____________________________________________ A História e o Patrimônio Cultural do Bairro da Lapinha (Salvador) 1
A HISTÓRIA E O PATRIMÔNIO CULTURAL DO BAIRRO DA LAPINHA
(SALVADOR)
Suzane Pinho Pêpe1
Izenilda Freitas da Silva Rios2
Resumo: Este artigo, que resulta de uma pesquisa acerca das tradições culturais do bairro da
Lapinha (Salvador-Bahia), analisa o significado desse espaço do ponto de vista histórico-social,
demonstrando a importância do seu patrimônio tangível e intangível. A proposta é estabelecer
relações entre dados fornecidos pelas fontes bibliográficas e aqueles decorrentes de uma série de
observações-inclusive durante as festas - e de depoimentos de moradores, a fim de aprofundar o
tema. A Lapinha teve início com a construção de uma capelinha católica no século XVIII. Lá
acontece, no mês de janeiro, a Festa dos Ternos de Reis, tradição que também ocorre em diversas
cidades do interior da Bahia e de outros Estados brasileiros. A importância histórica da Lapinha não
se resume à religiosidade popular, estende-se aos marcos históricos ligados às festas da
Independência da Bahia, presentes no local e em seu entorno, o que torna essa área da cidade ainda
mais relevante do ponto de vista histórico-cultural.
Palavras-chave: Salvador; Lapinha; História; Cultura; Patrimônio.
Abstract: This essay, which stems from an investigation carried out on cultural traditions of Lapinha
Section (Salvador-Bahia), analyzes the meaning of such space from a historical and social point of
view, attempting to demonstrate the importance of its tangible and intangible heritage. Our aim is to
draw relations between the data provided by bibliographical sources and those resulting from a
sequence of notes - including the ones taken during the festivals - and the testimonies of that section
of town dwellers, in order to deepen the theme. Lapinha section started with the construction of a
small catholic chapel in the 18th century. Every January the Terno de Reis traditional festival has been
held there, as well as in some interior towns of Bahia and of other states. Lapinha’s historical
significance is not restricted to popular religiosity. It reaches historical landmarks related to the
Independence of Bahia celebrations present in its adjacent space, which makes this city area even
more relevant from a historical and cultural point of view.
Key- words: Salvador; Lapinha; History; Culture; Heritage.
Mestre em História da Arte – Université Catholique de Louvain – Bélgica. Professora da Faculdade de Tecnologia e
Ciências - Salvador, da Escola Superior Administração Marketing e Comunicação – Esamc e da União Metropolitana de
Educação e Cultura – Unime. E-mail: [email protected]
2 Graduanda em Turismo da Faculdade de Tecnologia e Ciências - Salvador. Bolsista de Iniciação Científica pela
Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia - Fapesb (2005-2006).
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1 Introdução
Fruto de pesquisas realizadas entre os anos de 2005 e 2006 sobre a história do bairro da
Lapinha, situado na cidade do Salvador (Bahia), este artigo visa a divulgar dados e valorizar a história
e o patrimônio cultural tangível e intangível dessa área da cidade.
A Lapinha mantém tradições religiosas do ciclo natalino, as quais contam com relevante
envolvimento da comunidade, destacando-se o desfile dos Ternos de Reis, que se apresentam na
noite de 5 para 6 de janeiro. Não se sabe quando começou essa tradição na Lapinha, entretanto, na
primeira década do século XX, ocorria a participação de ternos na Noite de Reis, nesse bairro da
cidade.
O Largo da Lapinha constitui-se num dos espaços públicos de Salvador onde acontecem,
desde 1824, as comemorações da Independência da Bahia, significativa para a história e para o
imaginário da população baiana. No largo, situa-se o Pavilhão 2 de Julho (1860), abrigo dos carros
alegóricos do Caboclo e da Cabocla, que desfilam acompanhados pela população no dia 2 de julho.
O cortejo sai do Largo da Lapinha, pela manhã, percorre as ruas do bairro da Soledade, do Santo
Antônio e do Pelourinho e pára na Praça Tomé de Sousa. À tarde, o desfile recomeça e vai até o
Campo Grande. As comemorações começam, de fato, no dia 30 de julho, com a saída do Fogo
Simbólico – símbolo da Independência – de Cachoeira, passando por Santo Amaro da Purificação e
Candeias – municípios do Recôncavo Baiano atuantes nas lutas de Independência da Bahia – até
chegar, no dia 1º. de julho, ao Largo de Pirajá, em Salvador.
