinado a partir do desenvolvimento de São Paulo, que, sendo “provinciana e pacata, até os fins do século passado, ela foi, de fato, a primeira cidade autenticamente ‘burguesa’ do Brasil” (Fernandes, 1960:274).
Ao considerar São Paulo como a expressão mais completa desse novo padrão de desenvolvimento, Florestan
Fernandes toma-a como paradigma para o desenvolvimento das grandes cidades nas condições criadas pelo subdesenvolvimento e, posteriormente, pela condição dependente.
Filha da grande revolução social que se operou com a
Abolição e a desagregação da economia e da sociedade
escravista, o Brasil não conseguiu se livrar dessa pesada
herança colonial, de modo que a passagem para a ordem
social competitiva foi marcada, desde o início, por essas
limitações históricas, resultando em uma revolução burguesa com tipologia própria, a marcada, em seus momentos subseqüentes, pelo subdesenvolvimento:
“As sociedades subdesenvolvidas e de economia tropical não possuem todos os requisitos estruturais e dinâmicos indispensáveis ao desenvolvimento orgânico de um
sistema de produção capitalista. O subaproveitamento
crônico dos fatores materiais e humanos da produção contribui para manter concepções obsoletas de organização
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SÃO PAULO NA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
sistema educacional complexo, capaz de funcionar como
mecanismo de mobilidade e ascensão social. Por todos
esses aspectos, antecipava o que poderia vir a ser a comunidade urbana brasileira. Essas seriam as possibilidades positivas oferecidas pelo desenvolvimento e pela prosperidade.
Havia, entretanto, a outra face dessa nova realidade,
com seus efeitos negativos, capazes de comprometer a
prosperidade presente e as possibilidades futuras. O primeiro aspecto problemático levantado pelo autor é que
não existia uma percepção suficientemente clara sobre o
crescimento em curso, em especial por não haver similaridades com ciclos econômicos anteriores da sociedade
brasileira, que tiveram conseqüências negativas e destrutivas para o desenvolvimento. Assim, as possibilidades
presentes na grande cidade poderiam ser neutralizadas,
ou mesmo anuladas, se o desenvolvimento econômico não
superasse os vários obstáculos estruturais que marcavam
a sociedade de classes emergente na situação de subdesenvolvimento. Florestan Fernandes via no crescimento
de São Paulo uma tendência ao envelhecimento e à degradação precoce, que poderia convertê-la em uma gigantesca “cidade morta” (Fernandes, 1960:273). Esta pode ser
considerada uma das contribuições pioneiras do autor ao
estudo da cidade, em especial no tocante à rápida degradação que já estava sendo percebida em vastas áreas construídas e à transformação de conjuntos de edifícios em ruínas
precoces, em decorrência de interesses efêmeros ou do desaparecimento ou de mudança de função.
O novo padrão de sociedade resultante da concentração demográfica, da urbanização e da industrialização é
marcado por uma extrema diferenciação social. O principal aspecto dessa nova configuração social do Brasil é
que São Paulo se tornará a aglomeração com maiores
possibilidades de enriquecimento e sucesso pessoal. Contudo, é preciso examinar com mais atenção a história desses êxitos pessoais e de grupos para se perceber que as
oportunidades são desfrutadas basicamente por aqueles
que estão mais bem preparados para aproveitá-las, utilizando experiência adquirida, valorizando técnicas de racionalização das ações e comportamentos inventivos –
elementos que passam a ser exigidos pelas novas rotinas
da vida urbana. O mais comum, entretanto, neste processo de adaptação dos indivíduos ao ambiente da cidade, é
que eles enfrentam dificuldades em graus bastante variados ao procurar modificar atitudes, comportamentos e
experiências herdados do recente passado rural urbano,
de estilos de vida característicos de outras regiões do país
e de outros países, com o propósito de conseguir posi-
da empresa, de política econômica ou de relações entre o
capital e o trabalho (Fernandes, 1960:274).
O desenvolvimento de São Paulo como cidade-metrópole é tomado como ponto de partida para se perceber as
várias “revoluções” que envolvem a organização ecológica, a estrutura demográfica, o sistema político e a ética
econômica, entre as mais evidentes.
