ARTIGO A autora é religiosa, Auxiliar do Sacerdócio. No número 25 (setembro 1996) publicamos artigo da mesma sobre “EE e a Pobreza Real na Primeira Semana”. A POBREZA NA 2ª SEMANA DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS Ana Roy, AS A Primeira Semana dos EE abre uma “porta estreita”, caminho sofrido, em declive nos meandros e recôncavos da história humana toda, até os porões escondidos de cada história pessoal. É preciso penetrar na realidade humilhante do nosso pecado para experimentar e apreciar “em extrema pobreza e humildade” o amor que nos valeu tamanha salvação. Então, purificado e consciente da misericórdia de Deus, o exercitante entra na Segunda Semana pelo pórtico de um palácio real, conforme a parábola conhecida. A pobreza adquire um rosto novo, pobreza de imitação suscitada pelo chamado do Rei que convida “a quem quiser vir com ele para conquistar o mundo inteiro”... instaurar um reino de irmãos e... “partilhar sua glória” (EE 95). Uma condição porém, é imprescindível: “segui-lo nos trabalhos do dia, nas vigílias da noite”... e mais “imitálo em passar por todas as injúrias, todas as humilhações e toda pobreza assim atual como espiritual”...(EE 98) Na base de tal generosidade, Inácio leva o seu exercitante a contemplar os mistérios da vida de Jesus para saborear o fruto da pobreza dinamizadora que eles oferecem. Em cada gesto, cada passo, cada atitude e palavra de Jesus resplandece a pobreza livre e libertadora de seu “real poder-serviço”. O mistério invisível do amor de Deus se manifesta no mistério visível do Filho Amado, através de sinais que emergem sempre de um contexto de radical pobreza. No Natal, como em Nazaré, no Jordão, na beira do lago, em qualquer encontro com as pessoas, a pobreza de Jesus se apresenta como um sinal atraente, até fascinante, ao mesmo tempo, contestador de qualquer sociedade injusta. Nesta altura, então, tomando a pobreza como fio condutor, poderia-se seguir Jesus no seu itinerário de Belém a Jerusalém, conforme a proposta dos EE. Escolhi uma outra via. Queria limitar a minha reflexão sobre a pobreza a um episódio só, o encontro de Jesus com aquele homem que lhe vem pedir o caminho que conduz à vida eterna. O texto de Marcos (10,17-22) me parece próprio para esclarecer a globalidade da pobreza evangélica, tal como Inácio a abordou, considerando os meios e o fim. Na graça da Segunda Semana, tentaremos compor o lugar, ver as pessoas, ouvir as palavras e, se Deus permitir, na releitura contemplada deste encontro, “procurar tirar algum proveito”. O encontro com Jesus Jesus estava saindo... não apenas do lugar geográfico em que se encontrava; saindo sim das leis religiosas vigentes para abrir horizontes novos. Às pressas, “correndo”, sublinha Marcos, um homem atira-se aos pés de Jesus, com seu problema: “Bom Mestre, que devo fazer para possuir a Vida Eterna”? Em termos de negócio a pergunta seria coerente e válida. Toda posse se constitui, “se faz”, juntando bens, e não raro à custa de muitos esforços. Ciente de questões econômicas, será capaz o rapaz de passar a uma realidade nova, desconhecida? Até o presente momento nada levanta suspeita sobre sua boa vontade e seu intento generoso. Parece disposto a “fazer” o necessário para “possuir” algo mais: a eternização da vida que levou com retidão desde jovem, na observância de todos os mandamentos. Sem dúvida esta fidelidade à lei lhe havia criado boa consciência e proporcionado a possibilidade de realizar muitas obras boas. Tal riqueza espiritual e moral, junto com sua fortuna pessoal lhe haviam garantido plena segurança. Aos poucos, porém, tanta acumulação de Deus, embora não o tivesse percebido, impediram-lhe crescer e lhe fecharam o futuro. Na moralidade exemplar em que se apresenta a Jesus, preso demais a uma perspectiva legalista, nosso homem nem pode imaginar que uma coisa ainda lhe falta; uma só, a única capaz de desvalorizar seu passado seguro e dar ao seu presente o significado de um futuro promissor de liberdade, de vida plena, eterna, hoje mesmo. Não havia feito os EE...! Está longe da postura fundamental da Segunda Semana: “não ser surdo ao chamando de Jesus, mas pronto e diligente em cumprir a sua santíssima vontade” (EE 91). A resposta de Jesus cai clara, transparente como a água cristalina que dá pulos alegres sobre as pedras do riacho: ⎯ ”Vende tudo o que tens, dá-o aos pobres; e terás um tesouro no céu”. Amigo, não se trata tanto de “fazer” para “possuir” a