UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
Lauro Francisco da Silva Freitas Junior
PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS
DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: o princípio do promotor
natural
Belém
2009
Lauro Francisco da Silva Freitas Junior
PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS
DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: o princípio do promotor
natural
Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da
Universidade da Amazônia – UNAMA, na área de
Direito do Estado, como requisito para obtenção do
Título de Mestre em Direito.
Área de Concentração: Direito do Estado.
Linha de Pesquisa: Constituição, Direitos Humanos e
Relações Internacionais.
Orientadora: Dra. Daniella S. Dias.
BELÉM
2009
F866p
Freitas Junior, Lauro Francisco da Silva.
Pós-modernidade, globalização e os novos paradigmas de
atuação do ministério público: o princípio do promotor natural. /
Lauro Francisco da Silva Freitas Junior  Belém, 2009.
118 f.
Dissertação. (Mestrado)
Universidade da Amazônia, 2009.
Programa de Mestrado em Direito.
Orientadora: Profª Drª Daniella S. Dias.
1. Ministério Público. 2. Promotor Natural. 3. Globalização. 4.
Crime Organizado. 5. Pós-Modernidade. I. Título.
CDD 341.413
LAURO FRANCISCO DA SILVA FREITAS JUNIOR
PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS
DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: O PRINCÍPIO DO
PROMOTOR NATURAL.
Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da
Universidade da Amazônia – UNAMA, na área de
Direito do Estado, como requisito para obtenção do
Título de Mestre em Direito.
Área de Concentração: Direito do Estado
Linha de Pesquisa: Constituição, Direitos Humanos e
Relações Internacionais.
Orientadora: Dra. Daniella S. Dias.
BANCA EXAMINADORA:
______________________________
Profª Drª Daniella S. Dias
(Orientadora)
______________________________
Examinador(a)
______________________________
Examinador(a)
Aprovada em _____/ _____/ _____.
Conceito:
BELÉM
2009
Para Ana Cristina e minha família, sempre presentes em minha vida
com apoio e amor incondicional e verdadeiro.
Para a Prof ª. Dra. Daniella S. Dias, orientadora desta dissertação,
sou grato pelas conversas e conhecimentos transmitidos.
Para a Ana Luiza, minha pequenina, sempre constante companheira
de estudos.
RESUMO
O presente trabalho objetivou verificar a interpretação do princípio do promotor
natural face à realidade atual, marcada por conjunto de problemas e desafios que levam
diversas instituições democráticas a reverem seus parâmetros de atuação. A verificação a
principio do promotor natural, necessariamente, perpassa pela análise da pós-modernidade e
da globalização, contexto pelo qual o Ministério Público não pode estar dissociado, bem
como pelo estudo do crime organizado, fenômeno presente na sociedade atual. Na mesma
esteira, por se tratar de princípio – do promotor natural - a interpretação de princípios
constitucionais não poderia ficar sem uma análise, mesmo que sem aprofundamento. Como
complementação da análise, foi feita uma abordagem da Instituição Ministério Público
objetivando encontrar seus elementos essenciais.
Assim, uma nova interpretação do princípio do promotor natural diante da realidade
globalizada teve por objeto demonstrar que esse princípio precisa ter análise "elastecida"
tendo em vista nova estruturação e criação de grupos de trabalho tendo em vista combater o
crime organizado, um dos grandes problemas e desafios a serem enfrentados pela sociedade e
pelo Ministério Público. Com isso buscamos encontrar os limites e a extensão do principio do
promotor natural, gravado na Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Ministério Público. Princípio do Promotor Natural. Pós-modernidade.
Globalização. Crime Organizado.
ABSTRACT
The present work objectified to verify the interpretation of the Natural persecution
attorney Principle face to the current reality, marked for set of problems and challenges that
take diverse democratic institutions to review its parameters of performance. I begin it to the
verification of the natural persecution attorney, necessarily, permeates for the analysis of
after-modernity and the globalization, context for which the Public prosecution service cannot
be disconnected, as well as for the study of the organized crime, present phenomenon in the
current society. In the same mat, for if dealing with principle - of the Natural persecution
attorney - the constitutional interpretation of principles could not be without an analysis,
exactly that without deepening. As complementation of the analysis, a boarding of the
Institution was made Public prosecution service objectifying to find its elements essential.
So, a new interpretation of the Natural persecution attorney Principle in front of the
globalized reality had for object to demonstrate that this principle needs to have an enlarged
analysis tends in view new structuring and creation of work groups that intends to combat the
organized crime, one of the great problems and challenges be faced by the society and for the
public prosecution service. With this we search to find the limits and the extension of the
Natural persecution attorney Principle, printed in the Federal Constitution of 1988.
Keywords: Public Prosecution Service. Natural persecution attorney Principle. Post-modernity.
Globalization. Organized crime.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ...................................................................................................
9
1.1
DELIMITAÇÃO DO TEMA ................................................................................
9
1.2
MARCO JURÍDICO-TEÓRICO ..........................................................................
11
1.3
OBJETO E SIGNIFICADO DESTA DISSERTAÇÃO ......................................
11
2
PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS RUMOS DO
DIREITO NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO ..............................
13
2.1
A CONFIGURAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE .............................................
14
2.2
A GLOBALIZAÇÃO COMO FENÔMENO PÓS-MODERNO .........................
18
2.3
A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO ......................
26
2.4
O CRIME ORGANIZADO NA PÓS-MODERNIDADE ....................................
30
2.4.1
Crime Organizado: Definições ...........................................................................
36
2.5
OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE SOBRE O DIREITO PENAL .....
39
3
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS JURÍDICOS ..
43
3.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................
43
3.2
INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA ..........................................................
46
3.2.1
A Missão de Interpretar .....................................................................................
47
3.2.2
Interpretação Constitucional .............................................................................
49
3.3
PRINCÍPIOS JURÍDICOS ...................................................................................
52
3.3.1
A Normatividade dos Princípios .......................................................................
53
3.3.2
A Distinção Estrutural entre Regras e Princípios Jurídicos ...........................
55
4
O MINISTÉRIO PÚBLICO: ELEMENTOS ESSENCIAIS ..........................
59
4.1
A ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO ..........................................................
59
4.2
O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL ...........................................................
62
4.2.1
O Ministério Público e sua Inserção na Atual Arquitetura Constitucional
65
Brasileira ..............................................................................................................
4.2.2
O Novo Perfil do Ministério Público Brasileiro ...............................................
70
4.3
PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO .......................
73
4.3.1
Princípio da Unidade do Ministério Público ....................................................
73
4.3.2
Princípio da Indivisibilidade do Ministério Público ........................................
75
4.3.3
Princípio da Independência Funcional do Ministério Público .......................
76
5
A TEORIA DO PROMOTOR NATURAL ......................................................
79
5.1
O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL .....................................................
80
5.2
O PROMOTOR NATURAL COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL ...........
85
5.3
O
PROCURADOR-GERAL,
DESIGNAÇÕES
E
GRUPOS
ESPECIALIZADOS ............................................................................................
87
5.4
O PROCURADOR DE JUSTIÇA NATURAL ....................................................
90
5.5
NORMAS POSITIVAS QUE AJUDAM A ENTENDER O PRINCÍPIO DO
91
PROMOTOR DE JUSTIÇA NATURAL .............................................................
5.6
O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DISPENSADO PELO STF
93
ACERCA DO PROMOTOR NATURAL ............................................................
5.6.1
Os Julgamentos do Re 387974-DF E HC 902877-4-DF ...................................
95
5.7
O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL NO COMBATE AO CRIME
97
ORGANIZADO ....................................................................................................
6
CONCLUSÃO .....................................................................................................
102
REFERÊNCIAS ..................................................................................................
