Director
José Pedro Paço d’Arcos
[email protected]
CAPA
Editor Geral
José Sousa Machado
[email protected]
Benes, para assinalar as
Arte Contemporânea
Sandra Vieira Jürgens
[email protected]
Arte Antiga
Luís de Andrade Peixoto
[email protected]
Martelo e trincha revestidos
com notas, de Barton Lidice
nº 1
Outubro
2007
artes (com ênfase na arte
portuguesa, sob o olhar atento
de Camões e Pessoa) e os
leilões (divulgando também
os leilões internacionais) .
5
EDITORIAL
7
ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA! | Estudo de Opinião
12
SOTHEBY’S | Entrevista a Francis Outred
17
ARTISTAS PORTUGUESES NO CIRCUITO MILIONÁRIO
Internacional
Kevin Power
[email protected]
Dossier ÍNDIA
Produtora Editorial
Carlota Mantero
[email protected]
Projecto Gráfico e Paginação
Panóplia
[email protected]
Secretária de Redacção
Janete Bento
[email protected]
7.
Revisão de Conteúdos
Rita Graña
[email protected]
Assinaturas
[email protected]
35.
26
ARTE CONTEMPORÂNEA DA ÍNDIA: Espaços de vaivém
31
BAIJU PARTHAN | Entrevista de Ranjit Hoskote
35
PINTURAS CANTADAS | Museu de Etnologia
Por Alexandre Oliveira e Cláudia Pereira
38
DOS VELHOS CONTOS às NOVAS ESTÓRIAS Por Luís Serpa
44
VARANASI: VIDA E MORTE NA CIDADE SAGRADA
48
PORTUGAL NA ÍNDIA Por João Alarcão
52
ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA
62
LEILÕES INTERNACIONAIS: HIGHLIGHTS ÍNDIA
66
ANTIQUARIATO iNDIANo
72
PANOS PINTADOS Por Madalena Braz Teixeira
Dossier PAULA REGO
Conselho Consultivo
João Esteves de Oliveira
Jorge Barreto Xavier
Luís Serpa
Manuel Castilho
Miguel Júdice
Propriedade
Artcetera – Cultura e Arte, Lda.
Sede
Rua Carlos de Oliveira, 3 – 12º C
1600-028 Lisboa
Tel: 217 225 040 – Fax: 217 225 049
76
PAULA REGO | ENTREVISTA EM LONDRES
83
MARCO LIVINGSTONE | ENTREVISTA
86
ARQ. EDUARDO SOUTO MOURA | ENTREVISTA
90
FRANÇOIS DUFRÊNE | SERRALVES
Por Gisela Leal
Pessoa Colectiva Nº 502 191 082
Impressão e Acabamento
Offset + Artes Gráficas, S.A.
Rua Latino Coelho, 6 – Venda Nova – 2700-516
Amadora
Tel: 214 998 716 -- Fax: 214 998 717
A ÍNDIA: EM CASA NO MUNDO Por Peter Nagy
(para o viajante afoito) Por Manuel Castilho
Publicidade
Luís Figueiredo Trindade (Director comercial)
[email protected]
Mónica da Costa Silva
[email protected]
Administração
José Pedro Paço d’Arcos
Diogo Madre Deus
GRANDE DEMAIS Por Jorge Barreto Xavier
24
Por Nancy Adajania
Produtor Gráfico
João Costa
[email protected]
Redacção
Maria Correia
[email protected]
20
76.
91
SKULPTUR PROJEKTE | MÜNSTER
Por Nuno Crespo
94
EXPOSIÇÕES
96
QUEM É QUEM | PEDRO CABRITA REIS
98
QUEM SERÁ QUEM | JOÃO SERRA
Distribuição
Logista
Rua República da Coreia, 34 – Ranholas – 2710-460
Sintra
Tel: 219 267 800 | Fax: 219 267 810
101
NOMES INVISÍVEIS | Crónica de Jorge Barreto Xavier
Periodicidade Mensal
104
JUÍZO ESTÉTICO OU JUÍZO POLÍTICO? |
Tiragem 12.000 exemplares
Opinião de Nuno Crespo
Registada com o Nº ISSN 1646-8139
É expressamente proibida a reprodução da revista,
Em qualquer língua, no todo ou em parte, sem a
prévia autorização escrita de ARTES & LEILÕES.
Todas as opiniões expressas são da inteira
responsabilidade do autor.
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92.
106
NOTÍCIAS
108
VINTE MAIS NACIONAL | VINTE MAIS INTERNACIONAL
112
PALADARTE | Crónica de Miguel Júdice
07/09/04 22:20:31
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
EDITORIAL
José Pedro Paço d’ Arcos
A revista Artes & Leilões saiu a público pela primeira vez em Outubro de 1989, quando a única revista existente dedicada às artes plásticas era a Colóquio Artes,
editada pela Fundação Calouste Gulbenkian .
Não obstante os nay-sayers, que apregoavam que uma revista de artes plásticas em
moldes comerciais e sem subsídios não vingaria, a Artes & Leilões brevemente se
impôs no mercado e se tornou a revista de referência sobre arte em Portugal. Após
sete anos de publicação regular, com uma cobertura das artes e dos leilões e
antiguidades em Portugal e no estrangeiro, além de projectos especiais como o
lançamento do Arte Guia / Guia d’Arte em 1991, a revista cessou a actividade. Na
altura, divergências ao nível da administração do projecto provocaram essa situação.
O mundo mudou e Portugal mudou com o mundo. Hoje, o panorama cultural
português é completamente diferente, para melhor. A Cultura virou Ministério.
Surgiram fundações privadas com espólios valiosos. O coleccionismo tornou-se
uma virtude. Artistas de diferentes gerações e tendências competem por públicos e
mercados. A internacionalização da arte portuguesa é mais efectiva.
É neste ambiente de maior afirmação cultural que a revista Artes & Leilões se
vai inserir e que tentará espelhar e, se possível, influenciar.
Saudamos antiquários, leiloeiros, galeristas, artistas, críticos e todos os agentes
culturais com quem colaborámos no passado. Esperamos poder acolhê-los, assim
como a novos protagonistas, num projecto que procurará ser abrangente sem ser
neutral, revelador sem ser descritivo, interveniente sem ser sectário.
Portugal mudou e a Artes & Leilões mudou também. O modelo de revista da
primeira série da Artes & Leilões foi seguido pela Arte Ibérica e, em certa medida,
pela L+Arte. Estes projectos tiveram e têm o seu mérito. Na sua segunda série,
a Artes & Leilões seguirá um novo modelo. O âmbito de intervenção editorial da
revista foi alargado ao Turismo Cultural, Moda, Fotografia, Arquitectura e Design.
Vários projectos especiais estão na forja, entre eles a reedição de um Guia d’ Arte
actualizado.
Para além da cobertura mensal da actualidade artística nacional e internacional,
a revista dedicará uma atenção especial aos aspectos relacionados com o
investimento em bens culturais, avaliando a evolução das cotações no mercado
(“Vinte Mais Nacional e Internacional”), firmando a cotação dos artistas nacionais
(“Quem É Quem”) e descobrindo novos valores (“Quem Será Quem”).
Cada edição inclui um dossier alargado sobre a arte contemporânea e a cultura
de um país escolhido, sugerindo itinerários culturais e artísticos. A Índia, pela
sua importância no imaginário português e no mundo contemporâneo, foi a
nossa primeira escolha, associando-nos assim à celebração dos seus 60 anos de
independência.
A partir deste primeiro número da segunda série, esperamos ter-vos como leitores.
A crítica e as sugestões serão muito bem-vindas, para melhor podermos servir os
interessados na actividade artística em Portugal.
A Manuel de Brito, pioneiro que tanto lutou pelo desenvolvimento da arte em
Portugal e que morreu no seu posto, uma última palavra de apreço e saudade. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
ESTUDO DE OPINIÃO
upa,upa!
arte portuguesa:
Um estudo de opinião exclusivo da Eurosondagem
para a Artes & Leilões revelou a opinião dos
portugueses relativamente à arte contemporânea
nacional e internacional.
Damien Hirst | “Lullaby Spring”, 2002 | Cortesia Sotheby’s.
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ESTUDO DE OPINIÃO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA!
interesse pela
arte
contemporânea
1. Qual a sua opinião em relação à Arte
Contemporânea?
#41
Aprecia / Gosta muito
49,3%
Depende dos artistas / Gosta por vezes
42,1%
Não aprecia / É-lhe indiferente
6,3%
NS / NR
Total
2,3%
100,0%
O estudo encomendado pela Artes & Leilões à Eurosondagem revela
que em Portugal o interesse pela Arte Contemporânea é elevado.
Os resultados permitem concluir que a grande maioria dos
inquiridos, 49,3% aprecia/gosta muito; 42,1% afirmou que a sua
opinião está dependente dos artistas em questão e apenas 6,3%
expressou uma opinião desfavorável (Não aprecia/É-lhe indiferente)
2. Qual o período da História da Arte
em relação à Arte Contemporânea.
que mais lhe interessa? Relativamente a outros períodos da História da Arte, constatou-
pode escolher uma ou duas) (*)
se a sua preferência por épocas mais recentes, verificando-se um
equilíbrio de resultados entre a Arte Moderna (29,2%) e a Arte
Arte Antiga
Arte do Renascimento
Arte Barroca
14,2%
Contemporânea (28,1%) a que se seguiu a Arte Antiga (14,2%),
9,1%
a Arte Romântica (13,8%), a Arte do Renasc imento (9,1%) e,
5,6%
finalmente, a Arte Barroca, que registou 5,6%.
Arte Romântica (Séc. XIX)
13,8%
Os resultados da questão seguinte permitem concluir que é elevado
Arte Moderna (Séc. XX)
29,2%
o nível de acompanhamento em relação à criação artística das novas
Arte Contemporânea
28,1%
gerações. 82,3% dos inquiridos revela acompanhar com bastante
Total
100%
interesse e regularidade a criação artística das novas gerações. |
(*) - Nota: 4,8% dos inquiridos respondeu “Ns/Nr”
3. Acompanha a criação artística das novas
gerações?
Sim, com bastante interesse
40,0%
Às vezes / Intermitentemente
42,3%
Nem por isso / Só raramente
15,2%
NS / NR
Total
2,5 %
100,0%
Damien Hirst | “Lullaby Spring”, 2002 | detalhe | Cortesia Sotheby’s.
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UM OCEANO
ESTUDO
DE OPINIÃO
INTEIRO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA!
h
VELÁZQUEZ | ”VÉNUS AO ESPELHO”, 1651 | ÓLEO SOBRE TELA | CORTESIA NATIONAL GALLERY, LONDRES.
CONHECIMENTO DA
arte INTERNACIONAL
4. Conhece alguns destes artistas?
#41
1. VELÁZQUEZ 95,2%
2. CLAUDE MONET 93,7%
3. GOYA 93,5%
Numa outra série de perguntas, indicadora do nível de conhecimento
4. REMBRANDT
91,4%
sobre o panorama artístico nacional e internacional, em períodos
5. PAUL GAUGUIN
90,9%
distintos da História da Arte, revelaram-se resultados surpreendentes.
6. BOTICELLI
85,3%
Embora uma grande maioria dos inquiridos (49%) acompanhe a
7. TOULOUSE-LAUTREC
81,0%
criação artística das novas gerações, permanecem desconhecidos
8. FRANCIS BACON
77,0%
alguns dos artistas contemporâneos com maior repercussão.
9. KANDINSKY
74,9%
Confrontados com uma lista que incluía artistas de várias épocas,
10. MARCEL DUCHAMP
68,4%
registou-se um grau de desconhecimento mais elevado face aos
11. WARHOL
63,4%
artistas mais contemporâneos: Damien Hirst, Baselitz e Jeff Koons
12. JACKSON POLLOCK
54,1%
posicionaram-se nos últimos lugares.
13. JEFF KOONS
28,2%
Nas preferências entre os artistas portugueses, o estudo mostra que
14. BASELITZ
18,7%
Paula Rego e Maria Helena Vieira da Silva são as artistas portuguesas
15. DAMIEN HIRST
17,0%
de eleição, de entre uma lista que incluía nomes tão díspares como
Grão Vasco, Amadeo de Souza-Cardoso e Pedro Cabrita Reis. |
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10
PREFERÊNCIAS
ENTRE OS
ARTISTAS
PORTUGUESES
#41
6. E quais são os seus artistas portugueses
preferidos?
(pode indicar até 3)(*)
PAULA REGO
17,6%
MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
17,4%
JÚLIO POMAR
14,7%
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
13,8%
ALMADA NEGREIROS
12,9%
JULIÃO SARMENTO
5,1%
JOSEFA DE ÓBIDOS
4,2%
HELENA ALMEIDA
3,3%
COLUMBANO
3,1%
PEDRO CABRITA REIS
3,1%
GRÃO VASCO
1,9%
SILVA PORTO
1,5%
JORGE MOLDER
0,8%
HENRIQUE POUSÃO
0,6%
(*) - Nota: 6,9% dos inquiridos respondeu “Outro” artista português preferido.
Maria Helena Vieira da Silva | (1909-1992) | ”Lisbonne Bleue”, 1942. | Cortesia Sotheby’s.
8. Já comprou alguma obra de arte?
Noutra questão, que pretendia determinar a percentagem dos que adquiriram obras de arte, os
7. Com que regularidade visita exposições
resultados são igualmente inesperados: 57% dos inquiridos respondeu “sim”.
Também surge explícito que o critério que prevalece na aquisição é o gosto pela obra
de arte?
(73,7%), seguindo-se o apreço pelo artista (16%). A aposta em termos de retorno do
Os resultados assinalam que é elevado o número daqueles que com regularidade visitam
investimento traduziu-se em 7%; mais reduzida foi ainda a percentagem - 3,3% - dos
exposições de arte: 53% dos inquiridos afirmou visitar mostras uma vez por mês e 30%
inquiridos que revelaram fazê-lo por indicação ou opiniões manifestadas através da
respondeu que as visita três a quatro vezes por mês. comunicação social. Paginação1.1.indd 10
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11
ESTUDO DE OPINIÃO ARTE PORTUGUESA: UPA, UPA!
comentário
ao estudo de opinião
#41
A amostra que serviu de base a este estudo de opinião foi constituída a partir
cultivado por artistas como Jeff Koons contribuiu para
dos visitantes de uma exposição de Arte Contemporânea que decorreu numa
o fazer sobressair aos olhos do público e destacar-se de
instituição cultural lisboeta. Ou seja, podemos inferir que esta amostra é composta
entre muitos outros artistas seus contemporâneos, por
por pessoas que frequentam com alguma assiduidade este tipo de iniciativas,
outro lado esse fenómeno não é suficiente para o tornar
possuindo alguma familiaridade com o universo da criação artística actual.
tão incontornável quanto os artistas já consagrados
Nesse sentido, este estudo revela alguns dados surpreendentes e outras tantas
pela História da Arte, como Velázquez, Monet, Goya
contradições, sobre as quais tentaremos oferecer pistas que nos ajudem a
ou Rembrandt. Nem mesmo o mediatismo fortíssimo
esclarecê-las.
de Damien Hirst, que no último leilão da Sotheby’s
Assim, é curioso verificar que praticamente 90% dos indivíduos consultados
de Londres, em Junho passado, se transformou no
adere sem reservas à Arte Contemporânea - 49,3 % de uma forma incondicional
artista vivo mais caro - uma obra sua foi vendida
e 42,1% fazendo depender a sua adesão da identidade do artista -, incluindo
por €14.478.000,00 - foi suficiente para o celebrizar
nesta designação, supomos, a Arte do séc. XX. Esta suposição decorre da análise
num plano de equivalência com os autores clássicos.
das respostas à pergunta seguinte, que indaga qual o período da Arte que mais
Comparativamente com os autores estrangeiros, os
interessa aos indivíduos consultados. Somando as preferências pela Arte Moderna
artistas portugueses, infelizmente, são muito pouco
(29,2%) e pela Arte Contemporânea (28,1%), constatamos que 57,3% do público
conhecidos, o que denota a fraquíssima promoção
prefere as manifestações artísticas que lhe são coevas. Acrescentando a este valor
de que são alvo pelas instâncias responsáveis. Senão
as preferências pela Arte Romântica (13,8%), que de certo modo antecipa ou,
vejamos: o artista estrangeiro menos conhecido
em certos casos, inaugura as tendências modernistas, concluímos que 71,1%
- Damien Hirst (17%) - é quase tão famoso quanto
do público consultado é receptivo às manifestações artísticas dos últimos cem
as artistas portuguesas mais conhecidas - Paula
anos. Isso mesmo se conclui da análise às respostas à terceira pergunta, que nos
Rego (17,6%) e Vieira da Silva (17,4%). Os artistas
informam que 82,3% dos inquiridos diz acompanhar com bastante interesse
portugueses, independentemente da sua consagração
(40%), ou com interesse mediano (42,3%), a criação artística das novas gerações.
histórica, actual ou passada, são praticamente
Apesar de considerarmos que estes valores estão empolados, reflectindo uma
desconhecidos do público português. Apenas 3,1%
natural valorização cultural dos inquiridos, não deixa de ser relevante que a
dos inquiridos conhece Columbano; 1,9%, Grão Vasco
pretensão de reconhecimento cultural que os inquiridos denotam se fundamente
(que tem até um museu com o seu nome e sobre a sua
no conhecimento que dizem ter da Arte mais recente, em detrimento das
extensa obra quinhentista) e, pasmem, apenas 0,6%
manifestações artísticas de outros períodos da História da Arte. Ou seja, parece que
sabe da existência do Henrique Pousão, talvez o maior
a Arte Moderna e Contemporânea está na moda e os nossos inquiridos, sabendo
artista português do séc. XIX, precursor dos movimentos
disso, não querem abdicar de um estatuto cultural actualizado.
modernistas de que Souza-Cardoso viria a ser o
Curiosamente, a linha de pensamento que temos vindo a desenvolver é
expoente máximo (este último, conhecido por 13,8%,
radicalmente contrariada pelas respostas às perguntas sobre quais os artistas
talvez devido à grande exposição retrospectiva realizada
estrangeiros e portugueses mais conhecidos. Na listagem dos quinze artistas
recentemente na Fundação Gulbenkian). |
estrangeiros mais conhecidos, os autores contemporâneos ocupam, sem excepção,
JSM
os últimos lugares da tabela. Os únicos três artistas ainda vivos mencionados - Jeff
Koons (conhecido por 28,2% dos inquiridos), Baselitz (18,7%) e Damien Hirst
(17%) - ocupam os três últimos lugares. Ou seja, se por um lado o vedetismo
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Este estudo de opinião foi realizado entre 9 e 13 de Julho de 2007 numa amostra de 525
entrevistas validadas a partir do universo de frequentadores de uma exposição de arte
contemporânea que decorreu num espaço institucional da capital. |
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17
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
LEILÕES
José Sousa Machado
Artistas portugueses
No circuito milionário
#41
1.
Apenas quatro artistas portugueses têm marcado presença regular nos leilões de
artistas em princípio de carreira que apoiaram.
arte da Christie’s e da Sotheby’s de Londres, Nova Iorque ou Paris. São eles Helena
De facto, o simples facto de um artista estar
Almeida, Julião Sarmento, Paula Rego e Vieira da Silva, tendo a penúltima batido
representado nos afamados leilões de arte
o seu recorde pessoal de preço no leilão de arte contemporânea da Christie’s
contemporânea das duas principais casas leiloeiras
londrina do passado mês de Junho, com a pintura The Moth (A Traça) – um pastel
mundiais é, só por si, um indicador seguro da
sobre tela, com 160 x 120 cm, datado de 1994 – que atingiu os € 559.654. Nesse
estabilidade da cotação do mesmo e a garantia de
mesmo leilão, o pintor britânico Lucian Freud conquistou o estatuto de pintor vivo
circulação das suas obras num circuito à escala
mais caro de sempre, quando uma obra sua intitulada Bruce Bernard - um retrato
mundial, com margens de valorização muito
- foi arrematada por e 11.624.940, palmarés de curtíssima duração, pois apenas 24
promissoras. À luz estrita do mercado de arte, a
dias depois, no leilão de arte contemporânea da Sotheby’s, também em Londres,
presença de um artista nos principais leilões da
o ainda jovem artista Damien Hirst roubou-lhe a palma, com uma obra que subiu
Christie’s e da Sotheby’s representa, por um lado,
até aos e 14.487.000, numa vertigem de zeros que deixou muitos especialistas
o reconhecimento da qualidade da obra e, por
apreensivos devido às semelhanças que este fenómeno parece ter com a euforia de
outro lado, a homologação de um valor credível
preços do início da década de 90 (do século passado), quando inúmeras pinturas
e sustentado da mesma. Para que as portas deste
de Van Gogh subiram aos píncaros do estrelato artístico, para depois se afundarem
circuito se abram de par em par a um qualquer
no silêncio mais que suspeito da insolvência de um tal sr. Bond, australiano, e nas
artista, é necessário, em primeiro lugar, o seu
extravagâncias de um milionário japonês, o sr. Sato, que desejava insistentemente
reconhecimento tácito no mercado de origem, a
levar um Van Gogh (e um Renoir) consigo para o outro mundo.
estabilização da sua cotação no mercado local, pois
No mesmo leilão da Christie’s a que fizemos referência a propósito de Paula
é a partir dos coleccionadores desse circuito nacional
Rego e Lucian Freud, foram quebrados vários recordes pessoais de outros artistas
que se alicerça a rampa para a internacionalização.
conhecidos da cena artística internacional como, por exemplo, Thomas Schütte,
Por outro lado, não é possível definir uma estratégia
Rosemarie Trockel, Piero Manzoni, R.B. Kitaj e Tàpies, entre outros.
de internacionalização de um artista cujas obras não
Com efeito, nas últimas duas décadas assistimos, no plano internacional,
circulem já em mercados estrangeiros. Finalmente, a
a uma alteração no gosto dos coleccionadores ou, pelo menos, verificou-se
presença de um artista em iniciativas institucionais é
uma transferência significativa do investimento em arte dos leilões de obras
também fundamental.
impressionistas e modernistas para os leilões de arte contemporânea, nos quais a
Dos artistas portugueses, apenas os quatro que
maior parte dos lotes apresentados à praça pertencem a autores ainda activos e cada
referimos lograram, até ao momento, aceder a esse
vez mais jovens. As razões que determinaram este fenómeno são de natureza muito
circuito milionário. Mesmo autores com a qualidade
diversa, como a raridade de obras de autores mais antigos disponíveis para venda, a
e visibilidade de um Júlio Pomar, Cabrita Reis,
necessidade de renovar periodicamente o mercado, a cada vez maior mediatização
João Penalva, entre tantos outros, não reuniram
da contemporaneidade artística mas, sobretudo, o aparecimento de um novo tipo
ainda os requisitos necessários para constarem nos
de coleccionador ou investidor em arte, para quem a intervenção nos domínios
leilões milionários de Londres e Nova Iorque e, dos
da cultura assume não só o carácter de valorização pessoal e social, mas também
quatro que referimos, Paula Rego e Vieira da Silva
uma forma de aplicação financeira – de um negócio, em suma - cuja rentabilidade
construíram toda a sua carreira no estrangeiro, em
é necessário salvaguardar e promover activamente. Foram estes coleccionadores
Londres e Paris respectivamente, não se podendo
empresários, sem tradições firmadas na cultura, que nos últimos anos investiram
portanto falar propriamente de uma estratégia de
maciçamente nos artistas actuais e agora sustentam e promovem as cotações dos
internacionalização sistematicamente construída. |
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18
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
ARTE CONTEMPORÂNEA
h
LEILÕES ARTISTAS PORTUGUESES NO CIRCUITO MILIONÁRIO
FILIPA VICENTE
2.
3.
1.
Paula Rego | “The Moth”, 1994 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Christie’s de
Vieira da Silva | “Papillons”, 1951/2 | Óleo s / tela | 60 x 120 cm | Vendido na Artcurial de
Londres, em 20 de Junho de 2007, por US$ 727.548.
Paris, por US$ 574.350.
2.
Paula Rego | “Target”, 1995 | Pastel s/ papel | 160 x 120 cm | Vendido na Sotheby’s de
Julião Sarmento | “Emma 4”, 1990/1 | Óleo, grafite e areia s/ tela | 190 x 199,5 cm |
Londres, em 22 de Junho de 2005, por US$ 627.737
Vendido na Sotheby’s de Londres, em 14 de Outubro de 2006, por US$ 95.094.
Paula Rego | “Island of the Lights from Pinocchio”, 1996 | Tinta da índia e aguarela s/
Julião Sarmento | “A Prece de Viriato”, 1985 | Óleo, papel e colagem s/ tela | 188 x 279 cm |
papel colado s/ tela | 150 x 180 cm | Vendido na Sotheby’s de Londres, em 9 de Fevereiro de
Vendido na Christie’s de Londres, em 9 de Fevereiro de 2007, por US$ 94.117.
2006, por US$ 441.600.
Paula Rego | “The Sweeper”, 2002 | Pastel s/ papel | 150 x 90 cm | Vendido na Sotheby’s
Helena Almeida | “s/ título (seis trabalhos)”, 1976/7 | Gelatin silver print | 40 x 50,2 cm |
de Londres, em 23 de Junho de 2004, por US$ 213.818.
Vendido na Christie’s de Londres, em Abril de 2005, por US$ 33.834
3.
Paula Rego | “The drawing lesson”, 1985 | Acrílico s/ papel | 100 x 70 cm | Vendido na
Helena Almeida | “Voar (em quatro partes)”, 2001 | Cibacrome | 124 x 180 cm | Vendido
Sotheby’s de Londres, em 10 de Fevereiro de 2005, por US$ 211.502.
na Sotheby’s de Londres, em 16 de Outubro de 2006, por US$ 63.396.
Vieira da Silva | “Souterrain”, 1948 | Óleo s/ tela | 81 x 100 cm | Vendido na Sotheby’s de
Londres, em 29 de Junho de 1990, por US$ 855.809.
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RAJASTÃO | Fotografia: Maria João lima
Grande
A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro, numa colecção,
só captável de relance em palavras de papel jornal. Um território
imenso, o sexto maior do mapa político mundial.
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21
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
JORGE BARRETO XAVIER
A Índia é assim grande. Difícil de contar num livro,
milenares no território que ocupa, se tem actualizado
numa colecção, só captável de relance em palavras
e fortalecido como Nação nos últimos anos.
de papel jornal. Um território imenso, o sexto maior
A identidade indiana tem sido forjada com uma
do mapa político mundial. Uma população que
coerência maior por efeito da criação, em 1947, da
continua a crescer e já ultrapassou os mil milhões
União Indiana, reunindo sob uma mesma bandeira
de habitantes, tendo apenas a China pela frente. As
um território que nunca esteve integralmente
montanhas mais altas do mundo, desertos de calor
coberto pelos maiores impérios (como o mogol)
tórrido, praias em sete mil quilómetros de costa,
que marcaram o Industão, um território marcado
florestas luxuriantes, cidades milenares.
pela existência de um número incontável de
E depois, o choque de saber que se projecta para 2050
realidades políticas, etnias, situações diferenciadas de
serem a China e a Índia as economias dominantes.
desenvolvimento.
Que só na Índia as universidades “produzem”,
O efeito da presença militar, administrativa, comercial,
anualmente, dois milhões de licenciados. Mas onde a
cultural, da Companhia Inglesa das Índias Orientais
taxa de analfabetismo é a maior do mundo e a sida
e da Coroa britânica teve um papel importante na
um problema gravíssimo.
afirmação identitária que se tem sedimentado nos
Muito difícil relatar de forma coerente o estado das
últimos sessenta anos. Um pequeno parágrafo nas
coisas nesta terra, com a economia a crescer 8%
histórias que se podem contar dos últimos quatro mil
demais
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ao ano. Aqui se instalam clusters de tecnologias que
de um espaço geográfico onde, ao lado de culturas
criam desemprego na Europa e nos Estados Unidos
de subsistência se afirmaram algumas das mais
nas respectivas áreas. Ao mesmo tempo, esta Europa
florescentes da Humanidade.
que morre demograficamente tem de se alimentar da
Sendo pequeno, este parágrafo não é menor, pois
emigração qualificada e não qualificada para avançar.
trouxe o modelo de uma democracia parlamentar
Aqui está um Estado que tendo afinidades históricas
para a Índia, fazendo desta, actualmente, a maior
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22
Dossier ÍNDIA GRANDE DEMAIS
democracia do mundo. Ironia estranha, pois o Reino
templos e espaços de oração não orienta, necessariamente, os comportamentos
Unido, enquanto esteve, subjugou, explorou, mas ao
por regras sábias ou por atitudes de desprendimento. O sistema de organização
sair, deixa um modelo de liberdade.
social por castas, apesar de manter um papel relevante, pode, com alguma
Apesar das situações passadas de recentes guerras
facilidade, ser ultrapassado por uma bom dote, pela riqueza de um empresário,
com vizinhos como a China ou o Paquistão (aqui
pelo lucro provável decorrente de uma certa ligação profissional.
com uma ferida aberta ainda), de alguns problemas
Atente-se agora na relação Portugal-Índia: no mundo globalizado, onde em cada
secessionistas (Caxemira, Assam, Punjab) a Índia
seis seres humanos um é indiano, percebe-se a premência de melhor conhecer
estabilizou o território e as suas populações (28
um país com o qual perdemos contacto. Portugal tem, como todos sabemos,
Estados, 18 línguas, mais de 800 dialectos).
aspectos mal resolvidos como nação, com o seu período colonial. Os 450 anos
Usou como cimento para a sua multiplicidade, e
para as suas divergências, as palavras e as atitudes
sábias de Mohandas K. Gandhi. Não se duvidará do
seu papel no caminho para a independência e na
afirmação do novo Estado, nas décadas de trinta e
de quarenta. Mas não se pense que Gandhi, como
outros indianos, hindus, muçulmanos, cristãos, jainas
ou sikhs notáveis de todos os tempos, representam a
maioria da população. Como em qualquer nação, os
seus referenciais unem, por vezes numa aparência
comummente aceite, o que não pode fazer esquecer a
enorme diversidade das manifestações do quotidiano
e dos seus cidadãos.