vida, mas sim importa deixar “desfazer-se” e “despossuir-se” para recebê-la, de graça. “Quem quiser vir comigo deve trabalhar comigo a fim de que, seguindo-me nos trabalhos, acompanha-me também na glória” (EE 95). A vida eterna não é posse que premia uma existência honesta e fiel à lei; é comunhão na Glória do Pai, participação na vida de Deus que eterniza a nossa, mediante a nossa própria indigência existencial, reconhecida, assumida e até amada. As relações habituais entre o ter e o ser, o fazer e o possuir estão aqui invertidas. A resposta tão incisiva de Jesus introduz o seu interlocutor no paradoxo do seguimento do Senhor Rei que “se fez homem para que todo homem o ame e o siga” (EE 104)... e “nasceu em extrema pobreza” (EE 116) Por isso “vende tudo... ganharás TUDO!” “Quem perde a vida...” Entre o tudo vendido e o tudo ganho passa a decisão concreta, prática, livre, amorosa de quem se despoja e se dispõe “contando que lhe seja o melhor serviço e louvor, a imitar Jesus por toda pobreza assim atual como espiritual (EE 98)” O gesto que liga aqui a venda à oferta, passa, dia a dia, por uma atitude vivencial que preserva da ilusão ou da auto-suficiência: o dom ao pobre, a relação humana com a pessoa do pobre, a comunhão solidária e fraterna com o pobre. Do desprendimento inicial até o tesouro prometido a estrada é longa, mas o caminhar com o pobre torna mais fáceis nossos passos, tímidos e incertos nos atalhos áridos do empobrecimento. A opção preferencial pelos pobres torna-se imperativa na resposta de Jesus. Deter-nos-emos sobre os três pontos da proposta de Cristo: o mistério da venda, o mistério do tesouro, ambos se harmonizando e se realizando no mistério da comunhão com os pobres. 1 - O mistério da venda: “Vende tudo” Como todos os valores evangélicos, a pobreza constitui um absoluto que não sofre divisão e parte. Assim entende Inácio. Na meditação das Duas Bandeiras, Cristo recomenda a seus servos e amigos que queiram ajudar os homens “atraí-los primeiro a uma extrema pobreza espiritual e não menos à pobreza atual...” (EE 146). É a disposição fundamental que condiciona o sofrimento. Se Jesus, que fascinou o rapaz, se tornar o tudo de nossa vida, de nossos afetos, de nossos desejos, se aparecer como nosso Bem Maior, o resto sem dúvida perderá seu valor. “Tanto quanto Deus me esvazia com o seu tudo, tanto mais me revelará a pobreza do meu eu. Tanto quanto aceito e vivo este esvaziamento do meu eu diante do Tudo Absoluto de Deus, tanto mais terá raízes a pobreza em mim” (Luis Sartori). Encontramos aí a atitude que Inácio vivenciou e propõe ao exercitante na contemplação do Verbo Encarnado, na gruta de Belém: “Ficarei em sua presença como um pobre, olhando, contemplando, servindo” (EE 114). Daí a profunda ligação entre a pobreza, até a venda de tudo e a contemplação. Só o Rei Pobre atrai e suscita uma necessidade de imitação no coração humilde do contemplativo. Não se trata de mimetismo, mas sim de desejo puro e amoroso de configuração. Tal desejo, porém, deverá sempre ser purificado para discernir a presença do inimigo, sempre pronto “a se disfarçar em anjo de luz”... Inácio também não escapou àquilo que percebeu mais tarde como tentação de brilhar: ⎯ ” Se fizesse aquilo que fez Francisco, que fez Domingo...?” Serão necessárias as luzes de Manresa para que abandone todo projeto nas mãos do Senhor, para que “venda tudo”. Nunca haverá imitação que não seja contemplação e essa se torna incompatível com qualquer apego e situação proprietária de bens ou de si. “Vende tudo” e abandona tudo nas mãos “d’Aquele que é Senhor de todas as coisas”. Vender, no sentido literal e simbólico, exige decisão lúcida corajosa, esclarecedora, livre e pessoal. É mais do que dar, juntar seus bens para colocá-los à disposição de um outro, que deles não se torna apenas beneficiário mas sim dono com todos os direitos. Vender implica uma desapropriação total sem retorno. Quem vive na firmeza de seus bens nunca conhecerá a novidade. Para sair daquela situação é preciso deliberadamente “vender tudo” e acolher então o sentido da liberdade, “desejando conhecer melhor o Verbo encarnado para mais fielmente o servir e seguir”... (EE 130, 4). O mistério da venda, libertando a pobreza em relação ao ter, atinge a pobreza do ser. Pois aceitar-se na pobreza do não ter supõe a adesão ao não ser, dois componentes da realidade evangélica, que Inácio percebeu com fina perspicácia espiritual. Sem dúvida o capital