A fim de levantar dados sobre a Lapinha, foram desenvolvidas pesquisas bibliográficas e de
campo – incluindo documentação fotográfica –, boa parte delas durante festas, desfiles e ensaios.
Algumas entrevistas realizadas com membros da comunidade permitiram uma maior compreensão
da história.
Sobre o bairro da Lapinha, especificamente, há uma pequena publicação da Paróquia Nossa
Senhora da Conceição da Lapinha, de 1997, intitulada Lapinha das Tradições e Ternos de Reis.
Com relação aos ternos na cidade do Salvador, escreveram Manoel Querino, em A Bahia de
Outrora (1955), e Sílio Boccanera Junior, em Bahia Cívica e Religiosa, Subsídios para a História
(1926).
As comemorações da Independência da Bahia são tratadas em Algazarra nas Ruas:
Comemorações da Independência na Bahia (1889 – 1923), publicação (1999) de Walmyra de
Albuquerque, que analisa o caráter popular da festa e as mudanças ocorridas no período estudado
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pela autora. Mais recentemente, em 2 de Julho: A Festa é História (2000), Socorro Targino
Martinez aborda aspectos históricos e sociais da festa ao Dois de Julho.
2 Localização
Situada na parte alta da cidade do Salvador, a Lapinha limita-se com os seguintes bairros: ao
norte, com a Liberdade; a leste, com a Caixa d’Água; e ao sul, com a Soledade. A oeste, existe a
escarpa que separa a Cidade Alta da Cidade Baixa, com passagem íngreme, por onde alguns pedestres
atravessam para chegar à Avenida Jequitaia, na altura do Terminal Marítimo de São Joaquim.
Com o crescimento urbano, a Lapinha deixou de ser o limite norte da cidade, como fora nas
primeiras décadas do século XIX. Hoje há dúvidas por parte de moradores, tanto da Liberdade
quanto da Lapinha, sobre a definição dos seus limites, sobretudo com o bairro da Liberdade, que
concentra uma população estimada em 400 mil habitantes. Em 1974, jovens do Curuzu formaram o
bloco de carnaval Ilê Aiyê, que ganhou nova dimensão com a proposta educacional de formação de
crianças e jovens do Curuzu, e de valorização da afro-descendência.
A leste, na Caixa D’Água, existe uma fonte, que aproveitava as águas do Rio Queimado,
consideradas, no século XVIII, por Luís Vilhena (1969), como de excelente qualidade. Até o século
XIX, em Salvador, as fontes abasteciam as comunidades para uso doméstico e outros fins. O sistema
de abastecimento de água da cidade do Salvador foi iniciado em meados do século XIX, com o
estabelecimento da Companhia de Queimado.
No bairro da Soledade, o marco histórico mais significativo é o Convento de Nossa Senhora
da Soledade, de freiras ursulinas, fundado em 1739. Desde 1900, as freiras da Soledade mantêm o
colégio de mesmo nome. Ainda estão preservadas nesse local, diversas construções características da
arquitetura do século XIX, como a própria Igreja do Convento da Soledade, a qual mantém
reminiscências da arquitetura moçárabe nas treliças das suas janelas.
No Largo da Soledade, parte do bairro de mesmo nome, destaca-se o monumento dedicado a
Maria Quitéria de Jesus, personagem histórica que representa a participação da mulher nas lutas pela
Independência da Bahia. Maria Quitéria lutou no Batalhão Voluntários do Príncipe, ao qual se
apresentou como “Soldado Medeiros”. Sua escultura de bronze, de autoria do artista José P. Barreto,
foi erguida em 1953 e chama a atenção por suas linhas diagonais que se movimentam no espaço.
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3 A Igreja e as outras organizações
A palavra lapa, de origem pré-céltica, ou lapinha, é sinônimo de gruta, caverna ou abrigo. Na
língua portuguesa, associou-se o termo lapa a ermida (capela em lugar isolado), igreja, templo ou
local sagrado. O diminutivo de lapa, lapinha, designa, no Nordeste do Brasil, nicho ou presépio,
montado para as festas de Natal e Reis.