É assim que se compreende que haja religiosidade
e materialismo, democracia e corrupção, avanço
tecnológico e analfabetismo, turismo de luxo e sida.
A estes binómios, reducionistas, é certo, poderiam
acrescentar-se outras construções, para afirmar a
Cartaz de um filme de Bollywood
complexidade deste país/continente.
Os indianos, que continuam a fazer questão de
de presença na Índia parece que se diluíram, evaporaram do nosso imaginário
impressionar os visitantes, são muito pragmáticos.
colectivo. Em alguns territórios indianos, essa presença continua a ser uma
Tive a oportunidade de reparar como se avalia
realidade e hoje, o Governo da Índia já é suficientemente forte para não ter
e categoriza um interlocutor, seja indiano ou
problemas com a salvaguarda do património histórico português.
estrangeiro, no início de uma conversa, para situar
Hoje, quantos portugueses há a estudar em universidades indianas? Contam-se
o modo como se estabelece a relação de Poder
pelos dedos de uma mão, talvez duas? Quantos verdadeiros conhecedores das
concreto. É a partir daí que se estabelece a relação
realidades desse imenso espaço de oportunidades?
inter-pessoal.
Estive em Goa em Março passado. Lá, o tempo parece correr depressa. As classes
E se se olha para a Índia como espaço de
altas e médias (enquanto as classes pobres muito lentamente se libertam dessa
espiritualidade, não se pode esquecer o outro lado
condição) anseiam pelo futuro, entusiasmam-se e correm para esse futuro.
- o materialismo. A vontade de ascensão das classes
Dizem-me ser assim em Mumbai, em Bangalore, em Delhi, em Calcuta, em
médias, a afirmação ostentatório das classes ricas,
Madras.
a pouca preocupação destes com os mais pobres.
Notei um entusiasmo, um dinamismo. Uma amizade com o Presente que por cá
Esta terra onde se situam mais de dois milhões de
vai faltando. Vale a pena fazer a ponte. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Peter Nagy | tradução de Maria correia
A Índia:
Em Casa no Mundo
Após um longo período de desconhecimento e
indiferença por parte da comunidade internacional,
a Índia tornou--se, nos tempos recentes,
cada vez mais visível.
A prática da arte contemporânea na Índia actual
granjeou a distribuição e um vasto reconhecimento
reflecte a diversidade do próprio país. Tão grande
público. Em seguida, veio a obsessão do mundo da
quanto a Europa inteira, o subcontinente indiano
moda. Nas grandes capitais do mundo, as calças
engloba idêntica dimensão de pluralismo cultural.
de ganga e as camisolas enfeitadas com brocados
Desde a ponta norte de Kashmir à província de
de saris, ou as sacolas de tela indiana semeadas de
Kerala, a sul, a diversidade espelha as diferenças que
lantejoulas tornaram-se objectos banais. A influência
podemos, por exemplo, encontrar entre a Lapónia e
da música chegou com a introdução de guitarras
a Sicília. As práticas políticas e religiosas, os estilos
indianas e alaúdes nas pistas de dança ocidentais
no vestuário e na arquitectura, a cozinha, as línguas,
e com a surpreendente adição de instrumentos
os rostos e a música alteram-se drasticamente de
de música tradicionais do Punjab no gangsta-rap
uma província para outra. A unificação destas massas
americano. Também na comida, as especiarias
heterogéneas com o objectivo de fundi-las numa
indianas e as diversas cozinhas regionais foram
nação democrática e secular é uma das maiores
redescobertas, adaptadas e contextualizadas. No
histórias de sucesso do séc. XX.
que respeita ao ioga, pode argumentar-se que
Após um longo período de desconhecimento e
este se tornou actualmente a forma de exercício
indiferença por parte da comunidade internacional,
predominante nos Estados Unidos.
a Índia tornou-se, nos tempos recentes, cada vez mais
Os projectores parecem agora incidir sobre as artes
visível. É certo que isso se deve, em larga medida,
contemporâneas do país. Talvez um pouco tarde,
a factores económicos. Com um mercado da classe
dir-se-ia, mas é como se um domínio globalizado
média em rápida expansão no que se refere ao
da arte tivesse antes de digerir uma quantidade de
consumo de bens, uma mão-de-obra inesgotável
produtos vindos da China e do Japão, mesmo da
e uma aptidão especial para as ciências aplicadas, este
América do Sul e da África, até poder debruçar-se
país e este povo estão dispostos a alcançar o poder
sobre a Índia. Se tivermos em consideração o cariz
regional, a competir agressivamente com a China e a
geralmente explorador e enganoso da globalização
ganhar o respeito crescente das potências do futuro.
nos seus mecanismos económicos e capitalistas,
Mas a cultura também desempenha aqui o seu papel.
na indústria cultural esta surge, afortunadamente,
Os anos 90 testemunharam a aparição de escritores
após décadas de diálogo sobre multiculturalismo,
indianos que se exprimiam em inglês, o que lhes
pós-colonialismo e análise marxista. Muitos artistas
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UM OCEANO INTEIRO
h
fotOGRAFIA: Maria João lima
indianos, que se servem do vídeo e da fotografia
populares e tribais, indústrias de informação e alta tecnologia, cultura dos povos,
ou dos media recentes para abordarem temas
iconografias religiosas, técnicas de artesanato, desigualdades sociais, diálogo
sócio-políticos, assumindo atitudes agressivamente
político e até às histórias da arte moderna ocidental e da filosofia europeia. Uma
esquerdistas, expõem hoje as suas obras pelo mundo
mistura forte e entrelaçada que provoca a um tempo prazer e consternação e
inteiro, enquanto na própria Índia o interesse e as
que confunde inteiramente qualquer leitura simplista daquilo que é a prática
oportunidades ainda lhes escasseiam (isto deve-se ao
artística contemporânea na Índia actual. Os artistas que começam a alcançar o
facto de o mercado de arte indiano, hiper-activo mas
reconhecimento internacional parecem ter intuitivamente encontrado para as suas
conservador, continuar fixado na pintura, quase não
obras o justo equilíbrio entre o local e o global, uma mistura que se identifica com
existindo apoios institucionais para qualquer tipo de
o facto de a melhor arte poder ser “globalizada” a partir de qualquer local. É caso
arte contemporânea).
para nos questionarmos sobre quão “indiana” deve ser a arte contemporânea
À medida que a nação indiana vai ganhando
na Índia. Pode também pôr-se esta questão relativamente aos “chineses”, aos
importância na cena internacional, a sua cultura torna-
“africanos” ou até aos “americanos”. No estágio presente da arte contemporânea,
se cada vez mais relevante para o resto do mundo.
quantas referências à cultura tradicional queremos ver nela incluídas? Quantos
Conforme escreveu, há longos anos, o reconhecido
elementos de expressão popular, tradicional ou nacional são desejados ou descritos
crítico Thomas McEviley na revista Artforum, “A Índia
como naïf pela audiência internacional? Francesco Clemente é considerado como
já era uma nação pós-moderna antes de se tornar
“visionário” ao inspirar-se na Índia; porém, os artistas indianos são vistos como
uma nação moderna.” Continuando a debater-se, por
“à deriva” quando se reportam à Arte Povera. Até que ponto somos receptivos às
diversas formas, com o “moderno”, a Índia actual surge-
espirais de influência que impelem a cultura contemporânea à volta do mundo e de
nos como o exemplo par excellence da era pós-moderna,
que forma temos consciência dos nossos preconceitos relativamente à direcção que
um modelo para outras nações que queiram resolver
essas influências devem seguir? |
as suas ansiedades e dificuldades internas associadas à
hibridez, complexidade, contradição e diversidade.
Esta diversidade reflecte-se na arte contemporânea
produzida actualmente na Índia. O público encontrará
obras que reportam à mitologia clássica, tradições
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Peter Nagy é um artista nova-iorquino que vive na Índia desde 1992.
Entre 1982 e 1988 foi director da Galeria Nature Morte, na East Village
de Nova Iorque. É, desde 1997, director da Nature Morte em Nova
Deli. Em colaboração com a Galeria Bose Pacia, de Nova Iorque, desde
2003, a Nature Morte é a primeira galeria da Índia a participar em
prestigiadas feiras de arte internacionais, tais como o Armory Show, em
Nova Iorque (2005, 2006 e 2007), a Art Basel, a FIAC, em Paris, e a Art
Basel Miami (2006). Em Março de 2007 ambas galerias abriram em
conjunto um novo espaço chamado Bose Pacia Kolkata, em Calcutá.
Além de dirigir a Nature Morte, Nagy é convidado para comissariar
exposições tanto na Índia como no exterior e os seus artigos sobre arte
contemporânea estão publicados em muitos jornais e revistas. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
NANCY ADAJANIA | tradução de Maria correia
ARTE CONTEMPORÂNEA DA ÍNDIA
ESPAÇOS DE VAIVÉM
A arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas vezes um tratamento procustiano, com
os críticos a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura nacional ou a uma construção
limitativa como a de identidade.
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à esquerda | Raqs Media Collective | instalação “The KD Vyas Correspondence: Vol. 1·, 2006 | 18 ecrãs, 9 paisagens sonoras,
arquitectura metálica, theromocol casing | Fotografia: Norbert Thigulety | EM CIMA | DETALHE DA Instalação.
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A arte contemporânea da Índia tem sofrido muitas
a sua obra, em espaços alternativos que não sejam
vezes um tratamento procustiano, com os críticos
estatais ou privados, nem galeria nem partido político.
a tentarem confiná-la à retórica de uma cultura
Coloca-se, muitas vezes, a seguinte questão: como
nacional ou a uma construção limitativa como a de
prosseguir uma política que não esteja comprometida
identidade. Neste artigo abordarei a questão através
com o político? Como realizar produções culturais
dos processos e actividades diversas através dos quais
que não sejam neutralizadas pelo mercado artístico?
os artistas contemporâneos indianos têm produzido
Assim surgiram novas espécies de convergências
a sua arte, muitas vezes em condições difíceis ou até
de interesses e alianças de vontades: entre o
críticas. Falarei, assim, sobre o vaivém alternativo
activista ambiental e o documentarista, o fotógrafo
entre a fotografia e o filme; sobre o aproveitamento
e o arquivista, o técnico de animação e o contador
de arquivos no intervalo entre o documentário e
de histórias. Muitos deles estão empenhados em
a ficção e o espaço entre o registo e a realização;
democratizar os recursos da época actual, os mesmos
sobre o futuro da representação entre morphing e
recursos que os controladores querem utilizar para
realismo; sobre o cruzamento entre as economias
exercer o seu domínio: as comunicações e tecnologias
de fazer e receber e a difícil recuperação do sagrado
de imagem, redes digitais, códigos de acesso e por aí
como um dos conceitos legítimos e mais ignorados
fora.
do ser contemporâneo, muitas vezes desafiando uma
As fronteiras e os arquivos têm sido uma fonte
religiosidade mesquinha e politizada.
metafórica para o colectivo Raqs Media Collective
Os artistas indianos têm trabalhado nestes espaços de
(Monica Narula, Jeebesh Bagchi and Shuddhabrata
vaivém: zonas intermédias entre os estilos, os media,
Sengupta) e também para Shilpa Gupta. O mito
as audiências e as diversas economias de produção.
foi utilizado por artistas como Jitish Kallat, Reena
O seu trabalho apoia-se numa busca renovada de
Saini Kallat, Anant Joshi and Justin Ponmany, não
autonomia num período da história caracterizado pela
apenas como combustível fóssil da imaginação, mas
força crescente das restrições e pelo controlo, ainda
também como uma história inacabada para o ser, a
que assaz imperceptível, das escolhas e movimentos
qual pode assumir as formas de um conto de fadas
individuais; restrições de acesso e passagem; vigilância
contemporâneo, folclore urbano, animação alternativa
e militarização; e também constrições políticas
e auto-dramatização.
frequentemente violentas, baseadas na religião, nas
Estes projectos artísticos transformam a produção
origens étnicas e na identidade regional.
estética em expressão política; eles desafiam o
Muitos destes artistas procuram situar-se, e situar
poder a diversos níveis; expõem à vista geral os
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O colectivo Raqs exibe as suas intervenções no universo digital,
assim como no disputado espaço público da Índia metropolitana
que se caracteriza pelo rápido consumismo
mecanismos secretos da coerção, do conformismo e
narrativas, não é de admirar que o colectivo Raqs
da manipulação. O conceito de autoria foi igualmente
se tenha voltado para as narrativas épicas da Índia
transformado por artistas como os do colectivo Raqs
antiga. Estas, em particular o Mahabharata, são
ou Shilpa Gupta, aqui representados.
divulgadas por uma interacção constante entre as
A natureza da obra leva-os a desenvolver situações
versões originais do sânscrito, literariamente cultas,
de colaboração com outros artistas e com especialistas
e muitas outras versões subalternas e regionais,
de outras disciplinas. Avançaram, assim, para uma
improvisadas em espectáculos e em narrativas orais.
compreensão alargada do conceito de autor, em que
É a partir deste relacionamento que surge The K D
o processo de produção é distribuído por múltiplos
Vyas Correspondence: Vol. 1, no qual o grupo traduz a
colaboradores ou emerge dos diálogos estabelecidos
estrutura hipertextual da narrativa épica sob forma de
na troca dos processos de construção. Desta forma,
correspondência. O público é acolhido por uma árvore
os artistas vão “re-mundanizar-se”, penetrando em
de mensagens, tanto visuais como auditivas;
espaços que talvez não tivessem ainda explorado,
e passamos com ele da “Carta descoberta num
usando ligações semelhantes a hipertextos para
arquivo morto”, para a “Carta do tempo amargo da
passarem de um plano a outro, fabricando para si
paz”, até chegarmos à “Carta incriminatória do leitor”.
novas vivências e novos contextos operacionais.
Vacilando entre o surreal e o sombrio, o mágico e o
Assistimos, portanto, à emergência de práticas
messiânico, esta é uma das obras mais conseguidas
comunitárias que se baseiam na partilha de interesses
dos Raqs, cheia de ressonância, melancolia e de uma
livres e democráticos; por exemplo, a livre partilha de
poética metafísica da duração.
software entre o colectivo Raqs e o Sarai Media Lab,
Para vários destes artistas, o tema da catástrofe
que produziu a OPUS (Open Platform for Unlimited
é recorrente. Reena Saini Kallat desenvolve, no
Signification), e cujos utilizadores podem descarregar
seu trabalho, a ligação entre o medo do desastre
conteúdos de media, como textos, imagens, vídeo e
(“má estrela”, literalmente, em grego) e a magia
áudio, modificá-los e devolvê-los. Este projecto inspira-
apotropaica. As suas pinturas e esculturas-
se no princípio da revisão: a alteração do código-
instalação retratam o corpo humano e o corpo
fonte de que resultará um conjunto de novas versões,
político, por extensão, colocado em estado de sítio
nenhuma delas singular ou categórica e todas elas
permanente, destroçado por demónios míticos e
estimulantes a diferentes níveis.
vírus desconhecidos que o atacam por todos os lados.
O colectivo Raqs exibe as suas intervenções no
As acções desta artista revelam uma necessidade
universo digital, assim como no disputado espaço
obsessiva de consagrar lugares contestados, de afastar
público da Índia metropolitana que se caracteriza
as forças de conflito e o caos. Exterioriza os seus
pelo rápido consumismo. Com a sua abertura
medos e ansiedades acerca da condição humana,
aos conceitos de autoria múltipla, de partilha dos
na expectativa de poder contê-los e neutralizá-los
direitos de propriedade e de proliferação de versões
através da criação de objectos talismânicos.
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Dossier ÍNDIA Arte contemporânea na Índia: espaços de vaivém
Reena Saini Kallat e Shilpa Gupta demonstram,
elemento lúdico na obra de Joshi associa-se ao teatro em três aspectos diferentes:
de formas distintas, empenho em envolverem-
primeiro, ao teatro tradicional de sombras de fantoches, segundo, à lanterna
se numa observação do sagrado num contexto
mágica e ao zoetrope (mecanismo que dá a impressão de figuras em movimento) e,
contemporâneo. Ambos trabalham nos extremos
terceiro, à economia mundial de hoje, em que os brinquedos chineses se vendem
entre a religiosidade politizada e a secularização
a baixo preço nas ruas de Bombaim. Joshi alude também à histeria consumista
agressiva. Nas suas mais recentes instalações
que conquistou a Índia urbana, dando ênfase ao lixo das mercadorias do usa-e-
interactivas, Gupta trabalha com um jogo de
deita-fora e à celebração destrutiva de um excedente ilusório que origina a um
sombras e realidades que é a um tempo espectral
sentimento superficial de abundância.
e estranhamente corpóreo. Neste jogo cintilante de
fantasmas, o público é forçado a participar, pois as
suas sombras, captadas ao vivo por uma câmara
posicionada no local, interagem com as figuras
sombrias projectadas em vídeo. Poder-se-ia considerar
esta insistência na interactividade como o pretexto
para uma descarada vigilância por parte do artista,
forçando o público a uma colaboração intensa?
Reduzidos às próprias sombras, os participantes
seguem o artista até à realização dos seus mais
profundos e básicos instintos. Gupta explora as
sensações do público nessa situação: “Eu faço parte
da sombra! Mas ninguém me pediu licença, teria
nascido para ela? Teria nascido para este país, esta
sociedade, esta religião?... Mas posso sair dela...”
Gupta trata a noção de pertença a uma religião ou país
como uma fé que pode ser transcendida, não como
algo em que se está forçosamente encerrado.
Anant Joshi está igualmente fascinado pela
recuperação da sombra no simbolismo
contemporâneo. Nas suas instalações multimédia,
coloca brinquedos em cima de mesas ou em dioramas
e simulações de montras de lojas. Projecta, em
seguida, as sombras dos objectos nas paredes como
presenças nefastas: um meditativo horizonte urbano
ou um exército de demónios surgem das sombras.
Ou então seguimos com os olhos um rápido
tremeluzir de luzes através de uma cortina de lâminas,
para encontrarmos brinquedos rodando penosamente
no espeto do fogão de uma bruxa sádica. Joshi
conduz-nos através de um inferno de animações
ferozes, máquinas infernais, brinquedos possuídos
por espíritos diabólicos, rabiscos maníacos: estamos
no conto de Hansel e Gretel, ou recebemos um
vislumbre do sindroma da Baía de Guantanamo? O
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Shilpa Gupta | “Sem Título”, 2006 | Projecção vídeo interactiva (1).
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Shilpa Gupta | “Sem Título”, 2006 | Projecção vídeo interactiva (2).
Justin Ponmany e Jitish Kallat partilham entre si uma consciência estruturada,
amolgada”, a paisagem transformou-se numa massa
no princípio dos renovados anos 90, pela televisão por cabo e pelo ciberespaço.
fluida e gelatinosa ou numa emanação que se
Ponmany começou a usar superfícies hologramáticas para mostrar paisagens
dissolve. Na abstracção manga de Kallat, o mundo
urbanas e elementos de heráldica contemporânea que podiam ser vistos em
parece ter ultrapassado o prazo de validade e ter
diversas resoluções, conforme iam surgindo ao olhar a partir da superfície
entrado em colapso através da catástrofe ecológica e
preparada. Nas obras mais recentes, rebenta com o próprio conceito de panorama
do caos da não-pertença.
fotográfico ao produzir close-ups panorâmicos de 360 graus que retratam a camada
Como se depreende do que ficou acima exposto,
subalterna da população indiana em grandes dimensões. Ponmany representa na
todos estes artistas estão simultaneamente
sua obra o absurdo de cartografar e vigiar quando abre a cabeça de um homem
concentrados no domínio regional e no transnacional:
como um globo achatado, um mapa esticado e vulnerável de pele e cabelo,
querem destacar-se dos seus congéneres de outros
parodiando as fotografias por satélite do Google Earth, penetrantemente invasivas,
países e com situações similares; querem contar as
ou as repressivas investigações forenses do Identikit.
suas próprias histórias e projectar as suas imagens,
Kallat traduziu as suas superfícies pictóricas para ecrãs de computador simulados,
estando contudo atentos aos temas que preocupam
servindo-se de noções de distorção digital e transmissão espectral. Anteriormente,
os artistas estrangeiros. Esta atitude fá-los avançar
estruturava as obras de fontes tão diversas como uma fotografia de jornal ou
um grande passo em relação ao sindroma de
um menu de conteúdos digitais, e os seus protagonistas eram muitas vezes
desconfiança/agressividade das gerações passadas
figuras fugitivas, vítimas de migrações forçadas, de desígnios mal concebidos
e faz-nos antever um futuro no qual os artistas
e de remedeios drásticos. Enquanto se celebrava a liberalização económica,
indianos irão conquistar o seu lugar no mundo. |
Kallat insistia em retratar os prisioneiros desse mesmo progresso, os habitantes
de moradas não fixas, a população flutuante da Índia urbana. No presente, as
figuras de Kallat têm-se tornado mais caricaturais, aparentemente baseadas
em exemplares manga; enquanto o ser humano se transformou numa “carroça
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Nancy Adajania É ensaísta, crítica de arte e curadora independente. Os seus ensaios sobre
novos media foram publicados em edições da Documenta 11, do Zentrum für Kunst und
Medientechnologie (ZKM) e de revistas como Springerin, Metamute, Art 21, Art Asia Pacific,
e Documenta 12 Magazine. Vive e trabalha em Bombaim. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
RANJIT HOSKOTE | tradução de Maria correia
Baiju
Parthan
Ranjit Hoskote conversa com
baiju parthan, 2007 |
“Sequence - “a” & “B”” |
TINTA SOLÚVEL EM ÁCIDO INOXIDÁVEL |
Baiju Parthan (nascido em 1956) é um dos mais importantes artistas indianos da actualidade, tanto
na pintura como nas artes “intermedia”. Para além de tecer através da pintura um universo íntimo
e misterioso, também combina os interesses pictóricos com explorações no ciberespaço, de que
resulta um conjunto de instalações provocatórias e de textura intensa. A sua obra alcançou projecção
internacional, tendo sido exposta em diversos espaços culturais, entre outros, o Kunsthalle Wien,
Viena; a Culturgest, Lisboa; o ‘New Moves’ Live Art Festival, Glasgow; e a Japan Foundation, Tóquio.
218 X 112 CM
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baiju parthan, 2000-2003 | “CODE - FUTURZ MACHINE” | INSTALAÇÃO DIGITAL INTERACTIVA | HTML, I-CHING DATA BASE
baiju parthan, 2001-2003 | “DIARY OF THE INNER CYBORG” | INSTALAÇÃO DE VÍDEO DIGITAL INTERACTIVA | PAINÉIS ILUMINADOS POR TRÁS, PROJECTOR LCD.
Ranjit Hoskote: Você nada através das correntes da sociedade de informação como
Hanuman de mãos-atrás-das-costas. É como se você
um míssil teleguiado. Acha esta imagem demasiado cortante e ambiciosa para definir a
se imaginasse “fora das situações”, como já disse
sua actividade, ou vê-se a maior parte das vezes no modo de piloto automático em que
anteriormente no meu trabalho, Passando através de
as sugestões se vão filtrando gradualmente?
Espelhos? Reflexões sobre o Tráfico Espiritual entre a
Baiju Parthan: Um míssil teleguiado! Parece-me uma imagem demasiado intencional!
Índia e a Europa, acerca de outros eus em trânsito entre
Vejo-me mais como um motor de busca (ou ser rastejante) de olhos bem abertos a
culturas, épocas e estilos!
procurar e a organizar informação. Da mesma forma que um motor de busca, também
BP: Embora eu não procure conscientemente auto-
eu pesquiso dentro da informação padrões que tenham alguma espécie de potencial
imagens, estas às vezes insinuam-se. O robô-de-olhos-
profético. Examinando padrões no fluxo de informação pode dizer-se: “Ok, o mundo/a
fechados, por exemplo, é definitivamente a expulsão
humanidade está a mover-se para esta ou aquela situação”. O que eu observo agora é
do eu. E como você disse, suponho que as outras são
um colapso ontológico e uma alarmante erosão dos significados.
também eus que se encontram em trânsito.
RH: Exprime-se como um profeta da desgraça. Como o Hari Selden da série Foundation
RH: Na inscrição das colunas que acompanhavam a
do Asimov, para não ir mais fundo ainda na tradição apocalíptica...
sua projecção em Um Diário do Robô Interior ou DRI
BP: O Hari Selden da Foundation! Isso é realmente lisonjeiro. Gostaria imenso de ser
(na instalação “intermedia” que você produziu para a
um profeta psico-historiador que tenta salvar a humanidade da extinção. Infelizmente
exposição “Clicking into Place”, comissariada por mim
não sou. Mas creio firmemente que os artistas e os poetas possuem uma certa visão
em Bombaim, em 2002) e em A Fool’s Journey (em
privilegiada, visto que estão sempre a tentar ver para além da realidade aparente. Por
2005) você vira as costas ao mundo, e aos observadores,
vezes esta visão ampliada produz os seus frutos, ainda que possam ser amargos.
e apresenta em seu lugar uma lista, que é também
RH: A auto-representação é um traço recorrente no seu trabalho - diria até que para
um biombo ou um véu, que consiste em nomes de
uma personalidade aparentemente hesitante e que persiste em se apagar, você
filósofos, gente do espectáculo e artistas que foram
produziu uma série inspirada de auto-retratos - e refiro-me aqui ao robô-de-olhos
muito importantes para si. Isso é uma espécie de auto-
fechados, ao Cristo-além-de-Dürer, ao tigre-dançarino ginasta e à figura flexível de
definição através dos outros? Uma válvula de escape ou
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baiju parthan, 2004 | “A fool’s journey” | TINTA SOBRE ALUMÍNIO | 193 X 76 X 5 CM
uma afirmação da multiplicidade de eus que representa?
um ícone que já copiei em diversos trabalhos.
BP: Nesse trabalho quis dizer que sou uma série de
RH: Baiju, sente que é um robô? Sei, por experiência
retalhos de influências e ideias obtidas através de
própria, que um colapso do disco rígido é uma
múltiplos ângulos da actividade humana. Estava a
experiência de quase-morte. Sentimos que perdemos
tentar contrapor esse eu-robô-substituto com o eu
uma parte de nós, que ficamos nós próprios em risco de
da série de retalhos. Queria exprimir que a nossa
extinção. E a sua experiência no âmbito das realidades
preciosa auto-imagem é na realidade uma ficção que
cibernéticas e digitais é muito mais intensa e vivenciada
está ao mesmo tempo a ser escrita e apagada.
do que a nossa.
RH: Interessa-me a personagem barbeada, de olhos
BP: Se eu sou um robô? De certas maneiras
fechados, de pele azul do Robô Interior que foi
suponho que sim, porque mantenho uma relação
exposta, ainda antes do DRI, no Objecto de Desejo
quase simbiótica com os meus computadores.
(2001) e que também aparece noutros lados. Como foi
Principalmente porque eles são uma extensão do
que chegou a essa personagem?
próprio ser e são invisíveis, são para nós coisas
BP: Na verdade, a primeira versão do “robô interior”
garantidas e invisíveis como a electricidade. É o
foi terminada no ano 2000. Modelei a figura do robô
caso da ferramenta inventada que reformula a nossa
a partir da figura humana genérica masculina num
percepção do mundo. Tal como a invenção da roda
software gráfico de 3D. Achei bastante apropriado
reformulou a noção de distância e de mobilidade. |
modelar a personagem virtual do DRI com base numa
figura humana gerada no computador. Este retrato
azul, de olhos virados para uma visão interior, de
uma entidade inexistente, transpira uma inocência
primordial e uma pureza que me atraíram. E tornou-se
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Ranjit Hoskote É poeta, crítico de arte, ensaísta e curador independente. Foi colaborador do
The Times of India e publicou inúmeros ensaios sobre artistas indianos. Vive e trabalha em
Bombaim. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Alexandre Oliveira | Cláudia Pereira
EXPOSIÇÃO MUSEU NACIONAL DE ETNOLOGIA
Pinturas
cantadas
ARTE E PERFORMANCE DAS MULHERES DE NAYA
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36
1.
A interessante exposição
“Pinturas Cantadas” mostra-nos a arte, a cultura, a história
e a vida social de um grupo
de mulheres da aldeia de Naya,
no estado de Bengala,
a três horas de Calcutá.
No Museu de Etnologia,
aqui tão perto, até ao final
do ano.
2.
Muito antes de os baladistas e os contadores de lendas medievais percorrerem os
trilhos da Europa, já havia ao sul dos Himalaias quem se dedicasse não só a cantar
como a mostrar as lendas e histórias do seu povo. Ao longo dos últimos 2000 anos,
os patua (pintores de narrativas) foram pintando e cantando as histórias dos livros
sagrados hindus mesmo depois de, por volta do séc. XVII, se terem convertido ao
Islão. A troco de alimentos e abrigo, estes artistas percorriam as aldeias de Bengala
Ocidental relatando amores e paixões de deuses e demónios, pregando valores
hindus e muçulmanos e apelando à tolerância religiosa, para o que recorriam a
canções e a longos rolos de papel ilustrados com cores vivas para acompanhar a
canção. Este meio audiovisual milenar subsiste ainda adaptando-se às mudanças
sociais que vão surgindo até nas mais recônditas aldeias da Índia, como na aldeia
de Naya, a três horas de Calcutá, onde um grupo de mulheres de casta patua se
associou para melhor vender e dar a conhecer o seu trabalho.