que mais nos prende não reside nos bens, embora os do homem de Marcos fossem importantes. O patrimônio que deixamos por último é o de nossa própria vida com seus anseios, suas aspirações, satisfações, êxito e mesmo seus fracassos. A pobreza à qual Inácio nos convida na Segunda Semana não consiste apenas em vender coisas, mas antes de tudo a mais entregar nossa vida, colocá-la em “venda” nas mãos do Senhor da vida, cujo ícone se encontra no rosto do pobre. Tal é o fruto desejado das contemplações dos mistérios de Jesus, que adquire na meditação das Duas Bandeiras uma clareza que expulsa toda ambigüidade: “desejar a pobreza oposta à riqueza; os opróbrios ou desprezos opostos á honra mundana; a humildade oposta à soberba” (EE 146). “O que sobra? Sim, “vende tudo”. 2 - O mistério da Comunhão com o Pobre: “Dá aos pobres”. O produto da venda dos bens seria mentira se não chegasse a uma doação fraterna aos pobres. Nos Exercícios, Inácio fala mais da pobreza do que dos pobres. No entanto, a regra para reformar a própria vida inclui uma norma preciosa que toca a conversão econômica relativa à parte dos bens, a ser entregue a nossos irmãos mais carentes. Inácio propõe uma previsão orçamental: “quanto dinheiro deve separar para sua família, casa, quanto para dar aos pobres”, não buscando outra coisa senão em tudo e por tudo o maior louvor e glória de Deus, nosso Senhor” (EE 189) Inclino-me a pensar que em nossas vidas, provadas pela tentação sempre renascente do ter mais, o dom aos pobres é a garantia contra inflação do consumismo e da auto-suficiência. A passagem pela mediação do Pobre, que Cristo coloca no centro de sua resposta, é indicativa: para que se experimente que o amor oferecido às pessoas beneficiadas “é por Deus e que Deus resplandeça no motivo que leva a amá-lo” (EE 338). Embora Inácio vise nas regras para distribuir esmolas uma situação que não vigora mais hoje , o significado desta regra permanece e encontra amplamente seu campo de aplicação em nossa realidade. Não é possível, porém, dar e se doar, “se não tiver tirado de si qualquer afeição desordenada” (EE. 342), para que o gesto traduza as relações de amor do Pai e do Filho. O Pobre em sua pessoa daquele homem. centraliza as atitudes fundamentais que Cristo exige É preciso encontrar o pobre numa relação de igualdade, de comunhão, em que recebemos tanto quanto e mais daquilo que lhes damos - o dom é recíproco -. “Dá-o aos pobres”, de modo que teu dar te torne um doar-se e preserve teu irmão da humilhação que uma esmola sem comunhão traz consigo. Encontrar assim o pobre, num gesto da partilha, é modificar seu projeto pessoal, criar novos comportamentos, contar com o imprevisto, o atraso... Havia dado tudo e mais o samaritano da parábola. Mudou seu plano para “dar” o quanto lhe era possível; deixou seu dia, seu amanhã, sua viagem se construir com a presença do pobre na margem da estrada, da sociedade... São milhões hoje em nossas periferias, nos acampamentos dos sem terra... e alhures ainda. Que teremos para dar? Pouca coisa talvez, nossa vida com certeza. O livro dos Atos ressalta que a experiência espiritual das primeiras comunidades terminou na partilha econômica, sinal do amor comunitário. Nos EE, Inácio abre a contemplação da Encarnação com visão grandiosa da Santíssima Trindade. “Lançando os olhos sobre toda a redondeza da terra, cheia de homens... é povoada de tantas e diversas gentes... uns brancos, outros negros... uns com saúde outros sem ela... etc. (EE. 102.103.106). É este o quadro para decidir enviar a esta humanidade, mergulhada “em tão profunda cegueira” o Dom acima de todos: a Pessoa de Jesus. Ele esvaziando-se de todos seus bens e direitos divinos, optou radicalmente pelos pobres, sem exclusão, chamando a todos à conversão imprescindível pela pobreza. Só esta comunhão - partilha com o pobre torna visível a nossa coerência evangélica através de gestos concretos de solidariedade e aponta a grande utopia do Reino. Inácio trilhou este caminho - “Se nós mesmos fomos escolhidos e recebidos em tal vida e estado” (EE. 98) podemos também alcançar o tesouro, escondido hoje nas, favelas, nas fileiras de hospital, nas barracas das ocupações... “Dá-lo aos pobres”... terás um tesouro. 