O nome do bairro Lapinha teve origem na denominação de uma capela que começou a ser
edificada em 1771, pela Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. Frades Agostinianos formaram sua
comunidade próximo ao templo e, em seguida, receberam do Arcebispado da Bahia a capela da
Lapinha. No século XIX, a Igreja da Lapinha fazia parte da Freguesia de Santo Antônio Além do
Carmo. (LAPINHA, 1997).
A antiga capela foi reconstruída entre 1925 e 1930, em estilo neogótico, no seu exterior, e
mourisco interiormente. Possui diversas inscrições em árabe nas paredes, tetos decorados em altorelevo de gesso, com formas geométricas e desenhos mouros, além de muitos mosaicos vindos de
Granada, na Espanha. As pinturas de passagens bíblicas, de autoria do Frei Padre Manoel Flores,
estão dispostas na nave central, compondo uma arcada mourisca (LAPINHA, 1997). Esse exemplo
de transplantação dos elementos arquitetônicos em estilo mourisco para o contexto católico é único
na cidade do Salvador.
Em 1948, o Arcebispado da Bahia criou a Paróquia de São Come e São Damião, localizada no
bairro da Liberdade, cuja matriz era a Igreja da Lapinha. No ano seguinte, padres vocacionistas
passaram a integrar a comunidade da Lapinha e assumiram, em seguida, os trabalhos pastorais da
igreja.
A igreja sofreu obras de restauração entre 1958 e 1970. Dois anos depois, passou a paróquia,
desmembrando-se de Santo Antônio Além do Carmo e de São Come e São Damião. Sua padroeira
passou a ser Nossa Senhora da Conceição e, como igreja-matriz, passou a ser chamada de Nossa
Senhora da Conceição da Lapa.
A Igreja Católica exerce forte influência tanto do ponto de vista religioso como do de
agregação social sobre a comunidade local, realizando serviços sociais. Em 1987, foi construído o
centro comunitário, com esforço dos paroquianos e recursos vindos do exterior (Alemanha, EUA,
Suíça e Itália).
A participação da comunidade nos trabalhos da Igreja da Lapinha faz parte das tradições locais.
Antigos moradores reportam-se ao trabalho realizado pelo Padre Nicolau, há mais de 50 anos, e seus
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sucessores, os Padres Luiz Bellopede, Franco e José Pinto (Entrevista com Graziela Cavalcante
Souza, 2005).
A Igreja da Lapinha é organizada em pastorais de evangelização. Existem, ligados à igreja: a
Creche Escola Adalgisa Souza Pinto, que atende crianças de 3 a 5 anos de idade, provenientes de
famílias carentes, e o Centro Comunitário São Francisco (1988), conveniado à Prefeitura da Cidade
do Salvador. Também atua, no bairro, a Organização de Auxílio Fraterno (OAF), responsável por
um orfanato e um curso profissionalizante para jovens.
4 Crescimento Urbano
Um relato do século XIX sobre a Lapinha, encontrado nas Memórias de Ana Ribeiro de Góis
Bittencourt, citado por Ana Amélia Nascimento (1986, p. 23), revela que a Lapinha foi um bairro
pouco rico com “casas enegrecidas, ruas tortuosas percorridas pelos moleques esfarrapados ou sujos,
negros maltrapilhos, enfim gente de ínfima plebe”. A Lapinha situava-se praticamente na periferia da
cidade, certamente era um bairro popular.
No século XIX, a elite de Salvador, que antes morava na Sé, foi-se deslocando para o sentido
sul. A Sé foi perdendo seu caráter residencial para dar lugar ao comércio varejista. Novos bairros,
como a Vitória, passaram a atrair famílias ricas. A classe média – funcionários públicos, profissionais
liberais e comerciantes – instalou-se em Santana e no Santo Antônio (PINHEIRO, 2002). Acreditase que, com a decadência da Sé, houve também uma valorização da Lapinha, assim como dos outros
bairros ora referidos.