A exposição do Museu Nacional de Etnologia, “Pinturas Cantadas - Arte e
performance das mulheres de Naya” é consequência de um trabalho de mais de
cinco anos levado a cabo pelo casal de investigadores Lina Fruzzetti e Ákos Östör,
que quiseram passar para filme as vidas destas mulheres. Foi durante a exibição
de Singing Pictures em Lisboa que surgiu o interesse por parte de Joaquim Pais
de Brito do Museu Nacional de Etnologia e Rosa Maria Perez do Departamento
de Antropologia do ISCTE em transpor este filme e os desenhos para a sala de
exposições. Há então na exposição uma preocupação em apresentar não só os
desenhos como as artistas, as mulheres de Naya, contando as histórias das suas
vidas e a sua relação com a arte que abraçaram. Para tal são expostos painéis com
os testemunhos das autoras, o filme e uma selecção de 58 rolos ilustrados. Também
o sítio na Internet, criado por Ákos Östör na Wesleyan University do Connecticut,
complementa a exposição, contextualiza o trabalho de campo e convida-nos a
viajar em maior profundidade na vida social e ritual das mulheres de Naya: http://
learningobjects.wesleyan.edu/naya
Entrar na exposição é sentir a harmonia cultural que o filme dos antropólogos
também revela. A própria disposição original da exposição provoca a mesma
sensação. Predominam as narrativas religiosas hindus e muçulmanas: sucedem-se
os relatos das seduções de Krishna e o rapto da princesa Sita, contos do milenar
Página anterior | vista geral da exposição
livro hindu Ramayana, e conta-se ainda a história de Shoto Pir, homem santo
1. Mayna Chitrakar | “Manasa Mangal” | Pormenor | 339 x 56 cm
muçulmano mas também venerado pelos hindus pois a todos ajudava em troca
2. Hazra Chitrakar | “Chandi Mangal” | Pormenor | 408 x 56 cm
de respeito, caso contrário a pessoa seria devorada simultaneamente por tigres e
3. Rani Chitrakar | ”Discriminação das Mulheres“ Pormenor | 274 x 56 cm
crocodilo, tal como sugerem alguns desenhos.
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3.
Paralelamente à tradição oral, onde predominam as narrativas religiosas hindus
preto, açafrão para o amarelo e folhas de diferentes
e muçulmanas, juntam-se inesperadas temáticas contemporâneas que apelam
plantas para as outras cores.
à consciência social: a violência doméstica, particularmente o assassínio de
As mulheres hindus e muçulmanas, normalmente
mulheres (para os maridos poderem casar novamente e receberem outro dote
confinadas ao espaço da casa e da aldeia,
no casamento); o controlo da natalidade; o infanticídio feminino; a sida. É a
dependentes economicamente do marido, transpõem
passagem dos patuas para o século XXI, agora solicitados pelos serviços sociais e
assim o espaço da sua aldeia, abarcando novos
por ONG para campanhas de informação e aconselhamento nas aldeias. Outros
universos e dando a conhecer outras concepções
temas contemporâneos surgem também pintados: o 11 de Setembro e o tsunami
do mundo. As próprias tradições familiares foram
no Oceano Índico são transformados em metáforas visuais por vezes mais cruas
transformadas, passando a ser, em alguns casos, a
que as imagens vistas e revistas nos nossos televisores. Os conflitos entre hindus
mulher a garantir a subsistência económica. Cantar
e muçulmanos são reprovados com apelos à fraternidade universal espelhada na
e vender as pinturas deu-lhes a oportunidade de
fraternidade das mulheres de Naya, hindus e muçulmanas: “Os shantal dizem
obterem mais comida para casa e de os filhos
Marang Gurang; os cristãos usam o nome Deus; os muçulmanos dizem Allah,
poderem andar na escola.
enquanto os hindus utilizam o nome Bhagaban. Nós somos a raça humana,
Visitar esta exposição convida-nos também a
filhos da mesma mãe”. Na verdade, se ao nível político nacional existem conflitos
reflectir sobre o conceito de arte visual, enquanto
religiosos entre hindus e muçulmanos, estas pinturas são o exemplo de como as
estética e comunicação, simultaneamente. As
religiões dialogam ao nível local da aldeia, quando mulheres hindus e muçulmanas
“pinturas cantadas” são criadas, por um lado, com
pintam tanto temas muçulmanos como hindus. Desta forma, é possível
o intuito de serem esteticamente agradáveis, sem
observarmos como a tradição é recriada na contemporaneidade para novos fins
terem de ser pragmaticamente funcionais, embora
sociais.
também o possam ser (como nas situações em que
Quando olhamos para uma destas pinturas no museu, a nossa imaginação
divulgam mensagens sociais, a pedido de ONG);
dificilmente consegue alcançar os locais por onde as suas pintoras cantaram
e, por outro, tentam comunicar, potenciando a
as histórias: o que os habitantes de várias aldeias aprenderam ao ouvi-las; o
percepção do visitante sobre o mundo, através das
deleite que as pintoras sentiram na sua elaboração; os laços que criaram entre as
imagens, levando à percepção intuitiva do que é
mulheres;
semelhante no que é, a um primeiro olhar, diferente.
a forma como as pinturas lhes permitiram uma melhor condição económica, bem
Por outras palavras, são pinturas que apresentam
como a possibilidade de se sentirem melhor consigo próprias. Na verdade, é este
um estilo e um processo que não são familiares,
um dos poderes da arte visual: o de transformação da própria forma de representar
abordando temas com os quais todos nos podemos
e de sentir a Arte. Aos olhos de um ocidental é, sem dúvida, curioso notar, por
identificar; no fundo, tentando criar harmonia em
exemplo, a forma como os americanos são representados no 11 de Setembro: com
universos de tensão. São um objecto de arte tanto
características orientais. Ou seja, um dos muitos modos de olhar o mundo.
no espaço local, das aldeias indianas, como no de
Sem terem tido a oportunidade de frequentar a escola e até de se deslocar para
outras culturas exteriores, proporcionando uma
além da própria aldeia, é surpreendente o grau de detalhe do trabalho das pintoras,
fonte de rendimento, o que parece determinar a
que nos permite intuir a mensagem principal sem sabermos a história concreta
forma de uma pintura ser bem sucedida. É também
que se encontra por detrás de cada peça. As pinturas são sedutoras não só pela
a contemplação de um objecto tido como exótico
sequência que contam, mas também pelos desenhos isolados, havendo linguagens
(literalmente, vindo “de fora”) para um ocidental,
diferentes de expressão, consoante as pintoras. O processo de pintura revela-se
o que nos proporciona o contacto com o Outro,
bastante artesanal, desde os pincéis que são feitos a partir do pêlo de esquilo e de
através das emoções que nos provoca através das
cabra, até às tintas de materiais orgânicos como grãos de arroz queimados para o
suas imagens. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Luís Serpa
Dos velhos contos
às novas estórias
GOMUKA’S ESCAPADE:
«In the country of the Vatsas, on the river Kalindi, lies the city
of Kausambi, which is the heart of the world. There reigned King Udayana.
If one tried to enumerate, however briefly, the virtues
of this land, this city, and this king, the story would never begin.
If a traveller sets out on a journey to the seven oceans and continents of this world
and begins his voyage by counting the jewels of Mount Meru,
when will he ever have time to see the world?».1
2
“O [Rio] Ganges passa também pela Rua dos Douradores” [F. Pessoa]
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DOSSIER ÍNDIA DOS VELHOS CONTOS ÀS NOVAS ESTÓRIAS
Graça Pereira Coutinho | ”Índia”, 2004 | Díptico | Fotografia
PÁGINA ANTERIOR | Graça Pereira Coutinho | ”CRIANÇAS DE BENARES”, 2004 | Fotografia
[1.] Os Velhos Contos de mercadores, artistas e
suas perspectivas orientais no mundo medieval e na
escritores não se têm cansado de transmitir descrições
renascença.
de viagens maravilhosas através de “um discurso
Nacque al mondo un sole
histórico, descritivo, oratório, dramático, poético,
Como fa questo talvolta di Gange
litúrgico ou epistolar (...). Predomina, todavia, o
DANTE, Paradis, XV/51.
carácter narrativo e a faceta autobiográfica, o que
Esses testemunhos estimularam a imaginação e
confere à obra um tom de verosimilhança (...) ora com
as cartografias pessoais baseadas nas experiências
elementos verídicos ora imaginários” (A. J. Saraiva).
dos passeantes puderam ser elaboradas a partir de
As descrições dos viajantes e a literatura em que
diversos itinerários que concorreram para maravilhar
a viagem se confronta com regiões e populações
os mais eruditos escritores e poetas europeus
distintas da origem do narrador “permite relatos mais
(Petrarca_De Dita Solitaria).
ou menos objectivos, mas também serve de pretexto
Ligadas ao ciclo do Sol, as águas escaldantes do
para reflexões sobre variados aspectos, numa escrita
Ganges chegaram-nos carregadas de simbologia.
3
de características artísticas ou ensaísticas” .
As narrativas extraídas do livro religioso Rig-Veda
Da Verdadeira Informação das Terras do Preste João
provam-nos como, dos hinos às lendas, das tradições
das Índias, do padre Francisco Álvares (1540), ao
orais históricas aos comentários práticos bramânicos,
Itinerário em Que Se Contém como da Índia Veio
dos monólogos aos argumentos com militares e
por Terra a Portugal, de António Tenreiro (1560)
heróis, demónios e crimes, melodramas e sátiras,
e à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1614)
“a literatura indiana é uma galeria onde figuram todas
revelaram-se os misteriosos príncipes e impérios
as escolas e tendências”. Transcende as audiências
que intrigaram a imaginação europeia. O contexto
aglutinadas pelos ancestrais crentes e pelas práticas
geopolítico, económico e social revelou-se através de
de transmissão de valores baseadas na embriaguês
fontes pertencentes às potências comerciais graças
do misticismo, nos dóceis e resignados cânticos,
à exploração da “novas terras” (Paesi Nuovamente
leituras ou representações dramáticas. Desde as
4
Ritrovati) em que as descrições da Índia aparecem já
velhas epopeias sânscritas, os templos também
como fazendo parte do património cultural da Europa.
albergam reuniões políticas, filosóficas e didácticas e
Cruzados, missionários e “viageiros” deram-nos as
relatam a história das aventuras fantásticas passadas
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Graça Sarsfield | Da série ”Rahasya”, 2001 | Tríptico | Fotografia | 70 x 53 cm
com sacerdotes que sobem ao sétimo céu a consultar
cada passo percorremos o caminho para a meta
a sabedoria dos deuses que nem sempre podem
(inalcançável?). Se a encontrarmos, deparamo-nos
elucidar as perguntas transcendentes dos sadhus (holy
com o ponto absoluto (M. Zambrano). “We Indians
men | homens santos).
use outer reality to preserve the continuity of the
Os percursos percorridos pelos sarmayasins
self” (Nós, os indianos, usamos a realidade exterior
(renouncers | os que renunciam) foram
para preservarmos a continuidade do eu). Mas na
metodicamente elaborados e incansavelmente
metafísica hindu, as coisas são substanciais (dáthu),
planeados, tal como as tradicionais “jornadas de
embora algumas sejam subtis (sukshma) e outras
fé” medievais europeias. Esta atitude compulsiva
grosseiras (sthula). O Absoluto não tem atributos.
da procura do sublime, construída sob o impulso
O “real” é uma construção teórica, deve sobreviver ao
“religioso”, constitui-se como um fundamental desejo
efémero transcendendo o transitório. Se a metáfora da
humano de alcançar e coleccionar experiências de
cidade nos Contos da Velha Índia é expressa por tudo
modo a mobilizar energias adormecidas e, assim,
o que é irreal, não-existente, ela representa também
contribuir para a conquista dos espaços-de-esperança
o mal, pois os “demónios são os arqui-inimigos dos
próprios da atitude do peregrino. Tal como em Sto.
deuses. (...) e o céu torna-se uma cidade real - a
Agostinho (De ciuitate Dei 15.1), as pessoas são
materialização, na terra, da cidade sagrada”. Todas as
divididas entre aquelas que vivem sob o modelo
cidades são construções ilusórias, simultaneamente
humano e as que se pautam pelo modelo de Deus ou,
sagradas e profanas mas, (...) “por definição, uma
alegoricamente, entre a Babilónia e Jerusalém,
cidade não pode ser boa, e não pode durar; se parecer
às quais podemos acrescentar Gomorra e Sodoma.
boa, terá de ser corrompida; se parecer imortal, terá
A dicotomia (entre o mal e o bem), encontra-se
de ser destruída” (W. D. O’Flaherty).
também referenciada nos preceitos que regem a
O nómada e o peregrino ocidental confrontam-se,
apropriação do(s) acto(s) purificador(es), tal como
por um lado, com o “cosmopolita rural Mahatma
na confrontação entre Abel e Caim onde viveram,
Gandhi” e, por outro, com “o cosmopolita urbano
5
6
um com Deus, outro com o Diabo . A procura do
Jawaharlal Nerhu”. A diferença entre o nómada e o
conhecimento de nós próprios conduz-nos ao ponto
peregrino reside no facto de que ao primeiro não é
que sustém a vida (ou a sua impossibilidade) e a
concedido o direito de cidadania e, por conseguinte,
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Maria José Palla | ”Paredes de Panjim, Velha Goa”, 1996 | Fotografia
Cristina Ataíde | ”Durante o rio # F22”, 2005 | Fotografia,
impressão Lambda | 81 x 120 cm
não lhe é permitido evocar o estatuto de território por
do habitante (ou a falta dela). A tensão entre ambos
ele percorrido ou habitado; ao contrário, o segundo
reflecte a estratégia cultural contemporânea, embora
“pratica” a paisagem e reconhece o local de partida
a confrontação das diferenças e as contradições no
e chegada, razão por que pode habitar os lugares
discurso estético oscile, também, entre contemplação e
e reconhecer-se neles. Esta aptidão para utilizar o
simples documentação” (L. Serpa).
9
espaço e o tempo permite-lhe cartografar as zonas
em que se pode inserir e manter o estatuto que viaja
[2.] As Novas Estórias constituem-se como narrativas
com ele. A noção de espacialidade que confere aos
fragmentadas retiradas de mitos e experiências
locais de referência facilita a sua hierarquização,
dos recém-chegados das distantes terras. Permitem
podendo harmonizá-los de modo a constituírem-
elaborar genealogias culturais baseadas na
se como referências na cartografia que elabora a
transmissão operada pelas novas comunidades de
partir dos itinerários que percorre. Hierarquizado o
viajantes que representam identidades herdadas
espaço social, a cidade surge como zona espacial de
mas que questionam os estereótipos dos tradicionais
eleição para se confrontar com aquilo que a define: a
contos.
multidão. Esta confronta-se com o solitário passeante
O conceito de “herança” surge da prática multicultural
e assegura a criação de uma geografia urbana baseada
que solidificou as relações entre essas comunidades
no cosmopolitismo em justaposição com o errático
e nas quais a questão de identidade provoca agora
“cidadão do mundo”.
uma produtiva discussão sobre a nação e a sua
Contudo, a cidade organizada em redor da
hierarquizada construção. Este desempenho das
estratificação socio-económica continua, tal como
novas classes (i)emigrantes, internacionalmente
referencia o mundano Balzac (La Recherhe de l’Asbolu),
aclamadas como o modelo do pós-colonialismo,
a ser o local unitário “do arquétipo geopolítico do
sintetizam a interacção entre diversas culturas que
7
cosmopolitismo” (V. Dharwadker) e a ocupar o eixo
não mais podem disputar a liderança da sua imperial
das dúvidas que se colocam face ao redundante
inter-relação mas que consolidam uma constelar
processo da globalização. “Will cosmopolitanism
organização na qual não predomina nenhuma
survive globalization’s omnivorous compression of
ascendência civilizacional mas uma solidariedade
8
cultural space-time and erasure of differences?”
baseada numa responsabilidade individual dos
(V. Dharwadker).
novos operadores sociais. Transformada a secular
“O sistema de identidade oscila, assim, entre a
classificação hierárquica, esta democratiza-se numa
noção de território (ou a perda dela) e a consciência
categorização cujo acesso passa a ser assegurado pela
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Luís Serpa | ”O comissário como peregrino”, 2000 | Oberoi Hotel, Bombaim | Fotografia a cores
transdisciplinar partilha de saberes e conhecimentos
be renegotiated and redefined. The two generations
cujo novo modelo se baseia numa universal comunhão
have different starting points and different givens”
10
1Tales Of Ancient India, tradução de J.A.B. Van
Buitenen, Srishti-Publishers & Distributors, New Delhi,
2000, p. 151. Tradução para o português - A escapadela
de Gomuka: “No país dos Vatsas, junto do rio Kalindi,
situa-se a cidade de Kausambi, que é o coração do
mundo. Ali reinava o Rei Udayana. Se tentássemos
descrever, ainda que sucintamente, as virtudes desta
terra, desta cidade e deste rei, jamais começaríamos a
história. Se um viajante se dispuser a fazer uma jornada
aos sete oceanos e continentes deste mundo e começar
por enumerar as jóias do Monte Meru, como encontrará
tempo para ver o mundo?”
de valores agregados aleatoriamente mas capaz de
(R. Radhakrishanan).
incentivar processos inovadores de transmissão das
A paisagem cosmopolita, múltipla e discrepante face à
estórias contidas nos velhos contos anónimos.
regulada, manipulada e normalizada paisagem urbana
Esta estratégia universalista deriva também da
modernista e à ilusionista cidade dos Gandharvas,
confrontação com a cultura da diáspora, que se
confere aos seus protagonistas uma participação
confronta com as novas geografias cosmopolitas e
convergente mas não unificada nas acções de
Marcha Fúnebre, Parque Expo ‘98 SA e Assírio &
Alvim, Lisboa, 2001, p. 375.
é surgida da transferência dos antigos espaços de
construção de um modelo aberto e tolerante, graças à
3Saraiva, António José, Excertos do Prefácio à
representação. As novas convicções são baseadas
capacidade de inscrição no espaço-tempo das novas
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, Edição Sá
da Costa, 1961.
na instabilidade da identidade nacional (U.
tendências de aproximação de centro e da periferia,
4Edwards, Robert R., The Metropol And The
Chaudhuri) que reavalia sistematicamente o seu
cujo léxico inclui palavras como “variedade, narrativa,
desempenho através da recolocação dos valores que
fragmentação, contexto urbano, expressionismo,
definem o espaço de experimentação percorrido
mobilidade, autonomia, emancipação, tecnologia mas
pelo(s) viajante(s) e que encontra na flexibilização
também poética...” (L. Serpa).
da história o argumento para a reconstrução do
A descoberta de um espaço para a afirmação cultural
modelo de expansão e apagamento das fronteiras.
na era da globalização transgride as ideologias
A interacção entre o modelo étnico e racial utilizado
baseadas no tradicional conceito de deslocação pois
New Locations in Literature and Culture, The English
Institute, Routledge, London, 2001, p. 9-10.
pelas complexas relações institucionais encontra,
acelera e potencia energias capazes de ultrapassar os
8 Idem. Tradução para português: “Sobreviverá o
na dinâmica paisagem urbana, uma bem sucedida
significados de “nação e identidade e as consequentes
cartografia dos múltiplos interesses individuais.
questões de interculturalismo e indigenismo”
O colapso da distância ultrapassou as históricas
(L. Serpa). “Uma nova Índia emergiu nos últimos
fronteiras geográficas e permite a fruição de
cinquenta anos. Não renega o seu passado nem
exemplares experiências, unindo o passado ao
é imune à sua influência. É mais um produto dos
presente. A repetição dos ancestrais contos não é
desafios do presente e das oportunidades do futuro”
mais possível pelo facto de que as novas gerações não
(P. Varma). |
2Pessoa, Fernando, O Livro do Desassossego, 420.
11
12
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6M. Zambrano, Clareiras do Bosque, Relógio d’Água,
Lisboa, 1995, p. 131.
cosmopolitismo à compressão omnívora do espaçotempo cultural e ao rasuramento das diferenças?”
9Serpa, Luís, Fragmentos Globais/Tendências Locais
- Arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição
Culturgest, Lisboa, 2004, p.14.
13
e as contemporâneas narrativas dos novos locais
community, displaced by travel and dislocation, must
5Montalboddo, Fracazano di, Paesi Nuovamente
Ritrovati et Novo Mondo da Aberico Vespucio
florentino intitulato, Vicenza, 1507.
7Dharwadker, Vinay, Cosmoplitan Geographies -
encontram relação entre as autobiografias históricas
emergentes. “The very organicity of the family and the
Mayester-Toun, in Cosmoplitan Geographies-New
Locations in Literature and Culture, The English
Institute, Routledge, London, 2001, p. 35.
10R. Radhakrishanan, Diasporic Meditations:
Between Home and Locations, Minneapolis,
University of Minnesota Press, 1996, p. 206. Tradução
para português: “A própria organicidade da família
e da comunidade, desviadas pela viagem e pela
deslocação, devem ser renegociadas e redefinidas.”
11Serpa, Luís, Fragmentos Globais/Tendências Locais
- Arte na Índia Contemporânea, Catálogo exposição,
Culturgest, Lisboa, 2004, p.17.
12 Idem, p.19.
Luís Serpa Dirige a Galeria Luís Serpa Projectos e foi co-curador da exposição Zoom! Arte na
Índia Contemporânea (Lisboa, Culturgest, 2004). |
13Varma, Parvan K., A Índia no Séc. XXI, Editorial
Presença, Lisboa, 2006, p.175.
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Manuel Castilho
Varanasi
VIDA OU MORTE NA CIDADE SAGRADA
(PARA O VIAJANTE AFOITO)
Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental,
da humanidade, é uma janela sobre milénios de
não conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o
História. Visitar a Índia é percorrer, em algumas
passado da humanidade, é uma janela sobre milénios de História. Visitar a Índia
semanas, um presente diferente, o passado próximo,
é percorrer, em algumas semanas, um presente diferente, o passado próximo,
o passado distante e o passado muito longínquo.
o passado distante e o passado muito longínquo. É reviver memórias com que
É reviver memórias com que nunca sequer sonhámos,
nunca sequer sonhámos, é um salto no abismo em mais do que um sentido. Quem
é um salto no abismo em mais do que um sentido.
conseguir superar o choque da miséria, do caos, da sujidade, do mau cheiro, do
Quem conseguir superar o choque da miséria,
calor, da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores” profissionais e muito mais é
do caos, da sujidade, do mau cheiro, do calor,
recompensado com o êxtase intemporal desta cultura milenar sublime. Os outros
da humidade, dos mosquitos, dos “chateadores”
apressam-se a antecipar a data da partida e a rogar pragas a quem como eu os
profissionais e muito mais é recompensado com o
encorajou a empreendimento tão temerário.
êxtase intemporal desta cultura milenar sublime.
A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem procure férias de praia e
Os outros apressam-se a antecipar a data da partida
testemunhos de cultura portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure cidades
e a rogar pragas a quem como eu os encorajou a
e castelos medievais exóticos no deserto com mulheres misteriosas envoltas
empreendimento tão temerário.
em saris de cores vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo digno de
A Índia é um país vasto, um subcontinente. Quem
marajás e marahanis não deverá perder as cidades do Rajastão. Glamour urbano
procure férias de praia e testemunhos de cultura
(sim!), opulento, deveras chocante e entremeado de miséria citadina encontrará
portuguesa fará bem em visitar Goa; quem procure
em Bombaim, a Bollywood, a chamada Nova Iorque da Índia (não bem!), onde
cidades e castelos medievais exóticos no deserto
Rolls Royces, Mercedes e BMWs disputam, barulhentamente, palmo a palmo, as
com mulheres misteriosas envoltas em saris de cores
ruas com táxis Fiat e Ambassador dos anos 50 e carros de mão de duas rodas
vibrantes, homens de turbantes e hotéis de luxo
empilhados com mercadoria, movidos a tracção humana. Para amantes de
digno de marajás e marahanis não deverá perder as
templos e de pedra esculpida recomenda-se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e
cidades do Rajastão. Glamour urbano (sim!), opulento,
Amaravati e os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram. Varanasi (Benares
deveras chocante e entremeado de miséria citadina
para os ingleses) é o coração da espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande
encontrará em Bombaim, a Bollywood, a chamada
antiguidade cujas origens se perdem na bruma das dinastias que nela deixaram
Nova Iorque da Índia (não bem!), onde Rolls Royces,
a sua marca. Documenta pelo menos 2500 anos de história ininterrupta, e foi
Mercedes e BMWs disputam, barulhentamente, palmo
contemporânea de Tebas, Babilónia e Ninive.
a palmo, as ruas com táxis Fiat e Ambassador dos
Tenho de confessar que só depois de várias viagens à Índia me decidi a ir
anos 50 e carros de mão de duas rodas empilhados
desvendar a “cidade
com mercadoria, movidos a tracção humana. Para
Acredito que quem nunca foi à Índia perdeu uma experiência fundamental, não
amantes de templos e de pedra esculpida recomenda-
conhece o Mundo. Visitar a Índia é a oportunidade de viver no presente o passado
se Khajuraho, Ajanta e Ellora, Sanchi e Amaravati e
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Em cima à esquerda | A Grande Stupa de Sarnath (Dhamekh Stupa) e ruínas do santuário principal
Em cima à direita | Um momento da cerimónia de veneração de Ganges ( deusa Ganga) ao pÔr do sol
Em baixo à esquerda | “Sadhu” (asceta) numa das vielas da cidade antiga de Varanasi
em baixo à direita | “Sadhus” (ascetas) numa das vielas da cidade antiga
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os deliciosos templos na praia em Mahabalipuram.
restaurantes para viajantes, bordejam sumptuosas escadarias sobre o rio. Mas
Varanasi (Benares para os ingleses) é o coração da
quase me esquecia de mencionar o principal: os Ghats são essencialmente o local
espiritualidade e cultura hindus, cidade de grande
onde os corpos são incinerados em grandes ou pequenas piras funerárias, dia e
antiguidade cujas origens se perdem na bruma das
noite, 365 dias por ano. Nestes “burning Ghats” o cenário é dantesco. Deparamos
dinastias que nela deixaram a sua marca. Documenta
com enormes pilhas de madeira, com pequenos grupos de familiares que
pelo menos 2500 anos de história ininterrupta, e foi
aguardam pacientemente a vez de ver os seus familiares reduzidos a cinza e com
contemporânea de Tebas, Babilónia e Ninive.
corpos envoltos em panos, chamas e muito fumo. Alguns turistas
Tenho de confessar que só depois de várias
(é proibido tirar fotos) contemplam e pasmam, mas a morte aqui é encarada
viagens à Índia me decidi a ir desvendar a “cidade
como parte do ciclo da vida e adquire total naturalidade.
sagrada”,Varanasi. Temor sem fundamento. Varanasi
Nesta cidade tudo parece confluir para o rio, onde o espectáculo é colorido,
é uma cidade acessível, uma “experiência forte” mas
variado e cativante. Peregrinos banham-se nas águas sagradas e fazem as
não agressiva. Sai-se de Varanasi com um sorriso
suas pujas (rituais e devoções); Brahmins estudam textos sagrados e fazem
búdico e maior compaixão pela condição humana.
prelecções a quem queira ouvir; yogis praticam; pedintes e crianças pedem
Varanasi, no Estado de Uttar Pradesh, Nordeste da
esmolas; vendedores ambulantes expõem as suas bugigangas; vacas passeiam
Índia, situada na margem esquerda do Ganges, o
displicentemente, barbeiros rapam cabeças e grupos sentados nas escadarias
rio sagrado, é um dos mais importantes centros de
conversam, escutando os cânticos e música transmitidos por altifalantes,
peregrinação hindus. Banhar-se no Ganges purifica
enquanto desfrutam do ambiente e da paisagem banhada por uma luz que a
os pecados acumulados na vida terrestre. Morrer na
certas horas torna o cenário irreal.
cidade eterna coloca o devoto hindu em posição mais
Ao visitante recomenda-se passeios de barco pelo rio, a melhor forma de observar
favorável para a próxima incarnação, poderá até
o cenário dos Ghats em relativa calma. Logo que se chega à margem do rio é-se
libertá-lo do ciclo contínuo da morte e reincarnação.
abordado por barqueiros expeditos e insistentes. Como em qualquer outro local
Os Ghats (escadarias de pedra sobre o Ganjes) são
da Índia, temos de pôr à prova os nossos talentos negociais e mesmo assim
cinco quilómetros de cenário “bíblico” onde, a par
acabaremos certamente por pagar mais do que o devido, o que faz parte da
de templos shivitas, albergues para os moribundos,
experiência. Vale bem a pena um dia levantarmo-nos muito cedo para percorrer
centros espirituais, palácios construídos em
os Ghats de barco, ao nascer do sol, quando a cidade desperta. É uma experiência
épocas diversas pelos Marajás de vários estados da
inesquecível e a luz, maravilhosa, é ideal para fotografia. Convém marcar de
Índia, edifícios díspares com pequenos hotéis e
véspera no local, ou através do hotel.