110
9
1
INTRODUÇÃO
1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA
O objetivo primordial da Constituição Brasileira de 1988 foi transformar o Brasil em
um verdadeiro Estado Democrático de Direito, ou seja, em um Estado que garantisse os
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça, concebidos estes como os valores supremos de nossa sociedade.
Assim, compreender o atual momento histórico pelo qual passa o Brasil é
compreender as bases do modelo jurídico determinado na Carta Magna de 1988. Em outras
palavras, conhecer os atores que atuam (ou que deveriam atuar) na defesa do regime
democrático instituído, entre eles o Ministério Público.
O Ministério Público, por seu turno, aparece neste novo cenário, como Instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, ou seja,
recebeu destinação constitucional de defensor dos fundamentos e valores do Estado
Democrático de Direito que se implantou no Brasil e, para tanto, recebeu instrumentos
importantíssimo para desempenhar suas funções, como a ação penal, a ação civil pública, a
ação direta de inconstitucionalidade, entre outros institutos.
Nesse diapasão, não podemos olvidar que após a Constituição de 1988, o Ministério
Público passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor do regime
democrático e dos interesses indisponíveis da sociedade (BRASIL, 1988, art. 127 da CF-88).
Não podemos deixar de levar em consideração que, além de inovações
constitucionais, o Ministério Público, assim como a própria sociedade, também está sujeito às
interferências e alterações pela qual o mundo passa.
Nesse sentido, o mundo pós-moderno, a globalização e as conseqüências que
surgiram, ou que foram fomentadas, em decorrência desses fenômenos, são realidades que
não podem passar despercebidas.
A pós-modernidade nos leva a uma crise de paradigmas em todos os ramos de
atuação do Estado. Com um mundo globalizado, fenômenos que já existiam, tiveram uma
expansão jamais vista. Aqui nos referimos ao crime organizado que, em conjunto com outras
mazelas sociais, aflige ainda mais a sociedade.
10
Diante do agravamento da criminalidade organizada, o aparato estatal mostra-se
pouco eficaz em sua contenção e, sobretudo, não sendo capaz de promover uma convivência
segura e pacífica. A repressão do crime se mostra deficiente.
É momento de preocupação. A proliferação do crime organizado solapa a base do
Estado e torna o regime democrático de direito frágil e desacreditado.
Diante deste cenário, o Ministério Público, como defensor do Estado Democrático de
Direito ganha evidência ímpar. Isto porque a referida atuação se traduz, em verdade, na
resistência indispensável à preservação do próprio Estado Brasileiro. Não adotar este
posicionamento, significa assumir um risco de caminhar em sentido contrário, ou seja,
retornar ao estágio no qual o Ministério Público não tinha importância nenhuma.
Para essa atuação moderna o Ministério Público, antes de tudo, deve ser eficaz. Essa
eficiência é demonstrada por meio de resultados na área de combate ao crime organizado. E
para tanto, princípios e valores institucionais devem ser revistos e analisados sob uma nova
perspectiva. É o caso do princípio do promotor natural, que ultimamente tem sido discutido
pelo Supremo Tribunal Federal.
Considerando os referencias teóricos para a transformação da sociedade e os novos
fenômenos surgidos desta era iniciou-se esta dissertação com uma análise da sociedade pósmoderna, da globalização e seus desdobramentos para o direito e o crime.
A interpretação e os princípios constitucionais serão analisados como suporte para o
entendimento do princípio do promotor natural que, apesar de amplamente estudado e
referenciado, não possui previsão expressa em nosso ordenamento jurídico.
Como o eixo principal do principio do promotor natural é o próprio Ministério
Publico, o estudo desta Instituição ganha importância relevante para essa dissertação.
O propósito desta dissertação é analisar o que existe de referencial teórico e jurídico
para a utilização do princípio do promotor natural no Brasil que atravessa por uma era pósmoderna, globalizada e de criminalidade organizada.
Delimitando o objeto de análise da presente dissertação, apresentamos as principais
indagações a serem respondidas:
a) Diante de um mundo pós-moderno, globalizado e de criminalidade organizada
pode o Ministério Público ficar inerte a essa nova realidade e não procurar meios
de se modernizar e se tornar eficaz?
11
b) De que forma deve ser visto e interpretado o princípio do promotor natural em
um novo cenário pelo qual passa a sociedade brasileira?
1.2 MARCO JURÍDICO-TEÓRICO
A linha de pesquisa desenvolvida nesta dissertação objetiva o estudo bibliográfico e
jurisprudencial do principio do promotor natural. Tal princípio se encontra inserido no âmbito
do Ministério Público, assim a análise perpassa pelo estudo pormenorizado dessa Instituição.
Por outro lado, qualquer análise do Ministério Público não pode ser separada da
contextualização do momento pelo qual a sociedade brasileira atravessa. Assim, o estudo da
pós-modernidade, da globalização e da disseminação da criminalidade organizada não poderia
passar despercebido. Por conseqüência, a doutrina sobre o tema foi analisada por meio das
obras de Casttels, Baumam, Giddens, Beck, Ianni, dentre outros autores que explanam as
alterações pela qual a sociedade atual passa.
Por se tratar de principio - do promotor natural - uma incursão no tema de
interpretação, regras e princípios também foi relevante. Para tanto, as análises realizadas –
especialmente aquelas sobre princípios e regras - foram consolidadas sobre as doutrinas de
Alexy, Dworkin, Eros Grau, Canotilho, Barroso, Dantas, dentre outros.
O Ministério Público enquanto Instituição deve ser entendida como instrumento de
democracia e garantia constitucional, logo, sua destinação, não surgiu do nada, possui uma
história e todo um arcabouço doutrinário, revelado por autores expoentes Mazzilli, Jatahy,
Carneiro, Lyra, Emerson Garcia.
1.3 OBJETO E SIGNIFICADO DESTA DISSERTAÇÃO
A dissertação está estruturada em seis partes, a partir deste capítulo introdutório. A
sociedade pós-moderna, o fenômeno da globalização e sua implicação no desenvolvimento da
criminalidade organizada e nos novos rumos do direito, trazem uma contextualização do
momento pelas quais as Instituições atravessam na atualidade (cap.2).
12
Para análise do principio do promotor natural, surge o capítulo 3. Nele é levantada a
teoria de interpretação e a teoria dos princípios, o qual analisará a normatividade dos
princípios e sua parcela de responsabilidade como ato interpretativo.
A análise da Instituição do Ministério Público é ponto de partida de qualquer
instituto que envolva esse Órgão. Desta forma, entender sua origem e outros elementos
essenciais no permitirá enxergar o princípio do promotor natural por outra perspectiva, mais
abalizada e de acordo com sua destinação constitucional (cap.4).
O Capítulo 5 específico sobre a teoria do promotor natural perpassa por toda a
doutrina que, até então, existe sobre o tema, bem como toda atividade jurisprudencial, que ao
longo de décadas, o Supremo Tribunal Federal vem desenvolvendo acerca do princípio. Nessa
mesma linha, o princípio é revisitado diante de uma nova ótica e em conjunto com o
fenômeno da criminalidade organizada e com a necessidade de existência de um Ministério
Público mais eficiente.
O capítulo 6 é conclusivo e tem como finalidade esclarecer os demais pontos
analisados bem como realizar a interconexão entre os diversos capítulos de forma a dar uma
visão contextualizada e atual do principio do promotor natural, onde fique evidenciada a
destinação constitucional do Ministério Público, ou seja, a defesa da sociedade.
13
2 PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E NOVOS RUMOS DO DIREITO NO
COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
Ao longo dos últimos quarenta anos tem-se falado, persistentemente, que a sociedade
ingressa em uma nova era de sua história. Essa idéia sugere que, conquanto ainda seja uma
sociedade industrial, ela passou por mudanças de tal alcance que não pode mais ser aceita
pelo velho nome nem estudada no contexto de antigas teorias. Essa sociedade seria agora a
sociedade pós-moderna.1
Mas, talvez, não a conheçamos suficientemente, e, por certo, não foi questionada,
ainda, qual a relação da mesma e seus efeitos, com o Ministério Público Brasileiro.