Nos anos 1950, a Lapinha sofreu certas mudanças com novas construções. Algumas famílias
de espanhóis adotaram o bairro, como os Vegas, ex-proprietários da casa onde está situado hoje o
centro comunitário. Outra família de descendentes de espanhóis teve padaria onde é hoje o edifício,
em estilo art déco, na esquina do Largo com o Corredor da Lapinha (Entrevista com Graziela
Cavalcante Souza, 2005).
De acordo com a comunidade, as ruas principais por onde desfila o cortejo nas festas da
Independência da Bahia são objeto de maior preocupação do poder público que as ruas periféricas,
principalmente em ano de eleição. Apesar desse sentimento, existe orgulho da comunidade em
relação ao valor histórico do bairro, sobretudo, no que se refere às comemorações ao Dois de Julho.
No Largo da Lapinha, situa-se uma herma de bronze do General Pedro Labatut, datada de
1923 – centenário da Independência da Bahia –, homenagem dos descendentes dos baianos que
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combateram com o general. Labatut chegou à Bahia em outubro de 1822, enviado pelo Imperador
Pedro, para organizar milícias de defesa – os famosos “Batalhões Patrióticos” –, dar apoio às tropas e
expulsar Madeira de Melo, que comandava o Exército português.
O último projeto de urbanização, concluído em 1998, modificou o Largo da Lapinha,
tornando-o antiestético e árido. O largo possuiu aspecto de campo, posteriormente de jardim com
palanque, seguindo a estética das praças construídas no século XIX e início do século XX. Esse
aspecto foi eliminado com a construção de estruturas de concreto lá encontradas atualmente.
5 Tradições Religiosas
Não se sabe ao certo quando começou a acontecer a Festa de Reis da Lapinha, na qual
desfilam ternos – grupos que representam personagens como os Reis Magos, o Menino Jesus,
pastores, pastoras, ciganas e baianas, carregando a estrela, estandartes e lanternas. As citações mais
antigas encontradas são de autores que escreveram até o início dos anos 1920, como Manoel
Querino e Sílio Boccanera Junior, anteriormente referidos.
A Festa de Reis faz parte do ciclo natalino (24 de dezembro a 6 de janeiro). Trata-se de uma
tradição que remonta à Idade Média. Em Portugal, era costume “janeiros” e “reiseiros” baterem de
porta em porta, anunciando o nascimento de Jesus, e receberem dinheiro para organizar os festejos
(CÔRTES, 2000). Esse costume de cantar e pedir esmolas para organizar as festas que anunciam o
nascimento de Cristo foi mantido em alguns lugares do interior do Brasil.
Segundo Côrtes (2000, p. 19), a tradição dos janeiros e dos reiseiros parecem ter dado origem a
várias manifestações populares do ciclo natalino, existentes no Brasil: “o pastoril, as pastorinhas, as
folias de reis, os reisados e seus entremeios, como o guerreiro e o bumba-meu-boi, e as homenagens
aos grandes feitos marítimos”.
Segundo a historiadora Simone Rubim de Pinho Lima (Entrevista, 2006), reisado é uma
denominação para os grupos que cantam e dançam na véspera e no dia de Reis (5 e 6 de janeiro).
Abrange ranchos, ternos e outros grupos que festejam os Reis Magos. O terno é, tradicionalmente,
equivalente ao rancho, mas seu caráter é menos popular que o deste.
Observou-se que existem semelhanças entre personagens que desfilam nos ternos e
personagens das escolas de samba do Rio de Janeiro. Essas coincidências devem-se ao fato de terem
os ranchos do século XIX sido os precursores das escolas de samba cariocas (CÔRTES, 2000, p.
132). Entre os elementos comuns aos ternos – os quais se assemelham aos dos ranchos – e às escolas
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de samba, estão o porta-estandartes e a baiana. O ritmo de algumas marchinhas tocadas nos desfile
dos ternos lembra o de marchinhas do Carnaval carioca.
Em Salvador, a festa popular de Reis ocorria em alguns pontos da cidade, como os bairros da
Penha, de Itapuã, do Rio Vermelho e da Lapinha. Hoje, ocorre apenas neste último. Nos anos 1960,
os ternos que se apresentavam na Lapinha saíam da Sé à meia-noite de 5 de janeiro e desfilavam até a
Lapinha, apresentando-se durante a madrugada. Além de Salvador, o reisado acontece em diversas
cidades do interior da Bahia .