Em termos de Índia, Varanasi é uma cidade de tamanho médio, com pouco mais
de um milhão de habitantes. Tem uma zona relativamente nova com algumas
avenidas e largos do tempo dos ingleses. A parte antiga, adjacente ao Ganges, é
um labirinto de vielas estreitas e irregulares onde é difícil discernir qualquer plano
ou orientação. Deambular por estas ruelas contornando vacas, lixo, vendedores
ambulantes e evitando chocar com cortejos funerários é uma experiência
fundamental para ter uma percepção da vida desta fascinante cidade. Pequenas
lojas vendem sedas e outros panos, uma das especialidades de Benares, assim
como todo o género de produtos locais, como os associados ao culto, especiarias,
perfumes, grande sortido de CDs de música indiana, etc. Numa destas vielas
deparamos subitamente com o Templo Dourado dedicado a Vishveswara (Shiva
na sua forma de senhor do Universo), construído em 1776. O original, bastante
mais antigo, foi arrasado pelo Imperador Mogol Aurangazeb (bisneto do grande
Akbar) no seu fervor islamizante. Não é permitida a entrada a não-hindus, embora
estes possam contemplar o templo de uma casa em frente. Não muito longe
Baixo relevo do período Gupta (sec.V, DC) na Grande Stupa de Sarnath
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ergue-se a Grande Mesquita de Aurangazeb, onde foram incorporadas algumas
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dossier ÍNDIA Varanasi: vida ou morte na cidade sagrada (para o viajante afoito)
das colunas do templo hindu então destruído, uma
passar uma tarde. Não deverá perder o Museu Arqueológico adjacente, construído no
situação potencialmente explosiva no contexto das
tempo dos ingleses e que contém alguns dos mais importantes tesouros arqueológicos
tensões religiosas da Índia. A segurança da mesquita é
da Índia. O capitel do pilar de Ashoka, descoberto na campanha de escavações de
assegurada por guardas armados.
1904/5, encontra-se no museu. Foi adoptado como o símbolo nacional da Índia e
Afastando-nos um pouco do centro, sugerimos uma
está reproduzido em moedas e notas. Representa quatro leões (símbolo budista e de
visita ao templo de Durga, mais conhecido por templo
Ashoka) bradando às quatro direcções do mundo a doutrina do Budismo. Durante a
dos macacos devido à profusão destes primatas, nem
Dinastia Gupta (sécs. IV-VI), Sarnath atingiu a sua maturidade artística, produzindo
sempre muito amigáveis e que não hesitarão em
escultura budista em pedra calcária que é considerada o apogeu da escultura indiana de
saltar sobre o visitante para arrebatar qualquer comida
todos os tempos. Alguns dos exemplos mais notáveis desta escola foram encontrados
que este inadvertidamente traga à vista. A poucos
em escavações no local e estão expostos neste museu.
quilómetros deste templo poderá visitar o Museu da
Na recente exposição de arte Gupta no Grand Palais em Paris foi possível admirar várias
Universidade Hindu de Benares (Bharat Kala Bhavan),
destas obras-primas do museu de Sarnath.
cujas instalações algo rudimentares contêm, no entanto,
Questões práticas: Há em Varanasi várias possibilidades de alojamento. Os hotéis de
uma importante colecção de escultura clássica indiana,
cinco e quatro estrelas estão todos localizados fora da cidade antiga. O tradicional
miniaturas sobre papel (incluindo uma interessante e
Clarks Varanasi, do tempo dos ingleses, está um pouco decadente.
pouco conhecida representação de Nossa Senhora com
O Taj Ganges, da prestigiada cadeia indiana do mesmo nome, é moderno e confortável
um manto azul diante uma paisagem de fundo europeia,
mas sem o “brilho” da maioria dos estabelecimentos deste grupo. Dois novos hotéis,
por um artista da corte mogol não identificado, cerca
o Ramada Plaza e o Radisson, oferecem as habituais comodidades impessoais de
de 1600) assim como um núcleo interessante de jóias e
standard internacional. A opção de alojamento mais fascinante para os mais afoitos
objectos preciosos, sobretudo mogóis.
será ficar nos Ghats. Evitarão o trauma diário de transitar vários séculos e civilizações
A apenas dez quilómetros de Varanasi fica um dos locais
entre hotel e cidade. Para esta hipótese recomendaria o Ganges View Hotel, no Assi
mais sagrados do Budismo: Sarnath. Varanasi era já
Ghat, um dos (relativamente) mais sossegados. É um pequeno estabelecimento com
uma cidade florescente quando há cerca de 2500 anos
doze quartos simples, mobilados com gosto, com o conforto básico assegurado (casa
Buda por lá passou a caminho de Sarnath, depois de
de banho privativa, ar condicionado, etc.), uma gerência personalizada e frequentado
ter atingido o estado de iluminado em Bodh-Gaya, para
por artistas escritores e “habituées” da Índia. Não é luxuoso, nem por sombras, mas
se juntar aos seus companheiros e futuros discípulos.
estamos em Varanasi! Tem um terraço com vista sobre o Assi Ghat e toda a excitação já
Aí, em Sarnath, proferiu, debaixo de uma árvore no
descrita, ao sair da porta do hotel. Convém marcar com bastante antecedência. |
parque dos veados, o seu primeiro sermão e pôs em
marcha a “roda sagrada” da lei (doutrina budista).
Supostamente no local exacto onde se deu este evento
fulcral na construção do Budismo foi erguida uma stupa
(monte sagrado de origem funerária albergando relíquias
budistas). O Dhamekh Stupa, magnífico monumento
com 34 metros de altura, provavelmente construído
cerca de 200 a.C., cerca de 300 anos depois da morte
do mestre e reconstruído parcialmente na época
Gupta (cerca de 500 d.C.), encontra-se em razoável
estado de conservação e pode ser visitado facilmente.
Neste parque, que foi sistematicamente escavado em
várias épocas, vêem-se também ruínas de outra stupa
desaparecida, e de edificações adjacentes, assim como o
arranque do famoso pilar do Imperador Ashoka (dinastia
Mauria, cerca de 200 a. C.). É um local aprazível para
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VARANDA SOBRE O ASSI GHAT DO GANGES VIEW HOTEL
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
João Alarcão
Portugal
na Índia
Armas de Portugal da Fortaleza do Morro em Chaul
Para além da componente lúdica, da necessária fuga
do stress, do salutar desejo de conhecer realidades
mais afastadas, viajar pode trazer-nos, também, no
reavivar de memórias históricas, um enriquecimento
da nossa cultura portuguesa. Um duradouro conforto
para a nossa consciência colectiva descaracterizada
pelas padronizações massificadoras que destroem a
arte de viver, a aventura e o prazer de nela encontrar a
diferença e a qualidade.
Viajar pela Índia, e descobrir na sua variada riqueza
cultural a brancura de torres de catedrais a emergirem
dos verdes palmares tropicais, é um deleite para os
olhos e uma reconfortante emoção para o espírito.
Aqui o mito torna-se realidade. A sombra de muralhas
quinhentistas, a brisa que agita os coqueirais que as
escondem, ou os areais das costas em que repousam
de vigílias seculares, decantam-nos a alma e fazem
com que o nosso pensamento navegue livre nos
mares da memória.
Comecemos por descobrir na dureza da grande
metrópole (17 milhões) que agora é Mumbai, os sinais
da Bombaim de outrora. A Bombaim portuguesa,
que D. João IV incluiu no enorme dote de casamento
de sua filha D. Catarina de Bragança com Carlos II
de Inglaterra, numa frustrada tentativa de recordar à
Grã-Bretanha as obrigações da aliança de séculos que
nunca cumpriu.
O táxi que o levará do Aeroporto de Santa Cruz (não é
Holly Cross, é mesmo Santa Cruz) para o bulício das
ruas da Colaba e para o conforto do Taj Mahal, a jóia
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da melhor cadeia de hotéis da Índia, possibilitar-lhe-á parar em Bandra, a nossa
portas e janelas que enriquecem a arquitectura das
antiga Bandorá, para ver a Igreja seiscentista de Santo André e o pequeno forte do
grandes casas baneanes, das quais se destaca a
Nome de Deus, que desmentem as omissões dos guias turísticos quanto aos sinais
Nagarset Haveli. Se quiser almoçar ou jantar fora do
da herança arquitectónica portuguesa.
hotel, vá ao Ápana, frente ao braço de mar que liga a
Chegado ao Taj, goze da janela do seu quarto a vista para a enormíssima baía que
Gongolá, e de onde poderá observar o histórico Fortim
deu o nome a Bombaim. E não se deixe impressionar pelo apregoadíssimo Gateway
do Mar.
of India que se encontra do lado de lá da praça. É o moderno pastiche inglês, ainda
Regressado a Bombaim, voe para o extremo sul da
que grande, do secular Arco dos Vice-Reis pelo qual, desde o séc. XVI, os Vice-Reis
Índia, para Cochim, aquela que foi a mais antiga
portugueses da Índia entravam em Goa. Os britânicos levantaram este apenas em 1911
possessão portuguesa. Aí nos mantivemos até
para homenagearem a visita de Jorge V.
1664, sendo que as nossas marcas permanecem
É do cais que lhe está junto que saem os barcos para a Ilha da Elefanta, onde se situam
para além das posteriores presenças holandesa e
as grutas do séc. VI esculpidas na rocha, com enormes estátuas de Shiva. De lá partem
inglesa. Situa-se em Kerala, na Costa do Malabar, cuja
também os catamarans que nos levam ao sul, a Mandwá, de onde podemos atingir as
luxuriante vegetação contrasta com a secura da Índia
imponentes fortalezas portuguesas do Morro, ou de Chaul, hoje sentinelas mudas dos
arábica, do Rajasthan, ou do Gujarate que deixámos
bandos de flamingos que pousam nos seus areais.
para trás. A magnífica paisagem dos canais que se
Se se demorar em Bombaim e gostar de antiguidades ou velharias, dê uma saltada ao
estendem para sul, designados por Back Waters, é de
Shor Bazar, uma feira da ladra imensa, ou encontre-as nos antiquários das ruas que
uma beleza indescritível, justificando-se um passeio
circundam o Taj, com destaque para o Philips, o mais antigo e famoso da cidade.
com pernoita nos antigos barcos de transporte do
No dia seguinte lance-se à estrada, a caminho de Damão, com uma inevitável
arroz, hoje divididos em pequenos e rudimentares
paragem em Vassai, a nossa antiga cidade amuralhada de Baçaím. As suas igrejas
camarotes. Nem os mais citadinos, menos dados às
e conventos quinhentistas, apesar de estarem hoje a céu aberto, alguns mesmo
incomodidades dos trópicos, deixarão de se deliciar
invadidos pela vegetação tropical, conservam a imponência que deu à capital da
com a beleza que os circunda e que trouxe a esta
Província do Norte o epíteto de Don Baçaím. Pelas inscrições das sepulturas que
região a designação de God’s Own Country.
cobrem os claustros desses templos, principalmente o de St.º António, é possível
adivinhar a vitalidade duma cidade que foi portuguesa de 1535 a 1739.
Sé Baçaim
Passadas as Praganás de Dadrá e Nagar Aveli, cuja capital, Silvassa, se chamou no
séc. XIX Paço de Arcos, em honra do Governador de então, chegamos a Damão.
Há pouco para escolher quanto a alojamentos, para além do Miramar Hotel, na praia
de Devka, e do Marina, em Damão Pequeno. Aqui impõe-se uma visita à Fortaleza
de S. Jerónimo, de cuja praça de armas ressalta a Igreja de Nª Srª do Mar. Nela
e na Sé, do outro lado do rio Daman Ganga, grande parte das missas são ainda
celebradas em português, língua em que está inscrita na fachada do edifício da
Câmara a antiguidade do senado municipal: “Por Nobre e Leal Provisão de 1581”.
Entre o muito que há para ver destacam-se as Portas do Mar e da Terra, as ruínas
de S. Domingos, a pequena Casa em que viveu o poeta Bocage e, sobretudo, a
riquíssima Capela-Mor da Igreja da Madre Deus.
Há que regressar a Bombaim para voar até Diu, a Pérola do Gujarate, e respirar as
gloriosas muralhas da fortaleza que o heroísmo português tornou famosa com a
resistência aos cercos otomanos do séc. XVI, em tempos de Nuno da Cunha e D.
João de Castro. Dos dois melhores hotéis da Ilha, o Kohinoor e o Radinka, ambos
com simpáticas piscinas, eleja o primeiro, que o manterá mais próximo do centro.
Aí visite o Museu da Igreja de S. Tomé e a imponente Igreja de S. Paulo. Um passeio
através das estreitas ruas do bairro hindu permitir-lhe-á apreciar as tradicionais
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dossier ÍNDIA Portugal na índia
Um outro agradável passeio de barco é entre as ilhas do estuário que junta a
ficam as ruínas de Stº Agostinho, o Convento de Stª
cidade velha de Fort Cochin e a moderna de Ernakulam. Os dois melhores hotéis,
Mónica, onde hoje está o Museu de Arte Sacra que
Taj Malabar e Branton Boat Yard, têm ancoradouros próprios onde os barcos
veio de Rachol, e o Priorado do Rosário, no monte
podem amarrar. Se não os quiser alugar, apanhe-os nos jettys das carreiras
sacro donde Afonso de Albuquerque comandou a
normais. Não deixe é de ver as Ilhas de Vaipin, com a sua quinhentista Igreja de
tomada de Goa em 1510. A Igreja de S. Caetano
Nª Srª da Esperança, as Redes Chinesas, ex-libris da região, ou o mais escondido
e o já citado Arco dos Vice-Reis ficam para o lado
dos hotéis, o Bolghaty Palace, na ilha do mesmo nome. Por terra vá até á Basílica
inverso, por onde se pode seguir para Pondá para ver
de Stª Cruz, ao Museu de Arte Sacra e, sobretudo, à Igreja de S. Francisco, onde
os templos hindus. De volta, não deixe de parar em
em 1520 foi sepultado Vasco da Gama. Depois de almoçar no Branton Boat Yard,
Margão ou Loutulim, onde se situam os solares de
venha até à Jewish Street, em Mattanchéry, para visitar, porta sim, porta não, os
algumas das mais tradicionais famílias bramânicas
inúmeros antiquários que enchem as ruas entre a Sinagoga e o abusivamente
goesas como as dos Sant’anas da Silva, dos Mirandas,
designado Dutsh Palace. O palácio nada tem de holandês. Foram os portugueses
ou dos Figueiredos de Albuquerque, este agora em
que o erigiram e ofereceram ao Rajá de Cochim para o autonomizarem da
turismo de habitação.
suserania do Samorim de Calecute. Depois, se tiver tido a sorte de conseguir
Quanto a praias, todos os guias lhe falarão das do sul,
quarto no Taj Malabar, goze da sua belíssima piscina, faça uma massagem de
sobretudo da de Palaolem, mas a beleza de outrora
Ayurveda no seu Spa e prepare-se para voar para Goa.
sucumbiu ao peso do turismo massificado. Hoje, Colvá,
Dos hotéis bons, os mais centrais são o Cidade de Goa, com praia privativa, mais
Baga ou Calangute são verdadeiras Algés e Dafundo. As
próximo de Pangim, e o Forte da Aguada, na praia de Sinquerim, mais perto de
melhores praias situam-se, ao contrário, mais a norte:
Anjuna, onde à quarta-feira se realiza a mais exótica feira da Índia. Lá tudo pode
Arambol, Morjem ou Querim, já próximas do belíssimo
ser encontrado, desde pratas e jóias dos tibetanos aos sacos, mantas, e roupas de
mas pequeno hotel (sete quartos) de Forte Tiracol. Para
Karnataka.
quem goste dos mais completos lugares do mundo,
Mas a principal e inevitável visita terá de ser a Velha Goa, cujo coração é a Basílica
impõe-se uma estadia ou visita à melhor realização
do Bom Jesus, onde o corpo de São Francisco Xavier repousa no rico túmulo
de Cláudia e Hari Adjwani, o fechadíssimo Nilaya
oferecido por Cosme de Médicis. A Sé e o Convento de S. Francisco, com a Galeria
Hermitage, em Arporá, sem dúvida o mais exótico e
dos Vice-Reis e a Capela de Stª Catarina, compõem este núcleo central. Para oeste
sofisticado de Goa e um dos melhores de toda a Índia. |
Cúpulas sobre palmares em Nova Goa
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Luís de Andrade Peixoto
esplendores dA ÍNDIA
outside
Índia
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Arrebatadora, deslumbrante, mágica, complexa, sedutora, hipnotizante... Tantos
Com a chegada dos portugueses em 1498, a afirmação
e infindáveis adjectivos nunca poderão, totalizando, cobrir as características da
do seu poderio comercial e in situ no séc. XVI, e com
efervescente arte indiana.
a ascensão decisiva do império Mogol (sécs. XVI-XVII),
Estamos a falar de manifestações plásticas e de testemunhos que englobam
mais elementos, trocas e inspirações estéticas foram
um enorme panorama cronológico que abrange, desde os primeiros achados
inseridas a este riquíssimo quadro artístico.
arqueológicos de c. 2500 a.C - c. 1750 a.C. (com as primeiras culturas em
Mais do que o impossível fito de traçar, neste
desenvolvimento no vale do Hindukush), passando pelos determinantes sécs.
momento, um trajecto da história da arte indiana em
IV-III a.C., em que a individualização de estilos e de influências regionais e
detalhe, sugerimos um percurso de deslumbramentos
de cultos começa a ser evidente (sendo nesta altura assinalado o “início” da
desta maravilhosa cultura entre museus e colecções
produção artística indiana) até, em contemporânea consideração, aos dias de hoje.
da Europa e Estados Unidos da América. De facto,
Acrescente-se a este vasto quadro temporal a complexidade religiosa - hinduísmo,
vários são os museus de referência que desde o final
budismo, jainismo, islamismo e cristianismo - que em conclusão suscitou inúmeras
do séc. XIX, inícios do XX, beneficiaram de diversos
mestiçagens entre filosofias, estilos, técnicas, materiais e visões. Por outro lado, a
factores que alimentaram as suas fabulosas colecções
enorme movimentação de diversos povos em interacção pelo poder e soberania e a
de arte indiana.
consequente profusão de estados regionais, dinastias, reinos e impérios caracterizam
Veja-se como o incremento de expedições, algumas
uma viva geo-política em constante mutação. Notável aspecto nesta heterogeneidade
das quais mais ou menos científicas, canalizaram
é sempre a atracção e o incentivo para a abordagem artística da vida.
centenas de objectos rumo à Europa. Conjugando
Para realçar esta profusão de culturas veja-se a esfera geográfica que dá palco à
influência da Índia, sobretudo a partir da forte expansão do budismo (sécs. IVVII) conferindo-lhe imediatamente: Paquistão, Afeganistão, Nepal, Tibete, Butão,
Bangladesh, Xinjiang (China), Sri Lanka, o Sudeste Asiático: Myanmar (Burma),
Laos, Vietname, Tailândia, Cambodja e a Indonésia. Isto faz-nos compreender por
que grande parte das galerias de exposições de arte asiática que visitamos estão
divididas em três momentos: Rota da Seda, Subcontinente Indiano e Sudeste
Asiático. Estas divisões geográficas ajudam-nos a vislumbrar as individualidades
estilísticas e as identidades de cada concreta localização, para além da óbvia e forte
influência comum dentro deste quadro geográfico.
No início da era de Cristo (sécs. I-V) florescem e afirmam-se três importantes escolas
artísticas regionais (Ghandara, Mathura e Amavarati) enquanto que os sécs. IV-VII
testemunham o esplendor da arte búdica da Índia, com o decisivo impulso cultural e
artístico da dinastia Gupta (sécs. IV-V) e o estender da influência indiana budista.
A decadência da dinastia Gupta, que se deu a partir do séc. V devido a invasões
exteriores, e a expansão da crença hindu (que germinara desde o período védico,
1500 a.C. - 600 a.C., e se movia ao sabor do trânsito dos seus crentes) dão lugar
durante os sécs VII-XIII ao denominado período hinduísta. Através de uma forte
consolidação das características estilísticas regionais, com as suas escolas que
testemunham um vital particularismo, sincretismo de influências e respeito pelas
três grandes religiões em movimento (hinduísmo, budismo e islamismo), a arte
indiana floresce de modo imparável em todas as suas manifestações.
à Esquerda | ”Shiva Nataraja”, c. 1050 | bronze, estilo imperial Chola | Índia (Tamil Nadu) | c. 83 cm (alt.) | © Museum Rietberg
à direita |”Buda erguido”, primeira metade do séc. V | grés rosa, época Gupta | Índia (Mathura) | 142 x 54 cm | © Archives
Photographiques du Musée Guimet
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Arqueologia, Etnologia, Antropologia, História,
”Maharishi” (“o grande sábio”), séc. XII | Agastya: pedra (chloritoid phyllite) | Índia (Bihar-Lakhi Sarai) |
História da Arte e um desejo exacerbado pelo
© 2007 Museum Associates / Los Angeles County Museum of Art
exótico e asiático de mãos dadas com gostos,
modas e correntes artísticas, formaram-se colecções
significativas que hoje nos possibilitam ver “algum
do melhor” da Índia fora da Índia. Isto sem falar das
colecções anteriores que foram sendo constituídas
ao longo dos períodos de expansão e da presença
europeia por terras a Oriente a partir dos finais do
séc. XV ou, mais recentemente já no séc. XX, com
as desanexações mais ou menos violentas e com os
conflitos militares que infelizmente dão rumos vários
aos testemunhos.
No panorama contemporâneo, é de realçar a forma
como belíssimas peças chegam de modo espontâneo
e altruísta a diversos museus pela via de doações
particulares, revelando um crescente e consciente
reconhecimento das artes ancestrais extra-europeias
que, cada vez mais, formam atractivos imaginários de
sonho e de exotismo.
Aliados à dinamização dos estudos asiáticos, à sua
crescente divulgação e a uma enorme afirmação
de estatuto de rara obra de arte, os seus valores
de mercado atingem cotações e disputas sem
precedentes em relação às masterpieces de origem
indiana e asiática no geral.
Não é apenas no mundo ocidental que esta
dinamização de mercado é cada vez mais relevante,
com os conhecidos exemplos das semanas anuais
de Arte Asiática de Londres (Novembro) ou de Nova
Iorque (Abril), a boa saúde do antiquariato, os leilões
e as feiras internacionais dedicadas exclusivamente
a este ramo. Também na Ásia uma efervescente e
emergente transacção toma lugar com os destaques
para os leilões incontornáveis da Christie’s e Sotheby’s
em Hong-Kong, assinalando como que um novo
despertar da cultura asiática para si mesma.
Em crescente envolvimento com este mecanismo, os
museus especializados começam a debater-se pela
contínua construção das suas colecções asiáticas,
desejadas sempre em consonância com as pretensões
enraizadas na civilização do Ocidente, como as mais
completas, significativas e belas do mundo.
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Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA
Mas não nos afastemos do nosso cerne, salientando que as lógicas das colecções
quadro que traçámos de início) constrói um dos
indianas estão directamente e naturalmente inseridas na dinâmica das colecções
momentos mais apreciados deste museu. Sem o
extra-europeias, e mais concretamente nas asiáticas, sob duas perspectivas
dramatismo interessante do Museum für Asiatische
predominantes: a artística e a etnológica. Os testemunhos da cultura indiana
Kunst-Dahlem de Berlim, esta secção acentua o
encontram-se estudados, recolhidos, conservados e apresentados numa
carácter escultural aliado à arquitectura, à qual muitas
considerável teia museológica na Europa e nos E.U.A. Contudo, e curiosamente,
das peças estavam aliadas. A opção cromática das
Portugal ainda não se encontra na lista (nós que em 1498 fomos os primeiros a lá
paredes e dos plintos faz compreender o núcleo como
chegar!!). Porém, dizemos um “ainda” esperançado com esperança na abertura, em
parte integrante de uma estrutura maior e o sóbrio
2008, do Museu do Oriente (Fundação Oriente) que com certeza irá potencializar,
ambiente expográfico o permite, ao mesmo tempo,
além da abordagem típica da Índia portuguesa (na qual representamos um claro
uma apreciação estilística descomprometida e pessoal.
destaque), um descortinar da complexa cultura com a qual nos deparámos em
O Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim,
tempos certamente mais aventureiros.
remodelado em 2000, tomou um caminho diferente,
Provando a vitalidade desta crescente rede, encontramos o mote de partida para
mais dramático, obscuro e fascinante. Cuidadoso
o nosso percurso de “Esplendores da Índia outside Índia”, com a reabertura do
efeito luminotécnico, em que os jogos entre sombras
Museum Rietberg de Zurique, em Março deste ano.
e diálogo claro/escuro tomam lugar, dá espaço para
As mais belas e requintadas artes são indissociáveis das opções expográficas
uma aproximação mais mística e misteriosa junto
despojadas e subtis no aspecto dramático. Luz, texturas, composições e colocações
das esculturas (e das outras colecções, das quais
estratégicas dão ênfase a diversas tipologias indianas das quais os bronzes do
destacamos a pintura indiana, sobre papel, têxteis
período hinduísta se evidenciam.
e vidros, e as importantes pinturas de interiores de
Shiva Nataraja, o eterno Senhor da Dança Cósmica Anandatandava, aparece-nos
templos budistas). A combinação regular em espaço
em todo o seu esplendor nas revitalizadas galerias de exposição permanente. A luz
expositivo entre arte antiga e contemporânea,
cuidada e o lugar de destaque conferem-lhe uma soberba e auspiciosa presença.
em que estilos, inspirações, técnicas e temáticas
De facto, Anandatavanda constitui o simbólico e poderoso momento de criação e
dialogam, fecunda este espaço de um modo especial.
de destruição, de eterno retorno da vivência e de suprema força cósmica. Shiva
Real desafio museológico e encantamento para os
constrói o mundo através do som ritmado do tambor que toca (com a mão direita
públicos é a construção dentro do museu de uma
posterior); preserva a criação em sinal de protecção (mão direita frontal); destrói
estrutura arquitectónica que encerra no seu interior
com a potente chama na mão esquerda (posterior); bane o pecado e a ignorância
pinturas originais, de stupas (templos budistas), nas
do inconsciente pisando o demónio Apasmara-Purusha (pé direito) e concede a
paredes e na cúpula perfeita. Sem falar na dificuldade
libertação espiritual demonstrando a sua irradiação cósmica através da sua última
da conservação preventiva, em todo o processo de
mão (esquerda frontal). Toda esta magnífica e simbólica composição concebe ainda
incorporação, deslocação e apresentação destes
a complexidade dos opostos (através da iconografia complementar masculina
testemunhos, a necessária iluminação reduzida
vs feminina patente em cada uma das formas das orelhas) e a harmonização e
provoca uma desconcentração visual que pouco a
equilíbrio universal através da leveza, postura proporcional e estabilidade do deus
pouco, em adaptação ao baixo nível, faz da apreciação
neste movimento incandescente. É, sem dúvida, um bom e deslumbrante ponto de
destas pinturas o momento alto.
partida!
Momentos obrigatórios neste percurso são os museus
As colecções do Museum Rietberg cruzam-se e complementam-se, obviamente,
top de carácter universalista - British Museum (que
com as tipologias de outros museus. Assinalável é a grande qualidade da colecção
neste momento celebra a Índia e os sessenta anos
de escultura e de pintura (retratando inúmeras escolas estilísticas regionais e as
da sua independência com a exposição de pintura
interessantes composições das miniaturas mogóis).
indiana: “Fé, Narrativa e Desejo”), V&A - Victoria and
Por falar em escultura, destaque para o Los Angeles County Museum of Art (pela
Albert Museum (a jóia da coroa dos museus do Reino
preciosa escolha desta tipologia e, no fundo, por toda a colecção indiana, que
Unido) e o LACMA - Los Angeles County Museum of
é completíssima) e o Musée Guimet de Paris, renovado em 2001. No Guimet, a
Art. Para além das completas colecções de escultura
escultura em pedra budista, jainista e hindu (cruzando geograficamente o amplo
em pedra e metais, artefactos arqueológicos, pinturas
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sobre diversos suportes, gravuras, têxteis raros, relevos, bronzes hindus, jades e
jóias (lembremos as requintadas cortes mogóis), pinturas em miniatura ou diversos
testemunhos de carácter mais etnológico, algo muito raro e belo os une: esculturas
do Buda Sakyamuni. Enquanto que o LACMA beneficiou de uma muito generosa
doação, por parte da Fundação Michael J. Connell, o V&A e o British Museum uniram
esforços e meios para adquirir a rara peça. Para se ter uma ideia foi preciso combinar
o Fundo das Colecções de Arte Nacionais, o Permanente Fundo Broke Sewell do British
Museum e doações dos Amigos do Museu V&A, bem como de privados. E o resultado é
que o “Buda Radiante”, como lhe chamam no V&A, atinge uma enorme popularidade
nas Galerias dedicadas à Índia.
Estas preciosas esculturas (apenas um número muito reduzido sobreviveu até
hoje) testemunham um período fulcral na formação estilística das representações
clássicas de Buda. Sob a alçada da florescente dinastia Gupta (os quais, embora
hindus, eram patronos do budismo) os centros artísticos de Mathura e Sarnath
originaram esta génese de representação plástica que iria influenciar a figuração e
materialização do conceito de Buda pelos diversos países que receberam a corrente
À ESQUERDA | ”Buda Sakyamuni”, fim do séc. VI - início séc. VII | terracota revestida a
cobre Este da Índia (provavelmente Bihar) | 35,5 cm | © V&A Museum
PÁGINA DO LADO à ESQUERDA | “Krishna e Radha” | atribuído a artista da geração
dos mestres Nainsukh e Manaku de Guler | guache sobre papel | 17, 7 x 14, 8 cm | c.