A transformação mais visível da revolução social em
curso é a que ocorre no cenário ecológico, pois até o início do século a cidade apresentava uma organização ecológica típica das comunidades rurais urbanas da América
Latina. Com a urbanização, o intenso crescimento da população, a expansão de bairros residenciais e a implantação de empresas industriais, comerciais e de serviços, a
edificação de obras públicas, essa configuração espacial
se altera para se tornar mais próxima do padrão dos centros urbanos norte-americanos:
“Após o Martinelli, veio a onda de arranha-céus, que
fixou a fisionomia material da ‘civilização do asfalto’”
(Fernandes, 1960:268). Os bairros passam a ter um ritmo
de vida em todos os aspectos muito semelhante ao do
centro da cidade.
O crescimento demográfico e a mobilidade populacional intensa devem levar o pesquisador a buscar descobrir
o que se oculta sob tais dados. Para Florestan Fernandes,
processos de mobilidade demográfica intensos são desfavoráveis ao desenvolvimento de atitudes de solidariedade e cooperação entre os indivíduos. Ao contrário, o
que passa a orientar a conduta de indivíduos e grupos é a
competição, que cria um ambiente de estímulo aos interesses egoísticos, no qual os interesses vitais para a comunidade têm pouca chance de se manifestar.
Essa tendência se manifesta cada vez mais no mundo
da política e dos negócios. Enquanto no passado os grupos oligárquicos e patrimoniais cultivavam práticas como
o “voto de cabresto”, os políticos profissionais modernos
desenvolvem técnicas de controle eleitoral adaptadas ao
mundo urbano, lançando mão de novos recursos demagógicos. Já no mundo dos negócios, a facilidade de alguns em obter lucros rápidos e de enriquecer produz um
padrão de comportamento que se generaliza entre empreendedores capitalistas, que dissipam enormes fortunas vivendo suntuosamente ao invés de aplicá-las na produção.
Para Florestan Fernandes o padrão de desenvolvimento econômico alcançado pela cidade de São Paulo criou
as condições para a expansão da sociedade de classes, para
o funcionamento de estruturas democráticas fundadas na
igualdade de oportunidades e para a implantação de um
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 13(1-2) 1999
se desenvolveu de forma mais extensa, dinâmica e global, a integração do negro se mostra insatisfatória, sobretudo porque se recriam no ambiente da cidade moderna
os valores que marcavam negativamente as relações sociais do passado, como o preconceito e a discriminação.
O que distingue em primeiro lugar sua abordagem da
questão racial no Brasil é que ela se funda basicamente
no reconhecimento de que existe uma interligação entre
o padrão das relações raciais presentes e aqueles que traçam os contornos da revolução burguesa no Brasil.
Um ponto a ser mencionado em relação e essas pesquisas sobre as relações raciais no contexto da revolução
burguesa no Brasil é que elas têm vínculos com o debate
sobre a questão racial que se desenvolveria nas Américas, em particular sobre a participação do negro na formação das sociedades nacionais do continente.
Exemplo dessa participação de cientistas sociais brasileiros e de todo o continente americano em torno dessa
temática é a realização de vários eventos interamericanos
que contaram com a participação de autores brasileiros,
como o próprio Florestan Fernandes e Octavio Ianni.
Chama atenção a este respeito o título de trabalho de
Gonzalo Aguirre Beltrán, A integração do negro na sociedade nacional do México, praticamente o mesmo de
uma importante obra de Florestan Fernandes (Fernandes,
1970:11)
Sua investigação sobre as relações raciais tem em A integração do negro à sociedade de classes provavelmente seu
momento mais significativo do ponto de vista da escolha de
São Paulo como o lugar que concentra um complexo conjunto de elementos representativos para a abordagem das
relações raciais no processo da revolução social em curso.
Essa obra tem um interesse particular em relação à
abordagem do tema, por constituir um documento atual
acerca da formação da sociedade brasileira tendo como
cenário São Paulo.
Um dos pontos altos dessa pesquisa sobre as relações
raciais está precisamente na reconstrução da vida do negro em São Paulo, o que não é claramente indicado na
apresentação dos capítulos de A integração do negro à
sociedade de classes.
Para o autor, trata-se de um estudo de como o povo
emerge na história. E, na verdade, este livro mostra, melhor do que qualquer outro que o autor dedicou ao tema,
o processo de desenvolvimento da sociedade de classes a
partir da perspectiva de um grupo subalterno. O negro foi
escolhido por ser a parcela da população brasileira “que
teve o pior ponto de partida para a integração ao regime
ções que se diferenciam bastante entre si na condição de
novos habitantes da cidade.
Entre as várias situações que o autor destaca para caracterizar comportamentos e condutas do novo meio que
manifestam o preconceito racial está o caso do Hotel
Excelsior, que se recusou a hospedar a notável bailarina
americana Catharina Dunham (Fernandes, 1964:664).