Na Igreja Católica, 6 de janeiro é o dia da festa da Epifania do Senhor, de acordo com a
narração bíblica presente no Evangelho de Mateus (2, 1-12). Os magos não eram reis na concepção
de chefe de Estado, queriam adorar Jesus, “o rei dos judeus”, pois tinham avistado uma estrela no
oriente, que era um sinal do nascimento de Jesus (PINTO, 2006). A estrela reapareceu onde estava
Jesus Cristo, que foi visto pelos Magos com Maria. A ele, ofereceram ouro, incenso e mirra. “O ouro,
pela realeza, o incenso, pela divinidade e a mirra, pela humanidade” (PINTO, 2006).
Cada terno é responsável por organizar seus músicos, suas roupas e suas performances. A
participação de crianças e jovens contribui para a preservação das tradições da festa. Em alguns
ternos, a música é executada por bandas contratadas; noutros, como o Terno Rosa Menina (1945), de
Pernambués, os músicos são parte do grupo. Os ternos possuem, geralmente, entre 40 e 60
participantes, que dançam e cantam acompanhados pela banda. Segundo Manoel Querino (1955, p.
36), “compunha-se a charanga de violão, flauta, e, algumas vezes, de viola”. Atualmente, há
instrumentos de sopro e percussão na banda. Certos personagens tocam pandeiro.
Alguns nomes de ternos remetem ao imaginário celestial: Astros (1963), Terra (1949), Lua
(1977), Estrela do Oriente (1971). Outros têm relação com a flora: das Flores (1909), Rosa Menina
(1949); ou com outros temas, como Terno das Ciganinhas (1989), personagem de origem moura, que
veio da Península Ibérica.
Uma inovação de importância, ocorrida nos últimos anos, foi a formação de ternos da terceira
idade, o que reflete ações que vêm sendo desenvolvidas no sentido de valorizar o idoso e reintegrá-lo
à sociedade. Como exemplo, o Terno Alegria de Viver, que se apresenta, desde 2003, na Paróquia de
São Cosme e Damião (Liberdade), e desfilou com cerca de 70 componentes, neste ano de 2006, na
Lapinha.
Santo Antônio de Jesus, São Félix, Conceição do Almeida e Aratuípe (Recôncavo); Conde (Litoral); Porto Seguro e
Mucuri (Sul); Lençóis, Morro do Chapéu, Jacobina, Seabra, Piatã, Boninal e Souto Soares (Chapada Diamantina);
Ibotirama (região do São Francisco); Barreiras e Santana (Oeste); Jequié e Vitória da Conquista (Sudoeste) etc.
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Participa, ainda, da Festa de Reis da Lapinha o Terno Eterna Juventude, também de terceira
idade, que sobressai por sua indumentária e cenografia, compostas na própria sede, no Pelourinho.
Formado em 2002 e coordenado por Joaquim Assis, o Terno Eterna Juventude é uma das atividades
desenvolvidas pelo grupo, que começa suas apresentações antes do Natal, percorrendo as ruas do
Pelourinho, tentando resgatar a tradição de bater de porta em porta, pedindo licença para entrar,
dançando e cantando para anunciar o nascimento do Menino Jesus (NOBRE, 2005). Mais antigo é o
grupo carnavalesco Eterna Juventude, que desfila no Pelourinho. No total, são cerca de 300
componentes, mas participam do terno apenas 70 deles.
Membros da Paróquia da Lapinha e alguns convidados que vêm de outros lugares da cidade
compõem o Terno da Anunciação, criado há 14 anos por Padre Pinto e Dona Graziella Cavalcante,
ex-participante do Terno Rosa Menina. Esse terno abre o desfile, que culmina com a dança dos
ternos no largo, em frente à igreja. Atualmente, a festa conta com o apoio da Igreja da Lapinha, a
ajuda financeira do Governo do Estado da Bahia e da Prefeitura da Cidade do Salvador.
6 O Dois de Julho
O Largo da Lapinha abriga o Pavilhão 2 de Julho, mandado construir, em 1860, pela Sociedade
Patriótica do Dois de Julho (instituída em 1835), para abrigar as esculturas do caboclo e da cabocla e
seus carros alegóricos (QUERINO, 1955).