1775-1780 | Índia (Pahari-Gebiet, Guler)
PÁGINA DO LADO à DIREITA | “Imperador Jahangir triunfando sobre a Pobreza”
(reinou entre 1605-1627) | c. 1620-1625 | Tinta guache e ouro sobre papel | atribuido a
Abu’l Hasan | Índia Mogol, Da colecção Nasli e Alice Heeramaneck e adquirida pela
Associação dos Membros do Museu | imagem: 23,81 x 15,24 cm
folha: 36,83 x 24,61 cm | © 2007 Museum Associates/Los Angeles County Museum
of Art
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Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA
budista. A sua mão erguida em sinal de benevolência (abhaya-mudra) afirma a
Arte da Índia. Directamente ligada à intrincada
sua protecção perante os seus crentes, facto que liga de forma inteligente esta
religiosidade e aos templos, a sua produção é
representação religiosa ao domínio político. Sakyamuni dá corpo aos ideais budistas
enorme em pontos de peregrinação e de adoração
de yogi e de perfeito regente: fisicamente ágil, elegante, proporcional, com expressão
do divino e estas peças são facilmente vendidas
serena, contemplativa e delicada e, tal como um soberano deve ser, jovem, com
às centenas em mercados onde os pintores
fortes ombros, corpo firme e pés e mãos bem torneados e seguros. Sem dúvida uma
habilmente reproduzem cânones estilísticos
escultura de destaque e excepção!
estáveis e constantes durante gerações. Aliadas aos
Musée Guimet, Asian Art Museum of San Francisco, The Cleveland Museum
textos poéticos e religiosos, inúmeras ilustrações
of Art, Los Angeles County Museum of Art, Museum Rietberg ou Museum
foram encomendadas tanto por classes religiosas
für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim podem ainda ser destacados
como civis. As classes reinantes rapidamente
pelas completas galerias de exposição dedicadas à pintura indiana, cujas
chamam a si os melhores profissionais desta arte,
influências, estilos particulares ou temáticas e enredos são tão diversos
imortalizando refinados e luxuosos momentos
quantas as cores vibrantes e garridas que fazem desta tipologia um mágico
da vivência do quotidiano da corte, retratos,
momento de sensações visuais. Pintura de interiores, sobre rolos de
acontecimentos históricos e estratégicos ideais
tecidos, sobre folhas de palmeira e sobre papel (a partir do séc. XIV) são
associados ao soberano, afirmando o seu poderio
as masterpieces. De facto, a pintura detém um papel lato na História da
e excelência.
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Os estilos da pintura rapidamente adquirem o cunho
tecidos, papagaios), tudo de origem indiana e abarcando peças desde o séc. XVIII
identitário das cortes a que pertencem ou da região
até aos dias de hoje, detém um potencial enorme de nível internacional.
de origem, potencializando particulares características
O futuro Museu do Oriente poderá equiparar-se, com as suas colecções, às
e abordagens estéticas que advêm do cruzamento
referências etnológicas europeias, nomeadamente o Musée du Quai Branly
do hinduísmo, budismo, jainismo, islamismo (com
(inaugurado em 2006 e com uma vitalidade expositiva e de programação cultural
as diversas influências persas e mogóis) até às
de excepção), Linden-Museum Stuttgart - Staatliches Museum für Völkerkunde;
representações cristãs ou gravuras europeias do
MEG - Musée d’Ethnographie de Genève e MEN - Musée d’Ethnographie de
Renascimento tardio.
Neuchâtel.
Os portugueses Museus Nacionais de Arte Antiga,
Estes quatro museus detêm o poder fascinante de nos fazer mergulhar, sentir e
Soares dos Reis, do Traje e da Moda, Museu da
até cheirar a fascinante Índia. Recorrendo a grandes reconstituições, artifícios
Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e o futuro
expográficos de última geração, cenografias arrojadas e jogos sensoriais,
Museu do Oriente, bem como colecções particulares
apresentam-nos os esplendores do quotidiano indiano. Grande destaque deve ser
de destaque (Senhor Almirante Alpoim Calvão, Dr.
Pires Marques, Rainer Daehnhardt e José Lico),
“Brinquedo indiano com rodas representando um elefante, com palanque”, séc. XIX | Madeira pintada policromada, Índia |
cobrem a conhecida influência portuguesa na Índia,
comp. 52 cm x larg. 31 cm | © Museu da Cidade de Lisboa
dando origem ao agora muito discutido conceito de
“indo-português” (patente em inúmero mobiliário,
objectos e esculturas, tanto de carácter civil como
religioso). De cunho mogol podemos deliciar-nos
com os contadores das colecções dos Museus
Nacionais de Arte Antiga, Soares dos Reis, Museu
da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e com os
geometricamente perfeitos tapetes do Museu da
Fundação Calouste Gulbenkian (que, entre outras
peças, foram destaque da impressionante exposição
“Goa e o Grão-Mogol”, em 2004).
De facto, embora Portugal não desfrute por enquanto
da posição de merecido destaque na rota dos Museus
de Artes Asiáticas, podemos ainda realçar algumas
peças de interesse no Museu da Marioneta de Lisboa
(com a recente aquisição de marionetas indianas)
ou o profusamente decorado elefante-brinquedo do
Museu da Cidade de Lisboa, que é um exemplar lúdico
deveras interessante e característico.
Melhor colocados estamos em relação a uma
abordagem etnológica, na qual o Museu Nacional de
Etnologia é exemplo (veja-se a presente exposição
“Pinturas Cantadas” até Janeiro próximo). A fabulosa
colecção Kwok-on, da Fundação Oriente, com
marionetas (varas, baguetes, luvas, fios, sombras),
máscaras, estátuas, instrumentos musicais, jogos,
brinquedos, traje, objectos rituais e festivos e
iconografia diversa (gravura, poster, papel recortado,
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Dossier ÍNDIA ESPLENDORES DA ÍNDIA OUTSIDE ÍNDIA
feito aos MEG e MEN. O primeiro com a exposição “Les feux de la Déesse”, em
projecções de tremores de terra, verdadeiras chamas
2005, que celebrou os homens e os deuses do Kerala através de uma das mais
ou reconstituições do cosmos em movimento ou
fascinantes exposições dedicadas à Índia. A mais alta qualidade da exposição é
Shiva, Parvati e Ganesha (pai, mãe e filho) em bronze
resultado de dois factores basilares: contextualizações e interpretações etnológicas
do período hinduísta com um presépio cristão feito de
e antropológicas sob uma abordagem expositiva moderna e o deslumbramento
plástico na China para o Natal deste ano.
excepcional face aos testemunhos da colecção, com o apoio das mais cuidadas
Independentemente de visões mais clássicas
opções expográficas (sem palavras!!). O MEN é para nós, a par com o MEG, o
ou controversas, sob perspectivas estilísticas ou
momento expositivo de eleição. A “museografia de ruptura” defendida pela
etnológicas, em Portugal ou no mundo, a riqueza
instituição propõe metáforas e conceitos que dão tema a exposições complexas e
artística e cultural indiana far-nos-á sonhar e
desafiantes. Cruzamentos temporais e geográficos de testemunhos e mentalidades
aproveitar os esplendores da Índia outside Índia
atingem-nos no âmago e fazem-nos questionar o mundo presente, passado e
até à arrebatadora viagem ao local de origem.
futuro. Nunca será de admirar ver em interacção, no MEN, Shiva Nataraja com
Esplendores não faltam... deixe-se deslumbrar! |
“Manasa “A Deusa Cobra”, meados do séc. XX | madeira, fios têxteis, papel, resina | Índia (Assam, Goalpara) | Doação de Gabriele
Bertrand | 60 x 89 cm | © Musée du quai Branly, fotografia de Patrick Gries/Bruno Descoings
Asian Art Museum of San Francisco
http://www.asianart.org/
British Museum
http://www.thebritishmuseum.ac.uk/
Linden-Museum Stuttgart - Staatliches
Museum für Völkerkunde
http://www.lindenmuseum.de
Los Angeles County Museum of Art
http://www.lacma.org/
Metropolitan Museum of Art New York
http://www.metmuseum.org/
Musée d’Ethnographie de Genève
http://www.ville-ge.ch
Musée d’Ethnographie de Neuchâtel
http://www.men.ch/
Musée du Quai Branly
http://www.quaibranly.fr/
Musée Guimet
http://www.museeguimet.fr/
Museum für Asiatische Kunst-Dahlem de Berlim
http://www.smb.spk-berlin.de
The Cleveland Museum of Art
http://www.clevelandart.org/
Victoria&Albert Museum
http://www.vam.ac.uk/
Fundação Oriente - Colecção Kwok on / Museu
do Oriente
http://www.foriente.pt/entrada.asp
Museu da Marioneta
http://www.museudamarioneta.egeac.pt
Museu Nacional de Arte Antiga
http://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt/
Museu Nacional do Traje e da Moda
http://www.museudotraje-ipmuseus.pt/
Museu Nacional de Etnologia
http://www.mnetnologia-ipmuseus.pt/
Museu Nacional Soares dos Reis
http://www.mnsr-ipmuseus.pt/
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
ARTE CONTEMPORÂNEA
Dossier
ÍNDIA
h
FILIPA
Luís
deVICENTE
Andrade Peixoto
Leilões internacionais
Highlights
Índia
Christie’s:
Comprovando a vitalidade e interesse do mercado internacional
quanto à Arte Antiga, Moderna, Contemporânea e de outro tipo
de itens provenientes da Índia, aqui pomos em evidência diversos
momentos, passados e futuros.
Grande destaque para o artista contemporâneo Tyeb Metha e para o
exótico leilão da colecção Gordon Reece, pela Bonhams, em Outubro. |
Sotheby’s:
1.
4.
6.
9.
Nova Iorque - 21 de Setembro de 2005
Londres - 21 de Maio de 2007
Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Nova Iorque - 22 de Março de 2007
Lote 275 | Tyeb Mehta | “Mahisasura”,
Lote 7 | Syed Haider Raza (1924-2002)
Lote 25 | Syed Haider Raza (1924-2002) |
Lote 114 | Tyeb Mehta | “Untitled” |
1997 | Est.: E 438.305 - E 584.407 |
| “La Terre”, 1985 | Est.: E 591.488 -
”Tapovan” | Acrílico sobre tela |
Est.:E 584.407 - E 730.508 | Vendido por:
Vendido por: E 1.309.000
- E 887.233 | Vendido por: E 1.049.760
Est.: E 584.407 - E 730.508 | Vendido
E 847.390
Recorde internacional para pintura
© Christie’s Images Ltd. 2007
por: E 1.075.308
indiana contemporânea
Recorde pessoal do artista em leilão
Recorde pessoal do artista em leilão
© Christie’s Images Ltd. 2007
2.
5.
7.
10.
Nova Iorque - 30 de Março de 2006
Nova Iorque - 20 de Setembro de 2006
Londres - 23 de Maio de 2006
Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Lote 42 | Vasudeo S. Gaitonde (1924-
Lote 63 | Tyeb Mehta | “Untitled (Figures
Lote 135 | Francis Newton Souza |
Lote 80 | Jagdish Swaminathan |
2001), | “Untitled”, 1975 |
with Bull Head)” | Est.: E 584.407 -
“Amsterdam Landscape” | Est. : E 88.723 -
“Untitled” | Est.: E 219.152 - E 219.152 |
Est: E 438.305 - E 584.407 | Vendido por:
- E 730.508 | Vendido por: E 894.488
- E 118.298 | Vendido por: E 922.722
Vendido por: E 587.206
E 1.226.666
© Christie’s Images Ltd. 2007
Recorde pessoal do artista em leilão
© Christie’s Images Ltd. 2007
3.
8.
Nova Iorque - 30 de Setembro de 2006
Nova Iorque - 29 de Março de 2006
Lote 23 | Francis Newton Souza, |
Lote 81 | Tyeb Mehta | “Falling Figure
“Man and Woman” | Óleo sobre madeira|
with Bird” | Est.: E 584.407 - E 730.508 |
Est. : E 219.152 - E 365.254 | Vendido
Vendido por: E 911.674
por: E 1.070.866
© Christie’s Images Ltd. 2007
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63
UM OCEANO INTEIRO
h
1.
2.
3.
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4.
7.
5.
8.
6.
9.
10.
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64
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
ARTE CONTEMPORÂNEA
h
DOSSIER ÍNDIA LEILÕES INTERNACIONAIS HIGHLIGHTS INDIA
FILIPA VICENTE
A 2 de Outubro terá lugar, na Bonhams de Knightsbridge - Londres, o
de interiores sempre trabalhou nos seus projectos. Apaixonado
leilão da colecção de Gordon Reece, dono da Galeria West End.
coleccionador e eternamente fascinado pelo exótico, Gordon Reece
Estão representados cerca de 600 lotes de artes variadas,
põe, deste modo, fim à sua carreira de 26 anos no mundo da
antiguidades, arte tribal, escultura religiosa e ritual, cerâmicas,
decoração e dos objectos de rara excepção e beleza.
templos em miniatura, colunas e outros elementos de arquitectura,
Grande interesse recai nas peças de origem indiana directamente
mobiliário, joalharia e tantos exóticos testemunhos não europeus,
provenientes de palácios de marajás e de cortes reais do Rajastão.
sobretudo de África e do subcontinente asiático, assim como
Requintada qualidade e elevados preços são esperados! |
muitos outros luxuosos objectos com que este consultor de design
Bonhams:
Leilão 15651:
Colecção Gordon Reece
2 de Outubro
Knightsbridge - Londres:
1.
3.
“Rara e requintada carruagem de
“Coluna”
casamento real”
Madeira teca esculpida
Madeira teca trabalhada e metais vários
Séc. XIX
Comprimento total: 428 cm (carruagem:
Rajastão - Índia do Norte
comp. 147 cm x alt. 105 cm / diâmetro das
Proveniência: estrutura arquitectónica de
rodas 74 cm)
uma residência aristocrática ou Haveli,
Sécs. XVIII-XIX
região de Bikaner
1.
Rajastão - Índia do Norte
Proveniência: Colecção real do Rajastão,
previamente usada em casamento de uma
princesa do Gujarati com um aristocrata
reinante de Jodhpur.
Valor anterior de referência: E 21.441
2.
“Elegante templo ou santuário”
Madeira teca trabalhada,
Alt.160 x larg. 112 x comp. 102 cm
Sécs. XVIII-XIX
Rajastão - Índia do Norte
Valor anterior de referência: E 17.744
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2.
3.
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66
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
Luís de Andrade Peixoto
Antiquariato
Indiano
“Deus Surya”, c. séc. V-VII | grés | Índia
central | 51 cm
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Embora sem a diversidade e a efervescência do antiquariato europeu e de outros
com disco perfurado, que assentam sobre os ombros,
hot spots internacionais especializados em artes da Índia, em Portugal é possível
colar longo de várias fiadas e um cordão ritual simples
destacar a oferta de espécimes que, embora limitada, é de elevada qualidade e que
(avayanga) à volta da cintura (toda a indumentária,
cobre um panorama contextual rico e interessante.
sobretudo o calçado, evoca a sua origem em
Manuel Castilho, fiel à sua tradição de requinte nas propostas de arte indiana e
mitologias das estepes da Ásia Central).
asiática, continua a ser a referência por excelência. Pela sua loja e stand de vendas,
Por detrás da cabeça vê-se parte de um resplendor
em feiras nacionais e internacionais, continuam a passar dos mais belos exemplares
circular. Seria originalmente ladeado por Pingala, o
testemunhos da Índia, com especial relevo para a arte escultórica. Entre escultura
seu escriba que tomava nota das acções dos homens,
búdica, hindu e peças de influência mogol e portuguesa, destacamos presentemente
e por Dandí, o seu guardião. A pequena figura que se
duas distintas esculturas e um baldaquino cerimonial inédito.
vê a seus pés é pouco habitual e poderá representar a
Escultura de vulto do deus sol védico Surya, representado segundo uma iconografia
deusa Terra.
estabelecida a partir dos primeiros anos d.C. Posteriormente absorvido pelo
Surya, com os dois braços erguidos e as mãos à altura
Hinduísmo (no qual esta escultura se inseriria, integrando um altar subsidiário de
dos ombros, ostenta duas esplendorosas flores de
um templo hindu) é, na sua origem, deus dos invasores arianos (c. 1700 a.C.).
lótus abertas, em símbolo de regeneração, do ciclo da
O deus em afirmada posição erguida e frontal enverga túnica longa diáfana. Do
vida, da vida e da morte.
característico pano pendente em U de um braço ao outro, apenas resta a tira que
Conjunto escultórico no qual se destaca uma figura
passa em frente aos joelhos. Usa uma coroa alta (karandamukuta), grandes brincos
masculina com um enxota--moscas (chawri) em
“Fragmento arquitectónico”, sécs. X-XII | pedra calcária | Índia (Rajastão)
“Baldaquino”, séc. XIX | madeira policromada | Índia
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postura sensualmente arqueada (tribangha). A figura, irradiando elegância e
do belo e da estética, conjuga também produções
juventude, encontra-se coroada e ricamente adornada com jóias. Poderá ser um
artísticas próprias.
yaksha, divindade acessória frequentemente representada ladeando divindades
Estas obras complementam um imaginário que se
hindu principais ou associada a um Tirthankara jainista. Vê-se ainda uma coluna
relaciona directamente com os países de origem,
indicando um templo ou palácio e um leão rampante (simba-vyala) subjugando um
revitalizando conceitos, inspirações e tecendo
elefante, o que evoca o poder da divindade central, representada neste friso.
diálogos entre técnicas, materiais, estilos, temáticas
Invulgar baldaquino com corpo cónico oitavado assente em base quadrada.
e tempos. De realçar as composições em estilo de
O corpo apresenta em quatro registos pinturas provavelmente alusivas ao
gabinetes de curiosidades, nas quais naturalia e
Ramayana, o mais importante épico hindu. Entre as cenas pintadas sobre fundo
artificialia vivem em plena harmonia, testemunhando
verde vibrante vêem-se divindades como Ganesh, cabeça de elefante e corpo de
a acção da natureza e do homem e a sua inevitável
homem, invocado para remover obstáculos e determinante para o sucesso de
interacção. Dentro destes microcosmos de recolha e
qualquer iniciativa, assim como vários rishies, homens santos de barbas e cabelos
de acumulação, em aceso deleite e vivência da cultura
compridos. Este baldaquino seria um acessório para as inúmeras actividades
do objecto, da afirmação da curiosidade e fascínio
religiosas deambulatórias hindu e serviria de cobertura para uma imagem portátil
pelo exótico, sublinhe-se ainda a série de trabalhos
de uma qualquer divindade, retirada do templo para esse efeito.
inspirados a partir da cultura nipónica e atente-se
Teresa Lacerda, há muito apaixonada pela Índia, sugere-nos, na sua eclética e
nos mais clássicos e sublimes elementos da cultura
fascinante loja De Natura, uma selecção preciosa de peças. Tendo recolhido desde
samurai (kimonos, armaduras e capacetes). Visita
cedo testemunhos do quotidiano sagrado e profano de países extra-europeus
obrigatória!
(sobretudo Ásia e África), bem como peças de arte produzidas com o intuito
Fará em Novembro dez anos que, em conjunto com
Ana Marchand e Fernando Cardoso, Teresa Lacerda
“Naga e Shiva Linga” | bronze e pedra de rio sagrado Índia | c. 50 cm de altura | Fotografia: Luís Gonçalves
assinalou os cinquenta anos da independência da
Índia com a iniciativa Jornadas da Índia em Montemoro-Novo, na qual se celebraram a vasta cultura indiana
e as suas belas manifestações. Num percurso
destacado pelas inúmeras viagens a Oriente e perante
tantos e tão fascinantes objectos e testemunhos,
serão sempre de destaque as dezenas de brinquedos
trazidos de uma loja de Banares ou os deslumbrantes
pichhavai (pinturas de “pano de fundo” de altar, de
uma imagem de um deus, neste caso do culto a
Krishna) do Rajastão.
Na De Natura, entre várias peças indianas, como
um interessante Ganesh montado no seu rato (em
madeira policromada, séc. XIX), sublinhamos a
impressionante Naga das cinco cabeças em bronze.
Esta escultura, em evidente sinal de protecção e
escudo de um conteúdo também sagrado à sua
guarda, foi adquirida há mais de quinze anos num
antiquário londrino. Em composição hindu, um Shiva
Linga, pedra lisa de um rio sagrado que simboliza o
falo de Shiva, está protegido pela cobra.
Segundo alguns autores, este tipo de Naga poderá
também ser usado como suporte de incenso,
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Dossier ÍNDIA ANTiQUARIATO: ÍNDIA
certamente recorrendo aos estratégicos orifícios na extremidade da boca de cada
importância para as tribos Naga. As Naga são tribos
uma das cinco cabeças de cobra. Em associação budista, relembremos o papel da
das montanhas que se estruturaram à parte da grande
Naga durante a meditação de Buda, protegendo-o da tempestade chuvosa.
dinâmica geopolítica e cultural da Índia. Mesmo dentro
Um conjunto de dezasseis peças e esculturas do Kerala e de Tamil Nadu compõem
da grande comunidade Naga, dividida em centenas de
uma interessante e rara oferta. Entre peças utilitárias, carimbos tantra, fragmentos
pequenos aglomerados populacionais, as diferenças
arquitectónicos, caixas de pós de consagração, esculturas de deuses hinduístas
de vivência, organização e até língua e, no fundo, de
e outras imagens de difícil identificação, damos evidência a uma escultura de
culturas é assinalável. Práticas como o cortar de cabeças,
antepassado e duas Devadasi ou Yaksa.
sacrifícios de animais, as comuns celebrações variadas
Originária de um altar familiar de Tamil Nadu, a imagem de um antepassado,
que assinalam diversos momentos da vida, religiosidade
em austera, simétrica e firme posição de asceta jainista, com braços afastados do
e crenças e as interessantes festividades dadas por
corpo, palmas da mão para dentro e pontas dos dedos projectando a energia para o
quem se destaca social e estatutariamente dentro das
solo, assinala a rectidão física e espiritual do ente perdido e aqui homenageado.
comunidades, são momentos-chave e identitários destas
Duas Yaksa ou Devadasi mostram o requinte da representação destas deusas-
tribos.
mãe, originárias do Kerala. As suas formas voluptuosas, complexos penteados,
Teresa Lacerda apresenta-nos três xailes directamente
trajes marcantes e acessórios variados revelam a riqueza estilística desta
relacionados com ritualismo, representação estatutária e
divindade associada aos conceitos do primordial, de mãe sagrada e mãe natureza,
simbolismo variado dentro das lógicas de comemoração
relacionando-a em metáfora e comparação com a árvore (também Yaksa). Delas
das crenças do sobrenatural (quer sejam espíritos ou
brotam a fertilidade e criação, são fecundas e férteis, são elas que finalmente
divindades) ou de momentos cruciais do aspecto cíclico
promovem a dádiva da vida.
da vida natural e humana (fertilidade, prosperidade, vida
Do Nordeste da Índia chegam-nos três têxteis (xailes) de grande simbolismo e
e morte).
Imagem de Antepassado (Tamil Nadu), à esquerda, e duas Devadasi (Kerala), centro
e direita | madeira com vestígios de policromia | Índia | Fotografia: Luís Gonçalves.
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Dossier ÍNDIA ANTiQUARIATO: ÍNDIA
Xaile com círculos e representação antropomórfica elaborados com pequenos búzios. Os pequenos quadrados são, na sua origem e muito provavelmente neste exemplar
também, trabalhados com pêlo de cão tingido a vermelho, assinalando uma das mais emblemáticas técnicas das Naga que é o eficaz e complexo tingimento, quer de fibras
têxteis e de outros materiais. Este estilo é comum às comunidades Naga: Sema, Chang, Kalyo-Kengyu e Sangtam | Fotografia: Luís Gonçalves.
Dentro da imensidão de testemunhos Naga
regularmente presenteiam o mercado português
(cestaria, joalharia, ornamentos, armas, peças
com peças de excepção, indo-portuguesas e de
em metais, esculturas e tanta cultura material
influência mogol.
do quotidiano) os têxteis e traje compõem
Destaque para Jandrade - Antiguidades que, no
simbolicamente peças de extrema elegância
presente momento, dá a conhecer um cativante
e significado. De Natura apresenta-nos três
e requintado contador mogol (teca, ébano e
belíssimos e cada vez mais raros exemplos destes
marfim; 310 x 435 x 295mm, final do séc. XVI,
xailes cerimoniais (a não perder!!).
Índia Mogol) com motivos vegetalistas e de caça.
Finalmente, muito comum e apreciado no
Além dos raros e refinados pelicanos, grande
mercado do antiquariato português, o mobiliário,
surpresa paira na representação de um português
escultura, pintura, ourivesaria, têxteis, outras
empunhando uma espingarda, em traje de época
artes decorativas e marfins indo-portugueses, séc.
no qual são evidentes as enormes, arejadas e
XVI-XVII, podem encontrar-se sem dificuldade.
tufadas calças bombachas (ao estilo namban
Além dos nomes acima citados, os Casa D’Arte,
jin, epíteto criado pelos japoneses para nós, os
Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda., Jandrade
bárbaros do sul), que pode ser apreciado através
- Antiguidades, Jorge Welsh ou Pedro Bourbon
dos namban byobu/biombo, nos Museus Nacionais
de Aguiar Branco - V.O.C. Antiguidades, Lda.
de Arte Antiga, Soares dos Reis ou no Museu da
são importantes e reconhecidos antiquários que
Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. |
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Manuel Castilho - Antiguidades
Rua D. Pedro V, nº 85
1250-093 Lisboa
www.manuelcastilho.com
Teresa Lacerda - De Natura
Rua da Rosa, nº 162 A
1200-389 Lisboa
www.denatura.org
Jandrade - Antiguidades
Rua da Escola Politécnica, nº39 A
1250-099 Lisboa
e-mail: [email protected]
Jorge Welsh
Porcelana Oriental e Obras de Arte, Lda.
Rua de S. Bento, nº 440
1250-221 Lisboa
www.jorgewelsh.com
Pedro Bourbon de Aguiar Branco - V.O.C.
Antiguidades, Lda.
R. Honório de Lima, nº72
4200-321 Porto
www.apa.pt/pab
Galeria da Arcada - Antiguidades, Lda.
Rua D. Pedro V, nº49
1250-092 Lisboa
Casa D’Arte
Largo de S. Martinho, nº8 (à Sé)
1100-537 Lisboa
www.casa-darte.com
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier ÍNDIA
MADALENA BRAZ TEIXEIRA
Panos
Pintados
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primeira em Baixo | Chitas de Alcobaça, séc. XIX
em Cima | O Tabaqueiro, séc. XIX
duas Últimas em Baixo Lenços de Alcobaça, séc. XIX
AS CHITAS
Industrial dos países atrás citados, mas também
devido à facilidade de acesso
Os estampados de algodão constituem, porventura, os mais emblemáticos
dos portugueses aos produtos importados da Índia.
exemplos de arte têxtil que se classificam atendendo não só à utilização de um
Não é despiciendo referir que as muitas fábricas
mesmo material e a uma técnica específica, mas ainda devido à sua característica
e fabriquetas de chitas existentes no nosso país,
composição. Conhece-se pouco sobre as suas origens, mas a tradição é
documentadas na listagem apresentada por Jorge
imperativa, tendo sido possível estabelecer analogias formais e encontrar alguma
Custódio, se destinavam à estamparia manual dos
documentação esparsa que possibilita criar o historial do que é comum tratar por
mais diversos adereços, desde os lenços (de mãos,
Chitas de Alcobaça.
de cabeça e de peito), às blusas e camisas destinadas
“A chita não é um tecido, mas um pano de algodão pintado”, e a sua designação
à classe média e a gente de poucas posses, pois
deriva do hindu, chint. Assim aparece explicitado no Dicionário de Bluteau,
data de 1804 uma edição publicada em português
publicado em 1712, que se lhe refere como “panos pintados que são da Índia”.
sobre a técnica de tingir os algodões, o que indicia a
Essa pintura realiza-se por um processo de estamparia manual. É lugar-comum
democratização da estamparia a nível nacional.
dizer-se que o termo “chita” é anterior ao vocábulo inglês, chintz. Na verdade, sabe-
O uso dos algodões indianos na indumentária, que
se que os primeiros pintados vieram da Índia com Vasco da Gama e que os ingleses
não de chitas, começa por ser divulgado na corte,
só tiveram conhecimento deste material muito posteriormente, através das trocas
inclusive por pessoas régias como D. Carlota Joaquina,
comerciais portuguesas e da sua pirataria. Chintz, segundo o The Oxford Dictionary,
substituindo e alternando a utilização das sedas e do
deriva do hindu chint, tendo sido utilizado desde o início do século XVII, e é,
linho, como até aí era de regra. A partir de 1816, com
consequentemente, posterior à chita, ou pintados ou ainda calicô, palavras tornadas
o regresso de D. João VI e após as Invasões Francesas,
sinónimas desde 1498. Calicô é o aportuguesamento de Calecut, de onde estas
o país atravessa uma séria crise política e económica.
mercadorias seguiam para Lisboa.
Dificuldades de vária ordem, agravadas pela guerra
Na língua francesa, não existe vocábulo próprio e este tipo de tecidos eram designados
civil em 1832-35, conduziram à preferência por
indiennes e, mais tarde, toiles de Jouy, por derivarem da manufactura dos estampados
produtos nacionais. Os algodões estampados no
executados naquele local, perto da corte de Versailles. Todavia, seria em Mulhouse que
país conhecem então um enorme sucesso, dado o
se viriam a concentrar e a desenvolver as fábricas de estamparia industrial francesa.
seu preço muito acessível. Será preciso esperar por
Tanto em Inglaterra como entre os franceses, os tecidos estampados foram, talvez por
1870 para que a indústria fabril ganhe expressão,
razões climáticas, essencialmente destinados à decoração de interiores. No entanto, a
o que ocorre com o período regenerador de Fontes
moda de Verão expande-se na Europa desde os finais do séc. XVIII, e restam algumas
Pereira de Melo. É então que as chitas, totalmente
peças de vestuário confeccionadas nesse material.
executadas no país, passam a ser adquiridas por todas
No nosso país, desde 1700 até cerca de 1820, só os verdadeiros tecidos indianos
as camadas da população, sendo usadas tanto no traje
foram utilizados no traje, dado o atraso da nossa indústria face à Revolução
como no bragal.