Entre os aspectos mais destacados em suas considerações
sobre a cidade-metrópole está o papel que ela irá desempenhar na produção de novos padrões de organização da cultura, não em termos do desenvolvimento de São Paulo, mas
das orientações que se tornarão predominantes no país. Os
escritos de Florestan Fernandes sobre a Universidade de São
Paulo são elucidativos do modo como ele compreende a relação entre as transformações culturais e o desenvolvimento
fortemente diferenciado do país, em última análise, o papel
da universidade brasileira no processo da revolução social
em curso. É em São Paulo que acontece a experiência universitária que rompe com o padrão vigente de ensino superior no Brasil. Seu dinamismo econômico, social e cultural
fornece à universidade a oportunidade de se tornar um modelo de instituição moderna, capaz de acompanhar o desenvolvimento do país e de responder aos desafios que se apresentam, sobretudo no que diz respeito às exigências impostas
por esses processos de mudança. A criação da universidade
resultou do empenho de parte das elites sociais paulistas e
seu desenvolvimento deixará claro que em seu interior organizam-se e expressam-se interesses identificados com
outros setores sociais, particularmente setores médios emergentes; e, no plano das idéias, emergem expressões de diferentes matizes de pensamento político, que vão do conservadorismo das elites ao radicalismo socialista e libertário.
Seria mesmo muito difícil imaginar que os diferentes interesses sociais e políticos e as distintas concepções estéticas,
filosóficas e éticas, presentes na sociedade, não se expressariam na universidade.
Florestan Fernandes atribui à experiência da Universidade de São Paulo um significado cultural de amplo alcance e sustenta que ela foi muito mais transformadora e
de conteúdo mais verdadeiramente revolucionário que a
“Semana de Arte Moderna” e o movimento modernista
(Fernandes, 1977:217).
DEMOCRACIA RACIAL, MITO E REALIDADE
Ao tomar como objeto a cidade de São Paulo para o
estudo das relações raciais no Brasil, Florestan Fernandes
quer demonstrar que exatamente ali onde o capitalismo
220
SÃO PAULO NA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
Sintetiza, nessa idéia, a existência de uma consciência
política por parte do negro, sobre sua situação e os caminhos e momentos particulares em que essa consciência
emerge e se manifesta.
Seus diversos escritos sobre o “protesto negro” vão
incindir sobre determinados processos históricos e de
mudança, que encerram particular sentido em relação à
consciência que o negro vai adquirir de sua condição racial, social e política.
É o “protesto negro”, apesar de todos os limites que o
tem caracterizado, a forma mais avançada de luta para a
construção da democracia, visto que o negro representa,
de forma mais aguda e completa, a condição insatisfatória do povo brasileiro, deixando claro, por toda a experiência vivida, que a democracia racial só é possível no
contexto de uma democracia social e econômica.
O exame da emergência de São Paulo como uma das
concretizações do capitalismo em uma nação marcada
pelo subdesenvolvimento, e situada como periferia do
mundo ocidental moderno, oferece um conjunto de
sugestões para se compreender os desdobramentos e
impasses do desenvolvimento brasileiro revividos no
momento atual. Entre estas, vale anotar o que Florestan
Fernandes indica como as três situações típicas que o
capitalismo deveria apresentar para se livrar dos obstáculos que se combinam, ao buscar perpetuar os limitados horizontes sociopolíticos, culturais e econômicos do passado colonial, ou, como ele prefere, do “antigo regime”. Essas três situações estão resumidas como
fases que o padrão brasileiro de capitalismo vai apresentar, distanciando-se da evolução típica das nações
tidas como centrais e hegemônicas. É assim que “em
nenhuma das três fases o desenvolvimento capitalista
chegou a impor: a ruptura com a associação dependente, em relação ao exterior (ou aos centros hegemônicos da dominação imperialista); a desagregação completa do antigo regime e de suas seqüelas ou, em outras
palavras, das formas pré-capitalistas de produção, troca e circulação; a superação de estados relativos de subdesenvolvimento, inerentes à satelização imperialista
da economia interna e à extrema concentração social e
regional resultante da riqueza.” (Fernandes, 1975:223).
Florestan Fernandes, a partir dessa síntese, sugere que
esse desenvolvimento foi posto em prática pelos grupos
e classes dominantes, sempre alimentando o particularismo e egoísmo de seus interesses que regularmente se combinavam com a dominação externa, mantendo as maiorias não possuidoras excluídas total ou parcialmente do
social que se forma ao longo da desagregação da ordem
social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil” (Fernandes, 1964:1).