Assim, surge a necessidade de uma melhor análise da pós-modernidade. Nela
verificamos que o fenômeno da globalização está diretamente ligado a outro fenômeno,
também bastante atual, conhecido por crime organizado.
Desde logo, é fácil perceber que estamos diante de uma crise de paradigmas, que é
em boa parte, própria do advento da pós-modernidade. Nesse sentido, nenhuma Instituição
sobrevive ou se legitima apenas pelo discurso de defesa da sociedade e de justiça. Nenhuma
Instituição sobreviverá sem planejamento de atuação. Assim sendo, não basta que o
Ministério Público seja dotado de garantias, como a do princípio do promotor natural, antes
de tudo, ele deve ser eficaz, para fazer frente a novos desafios e tarefas.
Nessa perspectiva, a discussão em torno de novas atribuições e de novos paradigmas
de atuação do Ministério Público Brasileiro perpassa pelos fenômenos da globalização e do
crime organizado. E mais importante ainda, é analisar como deve ser a postura desse novo
Ministério Público Brasileiro frente ao futuro que se aproxima e quais os mecanismos que
devem ser utilizados para enquadrar este Órgão nessa nova feição mundial. Para tanto, é
imprescindível conhecermos essa nova era da sociedade e os fenômenos dela decorrentes ou
já existentes que foram fomentados.
1
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: Novas teorias sobre o mundo
contemporâneo. 20. Ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997, p. 09.
14
2.1 A CONFIGURAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE
Ao longo dos últimos quarenta anos, tem se falado, persistentemente, que a
sociedade ingressa em uma nova era de sua história. A sociedade atual ainda seja uma
sociedade industrial, passou por mudanças de tal alcance que não pode mais ser aceita pelo
velho nome, nem estudada no contexto de antigas teorias. Essa sociedade seria agora, para
alguns doutrinadores, a sociedade pós-moderna2.
No final do século que passou, uma revolução tecnológica com base na informação
transformou nosso modo de pensar, de produzir de consumir, de negociar, de administrar de
comunicar, de viver, de morrer, de fazer guerra e de fazer amor3.
A pós-modernidade é uma nova era da humanidade, caracterizada, a rigor, por
processos de mudança estrutural que deslocam a lógica de funcionamento desse período de
transição – como, por exemplo, o modo de produção de bens materiais proeminentemente
manufatureiros – para um modelo onde a informação (e seus mecanismos de produção,
organização, codificação e disseminação) ganha a centralidade do sistema de sociabilidade
entre os indivíduos e os povos4.
Assim, a sociedade pós-moderna é baseada na circulação de informação, cada vez
mais intensa e sofisticada, em que o computador e a informática se tornam imprescindíveis a
todas as áreas: da produção ao conhecimento5.
Em relação à pós-modernidade, relata Krishan Kumar:
A sociedade pós-moderna associa tipicamente o local e o global. Os
acontecimentos globais – a internacionalização da economia e da cultura –
são refletidos para as sociedades nacionais, minando as estruturas nacionais
e promovendo as locais. A etnicidade recebe um impulso renovado. Ocorre
um ressurgimento do regionalismo e dos “nacionalismos periféricos” – o
nacionalismo de pequenas nações que foram incorporadas a unidades mais
amplas, como o Reino Unido, a França, a Espanha e outros grupamentos
2
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: Novas teorias sobre o mundo
contemporâneo. 20. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar. 1997, p. 9.
3
CASTELLS, Manuel. Fim do Milênio. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, (A Era da Informação: economia,
sociedade e cultura; v.3), p. 19.
4
MELLO, Alex Fíúza de. Crise Paradigmática ou Miopia Ideológica. A (des) atualidade dos Clássicos em
Questão. São Paulo: Doutorado em Ciências Sociais/IFICH/UNICAMP, 1994. (mimeo), p. 1.
5
Willis Santiago Guerra Filho na obra Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna: Uma introdução a
uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 22., propõe que se utilize o conceito
de “sociedade pós-industrial”, uma vez que é neste setor que realmente ocorrem transformações.
15
nacionais históricos. “Pense globalmente, aja localmente”, o lema da década
de 1960, aplica-se a um bom número de novos movimentos sociais,
sobretudo aos movimentos feministas e ecológicos. Uma vinculação
semelhante ocorre em alguns dos novos movimentos de revivescência
religiosa, tais como o fundamentalismo protestante e o islâmico6.
Para Alex Fiúza de Melo “a modernidade é a passagem de um estado de rigidez
societária, que historicamente entrou em ebulição, para outro estado de sociabilidade em que a
fluidez das coisas, pelo impacto do emprego das tecnologias, torna-se o conteúdo das
formas.”7
Por ser uma época de transição, os mais desavisados poderiam se questionar de fato a
pós-modernidade, realmente, existe.
A indústria da cultura, fundamental nas sociedades ocidentais tem seu habitat na
produção incessante de imagens. A hiper-realidade é o mundo em que habitamos (mundo
virtual), por boa parte do tempo. A chamada informação de massa e veloz nos leva ao êxtase
da comunicação.8
A expressão pós-modernidade mobiliza emoções das mais diversas e contraditórias,
bem como extremadas. Sua conceituação é tormentosa. Explicar a conceituação de uma era
que já passou, que virou historia é simples, no entanto, conceituar algo que estamos vivendo é
difícil, quiçá impossível, ainda mais em uma era volátil e cheias incertezas como a que
vivemos.
O que nos parece certo é que a modernidade está ficando para trás, vez que algumas
de suas características9 não estão mais presentes e que vivemos algo novo, com
características, já ditas, marcantes.
6
KUMAR, op. cit., p. 159-160.
7
MELLO, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia: realidade e utopia. Belém:
EDUFPA, 2007. p. 33.
8
9
BAUDRILLAND apud KUMAR, op. cit., p. 164.
A modernidade é uma invenção da Idade Média cristã. O mundo antigo era pagão e o moderno cristão. Mas,
somente no século XVII foi plenamente desenvolvida em Francis Bacon, Descartes, entre outros.
16
Vejamos tentativa de conceituar a pós-modernidade, nas palavras de Krishman
Kumar:
[…] O que torna o pós-modernismo tão diferente como enfoque é que ele
transcende esses aspectos conhecidos para fazer alegações abrangentes, e
para muitas pessoas, chocantes, sobre a própria notícia da sociedade e da
realidade objetiva. Faz afirmações não só sobre a nova sociedade ou a
realidade social, mas sobre nossa maneira de conhecer a própria realidade.
Passa da história e da sociologia para questões filosóficas sobre a verdade e
conhecimento.10
E continua o autor:
Mais uma vez, podemos começar com o conhecido, mas com “jeito” novo, a
maioria das teorias sobre a sociedade contemporânea atribui um importante
papel aos meios de comunicação de massa, sobretudo na era das
telecomunicações e do computador. Esse fato é ainda mais claro na teoria da
sociedade de informação, mas entre também nos temas do pós-fordismo e
nas teorias marxistas de capitalismo tardio 11
A pós-modernidade, como movimento intelectual, é a critica da modernidade, a
consciência da necessidade de emergência de outra visão de mundo, a consciência do fim das
filosofias da história e da quebra das grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que
sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade. Por outro
lado, como contexto histórico, a pós-modernidade é um sintoma de um processo de
transformações que estão profundamente imersas em uma grande revolução cultural, que
desenraiza paradigmas ancestralmente fixados 12. Nesse sentido, como conjuntura de
transformações, a pós-modernidade sintetiza um complexo de mudanças.