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OS LENÇOS
Estes acessórios do traje tinham várias funções: desde
guardanapos para serem usados à mesa, na limpeza de
partes do corpo, como o nariz, até garrotes, sempre à
mão, para qualquer eventualidade. É no séc. XVIII que se
generaliza o seu uso entre as classes mais abastadas e os
clérigos. Eram de grande necessidade para os fumadores
de rapé que, com estes acessórios de algodão,
executavam o ritual da sua inalação. Este tipo de tabaco
Palampore ou pano da Índia, séc. XVIII
esteve muito em voga em setecentos, sabendo-se, por
exemplo, que o Marquês de Pombal era um inveterado
O gosto vacilava entre um Barroco tardio e a voga do Neoclassicismo, de que as
fumador.
colchas constituem paradigmática manifestação, juntamente com o advento de um
O aparecimento dos algodões da Índia faz crer que os
primeiro Romantismo pouco afirmativo.
lenços de algodão importado, de mais fácil lavagem e de
A produção nacional foi posteriormente atendendo a um gosto Neoclássico tardio,
mais suave textura para o uso, tanto junto do pescoço,
na medida em que, tanto as composições padronadas como as que são organizadas
como nas narinas, passassem a ser adquiridos para esta
em bandas contêm o léxico gramatical daquele estilo. É perceptível a sua evolução
finalidade. O lenço tabaqueiro é uma especialização do
para ramagens de sabor romântico, não perdendo todavia a estrutura inicial que
dito lenço comum de duas funções usado pelas classes
só é desconstruída no final de novecentos. Através da leitura formal das colchas,
menos favorecidas e é um fenómeno oitocentista, na
é possível indicar-se a respectiva datação, muito embora se tenham vindo a
medida em que o nobre e mesmo o burguês sempre
manufacturar alguns dos padrões que se mantiveram estáveis até aos anos
usaram lenço branco até praticamente aos anos 60 do
30 do séc. XX.
séc. XX.
“Alcobaça” corresponde a uma tipologia de tecidos de algodão estampados,
A decoração destes lenços era subsidiária dos desenhos
essencialmente destinados à decoração de interiores, nomeadamente, à
e ornamentos usados nas colchas, embora mais
confecção de colchas. Caracteriza-se por três elementos fundamentais: o
simplificados e geometrizados. A policromia também
material, sempre manufacturado em tafetá de algodão, pela sua rica e variada
segue de perto o colorido das colchas, tendendo
policromia e pela composição, em que predominam os motivos florais mas
a escurecerem à medida que o séc. XIX avança,
onde também aparecem albarradas, folhagens, animais, ânforas e motivos
mantendo-se os tons vermelho e azul-escuro como os de
geométricos numa organização padronada que lhe é própria.
maior preferência a nível nacional.
A técnica, que constitui ainda um processo identificador das colchas de Alcobaça,
é executada através da gravura sobre tecido de algodão. A gravação era executada
por meio de cunhos de madeira e de ferro. O facto de a composição ser gravada
AS COLCHAS
no algodão por meio de cunhos faz que os desenhos obedeçam a uma estrutura
seriada com marcações repetidas provenientes de diferentes carimbos, quer na
manufactura das colchas, quer na dos lenços ou outros acessórios. A decoração
Relativamente às colchas, estas também foram
era distribuída por módulos para cada uma e para as diferentes partes da peça que
usadas no nosso país em setecentos, sendo difícil
se pretendia estampar, compondo-se uma série de cunhos que, juntos, cobriam
precisar quando se trata de colchas vindas da Índia,
a totalidade do algodão cru, podendo deixar parte do suporte à vista quando a
as célebres palampor, e quando passam a ser produto
organização do desenho assim o definia.
nacional. Portugal vivia um acentuado ecletismo,
A composição pode classificar-se em dois grandes grupos: as alcobaças de
motivado pela ausência de árbitros de elegância e
padrão, que correspondem à integral cobertura do fundo com um mesmo
de encomendas públicas e privadas, pois tanto a
desenho de tipo tapete; e as alcobaças de bandas, cuja organização obedecia à
família real como a corte se encontravam no Brasil.
listragem (bandas em listras) dos motivos de modo a que os ornatos corressem
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Dossier ÍNDIA Panos Pintados
Colcha de algodão estampado, séc. XIX
Lenço com influência oriental, séc. XIX
no sentido do comprimento do algodão. Estas
Portugal sobre tecidos importados. Também é possível que os primeiros cunhos
classificações ainda podem ser subdivididas, o
fossem indianos, aos quais se tivesse sucedido a manufactura de carimbos
que implicaria a descrição de uma extensa lista de
portugueses. Esta hipótese, não documentada, permitiria estabelecer uma série de
subgrupos de padronagem destas colchas.
fases de manufactura até que o produto nacional tivesse atingido a sua autonomia
e se pudesse estabelecer uma evolução no desenvolvimento desta indústria e do
próprio gosto que lhe subjaz.
O GOSTO
Existe, no entanto, uma realidade mítica relativa ao local da génese desta tipologia
de arte têxtil que os portugueses se habituaram a considerar como sua, revendose nela como um elemento da identidade nacional, a que não são alheias as
Reconhecendo-se hoje que a variedade tipológica
eloquentes palavras de Gil Vicente:
dos lenços e das colchas de Alcobaça constitui uma
realidade incontornável e que estes trabalhos foram
E logo dahi a um ano
e têm sido considerados, pelo menos a partir de
Para ajudar de casar
finais do séc. XIX, genuinamente portugueses, torna-
Huma orfam mandaste dar
se necessário equacionar esta arte têxtil. Como foi
Meio covado pano
referido anteriormente,
De Alcobaça por tosar...
as suas origens documentais são pouco precisas e
insuficientes para se poder concluir como e quando se
Penso que é neste contexto que as colchas e chitas de Alcobaça devem ser
iniciou este tipo de fabrico, parecendo, todavia, que a
perspectivadas, referenciáveis a uma subjectividade pátria, religada a emoções de
indicação de Maria Augusta Trindade Ferreira sobre a
ordem afectiva e cultural, fazendo parte de uma história e de um modo de ser com
existência no mosteiro de uma fábrica de lençaria nos
características peculiares. É o carácter emblemático das peças que está em causa
finais do séc. XVIII nos conduz mais directamente à
e não tanto a valia histórica, plástica ou etnográfica. O gosto pelo exótico que se
probabilidade de ter existido no entorno do mosteiro
vem mantendo ao longo dos tempos e que foi esfriado com a Inquisição, que abolia
uma manufactura de algodão e/ou de estamparia, tão
não só os distintos credos como as suas manifestações sensíveis, explica também o
importante ou inovadora que teve o privilégio de ter
sucesso desta arte têxtil. Corresponde a uma miscigenação de motivos decorativos
sido visitada pela rainha.
europeus, islâmicos e indianos, mas também ao apelo pelo diferente que calou bem
A tecelagem de linho e de lã constituía uma
fundo no cariz voluptuoso do português, que continua a eleger peças de acentuado
obrigatória actividade monacal, destinada à execução
valor étnico no interior das suas casas como uma moda cultural que permanece. |
dos têxteis necessários para uso da indumentária e
das alfaias religiosas. Deste modo, uma lençaria não
representava uma excentricidade.
É plausível que os algodões fossem gravados em
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Madalena Braz Teixeira Directora do Museu Nacional do Traje, Lisboa. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier PAULA REGO
José Sousa Machado | José Cabrita Saraiva [Jornal Sol]
ENTREVISTA COM PAULA REGO
A Nossa
Senhora
é a minha
neta
A propósito da exposição retrospectiva que acaba de ser inaugurada no
museu Reina Sofia, de Madrid, visitámos Paula rego no seu atelier londrino
e conversámos sobre pintura e sobre a vida, sobre tudo e sobre nada.
Artes & Leilões – Como está organizada a sua
A&L – Seleccionou as obras que estão expostas em
exposição no Reina Sofia e porque é que a realiza
conjunto com Marco Livingstone?
em Espanha agora? A Paula é conhecidíssima em
Paula Rego – Sim.
Londres, em Portugal, mas, em Espanha, ainda não
A&L – Expõe algumas peças relevantes ou
alcançou uma projecção equivalente.
emblemáticas do seu percurso que queira destacar?
Paula Rego – Não, eu em Espanha só expus…na
Paula Rego – Foi feita uma selecção brutal, porque ao
Marlborough; expus os meus quadros sobre o aborto,
longo de todos estes anos eu fiz muitas coisas, não é
mas isso não foi uma coisa pública.
verdade?
A&L – É, então, a primeira vez que tem uma
A&L – Pode destacar algumas das obras?
exposição com esta envergadura em Madrid…
Paula Rego – Por exemplo, vão construir uma capela
Paula Rego – É uma retrospectiva.
com as minhas avestruzes dançarinas, que são da
A&L – Cobre toda a sua carreira artística?
Saatchi; também lá estarão Os cães de Barcelona, entre
Paula Rego – Desde 1952, para já…
outros.
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Dossier PAULA REGO a nossa senhora é a minha neta
A&L – E as Vivian Girls?
Madrid…
Paula Rego – Só lá estarão dois quadros dessa série.
Paula Rego – Pois, em Espanha o Reina Sofia é um museu importante, não é? E o
A&L – Mas também expõe as colagens anteriores?
Prado é, do meu ponto de vista, o melhor museu do mundo. Do que eu mais gosto na
Paula Rego – De colagens, tem os Cães de Barcelona,
vida é visitar o Prado. Também por isso tenho tanto respeito por Espanha e gosto tanto
tem um outro quadro que pertence à Tate, que é Os
de visitar Madrid. É fantástico aquele museu…vou lá sempre com gosto, ver aqueles
bombeiros de Alijó e, ainda, O regicida… E mais alguns
santos e o Zurbaran. Também gosto muito da colecção que tem de pintura italiana, os
outros.
Botticelli… extraordinário! Têm um Bosch, têm tudo.
A&L – Expõe obras inéditas?
A&L – É o museu do mundo que tem mais obras de Bosch, mas também de
Paula Rego – Sim, de toda a minha última exposição
Velásquez.
de Londres, por exemplo, estão bastantes obras. Acho
Paula Rego – Desse nem se fala. Têm sempre uma selecção muito rigorosa e, depois,
que pouca gente conhece esta exposição…Para além
salas e salas de El Greco. Mas gosto sobretudo de ir lá ver pintura espanhola, do Ribera,
disso exponho bastantes desenhos, a série sobre a
por exemplo, que tanto aprecio. Até parece que nasci lá.
Misericórdia, que são desenhos que eu fiz sobre a idade,
A&L – Sente grande empatia ou afinidade com Espanha?
e gravuras, as Nursery Rhymes…Tem um pouco de tudo.
Paula Rego – Não sei se é afinidade ou empatia, mas gosto muito, porque fui criada
A&L – É uma exposição grande, em termos de
com aquilo, desde pequena. Cresci acompanhada por dois artistas que eram o Goya e
dimensão?
o Gustave Dorê, que era ilustrador. O meu pai tinha livros com gravuras destes artistas
Paula Rego – Pois é. Espero que caiba tudo lá.
e metia-me medo com o Inferno de Dante. Do Goya, tinha os Desastres da Guerra e
A&L – Há pouco disse que teve de fazer uma selecção
os Disparates, e o Dorê ilustrou tudo o que havia para ilustrar…os contos do Perrault,
imensa. Tem uma estimativa de quantas obras já fez
o Capuchinho Vermelho, por exemplo. Mas o que eu mais gostava era o Inferno de
até hoje? Quanto a desenhos, acho que é incontável
Dante ilustrado pelo Dorê. Em dias especiais eu sentava-me ao pé do meu pai e ele
mas, por exemplo, telas?
abria o livro e eu sentia muito medo; ver os homens todos gelados, pendurados em
Paula Rego – Eu tenho fotografados dois mil e tal
mastros… era uma festa, eu gostava muito e tinha muito medo ao mesmo tempo. Eu
desenhos. Quanto a quadros não sei quantos são, nunca
pintei um quadro sobre isso, chamado Fisherman, com o meu pai a mostrar-me esse
os contei…
livro e a pescar no Cabo da Roca. É o meu último tríptico, que esteve na exposição da
A&L – E quanto tempo demorou a organizar esta
Marborough e vai estar também na exposição do Reina Sofia.
exposição?
A&L – A sua obra tem vindo a conquistar muita notoriedade nos leilões da
Paula Rego – Bastante tempo. Isto foi combinado há
Christie’s e da Sotheby’s. Estava à espera deste súbito interesse pela sua obra?
cerca de dois anos. Desde então temos tido um trabalho
Paula Rego – Esse interesse que refere não foi assim tão repentino. Eu já tenho 72
incrível.
anos de idade. Já trabalho há muitos anos. Esta exposição abarca 52 anos de trabalho…
A&L – Quantas peças vão estar expostas na exposição?
existem até épocas da minha vida nas quais já nem me lembro o que fiz. E nem sei
Paula Rego – Quadros… não sei bem, mas serão entre
onde estão, pelo menos, metade dos meus trabalhos. Andam dispersos por Portugal.
oitenta e noventa. Mas ainda há que juntar as gravuras
Vou ter de encontrá-los. Há coisas que fiz e nunca mais vi. Foram vendidas pelo Pereira
e desenhos, que são muitos. Eles lá no museu têm listas
Coutinho, que não me disse onde elas estavam e não deixou registo nenhum delas.
detalhadas. São muito simpáticos… há um arquitecto, o
Tenho-me visto grega à procura de coisas antigas minhas. Encontrei o Regicida, por
Marco Corrales, que é fantástico, desenhou o espaço da
exemplo, através de pessoas amigas. Se alguém souber do paradeiro de quadros meus,
exposição…
por favor informe-me.
A&L – Desenhou a arquitectura de espaço?
A&L – A equipa do Reina Sofia que preparou esta exposição não conseguiu
Paula Rego – Sim, redesenhou o espaço todo, porque a
descobrir quadros seus?
sala é gigantesca e tivemos que a dividir para organizar
Paula Rego – Como é que eles podiam fazê-lo se não conhecem Portugal? Esse trabalho
as coisas. A exposição realiza-se numa extensão do
tem de ser feito por mim, com os meus contactos. Nem sequer o Marco tem contactos
Museu Reina Sofia, que é um recinto maior.
em Portugal para executar essa tarefa.
A&L – Será com certeza uma importante exposição
A&L – Foi sobretudo em Portugal que a Paula perdeu o rasto das obras mais antigas?
e um cartão de visita invejável para a sua estreia em
Paula Rego – Sim. Mas há também pessoas que não querem dizer que têm quadros
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meus. É esquisito, não acha? Esse é um assunto a que terei de voltar quando organizar
Paula Rego – O museu deve ser extraordinário. Deve
o catalogue raisonée das minhas pinturas. Eu tenho um das minhas gravuras que
ser muito diferente dos museus ocidentais, que deixam
entretanto já está desactualizado porque fiz muitas mais desde então.
imenso espaço vazio à volta dos quadros.
A&L – Qual é o papel da mulher na sua obra? A condição feminina é um elemento
A&L – Quando visitei o Museu Tetreakov, há já uns
preponderante e cada vez mais central na sua obra.
anos, estava lá uma exposição de obras desde os
Paula Rego – Sempre foi.
primeiros construtivistas até aos anos 60, mostrando o
A&L – É uma atitude um pouco feminista, não?
gesto a ser moldado para propaganda do regime, num
Paula Rego – Até bastante. Pois é. As histórias que eu conto, o assunto, são histórias
realismo panfletário…
contadas a partir da experiência de uma mulher. Só sei contar coisas do meu ponto de
Paula Rego – Que coisa extraordinária. É uma pena não
vista. Acho muito difícil pôr-me na pele de um homem ou de um bicho. É claro que uso
termos a possibilidade de ver com mais frequência essas
uma linguagem metafórica; os bichos personificam pessoas, são sempre pessoas.
coisas, nem a arte nazi.
A&L – Nas suas obras há uma extrema identificação entre as pessoas e os bichos,
A&L – Até parece que estamos perante obras num
ao ponto de podermos fazer aquele jogo em que cada pessoa se representa como
estilo realista e fantástico, ao mesmo tempo, só que
sendo um bicho, o animal com que mais se identifica.
com uma carga muito ideológica…
Paula Rego – Nesse caso, com que bicho se identifica você?
Paula Rego – Mas o realismo é sempre um pouco assim,
A&L – Com um cágado, mas preferia ser um macaco.
não é? Esse tipo de arte política, de propaganda dos
Paula Rego – Ai sim, isso é muito engraçado. Havia um actor português, o Ribeirinho,
regimes totalitários, embora não seja aceitável no que
suponho, que também se parecia com um cágado.
representa, deve ser vista. Toda a arte é assim. Em certas
A&L – E a Paula, com que animal se identifica?
alturas, certas coisas tornam-se impopulares e escondem-
Paula Rego – Eu gosto do cão, mas o bicho com que mais me identifico é o porco.
nas nos armazéns. É uma pena… Lá em Portugal
Mas, está claro, não é um bicho muito simpático. Refiro-me aqueles porcos do Alentejo,
também há muitas coisas do séc. XIX que não estão à
pretos, que têm pêlos bicudos. Eu gosto de todos os porcos.
mostra.
A&L – Não é propriamente um animal para se ter em casa…
A&L – Se calhar nós, portugueses, também não
Paula Rego. – Seria uma grande balbúrdia
valorizamos a nossa própria cultura, não é?
A&L – A exposição do Reina Sofia vai ter itinerância? Paris, Moscovo…
Paula Rego – Isso é uma pena, é uma parte da memória
Paula Rego – Não, deve haver aí um engano. A minha exposição de gravuras que
que se perde, mas também uma maneira de fazer arte.
agora anda a viajar pelo mundo é que vai a São Petersburgo. Esteve recentemente em
Por exemplo, há poucas coisas do Columbano expostas
Birmingham. Mas esse é outro projecto. Esta exposição vai viajar até Washington, ao
e poucos desenhos - que eu adoro - do irmão, do Rafael.
The National Museum for Women in the Arts.
Agrada-me aquela vitalidade e sentido de humor que é
A&L – A Paula conhece São Petersburgo?
tão nosso.
Paula Rego – Não, ainda não. E você já lá foi?
A&L – A Paula envolve as pessoas que lhe são
A&L – Sim, já.
próximas na elaboração dos seus quadros. De certa
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80
Tríptico | “Ler o Inferno de Dante” | “Trindade” | “Pescador” | Papel s/ cartão | 180 cm x 120 cm
forma, as suas pinturas são teatrinhos, são quadros vivos, à maneira daqueles jogos
A&L – Quando se olha para estes seus desenhos
de salão do final do século XIX…
percebe-se que a Paula Rego é uma desenhadora
Paula Rego – Sim, toda a gente que conheço, as minhas netas, etc., têm de posar para
compulsiva.
mim. A Nossa Senhora, por exemplo, é a minha neta.
Paula Rego – Não desenho fora do atelier. É muito raro
A&L – É como se estivesse a criar histórias dentro de histórias.
isso acontecer. Certa vez em que precisava de fazer
Paula Rego – Sim, claro, mas elas têm de estar quietinhas. Mas eu pago-lhes. Já todas
uma série de pinheiros todos torcidos, tive de ir para o
elas experimentaram posar para mim, menos a que tem quatro anos, que ainda é muito
Guincho desenhar as árvores. Ou seja, se para contar
irrequieta. Às vezes, aos domingos, almoçamos todos juntos e depois do almoço as
uma história necessito de qualquer coisa que não
pessoas mascaram-se como quiserem. Eu tenho caixas com máscaras, fantasias, fatos
conheço, vou ao lugar onde ela se encontra e copio-a.
espanhóis, de flamengo. As minhas netas dançam, recitam e fazem coisas para nós
Mas não sou uma pessoa que esteja sempre com livros
vermos. Só que aí eu não dirijo as brincadeiras. É mais ou menos a mesma coisa que se
de esboços a desenhar.
passa com as minhas pinturas. O meu atelier é um quarto de brinquedos que nem sempre
A&L – Quando há pouco falámos do Pinóquio, da
é divertido. Também tem coisas que fazem doer. Aquele lado da injecção que faz doer.
Branca de Neve, dos contos do Perrot, etc, associando-
A&L – Quando fala de injecção que faz doer, refere-se ao tempo de gestação dos
os às suas histórias, vem-me sempre à ideia um livro
quadros, quando as coisas ainda não estão claras?
intitulado Psicanálise dos Contos de Fadas, do Bruno
Paula Rego – Refiro-me à necessidade de disciplina, de desenvolver hábitos regulares de
Bethleim.
trabalho. O hábito e a disciplina são muito importantes para quem faz bonecos. Se não
Paula Rego –É um livro importante, que eu já li há
se pinta durante muito tempo, perde-se a mão para o desenho.
muitos, muitos anos.
A&L – Continua a manter uma regularidade de trabalho diária?
A&L – A Paula fez psicanálise?
Paula Rego –Sim, trabalho todos os dias da semana, de segunda a domingo. Gosto
Paula Rego – Fiz psicoterapia jungiana. É um pouco
muito de desenhar, de pegar num lápis, num crayon, ou num pastel e desenhar uma
diferente.
figura, sobretudo gosto de desenhar à vista, uma coisa que tenho à minha frente, e
A&L – E isso foi de algum modo decisivo na sua
sentir a surpresa de conseguir fazer uma coisa. Sabe que conseguir fazer uma coisa que
pintura?
está ali à nossa frente é muito difícil, mas também é muito interessante.
Paula Rego – Eu acho que desenvolveu ou reforçou o
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Dossier PAULA REGO a nossa senhora é a minha neta
meu interesse nas histórias “ditas” de fadas que são, finalmente, contos tradicionais
pais não lhes batiam. Não tem nada de extraordinário…
bastante duros. Leram, por acaso, os nossos (portugueses) contos tradicionais, reunidos
é a raça humana, raça humana, raça humana… as
pelo Leite de Vasconcelos? Contam coisas duríssimas e terríveis. Portanto, a psicoterapia
mulheres também fazem muitas maldades.
desenvolveu a minha curiosidade em reler esses contos, porque de facto eu sempre
A&L – De que é que mais gosta em Portugal?
gostei de ouvir essas histórias. Mas, depois, começamos a fazer arte – e fazer arte é a
Paula Rego – Quando chego a Portugal demoro sempre
pior coisa que há, não é verdade? – e foi por essa via que consegui recuperar o meu
muito tempo a reconhecer o cheiro das coisas. É sempre
interesse inicial por esse universo fantástico. Comecei pelos portugueses, que são de
um choque. É-me muito difícil fazer seja o que for em
uma violência e crueldade espantosas. Gostava de ilustrar os mais terríveis contos…
Portugal. É-me mais fácil trazer as coisas de lá para cá e
talvez ainda tenha tempo para isso, para desenhar a partir dos mais terríveis contos
fazê-las aqui Até pensei em fazer um pequeno atelier na
tradicionais portugueses.
minha casa do Estoril. E nunca consegui, nunca consegui.
Todos os contos se parecem, embora variem de país para país. Nós, por exemplo, temos
A&L – Mudando de assunto, o que pretende expor no
muitas histórias onde aparecem santos. Os contos portugueses são mais estranhos do
seu futuro museu que vai ser construído em Cascais?
que os dos outros países.
Paula Rego – Vou doar ao museu todas as minhas
A&L – Estranhos, como?
gravuras, um exemplar de cada uma delas. E também
Paula Rego – Por exemplo, uma mulher vivia num bosque com o marido que era
alguns desenhos seleccionados. Para além disso tenho
lenhador e muito pobre… um dia em que não tinha nada para lhe dar para comer,
quadros e coisas minhas que ficarão lá guardadas, em
cortou um seio e cozinhou-o para o marido que lhe disse ; “Ah, está tão bom!” Os filhos,
regime de depósito, e também vamos ter uma sala de
claro está, não comeram nada. No dia seguinte não havia outra vez nada para o jantar
exposições temporárias, onde gostaria de mostrar essas
e a mulher cortou o outro seio e a história repetiu-se. Guisou-o e deu-o ao marido que
coisas que não se mostram, coisas oriundas desses
ficou todo contente. No terceiro dia continuavam sem ter nada para o jantar e o marido
sítios impopulares, de que falávamos há pouco. Gostava
pôs-se, como de costume, a refilar. Disse-lhe ela, então: “Olha, já não tenho mais nada
de fazer coisas que normalmente não se vêem, como
para te dar.” Foi só então que ele reparou que ela estava cheia de sangue e perguntou-
ilustração, bonecos, desenho, arte dos prisioneiros, arte
lhe: “Mas o que é que tu tens?” “Cortei os seios, para tu teres o que comer”, retorquiu
das pessoas que estão internadas… mas que agora já é
a mulher. “Mas então o que é que hoje havemos de comer?”, indagou o marido,
difícil encontrar porque estão muito drogadas.
prosseguindo assim: “Temos de começar a comer as crianças.” É nesse momento que a
A&L – Considera que há muito embuste na arte
história realmente começa…uma história tipicamente portuguesa.
contemporânea?
A&L – Nos seus quadros, a mulher é apresentada como heroína e os homens ou são
Paula Rego – Não, acho que não, não há mentira. É
insignificantes ou fazem os outros sofrer…
difícil saber uma coisa dessas, porque na arte há sempre
Paula Rego – Não, de todo. Não fazem as pessoas sofrer. Eles às vezes até se mascaram
uma transformação e as coisas deixam de ser o que
de mulher.
eram e passam sempre a ser outra coisa... Pessoalmente
A&L – Mas há, pelo menos, uma desproporção na escala com que são
interessa-me mais a arte feita à mão. Claro que adoro
representados. As mulheres enormes, às vezes até acumulando os papéis
cinema, adoro o Almodôvar, o Del Toro; gosto mais de
geralmente atribuídos às mulheres e aqueles que são específicos dos homens, e
ver filmes do que ver vídeos de arte. É uma chatice, tanto
os indivíduos do sexo masculino retratados numa dimensão muito menor, quase
tempo às escuras. Não é uma coisa que eu gostasse de
inexpressivos e sem nenhuma função de destaque…
fazer. Tenho amigos, como o João Penalva, que admiro
Paula Rego – Sim, claro, embora agora faça menos isso. Eu não mostro o homem como
muito, e que gostam de fazer essas coisas. Eu não sei
sendo mau. Até gostava, mas não sou capaz. A maldade no homem é a coisa mais
fazê-las. É como o Bill Viola, que dizem que é muito
vulgar do mundo.
religioso e tudo o mais, mas eu prefiro a Anunciação do
A&L – Os assuntos que escolhe para as suas pinturas são quase sempre problemas
Botticelli. |
muito actuais; a violência sobre as mulheres, os miúdos maltratados, violados, etc.
Interessa-lhe reflectir e dar a ver a realidade e a violência do mundo actual?
Paula Rego – No fundo é isso que me interessa. Os meninos da Casa Pia, ou os dos
Salesianos que, apesar de tudo, tinham a vantagem de ser de boas famílias, porque os
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Nota final: Quando convidei a Paula Rego para vir a Lisboa no dia de relançamento da revista Artes & Leilões, disseme que não podia pois estaria em Madrid a montar a exposição do Reina Sofia, mas que se sentia bem representada
pelo seu embaixador plenipotenciário. Perguntei-lhe quem era ele. É o macaco, ou um qualquer macaco imaginário
que por lá circule.
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier PAULA REGO
ENTREVISTA
Crítico e historiador de arte,
Marco Livingstone
é o comissário da retrospectiva
de Paula Rego no Reina Sofia
que decorre até 31 de Dezembro.
Paula Rego |“Cães vadios (Os Cães de Barcelona)”, 1965 | Colagem e óleo sobre tela | 160 x 185 cm | Colecção João Rendeiro
Marco
Livingstone
Sandra Vieira Jürgens
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Paula Rego | “O Macaco Vermelho bate na Mulher”, 1981 | Acrílico sobre papel |
Paula Rego | “A Pequena Assassina”,
Colecção da artista
1987 | Acrílico sobre papel montado em
tela | 150 x 150 cm |
Colecção particular, Londres
A&L: Em que contexto tomou contacto com a obra de Paula Rego?
de revelar conexões e continuidades inesperadas no
Marco Livingstone: Fiquei a conhecer as pinturas de Paula Rego, e a própria
âmbito daquilo que superficialmente podem parecer
artista, quando esta começou a expor na Edward Totah Gallery, em Londres,
grandes alterações de rumo na sua abordagem.
em 1982. Anteriormente tinha realizado apenas uma exposição individual em
A&L: Como estará organizada a mostra no Reina
Inglaterra, embora já fosse muito conhecida e admirada em Portugal.
Sofia?
A&L: O que representa comissariar uma exposição retrospectiva de Paula Rego?
Marco Livingstone: Estamos a trabalhar nesta
Marco Livingstone: Antes de me tornar curador independente, em 1986, já tinha
exposição desde Novembro de 2005. Pode parecer
trabalhado durante dez anos em museus. Embora trabalhar como freelancer se
muito tempo, mas é um período efectivamente curto
possa reflectir numa existência precária, possui a grande vantagem de me dar
para um projecto desta dimensão, principalmente
liberdade para poder trabalhar em contextos e situações diversos, e com artistas
pelas dificuldades que surgem quando se trata
que admiro. A Paula já tinha iniciado contactos com o Museu Reina Sofia sobre a
de encontrar algumas das obras e de garantir um
realização de uma grande retrospectiva da sua obra, quando me convidou para
tão grande número de empréstimos. A Paula e
comissariá-la como independente. Senti-me muito honrado pela confiança que
eu trabalhámos juntos na selecção das obras, em
depositou em mim e obviamente agarrei esta oportunidade, sobretudo porque
colaboração permanente com Lucia Ybarra, do
admiro a sua obra há muito tempo. Comissariar esta exposição é um trabalho de
departamento de exposições do museu, que tem sido
grande responsabilidade, pois sei o quanto é importante para a Paula mostrar o
a responsável por toda a coordenação.
seu trabalho com tanta profundidade em Espanha, por razões culturais e também
A&L: Qual foi o critério que presidiu à sua
pela grande importância que a arte espanhola, especialmente de Goya, teve no
concepção? O critério é cronológico, abarcando
desenrolar do seu trabalho.
diferentes períodos da obra de Paula Rego? Ou
A&L: Nesta exposição retrospectiva irá experimentar uma nova abordagem à
existe uma ideia em torno da qual se estrutura a
obra de Paula Rego?
exposição?