Quanto à autoria do caboclo, há informações contraditórias. Manoel Querino atribui a autoria
a Manoel Inácio da Costa, que o teria esculpido em 1826. Segundo José Álvares do Amaral (apud
MARTINEZ, 2001), a estátua do caboclo foi esculpida por Bento Sabino, artista considerado hábil
na época. Martinez (2001) informa que foi construído, em 1840, um outro carro mais moderno, com
emblema da liberdade, representado pela cabocla. Em 1846, a escultura da cabocla começou a
desfilar nas ruas no dia 2 de julho.
Nas primeiras comemorações ao Dois de Julho, saiu à rua um descendente de índio para
simbolizar a brasilidade, a nacionalidade. O caboclo representava o caráter bélico, segurando a flecha
e esmagando com os pés uma serpente, símbolo da tirania portuguesa. A cabocla, segurando a
bandeira nacional, foi interpretada como sendo a afirmação da brasilidade.
Apesar da concretização da Independência da Bahia, em 1823, os escravos não tiveram sua
liberdade, o que explica não ser o herói da independência um negro, até porque, ainda vigoravam os
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ideais de uma sociedade escravocrata; “presos”, não poderiam representar a liberdade. No século
XIX, a vontade de participar da festa da independência evidenciava o desejo de libertação.
Pode ter havido uma identificação pelos africanos e seus descendentes da figura do índio a de
ancestral, “dono da terra”. A figura do caboclo foi incorporada à Umbanda, que mistura elementos
do Candomblé com os do Espitiritismo. O povo baiano encontrou no caboclo um símbolo cívico e
religioso. Como observou Albuquerque (1999), os festejos do Dois de Julho nas proximidades dos
candomblés favoreceram o estabelecimento da relação, pela população, entre os símbolos da
independência e entidades indígenas cultuadas em seus terreiros.
No século XIX, o desfile partia do Largo da Lapinha, percorria a Ladeira da Soledade, o Santo
Antônio Além do Carmo – onde se situa a Cruz do Pascoal e a Ladeira do Boqueirão –, o Largo do
Pelourinho. A apoteose era no Terreiro de Jesus, ponto de descanso para que acontecesse o te-déum.
Depois, chegava-se à Praça Municipal. A partir de 1895, o trajeto foi estendido até o Campo Grande,
onde foi erguido o monumento comemorativo ao Dois de Julho (MARTINEZ, 2001).
Desde 1824, o dia 2 de julho é festejado. Saía-se da Lapinha para a cidade, percorrendo as ruas
com arcos ornados e iluminados (MARTINEZ, 2001, p. 73). Era comum que o bando anunciador
precedesse as festas de rua, no século XIX. Essa prática, no entanto, não ocorreu em todos os anos
no início da República, chegando a ser extinta em 1920. Nessa época, pessoas desfilavam mascaradas;
havia a presença de negros e mulatos, cantando. As máscaras deixaram de ser aceitas em algumas
ocasiões, no século XIX, porque havia medo, por parte das elites, dos manifestantes. As fachadas
eram decoradas, principalmente, no bairro do Santo Antônio; bebidas e comidas, barracas de jogos, e
fogos animavam a festa no Terreiro de Jesus e no Campo Grande (ALBUQUERQUE, 1999).
O Dois de Julho sempre foi mais do que uma comemoração cívica oficial, devido à
participação popular, de maior significado para a população baiana do que o Sete de Setembro. Ainda
hoje, enfeitam-se as casas com faixas e folhas e as pessoas apreciam o movimento nas sacadas das
casas. Diante do Pavilhão 2 de Julho, autoridades políticas abrem a festa com o hasteamento das
bandeiras do Brasil, da cidade do Salvador e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, antigo
organizador do desfile. Essa tarefa pertence hoje à Fundação Gregório de Mattos, órgão ligado à
Prefeitura de Salvador. Ao contrário do que ocorria no início do século XX, hoje as elites se
confundem com o povo. Por causa da violência, atualmente, as pessoas não mais exibem jóias ou
carregam volumes, preferindo não se distinguir por sua condição social.
Para estimular a decoração das casas, anualmente, faz-se um concurso para a escolha da mais
enfeitada e animada. O vencedor recebe como prêmio a pintura da fachada de seu imóvel no ano
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seguinte. Os custos de material e mão-de-obra são garantidos pela Prefeitura de Salvador. Como é
tradição, as casas do Santo Antônio Além do Carmo são as mais exuberantes na decoração.