Assim, em pleno início de século, uma parcela da humanidade, a dita
“desenvolvida”, passa por mudanças estruturais jamais vistas, levando a humanidade a uma
série de desafios, angústias e incertezas.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman fala em passagem da fase “sólida” da
modernidade para a líquida, ou seja, para uma condição onde organizações sociais perdem sua
forma original, uma vez que se decompõem e se dissolvem; fase em que o poder se separa da
10
KUMAR, op. cit., p. 160.
11
Id., p. 161.
12
BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
p. 146.
17
política; na redução gradual e consistente na segurança comunal, o colapso do planejamento,
de perspectivas; a responsabilidade em responder por escolhas, o risco eminente 13.
Por tudo o que foi dito, surge o aspecto de que a pós-modernidade14 possui
características próprias e marcantes e que o prefixo pós tem muito mais a função de eliminar o
velho (modernidade) do que identificar o novo (o pós-moderno). Na verdade temos uma
ruptura. Não conhecemos o que estar por vir.
Conforme Zygmunt Bauman nos ensina,
a pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a modernidade
olhando-se a distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de
ganhos e perdas, psicanalizando-se, descobrindo as intenções que jamais
explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se
cancelam. A pós-modernidade é a modernidade, chegando a um acordo com
a sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que
conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente.15
Para Ulrich Beck, a pós-modernidade (modernidade reflexiva) significa a
possibilidade de uma auto (destruição) criativa para toda uma era: aquela da sociedade
industrial, onde o “sujeito” dessa destruição não é a revolução, nem a crise, mas sim a vitória
da modernização ocidental16.
A pós-modernidade produziu um mundo perigoso e de riscos, afinal, é algo
incontrolável e ao mesmo tempo inevitável, a sociedade atual é desorientada e de mal-estar. O
mundo em que nos encontramos hoje, em vez de estar cada vez mais em nosso comando,
parece um mundo de descontrole.17
No mundo atual, existem as empresas transnacionais que desenvolvem um poder de
intervenção e de decisão comparável aos do Estado-nação, com a diferença que essa soberania
se exerce
simultaneamente no
interior
de
inúmeras territorialidades (nacionais),
condicionando governos locais e articulando-os, no interior das possibilidades de cada
13
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 7-10.
14
Anthony Giddens na obra As conseqüências da modernidade. São Paulo. UNESP, 1991, p. 12-13, afirma
que: “Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que
as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da
modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é “pósmoderna”, mas isto é bem diferente do que realmente é chamado por muitos de pós-modernidade”.
15
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. P. 288.
16
BECK, Ulrich. Modernização Reflexiva: Política, tradição, estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed.
da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 12.
17
GIDDENS, Antonhy. Mundo em Descontrole. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 14.
18
conjuntura, em função de um projeto maior que não tenha mais emblemas, nem hinos ou
bandeiras de cores e sentidos circunscritos à dimensão da modernamente construída noção de
nacionalidade18.
Estabelece com propriedade Eduardo Bittar:
Na pós-modernidade, o retorno ao Estado não significa um saudosismo ao
leviatã de Hobbes, ou muito menos uma repactuação contratualista
rousseaniana, mas, considerando-se outros aspectos demográficos de poder
(abertura para os movimentos sociais, ampliação da capacidade participativa,
ampliação de um papel controlador de normas etc.), uma re-fundação da
política sobre uma ética que valorize o estar-em-comunidade, noção esta
esfacelada ao longo das ultimas décadas pela falta de uma cultura do
consenso vitimada por uma cultura de competição. 19
A pós-modernidade é inerentemente globalizante20. O local está conectado ao global.
As atividades locais, em muitos casos são atingidas por acontecimentos distantes. E o inverso
também funciona assim. Assim, a experiência global da modernidade está ligada à influência
das instituições modernas nos acontecimentos da voz cotidiana. Enfim, a globalização é um
fenômeno da pós-modernidade.
2.2 A GLOBALIZAÇÃO COMO FENÔMENO PÓS-MODERNO
Uma nova economia surgiu em escala global nos ultimas décadas do século XX.
Trata-se de uma economia informacional, global e em rede. É informacional porque a
produtividade e a competitividade dos agentes dessa economia dependem de sua capacidade
de gerar, processar e aplicar, de forma eficiente, a informação baseada em conhecimentos; é
global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação assim como seus
componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação, tecnologia e
mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma rede de
conexões entre agentes econômicos; e, é em rede porque nas novas condições históricas, a
18
MELLO, op. cit., p. 03.
19
BITAR, Eduardo. Curso de Filosofia Política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 50.
20
GIDDENS, 1991, op. cit., p. 69.
19
produtividade é gerada e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes
empresariais 21.
Para a economia, a globalização é um fenômeno de derrubada de fronteiras
comerciais, industriais e econômicas, entre os países do plante Terra. É o livre comércio
intenso.
O conceito de globalização não é fechado, muito pelo contrário, é bem aberto, pois é
associado comumente à ênfase dada pela literatura inglesa dos anos 80 e a uma economia
política de relações internacionais. Ultimamente, este conceito tem se alargado e expressado
um vasto e complexo conjunto de processos.
Para Jose Eduardo Farias, os processos relacionados à globalização são destacados
da seguinte forma: a crescente autonomia adquirida pela economia em relação a política, a
emergência de novas estruturas decisórias operando em tempo real e com alcance planetário;
as alterações em andamento nas condições de competitividade de empresas, setores, regiões,
países e continentes; a transformação do padrão de comércio internacional, deixando
basicamente de ser eminentemente inter-setorial e entre firmas passando a ser infra-setorial e
intrafirmas; a “desnacionalização” dos direitos, a desterritorialização das formas institucionais
e a descentralização das formas políticas do capitalismo; a uniformização e a padronização de
práticas comerciais no plano mundial; a desregulamentação dos mercados de capitais, a
interconexão dos sistemas financeiro e securitário em escala global, a realocação geográfica
dos investimentos produtivos e a volatilidade dos investimentos especulativos; a unificação
dos espaços de reprodução social, a proliferação dos movimentos imigratórios e as mudanças
radicais ocorridas na divisão internacional do trabalho; e por fim, o aparecimento de uma
estrutura político-econômica multipolar incorporando novas fontes de cooperação e conflito
tanto no movimento do capital quanto no desenvolvimento do sistema mundial 22.
A globalização não é um fenômeno novo e exclusivo do século XX. Os antigos
impérios quando se expandiram, geraram modernização econômica, cultural e jurídica e
passaram por esse processo. Na era moderna, as grandes expansões de Portugal e Espanha já
denotavam globalização, vez que a cartografia e o crescente conhecimento científico da
navegação proporcionaram um desbravamento territorial. Em outra época, quando da
21
CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 119.
22
FARIAS, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 59-60.
20
revolução industrial, os ingleses precisavam escoar sua produção para o exterior, a
globalização também se fez presente23.
No entanto, a economia globalizada é uma realidade histórica diferente da economia
mundial. A economia mundial, a qual já existe no ocidente, pelo menos, desde o século XVI,
é uma economia em que a acumulação de capital avança por todo o mundo, enquanto a que
economia globalizada é algo diferente: é uma economia com capacidade de funcionar como
uma unidade em tempo real, em escala planetária 24.
A globalização é processo que se caracteriza pela dimensão financeira, pelas
transformações
institucionais,
políticas,
organizacionais,
comerciais,
financeiras
e
tecnológicas ocorridas ao longo das últimas três décadas e, especificamente, no aspecto
financeiro, pode ser resumida (1) na liberação monetária e financeira; (2) na desitermediação;
(3) e na abertura dos mercados financeiros nacionais. A abertura do mercado internacional
representou dois processos conjugados ou mudanças, aquele relativo às barreiras internas e
aquele outro que separava os mercados nacionais e externos25.
Desta forma, a globalização não pode ter um conceito inédito ou original na teoria
econômica e também não fica adstrita somente a esta área.