Marco Livingstone: Esta será de longe a maior e a mais exaustiva exposição
Marco Livingstone: A exposição desenvolver-se-
jamais consagrada à obra da Paula, com cerca de 200 pinturas, desenhos,
á mais ou menos cronologicamente nas galerias
gravuras e litografias, abrangendo um período superior a 50 anos. Realçaremos
(salas), e também no catálogo, permitindo ao
todas as principais séries de obras que produziu desde que era estudante na
público compreender o modo como as ideias, os
Slade School of Fine Art em Londres no princípio dos anos 50, e mostrá-las-emos
temas e as técnicas evoluíram na obra da Paula ao
numa ordem mais ou menos cronológica. É uma maneira simples de dar sentido
longo dos anos. Existem tantos níveis na sua arte
às múltiplas mudanças ocorridas na sua produção artística ao longo dos anos, e
que nos pareceu preferível não impor uma direcção
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Paula Rego | “A Família”, 1988 | Acrílico sobre papel montado em tela | 213,4 x 213,4
Paula Rego | “Guerra”, 2003 | Pastel
cm | The Saatchi Gallery, Londres
sobre papel montado em alumínio | 160
x 120 cm | TATE, Inglaterra
curatorial mas deixar que a obra fale por si.
profundamente a sensibilidade de muitos espanhóis, tanto dos homens como das
A&L: Por que motivo surge esta exposição neste
mulheres. Para muita gente, o confronto com esta arte tão pessoal, tão intensa e
momento?
profundamente vivida ocasionou um encontro que mudou a sua própria vida. Estou
Marco Livingstone: Já deveria ter sido feita há
certo de que isso ocorrerá também com os espanhóis.
muito tempo! Ainda não houve uma exposição desta
A&L: Seria pertinente trazer esta exposição a Portugal?
dimensão no Reino Unido, onde a Paula produziu
Marco Livingstone: Têm havido óptimas exposições da obra de Paula Rego
a maior parte da sua pintura. A última exposição
em Portugal, particularmente a extraordinária mostra no Museu Serralves, no
deste género realizada na Inglaterra ocorreu na
Porto, em 2004, que integrou a sua produção artística desde 1997. A sua última
Tate Liverpool há exactamente dez anos, e a Paula
grande retrospectiva, que foi inicialmente mostrada na Tate Liverpool em 1997,
produziu entretanto um número extraordinário de
transitou imediatamente para o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, onde foi
pinturas, incluindo algumas das suas melhores obras.
magnificamente recebida. A Fundação Calouste Gulbenkian, que tem dado um
A&L: Qual será a importância desta mostra de
grande apoio à Paula ao longo dos anos, possui quadros dela na sua colecção
Paula Rego em Madrid? Sendo o seu trabalho já
permanente e já realizou diversas exposições da sua obra. Por isso achámos que
muito conhecido em Portugal e Inglaterra, será esta
não era necessário trazer esta exposição a Portugal, e também porque os seus fãs
uma oportunidade de reforçar a sua visibilidade
portugueses poderão facilmente deslocar-se ao Reina Sofia - um bom pretexto para
noutros países europeus? Qual espera ser a reacção
ir a Madrid!
do público espanhol?
A&L: Tem seguido o percurso de outros artistas portugueses?
Marco Livingstone: Uma exposição tão ambiciosa
Marco Livingstone: Nos últimos cem anos existiram alguns artistas portugueses de
e exaustiva como esta dará certamente impacto ao
grande mérito, incluindo alguns contemporâneos que são amigos e conhecidos da
reconhecimento internacional da obra da Paula, e
Paula Rego. Mas, sem querer diminuir a sua relevância, penso que a Paula Rego se
isso conseguir-se-á também através do catálogo, que
situa num plano singular, sendo uma das artistas mais imaginativas, talentosas e
chegará a um grande número de pessoas que não
influentes a trabalhar hoje no mundo. |
poderão ver a exposição pessoalmente. Mas, acima
de tudo, é uma oportunidade para a obra da Paula
ser muito mais apreciada em Espanha. Porque, no
fundo, as suas memórias de infância sob a ditadura
fascista em Portugal, e a sua vasta experiência
enquanto mulher numa sociedade latina, devem tocar
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Marco Livingstone Autor de referência no estudo da Pop Art, organizou várias retrospectivas itinerantes e assinou uma das obras mais destacadas
sobre o movimento - a Pop Art: a continuing History. Ao longo da sua carreira escreveu sobre o trabalho de numerosos artistas, entre os quais
David Hockney, R.B. Kitaj, Allen Jones, Peter Phillips, Jim Dine, Tom Wesselmann, George Segal and Duane Michals. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Dossier PAULA REGO
José Sousa Machado
ENTREVISTA com Eduardo souto moura
não há arte
sem delito
Claríssimo no discurso, poético na forma,
desconcertante nas ideias, o arquitecto
Eduardo Souto Moura conversou connosco
acerca do projecto da Casa das Histórias
e dos Desenhos Paula Rego, que será construído
em Cascais, na antiga Parada.
Arte & Leilões – Como entende a relação entre a arquitectura e as artes plásticas,
nomeadamente no que se refere à concepção de espaços expositivos?
E.Souto Moura – Como uma consequência do tipo de afinidades entre as duas
disciplinas, cujas fronteiras são cada vez mais ténues. Dizer que isto é pintura, ou que
isto é escultura, que o Cabrita Reis é escultor ou é pintor, ou que o Ângelo é escultor ou
é pintor faz cada vez menos sentido. E isto não acontece apenas no domínio das artes,
mas também no da ciência, quando parte da investigação da biologia é desenvolvida
pela física, a da física pela química, etc.
A arquitectura é cada vez mais pictórica e os pintores cada vez se sentem mais
próximos da arquitectura. Quando conheci o Donald Judd, ele disse-me que ia deixar
de ser artista plástico e queria ser arquitecto porque precisava do programa do cliente;
já não aguentava mais a angústia da posição tradicional do artista que só é confrontado
consigo, sem feedback, nem julgamento do exterior.
Portanto, o museu é, hoje em dia, cada vez mais uma obra de arte autónoma, na
mesma medida em que as obras de arte que se colocam nos museus estão cada vez
mais perto da arquitectura, como as instalações que, muitas vezes, são fragmentos de
arquitecturas. Muitas vezes os campos confundem-se e, também por isso, os artistas
não querem que os arquitectos assumam um grande protagonismo, porque isso pode
abalá-los. Repare como cada vez mais, na construção dos museus e galerias, são
escolhidas estruturas industriais, porque estas construções não têm intencionalidade.
Quem as concebe pensa unicamente que têm de ter quatro paredes e um tecto.
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A&L – Deduzo do que afirma que o museu que
de altura, onde vão decorrer as exposições temporárias. Pode-se subir e descer o tecto
desenhou para a Paula Rego tem uma forte marca
e construir os cenários que se quiser. Se, à partida, não tivermos como base de trabalho
autoral…
uma colecção definida, é muito difícil decidir sobre a forma que o museu vai assumir.
E. Souto Moura – Claro que sim, porque sou
Neste caso, considerei necessário adaptar os espaços à escala das obras de arte que
arquitecto e a Paula Rego escolheu-me a mim - e não
estarão expostas, porque há obras que precisam de um pé direito de quatro metros,
outro arquitecto – para projectar este museu, e eu
outras de seis metros, etc. Tentei responder ao leque mais plural possível.
não me posso limitar a fazer um barracão cinzento.
Acho que a Paula Rego foi inteligente, a começar pela escolha do nome do museu
Tentei ser comedido nas minhas opções, pois sei
– Casa das Histórias e dos Desenhos Paula Rego -, não só porque ela é uma artista
que há obras que exigem maior intervenção autoral
que está pujante, está em plena actividade, mas também porque pretende que este
e outras menos, há certas obras mais densas do que
museu seja um laboratório, uma oficina de experimentação artística, com crianças
outras. Um museu pode e deve ter impacto exterior
ou seja lá quem for.
e beleza, mas deve também definir a sua identidade
Hoje em dia os museus não são apenas locais onde se visitam exposições, mas
- as salas, os espaços – em termos não concorrenciais
também lugares de convívio e ponto de encontro entre pessoas, com livrarias, sítios de
com o que lá se expõe. Deixei o espaço ter alguma
lazer diversos, restaurantes, esplanadas… Procurei desenvolver esta faceta menos usual
neutralidade, usando a luz natural - abri janelas.
- há uns anos atrás isto teria sido considerado um pecado de “lesa majestade”.
A&L – Foi por considerar que este museu pretende
A&L – Este seu projecto estrutura-se a partir do diálogo com a obra da Paula Rego,
ser também um espaço cultural dinâmico e
por um lado, e com o meio ambiente, por outro, integrando o museu no meio
lúdico, ao invés da ideia tradicional que temos dos
ambiente envolvente e fazendo os módulos estruturantes do edifício funcionarem
museus, que optou por organizá-lo em módulos que
como negativo do mundo natural…
lhe conferem uma enorme polivalência?
E. Souto Moura– Eu acho que a arquitectura – e não só ela – é uma disciplina que
E. Souto Moura – Eu tentei que as formas e
não tem nada a ver com a natureza, antes pelo contrário. Enquanto que para os
volumes da arquitectura pudessem corresponder ao
clássicos, a perfeição consistia em os artistas imitarem a natureza, a modernidade,
dimensionamento do que julgo serem as obras da
de que um Almada ou um Rimbaud são exemplos, nasceu em ruptura com tudo
Paula Rego e do seu marido. Fundamentalmente, há
isto. Neste caso, a natureza é que tem de copiar a arte. Eu gosto mais das coisas
uma sala laboratório, que é uma sala com 10 metros
feitas pelo homem do que das coisas feitas por Deus… se Deus fez as uvas, o
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Dossier PAULA REGO NÃO HÁ ARTE SEM DELITO
homem fez o vinho, que é muito melhor, Deus fez as pedras, mas o homem fez
A&L – Este seu projecto de museu cita
a Acrópole. Ser arquitecto é, justamente, entender que a natureza é defeituosa.
implicitamente o Raul Lino…
Aceitei fazer aquele projecto porque acho que aquele sítio ficará melhor com uma
E. Souto Moura – Eu achei que o museu devia ser
intervenção de arquitectura. Se ficar pior, o projecto falhou.
fragmentado, devia ter escalas diferentes. Quando vi
Também me parece que Braga ficou muito melhor com aquele estádio instalado na
ali perto uma casa do Raul Lino, gostei da articulação
pedreira do que com a pedreira ao ar livre, parada. Quando o colectivo se apropria
de volumes, com hexágonos e torreões de diferentes
dos projectos é porque estes fazem sentido e então, nesse caso, o arquitecto fica
alturas. Ele resolvia-me a questão que tinha em mente
satisfeito com o que fez.
e, então, pus-me a estudar a sua obra, fazendo, como
A&L – Mas, em sua opinião, a própria topografia do terreno determinou a
de costume, exercícios de cópia, como fazíamos na
sua intervenção arquitectónica. Certos elementos naturais sugeriram-lhe
primeira classe. Faço sempre assim: ponho o livro à
apontamentos à maneira dos jardins japoneses.
frente e desenho até interiorizar o que ali está, até
E.Souto Moura – É que as coisas boas têm de ter vazios. Disse, com muita razão, o
que um dia me sai qualquer coisa do género, sem eu
Herberto Helder que: “É com o silêncio que se fazem as vozes”. E é com os vazios que
sequer pensar no assunto.
se faz a poesia. Se tudo estivesse perfeitamente encadeado não seria poesia; faltaria
Recentemente, comecei a fazer uma arquitectura
o ritmo, os espaços, a música. Os intervalos dos sons são tão ou mais importantes do
mais desarticulada talvez porque neste momento
que os próprios sons. Mas há uma coisa muito perigosa na arquitectura e, se calhar,
não existe nenhuma teoria que me satisfaça.
também na arte, que é o “bonito”… está muito próximo da elegância e da amabilidade.
Talvez por causa da idade, ou por nunca ter
E isso conduz facilmente ao facilitismo. A arte, por natureza, tem de ser contra-natura.
experimentado, comecei a interessar-me por
Não há arte sem delito.
arquitectos mais complexos, mais barrocos. Vivemos
A&L – A sua própria linguagem é muito poética. Preocupa-se com este tipo de
numa época sem ideologia. Hoje tudo é possível.
questões quando projecta?
Por exemplo, um bom arquitecto barroco sabia
E.Souto Moura – Não é consciente. A arquitectura, em minha opinião, não deve ser
o que era a contra-reforma e um arquitecto neo-
narrativa; quem quiser ter esse tipo de postura que vá para o cinema ou para a literatura.
clássico provavelmente seria panteísta, mas hoje,
A arquitectura é abstracta, rege-se por regras próprias que devem corresponder a uma
neste mundo plural, podemos ser tudo, sem nos
determinada intenção programática colectiva. A arquitectura é uma arte social.
comprometermos com nada. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
CRÍTICA
Gisela Leal
FRANÇOIS DUFRÊNE EM SERRALVES
O VERSO E O VERSO
#41
A 27 de Outubro de 1960, por proposta do crítico de arte Pierre Restany, oito
artistas assinam a “Declaração Constitutiva do Nouveau Réalisme” em casa de Yves
Klein. Um desses nomes (a par dos próprios Yves Kleins e Pierre Restany, Arman,
Raymond Hains, Martial Raysse, Daniel Spoerri, Jean Tinguely e Jacques Villeglé)
é o de François Dufrêne, que podemos actualmente visitar no Museu de Arte
Contemporânea de Serralves. Trata-se da primeira exposição retrospectiva realizada
fora de França de um artista cuja obra está sobretudo marcada pela superação dos
limites entre géneros artísticos.
A irreverência e o inconformismo foram o motor de um percurso que procurou
incessantemente desmontar a realidade e mostrar o seu verso. E se bem que o seu
nome não seja dos mais referenciados quando se fala do “Novo Realismo”, certo
parece ser que Dufrêne terá sido dos mais originais artistas franceses do pós-guerra
FRANÇOIS DUFRÊNE | ”Encore”, 1965 | Avesso de cartaz montado sobre tela | 130 x
195 cm | Colecção FRAC Bretagne Fotografia: Guy Jaumotte | © ADAGP, Paris, 2007.
a dedicar o seu trabalho à crítica da linguagem e à crítica sociológica. Numa França
pré-Maio de 68, um Dufrêne ainda adolescente aproxima-se de Isidore Isou e do
seu movimento letrista, onde desde logo inicia um convívio com nomes como Guy
Debord, dando os primeiros passos para a construção de um corpo de trabalho
singular.
Mais tarde, o manifesto dos “novos realistas” propõe um regresso ao real, por
oposição às correntes institucionalizadas à época. E são precisamente as “novas
abordagens perceptivas do real” (definidas no manifesto) e o cruzamento das
gramáticas particulares de práticas artísticas diversas que trarão a Dufrêne a
sua singularidade artística. “Músico da linguagem”, serão os jogos de subversão
- da palavra e da imagem - a servi-lo na exploração de “novas possibilidades de
construção de significantes que resistem à convencionalidade dos seus possíveis
significados”, como refere João Fernandes, comissário da exposição juntamente
com Guy Schraenen.
François Dufrêne aproxima-se e simultaneamente afasta-se de cada um dos
FRANÇOIS DUFRÊNE | “Bobino”, 1973 | Avesso de cartaz montado sobre tela | 55 x 81
cm | Colecção Privada | Fotografia: Marc Domage
movimentos a que se foi associando: ao mesmo tempo que recolhia cartazes das
ruas de Paris com Raimond Hains ou Jacques Villeglé numa prática de “respigação”
das suas gravações sonoras - muito do trabalho de
e re-apropriação do real, Dufrêne ia mais longe e mostrava os avessos dos mesmos
Dufrêne ficou assente na performance e no registo
(os seus “dessous d’affiches”); ao mesmo tempo que procurava no contexto da
sonoro -, bem como variado material editado pelo
poesia sonora a subversão e re-utilização da palavra, Dufrêne experimentava os
artista (revistas, livros, cassetes). A presente exposição
limites físicos da poesia, criando o Crirythme [Gritoritmo]; até no filme Dufrêne
parece-nos, assim, querer fazer justiça a um nome
procurou o verso da imagem - em Trois Minutes en Vitesse pour Mettre à Jour
fundamental da arte contemporânea francesa no pós II
Quelques Dessous de Visions, Dufrêne mostra uma Paris reflectida.
Guerra Mundial, mais comummente associado à poesia
Em Serralves é agora apresentado um vasto conjunto de telas, dois filmes e algumas
sonora do que às artes visuais. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
CRÍTICA
NUNO CRESPO
ZONAS DE ESCULTURA
#41
O conceito de “escultura social”, cunhado por Beuys,
não é estranho a este modo de pensar, sobretudo por
dizer respeito não ao ponto de vista sobre a escultura
que a vê como um processo acabado ou um objecto,
mas antes como o colmatar de um processo dinâmico
e expansivo. Trata-se de uma relação que conhece
fundamentalmente três eixos: as obras, a cidade
e o público. Por isso, a própria história da cidade
e dos seus agentes não é um elemento estranho
aos processos que a cada dez anos são postos em
movimento. Se se trata, por um lado, de descobrir
novas linguagens escultóricas, também se trata, por
outro, de as colocar em confronto com o passado
dessa mesma cidade e com a própria história da
escultura.
Nesta edição, um dos projectos mais emblemáticos
Mark Wallinger | “Zone” | Fotografia: Roman Ostojic/sp 07.
é de Mark Wallinger (n. Reino Unido, 1959). Um
cordão praticamente invisível delimita uma zona da
Os trinta anos que decorreram desde a primeira edição do Münster Projectos
cidade de Münster: as questões que o seu projecto
de Escultura fazem prova de que o escultórico é um campo mutante que conhece
levanta prendem-se, naturalmente, com o impulso
múltiplas transformações e desenvolvimentos. O campo expandido que Rosalind
primordial de delimitar uma área no interior da qual
Krauss identificou parece dar agora lugar ao reconhecimento topográfico das
acontece a escultura e uma zona exterior a esse
diferentes zonas que o compõem. Os 34 projectos apresentados em Münster
gesto de delimitação. A invisibilidade da fronteira
não se destinam a fazer qualquer tipo de balanço ou a realizar o levantamento
que estabelece mostra a ineficácia das tentativas
das tendências da escultura contemporânea; o seu âmbito é o da detecção dos
de rigidamente determinar zonas de exclusão, de
diferentes modos de compreender o gesto escultórico. Em qualquer dos casos, o
contacto e permanência. A ocupação total que faz do
eixo não é localizado em nenhum tipo de linguagem, nem numa revisão histórica
espaço é simultaneamente invisível e, assim, consegue
dos diferentes estilos. O denominador comum é a utilização do espaço público
erigir um discurso estético-político sobre as fronteiras
que em nenhum dos casos conhece constrangimentos formais, materiais ou
entre os diferentes tempos, espaços e linguagens.
conceptuais.
Mas se a questão da relação da escultura com o
As esculturas espalhadas pelo tecido urbano revestem-se de um ímpeto
espaço público é central, também o é a relação com
sismográfico de descoberta das diferentes capacidades que cada uma delas
a história da cidade e a própria história da escultura.
possui de interagir e moldar o espaço que ocupa e que é sua condição. Trata-se
Guillaume Bijl (n. Bélgica, 1946) criou uma instalação
da exploração das qualidades do espaço público enquanto espaço expositivo e
que recupera a tradição das igrejas cristãs da cidade.
deste enquanto reflexo da vida pública e suas interacções. O pressuposto é que a
No interior do que parece ser uma escavação
utilização da esfera pública é sintomática das diferentes dinâmicas que apresenta.
arqueológica, o artista cria um trompe l’oeil que num
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crítica zonas de escultura
Bruce Nauman | “Square Depression“ | Fotografia: Arendt Mensing/sp 07.
Guillaume Bijl | “Archaeological Site (A Sorry-Installation)” | Fotografia: Roman
Mensign/sp 07.
registo quase surrealista faz surgir a igreja envolta numa espécie de chamas. Já Martha
na cidade, quer na própria convivência pública com o
Rosler (n. EUA, 1944) permutou certos símbolos (históricos e religiosos) da cidade,
deslocamento de perspectiva que Nauman opera numa
integrando-os noutros contextos e testando a sua validade iconográfica no interior
praça pública.
do discurso histórico local, o qual passa, inevitavelmente, pelas guerras mundiais,
É sem dúvida o grande acontecimento mundial da
pela Religião e pela própria história da Escultura. Mas o pendor histórico em Münster
escultura. Não só porque resiste ao tempo, mas também
tem o seu auge com a construção da pirâmide invertida de Bruce Nauman (n. EUA,
porque permite colocar em confronto o que se fazia e
1941), projectada em 1976 para aquele mesmo lugar. Além de ser uma intervenção
o que se faz, o que se pensava e o que se pensa. Um
emblemática, as suas consequências estão relacionadas com a própria validade de um
confronto destinado, não a validar determinados artistas,
projecto que é construído trinta anos depois. Os constrangimentos sociais, históricos,
circuitos ou tendências, mas a aprofundar o olhar sobre
artísticos e arquitectónicos não são os mesmos. Da sua rejeição ou integração
o sítio em que se desenvolve a Escultura e que as
depende a pertinência e actualidade de um pensamento que se vem afirmando quer
esculturas desenvolvem. |
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94
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
EXPOSIÇÕES
”UM ATLAS DE ACONTECIMENTOS /Plataforma 3/ o estado do Mundo” | Fundação
PAULO MENDES | Galeria REFLEXUS Arte Contemporânea |
Calouste Gulbenkian Lisboa | 6 OUT - 30 DEZ 07 | Sergio Vega | “Crocodilian
Porto | 21 SET - 3 NOV 07 | “S DE SAUDADE, RETRATOS DA VIDA PORTUGUESA”
Fantasies”, 2006 | Vista da instalação | Cortesia: Palais de Tokyo/Kleinefenn, Paris.
AUGUSTO ALVES DA SILVA | Galeria Fonseca Macedo | Ponta Delgada | Açores | 11 OUT - 27 NOV 07 |
JEAN-LUC MOULÈNE | Culturgest | Lisboa | 22 SET - 25 NOV 07 | “Documents/Chef Paris,
“Veado”, 2001 | c-print | 60 x 90 cM
11 Avril 1998”
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Quem é Quem na Arte Portuguesa? Todos sabemos ou julgamos saber. Quem Será Quem?
Não sabemos ainda, mas apostamos. Quer apostar connosco? A escolha é sua. O risco é seu.
Nós limitamo-nos a sugerir nomes: uns óbvios, outros menos.
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
QuemÉquem
Pedro cabrita reis
Lisboa, 1956
Fotografia: João Ferro Martins / PCR Studio
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
QuemSERÁquem
JOÃO SERRA
Lisboa, 1976
João Serra concluiu o Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co
em 2006 e é actualmente finalista do curso de Filosofia da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O artista desenvolve os seus projectos artísticos no domínio
da fotografia, com a apresentação de obras que exploram
a subtil fronteira existente entre as imagens e as coisas.
A fotografia que reproduzimos assinala esse seu interesse
e marca a sua distinção com os prémios BES Revelação e
Anteciparte, ambos em 2006. |
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Fotografia: Jed Graça.
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João Serra | “Sem Título”, 2006 | Fotografia a cor | impressão lambda | 120 x 156 cm.
A minha proposta é um convite
a uma reflexão acerca da ténue distância que
há entre as imagens e as coisas.
Interessava-me deixar emergir o potencial estético,
pictórico e escultórico do assunto, substituindo o olhar
quotidiano por um olhar que reconhecesse outro tipo de
valores. Ou seja, dando a ver o que toda a gente já viu,
a banalidade dos objectos, mas investindo-a de novas
possibilidades.
A fotografia tem sido o médium que permite dar conta
da posição dos objectos no aí do mundo, salvando-os do
seu carácter efémero. Mas mais do que isso, permite que
os objectos venham a ser de outro modo, pelo menos aos
olhos do espectador.
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
CRÓNICA
Jorge Barreto Xavier
NOMES INVISÍVEIS
Os nomes podem ser invisíveis pelas mais diversas razões. Nem sempre é o melhor, revelar certos nomes.
Melhor que permaneçam na sombra. Por outras vezes, vale a pena o ritual de os chamar. Falo, claro, de
pessoas, coisas, situações, relevantes para o domínio onde esta revista exerce o seu papel: a Cultura,
as Artes. Este espaço mensal pretende propor comentários sobre alguns temas/nomes, sendo que, por vezes,
há nomes que escondem nomes.
LEONOR ANTUES | ”UNCERTAINTY AND DELIGHT IN THE UNKNOWN (1)”, 2007 | VISTA DA INSTALAÇÃO | LONDRES
Internacionalização da Cultura Portuguesa
#41
1. Em Genève, Newark, Joanesburgo, Frankfurt ou
Caracas, Portugal está mais presente através dos
portugueses ditos “comuns”. Para certos portugueses
“cultos”, os portugueses “comuns” são uma espécie
de clube da terceira divisão: esforçados mas sem
relevância ou qualidade assinalável. Desprezíveis, até.
Apesar de haver, aproximadamente, cinco milhões de
portugueses espalhados pelo mundo, no fundo, onde
é que eles estão? Onde é que eles estão no nosso
quotidiano, no nosso imaginário? Numa pequena
gaveta colectiva onde se guarda a recordação dos
parentes de que não queremos falar aos amigos.
Muitos desses portugueses já se afirmam na “divisão
de honra” e na “primeira divisão”. Vai ser bonito de
ver, daqui uma geração ou duas, políticos, artistas,
empresários, a disputar espaço numa qualquer
fotografia, ao seu lado, em Paris, Sidney,
ou Luxemburgo. Nessa altura, haverá razão para eles
nos quererem na fotografia?
As solidariedades demoram gerações a construir
e a verdade é que uma linha prioritária de
internacionalização está nesse grupo assinalável
de portugueses. Ao tratamento envergonhado ou
mesmo agressivo do período do Estado Novo, seguiuse uma política pública de enquadramento, nesta III
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102
República. As chamadas “remessas dos imigrantes” já
Se se perguntar à Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, ao Instituto
tiveram um papel significativo na economia portuguesa
Camões, ao Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, ao ICEP, ou a outras
mas, nem essa ajuda ao desenvolvimento de quem saiu
estruturas públicas, qual o grau de articulação entre elas junto dos emigrantes, antevejo
por aqui não conseguir viver, comoveu.
que a Secretaria de Estado apoia a “baixa cultura”, o Camões a “alta cultura”, o IPAD
Falando ainda dos emigrantes da “3ª divisão”,
dirá que o seu caminho é o apoio ao Desenvolvimento, e o ICEP que o seu negócio é
como é que podem esquecer décadas de indiferença,
números.
ou mesmo políticas de desinvestimento, que têm
Claro que isto é uma caricatura. O que quero dizer é que é habitual não operar
levado, recentemente, ao fecho de consulados, à
articulações e potenciar intervenções. Ainda mais evidente será essa ausência de
limitação de apoio aos leitorados/leitores de português,
articulação se se perceber que há dezenas de municípios que promovem geminações e
à criação de escolas portuguesas, à falta de apoio ao
intercâmbios internacionais e que as Regiões Autónomas da Madeira e Açores também
funcionamento de aulas de português, à falta de apoio às
desenvolvem uma série de programas de interacção. Não defendo uma intervenção
suas actividades comunitárias, etc.? Como é que podem
unitária nem uma via única. É saudável e desejável uma intervenção plural, mesmo a
esquecer a ausência de organizações portuguesas da
nível público. Mas é difícil de perceber uma articulação muito deficiente ou nula em
área da cultura e da educação junto deles? Claro que há
objectivos que são (ou deveriam ser) comuns: a melhoria da percepção da cultura
outros que marcam presença: instituições ligadas à Igreja
portuguesa pelos emigrantes e seus descendentes; a aprendizagem do Português; o
Católica, instituições bancárias, o jornal A Bola.
suporte a projectos de portugueses nos países de residência.
LEONOR ANTUNES | ”THE SPACE OF THE WINDOW”, 2007 | VISTA DA INSTALAÇÃO | PARIS
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103
CRÓNICA NOMES INVISÍVEIS
Falo do espaço estrangeiro ocupado por emigrantes como território primeiro da
internacionalização da cultura portuguesa. Tanto as artes contemporâneas como os
#41
projectos de promoção do livro e da leitura, do património, da língua, podem ter
junto destes destinatários uma porta de entrada privilegiada.