Este é também um trabalho pioneiro no campo da antropologia, na medida em que enfoca os processos de redefinição dos preconceitos raciais no contexto de uma sociedade
em mudança rumo à urbanização e à industrialização, apontando os aspectos que foram favoráveis e desfavoráveis à
inclusão dessa parcela da população. Como primeiro aspecto desfavorável ao negro, o estudo aponta sua marginalização e exclusão das oportunidades de trabalho que estavam
sendo criadas ou ampliadas pelo dinamismo econômico da
cidade; a ele restavam os trabalhos penosos, arriscados e mal
remunerados – os chamados “serviços de negro”. O segundo aspecto desfavorável, baseado em extenso material empírico, é o processo de estigmatização e criminalização em
que se vê enredado o negro, em decorrência das barreiras
que se antepõem à sua participação no mercado de trabalho.
O autor menciona ainda “condições anônimas de existência
que, ao se tornarem permanentes impediram, por exemplo,
a família negra de preencher construtivamente suas funções
sociais normais.
Os aspectos assinalados como positivos referem-se, em
primeiro lugar, à convivência do negro com o imigrante
de origem italiana, a partir da qual passa a conferir importância à organização da família e da escolaridade no
processo de integração à sociedade. Assim, ao lado da
família incompleta e desintegrada, passava a existir a família negra integrada (Fernandes, 1964:188).
A apatia do negro é apontada por Florestan Fernandes
como um dos problemas de evidente importância teórica,
pois, ao mesmo tempo que pode ser vista como uma estratégia de acomodação, pode assumir a condição de uma
resistência passiva.
Há, sobretudo a partir da década de 50, uma tendência
a uma participação maior e mais rápida, o que é confirmado pela existência do negro operário e do negro de classe média, sem que deixem de existir os mecanismos tendentes a manter o negro em posição relativamente desvantajosa na disputa por trabalhos mais valorizados social e economicamente.
Essas mudanças, em princípio favoráveis, não foram suficientes para modificar, em seus traços essenciais, a identificação social do negro com a pobreza, a marginalidade e a
criminalidade, como forma mais visível e usual da persistência do preconceito e da discriminação.
Sob a idéia do “protesto negro”, Florestan Fernandes
enfoca a dimensão política do problema social no Brasil.
221
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 13(1-2) 1999
O desenvolvimento de sistema de poder no Brasil vai
evidenciar, progressivamente, a “consolidação conservadora” da dominação burguesa, graças a que, em nossa
atualidade política, movimentam-se com desembaraço
oligarquias tradicionais e modernas.
É possível, portanto, através do estudo do desenvolvimento de São Paulo, compreender os sentidos das mudanças que ocorreram e que continuam a ocorrer no Brasil em busca da superação dos obstáculos criados por um
modelo do “capitalismo autocrático burguês”, que, como
procura demonstrar Florestan Fernandes, não poderá sobreviver longamente a profunda crise de que ele próprio
é sintoma.
mercado e das esferas típicas do mundo capitalista. Indica ainda que a condição de dependência e subdesenvolvimento não foi apenas imposta de fora para dentro, mas
alimentada e realimentada internamente.
O estudo apresenta em seus traços essenciais a formação da sociedade de classes no Brasil, em particular aqueles dos diferentes grupos da burguesia, porque é sobretudo através da ação desses grupos que se torna possível
compreender a natureza dos processos responsáveis por
nossa identidade política e social. Assinala como traço
de identificação negativa o fato de que, ao contrário de
outras burguesias que desenvolveram “instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa
burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no
plano político” (Fernandes, 1975:204), fazendo com que
o capitalismo no Brasil deixasse de ser, pouco a pouco,
“economicamente orientado”, nos termos de Weber, para
ser cada vez mais “politicamente orientado”.
Não assume, em conseqüência, o papel de agente da
civilização do capital e de “instrumento da modernidade”. Mesmo mobilizando essas vantagens, que tanto podiam ser extraídas das situações de atraso como dos eventuais avanços e dinamismos das populações e regiões, não
se deve esquecer que o grosso dessa burguesia era proveniente de estreitos mundos provincianos e rurais, podendo mesmo, aqui e ali, discordar das oligarquias mas, no
fundo, sempre dentro do mesmo horizonte de valores.
É verdade também que essa burguesia terminou por
adotar idéias e atitudes do espírito revolucionário encarnado pela revolução burguesa nacional e democrática, mas
que logo foram perdendo sua substância e força transformadora para se tornarem um elemento de retórica.
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