São as palavras de Ivo Dantas:
As teorias [da globalização] apresentadas como vimos de cunho
eminentemente econômico, serviram para demonstrar a dimensão e
complexidade dos temas pertencentes à globalização, que apesar de possuir
vários aspectos inclusive culturais, tem sido tratada quase exclusivamente na
perspectiva da ciência econômica, o que torna a maioria dos estudos a seu
respeito algo incompleto, sobretudo, quando não se faz referência aos
problemas legais que a sua adoção provoca nos âmbitos externos e internos
aos estudos principalmente quando estes aderem à forma de Estado neoliberal26.
Assim, fica nítida a importância para apresentação do processo de globalização, sua
incursão na seara econômica, no entanto, também é nítido que sua abrangência é muito maior
em outras áreas do conhecimento, sobretudo na sociologia e no direito.
23
FARIAS, op. cit., p. 60.
24
CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 142.
25
ROCHA, Luiz Alberto G. S. Estado, Democracia e Globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 92.
26
DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Econômico. Curitiba: Juruá, 1999, p. 117.
21
Em decorrência de todo esse processo, a globalização é multifacetária, se
apresentando das mais variadas formas. Mas afinal, como fica o homem no meio deste
processo?
Giddens define globalização como “a intensificação de relações sociais mundiais que
unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por
eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa.” 27
Na sociedade global, “ao contrário do que se verifica na sociedade nacional, a
desterritorialização é um processo cada vez mais intenso e generalizado. Há coisas, pessoas e
idéias desterritorializando-se o tempo todo. As relações, os processos e as estruturas de
dominação a apropriação, antagonismo e integração, parecem desenraizar-se. Há fatos sociais,
econômicos, políticos e culturais ocorrendo perto e longe não se sabe onde.” 28
Assim, a indefinição das fronteiras do Estado-Nação implica dificuldades para a
definição de cidadania. Um centro de poder bem definido dilui o controle social e pulveriza os
desafios a serem enfrentados pela política. 29
Assim, o processo de globalização tende a enfraquecer ou solapar formas nacionais
de identidade cultural. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de
estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos
sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicas e parecem
“flutuar livremente”.30
O autor Ulrich Beck distingue os termos globalidade e globalização. Para ele,
globalidade significa que não mais existem espaços isolados, onde nenhum país, nenhum
grupo pode se isolar dos outros, daí o entre choque das formas econômicas, culturais e
políticas. Por isso afirmar que a “sociedade mundial” representa um conjunto de realizações
sociais que estão paralelas à política de Estado Nacional legalmente constituído. Assim, a
sociedade mundial é algo não integrado e altamente diversificado. Por outro lado, a
globalização seria o processo em que o Estado Nacional vê sua soberania, sua identidade, sua
27
GIDDENS, 1991, op. cit., p. 69.
28
IANNI, Octavio. A sociedade Global. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 100.
29
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (A Era da Informação:
economia, sociedade e cultura;v. 2), p. 365.
30
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 73-75.
22
rede de comunicação, sua chance de poder e sua orientação sofrerem a interferência cruzada
de atores transnacionais. 31
Beck também diferencia globalismo:
Globalismo designa a concepção de que o mercado mundial ou bane ou
substitui, ele mesmo, a ação política; trata-se, portanto da ideologia do
império do mercado mundial, da ideologia do neoliberalismo. O
procedimento e mono causal, restrito ao aspecto econômico, e reduz a
pluridimensionalidade da globalização a uma única dimensão – a econômica
–, que, por sua vez, ainda é pensada de forma linear e deixa todas as outras
dimensões – relativas à ecologia, à cultura, à política e a sociedade civil –
sob o domínio subordinador do mercado mundial. 32
Sobre globalização, acentua Paulo Silva Fernandes:
Assim, findo este parágrafo já longo, e em resumo, podemos falar da
globalização como sendo um estreitamento (e aprofundamento) espaciocultural de toda uma estrutura econômica, social, política e cultural,
suportado por um densa, complexa e interligada rede de comunicação que,
possibilitando-o, acelera ainda mais todo um processo de diluição (outra vez
a figura do leviatã nos assalta …) do “uno” no “múltiplo”, do “ser-aídiferente” no “ser-em-todo-lado-igual”, de caldeirão onde se fundem
diversidade culturais, econômicas, políticas e sociais em conseqüência do
qual cada vez menos se encontra um “eu genuíno”. 33
Dessa forma, a globalização revela que estamos perante um fenômeno multifacetado
com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de
modo complexo34.
A globalização nestes contornos é inevitável. O mundo trilha em um caminho sem
volta. A abrangência de interesses envolvidos não nos permite afirmar que a globalização é
um fenômeno passageiro.
Em um cenário pós-moderno globalizado, os conceitos de Nação, Estado e Soberania
encontram-se conectados ou relacionados com processos econômicos, sociais, políticos e
culturais que se implicam e se complementam.
31
BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e
Terra, 1999. p. 29-30.
32
Ibid. p. 27-28.
33
FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal. Panorâmica
de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 41-42.
34
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed.. São Paulo: Cortez, 2005. p. 26.
23
A palavra “Estado” é oriunda de “Stato”, particípio do verbo “Stare”, e designado
“organização estável”. Este conceito de Estado descreve e indica um padrão de ordenamento
político que ganhou ênfase a partir do século XIII com a expansão das cidades.
Vinculado a este Estado, surge soberania em seu significado mais atual, o qual
encerra um poder estatal incontrastável com uma determinada sociedade política, poder este
independente, supremo, inalienável e, principalmente, exclusivo. Em outras palavras, poder
de manter os cidadãos sob controle e, mediante estabelecimentos de comportamentos padrões
e normas.
Nas palavras de Zygmunt Bauman:
O significado de “Estado” foi precisamente o de um agente que reivindica o
direito legitimo e se gabava dos recursos suficientes para estabelecer e impor
as regras e normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território;
regras e normas que, esperava-se, transformassem a contingência em
determinação, a ambivalência em “Eindentigkeit” [clareza], o acaso em
regularidade – em suma, a floresta primavera em um jardim cuidadosamente
planejado, o caos em ordem35.
Nessa linha, o Estado significa aquele que detém o poder de soberania interna e
externa sobre a área e o corpo de cidades. O termo nação adquire a forma de comunidade
organizada, onde a união desses fatores faz surgir o Estado Nacional36.
Em outra época, o Estado-Nação se baseava na crença que podia ter o controle de
suas riquezas. No entanto, a capacidade instrumental deste Estado-Nação está comprometida
de forma decisiva pela globalização das principais atividades econômicas, pela globalização
da mídia e da comunicação e pela globalização do crime 37.
O declínio deste Estado-Nação se deve à sua clara subordinação aos movimentos e às
articulações do capital, ou seja, a dinâmica do capital se apresenta diferente da dinâmica do
Estado-Nação, seja ele dependente, associado ou dominante. Os aparelhos estatais acabam por
serem agências da economia mundial e freqüentemente cedem às exigências das relações,
processos e estruturas que articulam a sociedade global38.
35
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. p. 68.
36
ROCHA, op. cit., p. 15.
37
CASTELLS, v. 2, op. cit., p. 288.
38
IANNI, op. cit., p. 92.
24
Assim, malgrado o fenômeno globalização, o Estado-Nação não está em vias de
desaparecer. Ele é apenas redimensionado na era da informação 39.
É certo que sofre muitas influências do novo mercado econômico mundial, fazendo
vir à tona sua fraqueza e sua forma obsoleta de governar.
A globalização fez com que o Estado sofresse um duro golpe em sua base de
sustentação: a soberania nacional. Elucida José Eduardo Faria:
Uma das facetas mais conhecidas desse processo de redefinição da soberania
do Estado-Nação é a fragilização de sua autoridade, o exaurimento do
equilíbrio dos poderes e a perda de autonomia de seu aparato burocrático, o
que é revelado pelo modo como se posiciona no confronto entre os distintos
setores econômicos (sejam eles públicos ou privados) mais diretamente
atingidos, em termos positivos ou negativos, pelo fenômeno da
globalização40.