3 - O mistério do tesouro no céu... Terás um tesouro... e isso sem dúvida, pois a alegria do tesouro que “nem a traça nem a ferrugem corroem” está no coração daquele que fez “pobremente” a oblação do Reino - É vinho novo das bodas que aparece quando as reservas estão esgotadas, quando não há mais nada. Aliás, havia vendido tudo aquele homem que havia descoberto um tesouro num certo campo. Juntou logo seus bens para “comprar o tal do campo” O reino é semelhante a um tesouro escondido no campo, e sendo o Reino dos pobres, é por aí que encontraremos o tesouro. Se houver analogia entre Reino e Tesouro, haverá também semelhança nas atitudes que suscitam sua descoberta: abandono definitivo dos apegos, das amarras, dos obstáculos “oferecendo todo querer e liberdade”... todo ser e todo ter, para alcançar a Suma Riqueza na radical pobreza. Jesus falou para valer. Somente quem tem um coração de criança sabe ser feliz neste mundo; só os pequenos conforme o evangelho, solidários com o sofrimento de seus irmãos podem participar da alegria de Deus. No vasto campo do mundo “na grande planície em lugar humilde, belo e gracioso”. (EE 144), onde Jesus se apresenta, o pobre é o tesouro que desde já nos diz que o Reino ainda não chegou às extremidades da humanidade. O mistério do tesouro na pessoa do pobre abre uma fonte que não pode secar, por causa da esperança que lhe dá de jorrar, em meio das lutas, das lágrimas. “Onde está teu tesouro estará também o tu coração”, coração a se dilatar, coração a se fechar. Precisa escolher. O pobre evangélico, o pobre inaciano está colocado diante desta opção. Este mistério do tesouro é dialética de separação, de transfiguração que apenas pode entender quem o experimenta: “Somos julgados como indigentes, ainda que nós enriquecemos a muitos; como nada tendo, ainda que possuímos tudo” (2 Cor 6,10), o tesouro prometido. Situação paradoxal e propriamente evangélica em que riqueza e pobreza dialogam, integram-se, sintonizam-se a ponto de se tornarem a mesma realidade. O que era pobreza tornou-se riqueza, na vivência relacional do Reino do Amor. “Considerarei, dizia Inácio, como o Senhor do mundo inteiro escolheu tantas pessoas, apóstolos, discípulos, e os enviou por todo o universo... entre homens de todas as condições... (EE. 145), como única bagagem o TESOURO descoberto e adquirido à custa de um despojamento total. É verdade, como eles “levamos este tesouro em vasos de barro”, mas nesta condição mesma, o nada e o tudo, o apelo e a resposta, o abismo e a plenitude, a fraqueza e a força passam a se abraçar como o mar e o céu na pureza do horizonte. Sim, “vende tudo, dá-o aos pobres, sem dúvida terás um tesouro no céu”, que inicia aqui e agora, que cresce em todas as relações humanas carregadas de amor; céu que vai para sua gloriosa manifestação, na qual a suma Riqueza assumirá e plenificará a pobreza de todos. O tesouro, então, não estará mais escondido, aparecerá à plena luz do Reino Consumado na participação da glória “do Rei...” Como se admirar então de que no fim dos EE, ao termo desta longa caminhada de empobrecimento, Inácio proponha ao seu exercitante “entreter-se com pensamentos de prazer, de alegria e gozo espiritual, por exemplo à glória do céu”: é prenúncio a saborear o tesouro prometido. Conclusão Relido na perspectiva inaciana da Segunda Semana, este texto de Marcos nos esclarece. É um texto de posicionamento como o que distingue os três tipos de pessoas que Inácio nos apresenta (EE. 149-157). Como foi possível a um rapaz bem intencionado passar ao lado de tamanho amor? Enquanto o homem da parábola, ao encontrar o tesouro “vai cheio de alegria”, este, preso aos seus tesouros, foi incapaz de descobrir a riqueza que lhe era oferecida. Mais do que nunca - a hora urge - nosso mundo está esperando autênticos testemunhos de pobreza, agentes de construção de uma “civilização da pobreza” Assim se expressava, com uma intuição fina e espiritual, um verdadeiro filho de Inácio, Padre Ellacuria, em El Salvador. Seu combate contra a miséria degradante de seu povo oprimido, a favor de uma sociedade de pobreza evangélica, lhe valeu a graça do martírio com seus irmãos. Souberam “vender tudo” e ganhar o tesouro apontado. Restará sempre ao seguidor de Jesus realizar esta venda, de um modo ou outro, dar tudo e andar com o pobre, na busca ardente do tesouro e na alegria de encontrá-lo. Isso leva à contemplação do mistério de Deus, tanto Rico quanto Pobre em Jesus e termina no colóquio que Inácio nos convida a fazer a cada dia de nossa vida: “Tomai Senhor” tudo, sim, tudo mesmo; o que eu sou e o que eu tenho. É isso que eu quero. Dai-me somente o vosso amor e vossa graça, que esta me basta” (EE.234)