Porque não terão eles direito ou poderão achar estranho receber Pedro Cabrita
3. De Junho a Setembro, na Smithsonian Institution,
Reis, Julião Sarmento, Ângela Ferreira? Claro que se tem de fazer um trabalho
em Washington, decorreu uma grande exposição
de preparação. Mas os portugueses de 2ª geração, de 3ª geração, os que agora
sobre o papel de Portugal no mundo nos séculos XVI
têm vinte anos e nasceram “lá”, não têm nostalgia de Amália ou do chouriço, da
e XVII, referida com orgulho em Portugal e
sardinha assada ou de Quim Barreiros. As suas referências culturais estão “aí”.
inaugurada pelo Presidente da República, Aníbal
O Portugal contemporâneo tem muito de modernidade, pode gerar símbolos fortes,
Cavaco Silva. Na primeira página do site do
também no sistema das artes. Será preciso trabalhar a sua recepção, certamente
Smithsonian, o relevo era dado a cinco outras
mais difícil que a do futebol e dos seus ídolos, mas necessária para a construção de
exposições, sendo necessário procurar em “more”
uma identidade portuguesa contemporânea na diáspora.
para lá chegar...
Ao lado destes portugueses “indiferenciados” tivemos sempre os outros: os filhos
Ocorreu-me a patética e repetida situação: cada
de boas famílias enviados a estudar nas universidades estrangeiras, os artistas
vez que, por exemplo, o Financial Times, o El País,
à procura do banho de cultura, os bolseiros da Gulbenkian, etc. Mas esses não
o Herald Tribune, o Le Figaro dedicam duas linhas
contam para o filme da mala de cartão. Nem os que, no fim dos anos 80 e nos anos
a Portugal, logo vêm as televisões debitar a nossa
90, beneficiaram do Programa Erasmus ou outros, do alargamento de circulação
“presença”. Veja-se a revoada de citações dos
de pessoas como consequência da nossa adesão à então Comunidade Económica
media nacionais do que dizia a comunicação social
Europeia, hoje União Europeia.
estrangeira sobre a situação do desaparecimento
de Maddie. Mais do que à situação da criança
desaparecida, dava-se relevo ao facto de se ser falado
#41
no “estrangeiro”. É preciso ir mais longe para perceber
o quanto se tem de percorrer em internacionalização?
2. Berlim e os artistas jovens portugueses que lá residem é o exemplo das
Quem realmente é cosmopolita, não tem de andar
dificuldades que Lisboa e Porto oferecem em muitos campos.
sempre a falar dos outros. Um cosmopolita pertence,
A internacionalização não tem de se fazer “lá fora”, pode ser feita “cá dentro”.
por natureza, ao mundo. É essa capacidade de
Mas nenhuma cidade portuguesa se internacionalizou, ainda, o suficiente para ser
estatuto próprio que falta conquistar como país
referência no domínio artístico: pense-se em Avignon, Kassel, Bilbao, só para referir
contemporâneo. Não queremos ser um “Allgarve”
cidades que no circuito internacional são conhecidas pelas artes.
qualquer (ou queremos?).
Lisboa e Porto perdem na comparação com Madrid ou Barcelona. Se pensarmos
Por isso, a afirmação de identidades é importante.
bem, porque é que o turismo vem a Lisboa e Porto? A colecção Berardo,
Não se trata de um lusitanismo ou nacionalismo
o Museu de Arte Antiga e o Museu do Chiado, versus Prado/Reina Sofia/Thyssen? A
passadista. Trata-se de salvaguardar o património
Fundação de Serralves e a Casa da Música versus MACBA/Museu Picasso/Fundação
e suportar a liberdade criativa contemporânea como
Miró/ La Caja/Gaudi/Tapiés ? E se formos até Valência e Bilbao...
acto de construção de nós relevantes da(s) rede(s)
Alugar casa e atelier em Berlim compensa mais do que fazê-lo em Lisboa. E a
global(ais).
comunidade artística internacional que aí se encontra permite uma circulação de
Sem uma clara definição de objectivos de
pessoas e ideias incomparavelmente superior.
internacionalização, de articulação de esforços
Em Lisboa, exterminam-se eventos de grande dimensão como mosquitos e
públicos e privados, será difícil. Há oportunidades,
pululam festivais pequeninos. De facto, não estamos no calendário internacional a
todos os dias, que raramente se repetirão. Outras
não ser marginalmente. E, ao longo de décadas, não soubemos criar espaço para
virão, mas, entretanto, aqueles com quem queremos
programas de referência, apesar de algumas iniciativas terem tido potencial para o
estar já terão avançado. O mundo não ficará à nossa
efeito. Fica-se a aguardar.
espera. |
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104
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
OPINIÃO
Nuno Crespo
JUÍZO ESTÉTICO OU JUÍZO POLÍTICO?
#41
Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura propícia a esta
reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade e legitimidade não por
razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na esfera política e são instrumentos
de intervenção social.
Documenta 12 | Museu Fridericianum, Kassel | © Fotografia: Julia Zimmermann / documenta GmbH
Simon Wachsmuth | “Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Plano do
filme | © Simon Wachsmuth
A modernidade trouxe consigo a prova de que as
sensíveis em que possamos inscrever quer as obras,
categorias estéticas são insuficientes para dar conta
quer a própria experiência estética.
da totalidade da produção artística. A proliferação de
As vanguardas artísticas, com as suas múltiplas
linguagens, meios e estilos criou uma enormidade de
transformações, operaram uma espécie de abismo
géneros e subgéneros artísticos que muitas das vezes
entre as obras produzidas pelos artistas e a
resistem ao mais tradicional pensamento estético.
percepção humana mais comum. Isto é, se até um
A estética, tal como a conhecemos, mostrou-se
determinado momento para a experiência estética
inoperante quando confrontada com criações que
bastava estar-se equipado com o aparelho perceptivo,
mais dizem respeito a uma leitura e interpretação do
passou-se a um paradigma em que à percepção tem
presente e da história do que à descoberta de lugares
de estar aliado um certo conhecimento histórico e
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105
digerir e mal consegue compreender. Que a
realidade parece estar para lá da nossa capacidade
em compreendê-la é o novo dado com que a arte do
nosso tempo tem de lidar e a expectativa é que as
obras de arte interfiram na realidade e sejam agentes
da sua transformação: uma ambição tão antiga como
o gesto artístico.
A presente edição da Documenta XII estabelece
um confronto interessante entre não só diferentes
culturas, mas entre diferentes tempos: a distância e
a proximidade regem-se não só pelo distanciamento
geográfico (Ocidente/Oriente), como pelo
distanciamento temporal (antigo/contemporâneo).
Simon Wachsmuth |“Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Vista da instalação | © Simon Wachsmuth, fotografia de
Roman März /documenta GmbH
É assim que a arte antiga (muitas vezes documentos
etnográficos) convive com a arte contemporânea
das diferentes zonas do globo. Fundamentalmente,
trata-se de colocar o problema de saber até que
ponto o nosso olhar sobre a arte se pode desenvolver
livre de um contexto político, social e artístico que é
radicalmente diferente do nosso. O olhar, que é outra
forma de dizer o nosso juízo ou pensamento, regese por diferentes constrangimentos que é preciso
avaliar e determinar.
Não se trata de fazer um genealogia do olhar, mas
de saber se o olhar livre e desinteressado, que
tão bem pode caracterizar a contemplação de
obras de arte, ainda é uma instância válida ou se
deve ser substituído pela avaliação política, social,
antropológica. Talvez se trate de uma falsa questão,
porque a metáfora do político pode servir para
Simon Wachsmuth | “Where We Were Then, Where We Are Now”, 2007 | Vista da exposição | © Simon Wachsmuth, fotografia de
Roman März /documenta GmbH
descrever a quase totalidade dos gestos humanos.
Mas o que aqui está em causa é um determinado
tipo de arte que assume o político como o seu centro
artístico. Os artistas passaram a ser testemunhos de um mundo decadente, cruel
- na sua forma de combate e propaganda. Um bom
e terrífico e transformaram-se em actores políticos obrigados a tomar partido,
exemplo é o da instalação de Simon Wachsmuth (n.
a assumir posições, a denunciar os factos do mundo e a registar esta mesma
Alemanha, 1964), que tenta recuperar uma certa
realidade.
ideia do Irão através do olhar ocidental e detectar
Nas mais importantes exposições do mundo inteiro - e este Verão é uma altura
o local em que as suas imagens são formadas.
propícia a esta reflexão - verifica-se que muitas das obras adquirem a sua validade
A linha de contacto que o artista tenta desenhar
e legitimidade não por razões estéticas. Antes, a sua pertinência é conquistada na
transforma-se em zona de contacto e de negociação.
esfera política e são instrumentos de intervenção social.
Uma posição que o espectador é obrigado a tomar,
O mundo, aparentemente liberto dos regimes políticos totalitários, mas também
assumindo-se, em conjunto com o artista, numa
das utopias libertadoras, vê-se a braços com uma realidade que não consegue
espécie de inusitado etnógrafo. |
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Notícias
FIAC 2007
FRIEZE ART FAIR
PARIS: 18 - 22 OUTUBRO
LONDRES: 11-14 OUTUBRO
A 5º edição da Frieze Art Fair realiza-se no Regent’s Park, em
Londres, entre 11 e 14 de Outubro próximos. Promovida pela revista
homónima, esta importante feira de arte permitirá a todos aqueles
que apreciam arte contemporânea a oportunidade de visitar as 150
galerias de arte mais importantes do momento. Pela quarta vez
consecutiva, a Frieze tem o Deutsche Bank como principal sponsor.
Chris Evans, Lara Favaretto, Elin Hansdóttir, Janice Kerbel, Renata
Lucas, Kris Martin, Gianni Motti e Richard Prince foram os artistas
seleccionados para integrarem a Frieze Art Projects, este ano
comissariada por Neville Wakefield. O programa prevê ainda os
projectos Frieze Commissions, Frieze Talks e a atribuição do prémio
Cartier. Consultando o site www.friezeartfair.com, poderá encontrar
informações sobre como visitar a feira, sobre o calendário e
programa das conferências, bem como sobre a forma de fazer
GABRIELE PICCO | “Nuvola”, 2006. | Galeria Francesca Minini | Cortesia Francesca Minini, Milão.
encomendas. Os bilhetes de acesso à feira estão disponíveis ao
público desde o passado dia 1 de Julho. |
A 34ª edição da FIAC decorre entre os dias 18 e 22 de Outubro,
em Paris, repartida entre o Grand Palais e o Louvre. No dia 20 será
conhecido o vencedor do 7º Prix Marcel Duchamp, no valor de
e 35,000€, atribuído pela Association pour la diffusion
internationale de L’Art Français. Os candidatos anunciados são:
Tatiana Trouvé (1968), nascida em Itália, mas residente em
França; Adão Adach (1962), Pierre Ardouvin (1955) e Richard
Fauguet (1963). Para mais informações consulte o site:
www.fiacparis.com |
SHOPPING DE ARTE
O Centro Comercial Visconde da Luz, em Cascais, vai inaugurar uma
Frieze Art Fair 2006. Fotografia: Linda Nylind
cadeia de lojas relacionadas com as diversas áreas de intervenção
artística, como antiguidades, velharias, galeria de arte com
exposições temporárias, um instituto de formação em conservação
e restauro e, finalmente, um espaço para a realização de leilões de
ARTE GAY
arte quinzenais no primeiro e terceiro sábados de cada mês, pelas
20h. Os responsáveis pela realização dos leilões aceitam a inscrição
Acha que a arte exprime necessariamente a opção sexual de quem
gratuita de todo o tipo de objectos artísticos, sem nenhuns encargos.
a faz? Ou seja, faz algum sentido aquela velha polémica, estafada,
(Art Shopping - piso -1, Centro Comercial Visconde da Luz (em frente
mastigada e inútil (?) sobre a existência de uma relação de causalidade
à PSP), 2750-282 CASCAIS). |
entre a sexualidade a expressão artística correspondente? Se acha que
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107
sim, que a arte e o sexo caminham de mãos dadas, que existe uma
Museum, contribuições de diversos museus como o Ashmolean
expressão feminina e uma expressão tipicamente masculina, então,
Museum, de Oxford, o Museum für Indische Kunst, de Berlim, o
a partir de agora, em Lisboa, no bairro de Santa Catarina, Eduardo
Musée Guimet, de Paris e o Rijksmuseum, de Amsterdão. |
Henriques - Didi, para os amigos - está empenhado em mostrar que
também existe uma forma de expressão artística especificamente gay.
E porque assim é, inaugurou a primeira galeria gay portuguesa com o
exclusivamente sobre esta temática. O Bico funciona entre as 17h e
O TAPETE ORIENTAL EM PORTUGAL:
Tapete e Pintura - sécs. XVI a XVIII
as 22h e a exposição inaugural intitula-se, muito apropriadamente,
Museu Nacional de Arte Antiga - até 18 NOV 07
sugestivo nome de Bico, um bar-galeria cujas obras expostas reflectem
“Ho(t)mens”. |
Esta exposição aborda, pela primeira vez, a história dos tapetes
orientais em Portugal, partindo da significativa colecção do MNAA,
Faith, Narrative and Desire:
obras-primas da pintura indiana
no British Museum
com a colaboração de instituições públicas e privadas, nacionais
e estrangeiras. Estrutura-se em quatro núcleos - Península Ibérica,
Turquia, Pérsia e Índia -, associando os tapetes à sua imagem em
pinturas dos sécs. XVI a XVIII.
O tapete oriental é um objecto artístico, uma superfície composta
Nas comemorações dos 60 anos da independência indiana, o
por fios de teia, trama e nós, um produto de trocas comerciais, um
British Museum exibirá, entre 9 de Agosto e 11 de Novembro,
relevante elemento decorativo da pintura e, também, um objecto que
uma excelente colecção de pinturas representando, ao longo dos
encerra valores simbólicos e define hierarquias. |
séculos, os vários panoramas da pintura na Índia. A exposição
exprime as tradições dramáticas do povo indiano através de
imagens dinâmicas, de cariz intimista e com a riqueza e elegância
próprias da cultura indiana. Em grande destaque estarão as
pinturas datadas de 1820 da Companhia da Índia Oriental,
recentemente adquiridas, onde se ilustram deuses e deusas hindus
do Sul da Índia. Para mais informações, consulte o site www.
thebritishmuseum.ac.uk |
A ARTE E A DEVOÇÃO
BARCELONA: até 18 NOV 07
Em parceria com a obra social “La Caixa”, o Victoria & Albert Museum
e o British Museum de Londres organizaram uma exposição na Caixa
Forum de Barcelona intitulada La escultura en los templos índios. El
arte de la devoción, a qual está em exibição desde 27 de Julho e que
terminará a 18 de Novembro de 2007. Resultado de um trabalho
de investigação em que participaram museus e coleccionadores
privados, esta exposição é a mais importante das iniciativas dedicadas
à escultura figurativa indiana a partir de colecções europeias. Nela se
destacam, além das obras do Victoria & Albert Museum e do British
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Gregório Lopes (atrib.) | Anunciação
(pormenor) | c. 1540 | MNAA |
Fotografia: José Pessoa, DDF, IMC
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108
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Leilões
1.
2.
1.
2.
€
E 310.000 |
E 220.000 |
COLUMBANO BORDALO PINHEIRO
PAULA REGO | “A MADASTRA” |
| “O SERÃO” | PALÁCIO DO CORREIO
VELHO | 16 DE MAIO, 2001.
5.
€
12.
7.
9.
€
E 205.000 |
E 200.000 |
E 161.000 |
AMADEU SOUZA – CARDOSO |
AMADEU SOUZA – CARDOSO
JÚLIO POMAR |
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 28 DE
“COMPOSIÇÃO COM INSTRUMENTO
| PASTOR, PALÁCIO DO CORREIO
“LE METRO” | PALÁCIO DO CORREIO
NOVEMBRO, 2006.
MUSICAL” | PALÁCIO DO CORREIO
VELHO |17 DE OUTUBRO, 2005.
VELHO | 8 DE MAIO, 2007.
8.
10.
VELHO | 22 DE OUTUBRO, 1999.
€
€
€
4.
E 220.000 |
E 210.000 |
E 200.000 |
E 190.000 |
E 160000 |
SOUZA PINTO | “O AMUADO” |
JOSÉ MALHOA | ADELAIDE
AMADEU SOUZA – CARDOSO |
AMADEU SOUZA – CARDOSO |
JOÃO VAZ | “COSENDO AS REDES
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 18 DE
– PERSONAGEM DE “O FADO” |
“CABEÇA DE HOMEM” | PALÁCIO DO
PAISAGEM, PALÁCIO DO CORREIO
NA PRAIA” | PALÁCIO DO CORREIO
FEVEREIRO, 1998.
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 4 DE
CORREIO VELHO | 9 DE DEZEMBRO,
VELHO | 17 DE OUTUBRO, 2005.
VELHO |10 DE NOVEMBRO, 2004.
DEZEMBRO, 2000.
2002.
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€
6.
2.
07/09/04 22:21:33
20
14.
nacional
#41
13.
10.
15.
€
17.
13.
€
15.
€
19.
17.
€
19.
€
E 160.000 |
E 140.000 |
E 114.000 |
E 105.000 |
E 90.000 |
COLUMBANO BORDALO PINHEIRO |
JÚLIO RESENDE |
JOÃO VAZ | “VISTA DO TEJO
JÚLIO POMAR | “SEM TÍTULO” |
JÚLIO POMAR | “ENTRE DEUX” |
“CONCERTO DE AMADORES” |
“A VELHA” | CABRAL MONCADA |
COM TORRE DE BELÉM” | CABRAL
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 8 DE
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 8 DE
PALÁCIO DO CORREIO VELHO | 30 DE
13 DE MAIO, 2002.
MONCADA | 13 DE MAIO, 2002.
MAIO, 2007.
MAIO, 2007.
MAIO, 2005.
12.
´
€
14.
€
16.
€
18.
€
20.
€
E 155.000 |
E 125.000 | SOUSA LOPES |
E 107.500 |
E 92.500 |
E 85000 |
SOUZA PINTO |
“PROCISSÃO NO TURCIFAL” |
ANÓNIMO (ESCOLA CHINESA) |
ANÓNIMO (ESCOLA ALEMÃ) |
BALTAZAR GOMES FIGUEIRA |
“O PESCADOR” | CABRAL MONCADA |
CABRAL MONCADA | 5 DE MARÇO,
“VISITAS DE HONG KONG, CANTÃO,
“NATUREZA MORTA COM FIGURAS”
“NATUREZA MORTA COM PEIXES,
14 DE NOVEMBRO, 2005.
2007.
XANGAI E DE WAMPOD” | CABRAL
| CABRAL MONCADA | 23 DE
CRUSTÁCEOS, CEBOLAS E GATO” |
MONCADA | 6 DE NOVEMBRO, 2006.
OUTUBRO, 2000.
CABRAL MONCADA |
6 DE NOVEMBRO, 2006.
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110
ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
Leilões
1.
2.
3.
1.
3.
5.
7.
9.
US$ 104.168.000 |
US$ 87.936.000 |
US$ 78.100.000 |
US$ 72.840.000 |
US$ 71.502.500 |
PABLO PICASSO | “GARÇON A LA
GUSTAV KLIMT | “PORTRAIT OF
PIERRE-AUGUSTE RENOIR |
MARK ROTHKO | “WHITE CENTER
VINCENT VAN GOGH | “PORTRAIT
PIPE” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
ADELE BLOCH-BAUER II”, 1912 |
“AU MOULIN DE LA GALETTE” |
(YELLOW, PINK AND LAVENDER OR
DE L’ARTISTE SANS BARBE” |
5 DE MAIO, 2004
CHRISTIE’S NOVA IORQUE |
SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
ROSE)” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
CHRISTIE’S NOVA IORQUE |
8 DE NOVEMBRO, 2006
17 DE MAIO, 1990
15 DE MAIO, 2007
19 DE NOVEMBRO, 1998
2.
4.
6.
8.
10.
US$ 96.216.000 |
US$ 82.500.000 |
US$ 76.700.000 (£ 49.506.650) |
US$ 71.720.000 |
US$ 60.502.500 |
PABLO PICASSO | “DORA MAAR AU
VINCENT VAN GOGH | “PORTRAIT
SIR PETER PAUL RUBENS |
ANDY WARHOL | “GREEN CAR
PAUL CEZANNE | “RIDEAU,
CHAT” | SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
OF DR. GACHET” CHRISTIE’S NOVA
“MASSACRE OF THE INNOCENTS” |
CRASH (GREEN BURNING CAR I)”,
CRUCHON ET COMPOTIER” |
5 DE MAIO, 2004
IORQUE | 15 DE MAIO, 1900
SOTHEBY’S LONDRES | 10 DE JULHO,
1963 | CHRISTIE’S NOVA IORQUE |
SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
2002
16 DE MAIO, 2007
10 DE MAIO, 1999
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20
internacional
#41
4.
7.
8.
20.
11.
13.
15.
17.
19.
US$ 55.006.000 |
US$ 51.650.000 (FFR 315.000.000)
US$ 48.402.500 |
US$ 45.102.500 |
US$ 40.700.000 |
PABLO PICASSO | “FEMME AUX
| PABLO PICASSO | “LES NOCES DE
PABLO PICASSO | “LE RÊVE” |
PABLO PICASSO | “NU AU FAUTEUIL
PABLO PICASSO | “AU LAPIN AGILE” |
BRAS CROISES” | CHRISTIE’S NOVA
PIERRETTE” | DROUOT-BINOCHE &
CHRISTIE’S NOVA IORQUE |
NOIR”, 1932 | CHRISTIE’S NOVA
SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
IORQUE | 8 DE NOVEMBRO, 2000
GODEAU PARIS | 30 DE NOVEMBRO,
10 DE NOVEMBRO, 1997
IORQUE | 9 DE NOVEMBRO, 1999
15 DE NOVEMBRO, 1989
1989
12.
14.
16.
18.
20.
US$ 53.900.000 |
US$ 49.502.500 |
US$ 47.850.000 |
US$ 43.160.000 (£ 21.580.000) |
US$ 40.336.000 |
VINCENT VAN GOGH | “IRISES” |
PABLO PICASSO | “FEMME ASSISE
PABLO PICASSO | “SELF-PORTRAIT
FRANCIS BACON | “SELF-PORTRAIT”
GUSTAV KLIMT |“BIRCH FOREST” |
SOTHEBY’S NOVA IORQUE |
DANS UN JARDIN” | SOTHEBY’S NOVA
: YO PICASSO” | SOTHEBY’S NOVA
| SOTHEBY’S LONDRES | 21 DE
1903 | CHRISTIE’S NOVA IORQUE |
11 DE NOVEMBRO, 1987
IORQUE | 10 de novembro, 1999
IORQUE | 9 DE MAIO, 1989
JUNHO, 2007
8 DE NOVEMBRO, 2006
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ARTES E LEILÕES OUTUBRO 2007
paladarte
Miguel Júdice
componentes que a tornam uma forma de cultura,
de arte mesmo. É também à mesa que o Homem
demonstra que possui “razão”, que consegue discernir,
criar, que valoriza a estética.
A gastronomia é um dos mais importantes traços
culturais dos povos, da sua identidade, do seu ADN. É
influenciada pelas tradições, pela religião, pelo clima,
pela morfologia do terreno, pela presença ou ausência
de certos elementos naturais (mar, rios, florestas). A
gastronomia espelha a essência de cada povo e a sua
história. A gastronomia portuguesa é um bom exemplo
disso, tendo sido muito influenciada pelos povos que
visitámos ou que nos visitaram ao longo dos séculos,
desde os árabes aos povos de África e Ásia.
Mudam-se os tempos, muda-se a alimentação. As
artes plásticas foram desde sempre uma preciosa
ajuda para perceber as mutações que foram sendo
introduzidas pelos novos padrões de vida. A arte
conta a História da Humanidade, também no que
diz respeito ao que comemos e a como comemos.
Alguns dos mais famosos quadros de sempre tratam
este tema. Veja-se a Última Ceia de Da Vinci, que
tanta tinta fez correr nas páginas do Código de Dan
Brown. Da Vinci, como muitos outros artistas, era um
apaixonado pela gastronomia, tendo criado receitas
que hoje estão compiladas em livro.
A lista de quadros famosos onde a comida assume o
#41
protagonismo é riquíssima. O Peru Depenado de Goya,
os Comedores de Batatas de Van Gogh, o Banquete de
A arte e os paladares sempre estiveram de mãos
Casamento de Bruegel, entre muitos outros quadros
dadas. Dos primitivos italianos aos pintores da escola
de artistas como Rembrandt, Manet, Renoir, Matisse,
holandesa, dos impressionistas aos surrealistas, não
Chagal, Picasso, Dali. A lista é verdadeiramente
há seguramente nenhuma corrente artística (quase
infindável.
nenhum artista) que tenha deixado de fora do seu
Os pintores da Escola Holandesa foram dos primeiros
espectro de temas inspiradores a arte da mesa e a
a pegar na cozinha como tema, tendo criado
gastronomia. A explicação é, a meu ver, simples,
naturezas mortas de enorme beleza e sensibilidade,
e tem a ver com o facto de a alimentação ser algo
e em Portugal esse tipo de obras encontrou dois
permanente nas nossas vidas desde que nascemos
grandes mestres: Josefa de Óbidos e José António
até que morremos. Poucas necessidades há que
Benedito Soares da Gama de Faria de Barros, Morgado
nos acompanhem tanto. Para além do seu carácter
de Setúbal. O pintor maneirista Giuseppe Arcimboldo
fisiológico essencial à vida, a alimentação tem outras
trouxe inovação e humor às naturezas mortas,
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113
utilizando os alimentos como “ingredientes” para criar
quadros extraordinários em que estes compunham
rostos humanos. Se algum surrealista existiu antes dos
surrealistas, terá sido Archimboldo.
Alguns séculos depois, outros grandes artistas
dedicaram metros quadrados de tela à alimentação.
Um dos melhores exemplos foi Paul Cézanne, que
um dia disse: “Irei surpreender Paris com uma
maçã”. O pós-impressionista pintou centenas de
maçãs ao longo da sua vida, olhando-as de formas
diferentes, compondo cenários para elas, desde
toalhas de mesa a arranjos de flores. A maçã era a
sua musa inspiradora, o seu alimento fetiche. Um
contemporâneo de Cézanne, Pierre-Auguste Renoir,
era tão apaixonado por gastronomia que lhe foi
feita uma homenagem no livro Renoir, à mesa de um
impressionista, prefaciado por Pierre Troigros, um dos
maiores chefes de cozinha do mundo.
Já no século XX, outros pintores provaram
que a alimentação pode ter tratamentos mais
contemporâneos e conceptuais. Um desses casos
foi o americano Edward Hopper, que focou não
exactamente a comida mas sim os seus locais de
Jantares PALADARTE em 2007:
consumo, nomeadamente os diners, usando-os como
21 de Setembro | ELEVEN, Lisboa
imagem da solidão que tanto gostava de retratar.
24 de Outubro
Mais recentemente, Andy Warhol, um dos maiores
28 de Novembro | HOTEL TIVOLI, Lisboa
expoentes do movimento Pop Art, usou latas de
28 de Dezembro | FUNDAÇÃO ANTONIO PRATES, Ponte de Sôr
| SERRALVES, Porto
sopa Campbell’s como inspiração recorrente ao
longo da sua vida. Para Warhol, que dizia que tinha
bebido sopa Campbell’s todos os dias durante vinte
anos, a lata Campbell’s era usada como um ícone da
sociedade moderna, um objecto inspirador como as
maçãs tinham sido para Cézanne.
As razões atrás expostas legitimam os jantares
“Paladarte” que irão ser organizados com o
lançamento de cada número da revista Artes &
Leilões. É que para além do longo casamento entre
arte e alimentação, evidente em séculos de quadros
e outras peças, os cozinheiros são também artistas,
que criam no prato, a sua tela, obras que tocam os
sentidos. |
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Receita de Joachim Koerper
Joachim Koerper nasceu no dia 25 de
Dezembro de 1952, na cidade alemã
de Saarbrücken. Começou a estudar
administração de empresas, mas muito
cedo, levado pelo amor à cozinha, vai
trabalhar como aprendiz nos hotéis
Falken (Konstanz) e Kempiski (Berlin).
Desde 1971 até 1990 trabalhou em
grandes hotéis de luxo de toda Europa,
cozinhando para figuras célebres
do mundo da política, da arte e do
espectáculo, como Carolina do Mónaco,
Gunter Sachs, Maximilian Schell, Cristina
Onassis e Niarchos von Opel.
Nos anos 70, Joachim Koerper começa
a viajar frequentemente a terras mais
quentes como a Grécia, a Sardenha
ou a Costa Francesa. Rapidamente,
Joachim enamora-se decisivamente
pelo sul da Europa, aprende o
espanhol e deixa-se seduzir pelos
produtos mediterrânicos, com os seus
sabores, cores e aromas, graças aos
quais se converte num mestre da alta
“cozinha mediterrânica”.
Joachim Koerper trabalhou quase
sempre em restaurantes com duas
ou três estrelas Michelin, tais como L’
Ambroise de Paris, Moulin de Mougins
na Costa Francesa, Guy Savoy Paris,
Hosteleria du Cerf em Marlenheim, e
Au Chapon Fin em Thoissey.
Joachim Koerper trabalha sempre com
produtos “naturais e frescos”, como
ele mesmo costuma dizer, “por isso,
utilizo sempre os produtos próprios
da zona onde trabalho”. Joachim é
um profissional tão disciplinado como
imaginativo, capaz de integrar na sua
cozinha ingredientes autóctones.
O principal passo dado por Joachim
Koerper no sentido da sua afirmação
enquanto grande chefe de cozinha
deu-se quando decidiu criar o
restaurante Girasol, en Moraira
(Alicante). Nove meses depois, o guia
Michelin concedeu-lhe a primeira
estrela Michelin, e três anos mais tarde
a segunda estrela. No Eleven obteve
uma estrela Michelin ao fim de um
ano de abertura.
Para além do restaurante Eleven,
Joachim Koerper trabalha actualmente
em regime de chefe consultor de
cozinha com o Hotel Quinta das
Lágrimas Relais&Châteaux (Coimbra). |
07/09/04 22:21:38
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2007 Grande Demais Dossier India