Para o professor Luiz Alberto Rocha:
Nessa fase pós nacional o Estado está obrigado a viver com outros atores
internos (sociedade civil organizada em nível global) e externos (organismos
internacionais), sob os quais não tem poder de controle. Tudo isso
proporciona, no mínimo, a relativização da soberania (soberania limitada)
em nome de uma organização que conjuntamente possa ensinar soluções
para seus problemas comuns. Que comunidade é ou será é que, apesar dos
inúmeros trabalhos e do modelo da União Européia, ainda resta ao futuro nos
apresentar! 41
A defesa do Estado-nação na era da globalização não significa a velha idéia de
soberania. É necessário estabelecer um novo conceito de soberania, onde os Estados-nação,
não sejam mais vistos com poderes absolutos, capazes de impor resultados em todas as
dimensões dentro de um território. Trata-se de percebê-los como locais a partir dos quais
novas formas de governabilidade podem ser propostas, legitimadas e monitoradas. Nesse
sentido a soberania transformar-se. O Estado todo-poderoso, com competências ilimitadas,
não mais é cogitado. Doravante, seu poder e relevância derivam de sua capacidade de policiar
39
CASTELLS, v. 3, op.cit., p. 435.
40
FARIAS, op. cit., p. 25.
41
ROCHA, op. cit., pag. 163.
25
seus limites físicos, e, principalmente, da possibilidade de representar efetivamente os
cidadãos dentro de suas fronteiras 42.
A globalização, porém, como já foi dito alhures, não exterminará o Estado do cenário
mundial, ele continuará existindo, enfraquecido, mas existindo.
A globalização, como fenômeno multifacetário que é também influenciou a área do
direito.
As transformações das sociedades contemporâneas modificam o antigo modelo de
direito (positivismo jurídico)43 à medida que as estruturas e relações de poder assumem novas
configurações e inovam-se as formas de produção e de operação do direito.
A globalização evidencia essa transformação, pois com ela, geram-se novas formas
de direito que estão em relações variadas com as fronteiras do direito estatal.
A produção normativa foi extremamente alterada pela inserção de novos atores,
assim como o próprio modo de legislar. A produção normativa sofreu um forte impacto da
globalização tendo em vista o surgimento desses novos atores – regionais ou mesmo globais –
que passaram a editar normas jurídicas no sentido mais tradicional (obrigatoriedade,
generalidade e bilateralidade).
A globalização muda o panorama jurídico de produção de direito. O Estado perde
parte do monopólio de produção legislativa e com isso, parte de sua soberania 44.
Nesse sentido, são as palavras de Jose Eduardo Faria:
O denominador comum dessas rupturas [institucionais nas estruturas
jurídicas e políticas do Estado] é, como se vê, o esvaziamento da soberania e
da autonomia dos Estados nacionais. Por um lado, o Estado não pode mais
almejar regular a sociedade civil nacional por meio de seus instrumentos
jurídicos tradicionais, dada a crescente redução de seu poder de intervenção,
controle, direção e indução. Por outro lado, ele é o obrigado a compartilhar
sua soberania com outras forças que transcendem o nível nacional. Ao
promulgar suas leis, portanto, os estados nacionais acabam sendo obrigados
42
GONÇALVES, Alcindo. Soberania, Globalização e Direitos Humanos. In: DERANI, Cristiane. Globalização
e Soberania. Curitiba: Juruá, 2008.p. 25-26.
43
O positivismo jurídico caracteriza o direito como um conjunto de normas estatais, produzidas por instâncias de
representação políticas democráticas e efetivadas por instituições estatais especializadas, com alta coordenação
horizontal e integração vertical (organização burocrática). O direito tem fronteiras nítidas, num triplo sentido:
disciplinar, política, e fronteiras nacionais em que o direito é associado à soberania estatal, tornando o Estado o
único produtor legítimo do direito.
44
ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da Globalização. Rio de Janeiro : Lumen
Juris, 2006. p. 155.
26
a levar em conta o contexto econômico-financeiro internacional, para saber o
que podem regular e quais de suas normas serão efetivamente respeitadas 45.
Esse cenário revela as mudanças do sistema jurídico, vez que, com elas criam-se
novas formas jurídicas de direito que estão em relações variadas com as fronteiras do direito
estatal. As técnicas jurídicas são aprimoradas, por meio de cooperação entre juristas, agentes
políticos, especialistas e cidadãos nos processos de tomada de decisão. A legislação passa a
adotar princípios diretores, como por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Foi visto que, na entrada do novo milênio as ciências sociais deparam-se com algo,
talvez, já mais visto na história da humanidade. O homem, a sociedade e o Estado atravessam
mudanças estruturais que se desdobram para todas as áreas do conhecimento.
A pós-modernidade aliada ao processo de globalização deixa o cenário mundial
diferente, com novos atores e com novos conceitos até então desconhecidos. Como nos ensina
Zygmunt Bauman:
Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que
foi articulada (com pouco beneficio para a clareza intelectual) num conceito
atualmente na moda: o da globalização. O significado mais profundo
transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado,
indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais, a ausência de um
centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete
administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jonit com
um outro nome. 46
2.3 A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO
Na sociedade moderna a ênfase era dada ao perigo, na pós-moderna é dada ao risco,
vez que o perigo só existe em função do risco. O risco, e não mais a segurança47, gera o
perigo. Assim, a sociedade pós-moderna é sinônimo de sociedade de risco.
O fenômeno do risco, não é recente, e pode ser fornecido por várias ciências.
45
FARIAS, Jose Eduardo. Direito e Globalização Econômica: Implicações e Perspectivas. Editora Malheiros:
São Paulo, 1998. p. 11.
46
47
BAUMAN, op. cit., pag. 66-67.
Em contraposto ao risco, existe a possibilidade da estabilização de estruturas de expectativas com o
conseqüente fornecimento de segurança.
27
No entanto, foi nas ciências sociais que encontramos uma melhor análise, vez que a
ação humana é o centro da observação. Existe um trabalho específico, feito de forma racional,
onde se analisam as conseqüências de diversas decisões e suas possibilidades de benefícios e
prejuízos.
Nesse contexto, o risco decorre da omissão humana de prevenção, ou então, quando
os danos decorrem de decisões tomadas pelo próprio indivíduo. Por outro lado, todo dano que
seja indiferente diretamente ao ato humano, como um terremoto e as catástrofes em geral,
tem-se o perigo48.
Augusto Silva Dias conseguiu identificar três fases na historia do risco, da seguinte
forma: A primeira corresponde ao advento da base moderna, em que, todavia, os riscos ainda
são “incipientes” e “controláveis”; a segunda, que se estende “de finais do século XIX até a
primeira metade do século XX” surge da vontade de “conter e domesticar estes riscos
mensuráveis e controláveis”, com o fim de reduzir tanto a sua ocorrência como a sua
gravidade, e que corresponde ao Welfare State; a terceira fase, por fim, corresponde ao nosso
tempo, coincidente com o fracasso do Welfare State e o aparecimento de novos, graves e
incontroláveis riscos, fruto desmedido do desenvolvimento da sociedade industrial tardia 49.
O Risco se refere aos infortúnios ativamente avaliados em relação às atividades
futuras. O termo só passa a ser amplamente utilizado em sociedades voltadas para o futuroque vêem o futuro precisamente como um território a ser conquistado ou colonizado. O
conceito de risco perpassa por uma sociedade que tenta ativamente romper com seu passado –
de fato, característica da sociedade pós-moderna50.