O caráter descontraído e popular do desfile vem sendo mantido. Não há policiamento para
separar autoridades políticas do povo. Preserva-se a espontaneidade, o que mantém o interesse da
população pela festa e por seus símbolos. Depois de passar alguns dias expostos no Campo Grande,
é para a Lapinha que retornam os carros do caboclo e da cabocla. O caráter da volta é
tradicionalmente mais popular que o do desfile do Dois de Julho.
7 Considerações Finais
A importância da Lapinha como bairro histórico de Salvador revela-se nas suas tradições
cívicas e religiosas e em seu patrimônio material, que são monumentos arquitetônicos e escultóricos.
A tradição popular religiosa dos Ternos de Reis na Lapinha marcou o século XX e sobrevive
graças à disposição da comunidade local e de outros bairros que participam do evento. A semelhança
entre ternos e escolas de samba é notória. Apesar de ser o Carnaval uma festa profana, absorveu
influências dos ranchos do século XIX, uma versão mais popular dos ternos.
Constatou-se a atual inexistência de cultos evangélicos e de cultos afro-brasileiros no bairro da
Lapinha, os quais se localizam em bairros de seu entorno.
A comunidade da Lapinha orgulha-se da importância histórica do bairro, mas demonstra
consciência das diferenças socioeconômicas existentes e ressalta a necessidade de se melhorar a
cidade, não apenas os locais onde ocorrem os desfiles.
A Lapinha possui uma identidade construída através de muitas décadas, que se caracteriza pelo
envolvimento da comunidade nas atividades desenvolvidas, inclusive nas festas, sem o que não teria
ocorrido a manutenção das tradições.
Referências
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Algazarra na ruas: comemorações da Independência na Bahia
(1889-1823). Campinas: Editora da Unicamp: Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,
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BOCCANERA JUNIOR, Sílio. Bahia cívica e religiosa: subsídios para a história. Salvador: A
Nova Graphica, 1926.
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Entrevistas
Entrevista realizada com Alexnaldo Gonçalves por Letícia Santana Gonçalves. Salvador, 20 jun.
2004.
Entrevista realizada com Aristóteles Sebastião dos Santos por Letícia Santana Gonçalves. Salvador, 7
jul. 2004.
Entrevista realizada com Graziela Cavalcante Souza por Izenilda Rios. Salvador, 22 set. 2005.
Entrevista realizada com Graziela Cavalcante Souza por Suzane de Pinho Pêpe. Salvador, 27 jan.
2005.
Entrevista realizada com Ilza Santos Simões por Izenilda Rios. Salvador, 5 out. 2005.
Entrevista realizada com Letícia Gonçalves por Izenilda Rios. Salvador, 2 jul. 2005.
Entrevista realizada com Luís Alberto Guimarães Matos por Letícia Santana Gonçalves. Salvador, 8
jul. 2004.
Entrevista realizada com Maria Bernardes Sacramento Santos por Letícia Santana Gonçalves.
Salvador, 7 jul. 2004.
Entrevista realizada com Simone Rubim de Pinho Lima por Suzane de Pinho Pêpe. Salvador, 6 jan.
2006.
Agradecimentos
Para a realização desta pesquisa, foi fundamental o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa
da Bahia (Fapesb), financiadora da Bolsa de Iniciação Científica; da Faculdade de Tecnologia e
Ciências (FTC-SSa); dos bibliotecários da Fundação Gregório de Matos e do Museu de Arte da
Bahia. É justo, ainda, registrar a valiosa contribuição dos moradores da Lapinha, com seus
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Diálogos & Ciência –- Revista da Rede Ensino FTC. Ano V, n. 9, mar. 2007. ISSN 1678-0493 http://www.ftc.br/dialogos
____________________________________________ A História e o Patrimônio Cultural do Bairro da Lapinha (Salvador)13
depoimentos, e, principalmente, da colega Letícia Gonçalves, que não mediu esforços para abrir os
canais necessários ao contato com a comunidade do bairro.
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Suzane Pinho Pêpe1 Izenilda Freitas da Silva Rios2