Os riscos na sociedade pós-moderna se expandiram. Não só pelo aspecto de estarem
globalizados, mas também porque não se resumem mais somente ao aspecto do meio
ambiente. A violência, a insegurança, o tráfico de drogas e de pessoas, os delitos eletrônicos
compõem o triste cenário em que viemos. São os riscos pós-modernos, que tem como
procedência o próprio homem. Assim, se reconhece que as modernas sociedades industriais,
geraram riscos que comprometem a continuidade da própria sociedade51.
48
Essa diferença é apenas conceitual e didática vez que, entendemos que todo perigo, na atualidade, resulta de
ato humano. Para efeito de entendimento, neste trabalho, risco seria sinônimo de perigo.
49
DIAS, Augusto Silva. Protecção Jurídico Penal de Interesses dos Consumidores. 2. ed. Policopiada, das
“Lições” aos Cursos de Pós-graduação em Direito do Consumo e em Direito Penal Econômico e Europeu,
FDUC, 2000. P. 02, apud FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do
Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 33
50
GIDDENS, 2007, op. cit., p. 33.
51
FERNANDES, Paulo, op. cit., p. 46.
28
O risco pós-moderno se caracteriza pela ausência de segurança e a presença da
contingência. É de domínio doutrinário que a sociedade caracteriza pela pós-modernidade e
nunca pela indeterminação e pela instabilidade, geradas pela falta de segurança e pela
possibilidade premente do dano em face do risco inerente às ações52.
A sociedade pós-moderna é uma sociedade de risco, uma sociedade também com
outros caracteres individualizadores, que convergem na sua caracterização como uma
sociedade de objetiva insegurança53.
Dessa forma, já é sabido que a globalização possui diversos dissabores, o mundo
agora possui insegurança e riscos jamais vistos. A insegurança e o risco deixaram de ser
locais e passaram a ser globais.
No entanto, o risco é algo que, da mesma forma que a globalização, é um fenômeno
real e inevitável e inerente ao ser humano. Nas palavras de Antonhy Giddens:
Finalmente, é impossível adotar simplesmente uma atitude negativa em
relação ao risco. O risco sempre precisa ser disciplinado, mas a busca ativa
do risco é um elemento essencial de uma economia dinâmica e de uma
sociedade inovadora. Viver numa era global significa enfrentar a diversidade
de situações de risco. Com muita freqüência podemos precisar ser ousados, e
não cautelosos, e apoiar a inovação científica ou outras formas de mudança.
Afinal, uma raiz do termo “risk” no original português significa ousar .54
Como já foi dito, a sociedade de risco é um fenômeno pós-moderno. A vida pósmoderna e os avanços tecnológicos ocasionam novos riscos, que atualmente podem ser
gerados por qualquer pessoa no mundo. Esses riscos, considerando suas gravidades, podem
gerar o fim da vida no planeta Terra (aqui podemos considerar os riscos ao meio ambiente e
os de segurança mundial, gerando uma guerra nuclear).
Segundo Ulrich Beck:
Os riscos e perigos de hoje se diferenciam essencialmente dos da Idade
Média pela globalidade de suas ameaças e por suas causas modernas. São
riscos da modernização. São um produto global da maquinaria do processo
industrial e são aumentadas sistematicamente com seu desenvolvimento
posterior55.
52
COSTA, Renata Almeida da. A Sociedade Complexa e o Crime Organizado: A Contemporiedade e o Risco
nas Organizações Criminosas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 33.
53
SÁNCHES, Jose Maria Silva. La Expansion Del Derecho Penal. 2. ed.. Madrid: Civitas, 2001. p. 15.
54
GIDDENS, 2007, op. cit., p. 44-45.
55
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p. 28.
29
A sociedade pós-moderna pode definir-se, todavia, como uma sociedade do medo.
Com efeito, uma das características mais significativas desta era, é a sensação de insegurança,
ou seja, surge uma forma, especialmente aguda, de viver em risco 56.
O conceito de risco parecer significar um “inter” “est” entre a segurança e a
destruição. Algo que se situa a meio dessas duas variantes, um “Estado intermediário”, em
que a percepção dos riscos ameaçadores determina o pensamento e a ação. Diríamos nós, no
sentido da percepção quase - apocalíptica destes novos riscos: a sua invisibilidade aliada a
perdurabilidade de seus efeitos bem como essa sua dimensão hercúlea, faz-nos sentir o vazio
da impotência para os travar e controlar, originando sentimentos de insegurança e medo. 57
A sociedade de risco criou uma estranha realidade, uma unidade jamais vista. As
categorias agora são diluídas e se misturam, chegando ao ponto de se confundir. Autor e
vítima, no que tange ao dano ambiental, são as mesmas personagens do processo 58. É o que
Beck chama de “efeito boomerang” 59, onde tudo em volta, é seu agressor. Diariamente, somos
confrontados com os resultados de nossas ações e, assim, co-responsáveis ou co-vítima de
todo um processo de degradação ambiental e principalmente, social.
Beck se referia ao “fim dos outros” da seguinte forma: até agora, todo sofrimento,
toda miséria, toda violência, que os seres humanos causaram a outros resumia-se a categoria
dos <<outros>> […]. Tudo isto já não existe desde Chernobyl. Chegou ao final dos outros, o
final de todas nossas possibilidades de distanciamento tão sofisticados, um final que se tornou
palpável com a contaminação atômica. 60
O mundo agora, além da problemática ambiental, possui outros problemas. A
violência em escala mundial, o surgimento do terrorismo fundamentalista e o crime
organizado internacional, são alguns exemplos.
56
SÁNCHES, op. cit., p. 20.
57
FERNANDES, Paulo, op. cit., p. 59-60.
58
Processo semelhante ocorre com o político corrupto que sofre com a violência urbana; o traficante que vê sua
família por possuir um de seus membros usuário dependente de droga.
59
BECK, 1998, op. cit., p. 43.
60
Ibid., p. 11
30
2.4 O CRIME ORGANIZADO NA PÓS-MODERNIDADE
A sociedade pós-moderna globalizada propiciou o aparecimento de novos riscos e
sensações de insegurança, fatores este que se devem ao desenvolvimento acelerado das
grandes cidades, da migração de pessoas, dos avanços tecnológicos, da ausência de fronteiras
e da versatilidade do fluxo de capitais circulantes no mundo, todos como conseqüências
sociais da globalização 61.
A dinâmica da globalização reduziu os entraves ao movimento de pessoas, bens e
transações financeiras. As barreiras comerciais e financeiras foram derrubadas. Com isso, os
grupos internacionais do crime organizado puderam expandir a sua ação e organização. Nas
últimas duas décadas, as organizações criminosas vêm estabelecendo, cada vez mais, suas
operações de uma forma transnacional, aproveitando-se da globalização econômica e das
novas tecnologias de comunicação e transporte62.
O crime organizado beneficia-se da globalização da economia, do livre comércio, do
desenvolvimento das telecomunicações e do sistema financeiro internacional. O crime forma
uma rede paralela ao Estado, com um poderio financeiro gigante, em decorrência da
facilidade de “lavagem de dinheiro” e do grande poder de influência (corrupção). Outrora,
este panorama era quase que inexistente ou muito restrito a nichos de máfias espalhados pelo
globo; agora, com a globalização, é uma realidade presente em todos os países do mundo.
O fenômeno da globalização encontra-se presente nas práticas ilícitas. Talvez seja
esta a marca mais evidente, na atualidade, do crime organizado.
As redes criminosas internacionais têm grande facilidade de tirar proveito das
oportunidades que a globalização oferece. Sem barreiras, os criminosos podem expandir as
suas redes e aumentar a cooperação em atividades ilícitas, notadamente, no que diz respeito à
“lavagem de dinheiro”.
Nessa mesma linha, com a abertura de capitais, o crime organizado vai estabelecendo
companhias ou negócios ditos quase-legais, facilitando diversas iniciativas criminosas, que
lhe proporcionem lucro.
Com a globalização, tivemos avanços revolucionários nas tecnologias de informação
e de comunicação. O mundo está mais próximo, assim como o crime.
61
CALLEGARI, André Luis. Crime organizado: tipicidade - política criminal – investigação e processo:
Brasil, Espanha e Colômbia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 11.
62
CASTELLS, v.3, op. cit., p. 205.
31
O antigo crime organizado internacional tinha, no controle fronteiriço, na velocidade
menor no transporte e nas telecomunicações, bem como na necessidade de movimentar
dinheiro em espécie, grandes impedimentos. Assim, não é possível afirmar que se tratava de
crime organizado global, mas sim local. Para Manuel Castells “a prática do crime é tão antiga
quanto à própria humanidade, mas o crime global, a formação de redes entre poderosas
organizações criminosas e seus associados, com atividades compartilhadas em todo o planeta,
constitui um novo fenômeno que afeta profundamente a economia no âmbito internacional e
nacional, a política a segurança e, em última análise, as sociedades em geral”. 63
Outro efeito da globalização, notadamente, a redução dos entraves ao movimento de
pessoas, tem permitido aos internacionais do crime organizado, expandir quer a
diversificação, quer a penetração aos negócios. O crime não se limita mais aos negócios
tradicionais e nem a espaços tradicionais.
Por fim, com a globalização, as redes criminosas têm se tornando mais sofisticadas e
flexíveis.
Ao longo do século XX, em decorrência do comércio ilícito, as organizações
criminosas passaram a ser mais vistas pelo Governo e pela própria sociedade. No entanto, o
crime vinha sendo visto de forma “caseira”, sem muitas preocupações. Com o fenômeno da
globalização, isso mudou. Elucidando o tema Moisés Naim relata:
Apenas recentemente essa mentalidade – restrita – começou a mudar. Graças
à Al Qaeda, o mundo agora sabe o que pode fazer uma rede de indivíduos
altamente motivados, sem vínculos nacionais e cujos poderes emanam da
globalização. O problema é que o mundo ainda pensa nessas redes
principalmente em termos de terrorismo. No entanto, como as páginas
seguintes comprovarão, o lucro é uma motivação tão poderosa quanto Deus.
As redes de comerciantes de bens ilícitos sem pátria estão mudando o mundo
tanto quanto os terroristas – provavelmente mais. Mas o mundo, obcecado
pelo terror, ainda não se deu conta.64
Em contrapartida, como política de segurança, se faz necessário estabelecerem-se
rapidamente políticas claramente repressivas vinculadas ao tema esse tema (crime organizado,
tráfico de drogas, terrorismo etc.), o que abre um amplo debate sobre a função e atuação
eficaz dos Órgãos responsáveis pela repressão ao crime, em âmbito nacional e internacional.
63
64
CASTELLS, v.3, op. cit., p. 203.
NAÍM, Moisés. Ilícito: o Ataque da Pirataria, da Lavagem de Dinheiro e do Tráfico à Economia Global. Rio
de Janeiro: J. Zahar, 2006. p. 11.
32
Uma moeda sempre possui dois lados. No nosso caso, um lado corresponde à última
década do século XX, aonde vimos o mundo mudar em uma avalanche súbita e inesperada de
idéias novas e tecnologias inéditas. Da mesma forma, ocorreu com a política e com a
economia.
O outro lado da moeda, menos empolgante, é o crime global. Os traficantes nunca
foram tão internacionais, ricos e politicamente influentes. O crime global se expandiu, a ponto
de se tornar uma força política. O estudo ou análise da economia e da política não pode deixar
de lado essas mudanças. As redes criminosas crescem num ambiente globalizado.
Nesse contexto, escreveu André Luís Callegari:
De um lado, parece claro que em matéria de criminalidade organizada é
necessária a adaptação a um problema novo, real e em expansão. Sem
dúvida a criminalidade se encontra imersa em um profundo processo de
organização, acompanhando fenômenos como a globalização da economia
ou a aparição de novas zonas sumidas na anomia, fruto da imposição do
bloqueio soviético. Entretanto, não se deve esquecer que, sendo um
problema real, é objeto de intensa instrumentalização. Com efeito, até o
súbito reaparecimento do novo terrorismo global, o crime organizado (em
especial o narcotráfico), foi apresentado como a principal ameaça coletiva,
substituindo os desaparecidos medos da guerra fria65.
Para Moíses Naím, o sucesso das redes criminosas baseia-se tanto na mobilidade
internacional como na sua habilidade de se beneficiar das oportunidades brotadas da
separação dos mercados e que desaguaram dentro das fronteiras dos estados soberanos. Para
os criminosos, as fronteiras criam oportunidades de negócios e escudos convenientes; no
entanto, para os funcionários do governo que os caçam, as fronteiras são freqüentemente
obstáculos instransponíveis. Os privilégios da soberania nacional transformaram-se em fardos
e limitações para os governos devido a essa assimetria. No confronto global entre governo e
criminosos, os governos saem sistematicamente perdendo.66
Atualmente, o comércio ilícito permeia, com a mesma intensidade, sociedades ricas e
pobres. Antigas modalidades de tráfico 67 são revitalizadas e toda uma linha nova de negócios
está aparecendo.
65
CALLEGARI, op. cit., p. 15.
66
NAÍM, op. cit., p. 18.
67
Tome-se de exemplo a escravidão que, supostamente estava morta. No entanto, se faz presente na forma da
coerção sexual e no trabalho doméstico e rural feito por imigrantes ilegais que trabalham para pagar dívidas
indetermináveis que os prendem aos traficantes.
33
O mercado ilícito global destrói indústrias inteiras enquanto erguem outras, cria e
destrói carreiras políticas, desestabiliza alguns governos e apóia outros. Diante deste
panorama sombrio, quem sofre é a própria sociedade.
Em uma ponta, temos os países onde as rotas de tráfico, as fábricas clandestinas, os
recursos globais roubados não se distinguem mais da economia oficial e do governo; e em
outra ponta, os países ricos consumidores. 68
O futuro que nos aguarda revela que o crime organizado terá um impacto ainda
maior na promoção da democracia, nos negócios e finanças, nos movimentos migratórios, na
segurança global, na guerra e na paz.
Nada se compara ao negócio das drogas. O tráfico de drogas, entre as modalidades
de crime organizado, é o que detém o maior número de integrantes definidos e maior divisão
de funções.
A natureza do comércio ilícito de drogas é global. No entanto, a atenção maior está
voltada para as fontes de sempre – a demanda é Norte-Americana, enquanto Colômbia,
México, Afeganistão e alguns outros países, são os ofertantes.
Desde a década de 90, os Estados Unidos continuam a ser o maior país consumidor
de drogas ilícitas e também árduo combatente, inclusive além de suas fronteiras, a essa
criminalidade.69
Por outro lado, Colômbia e Afeganistão são os maiores produtores de cocaína e
heroína, respectivamente, do globo 70.
A globalização trouxe aberturas e capitais e o livre comércio no mundo inteiro. Na
mesma esteira, o comércio de drogas ilícitas se expandiu.
São várias as principais características da indústria do tráfico de drogas: Ela está
orientada à demanda e à exportação; a indústria é totalmente internacionalizada, com uma
divisão bastante rigorosa da mão-de-obra entre os diferentes locais do processo produtivo; o
componente essencial de toda a indústria da droga é o sistema da lavagem de dinheiro; o
cumprimento de todo o conjunto de transações é assegurado por meio de violência em um
68
No entanto, as confortáveis vidas da classe média dos países ricos estão muito mais ligadas ao tráfico – e seus
efeitos globais – do que a maioria de nós pode imaginar.
69
Cf. NAÍM, op. cit., p. 78.
70
Cf. Ibid., p. 68.
34
nível extraordinário; e, a indústria da droga precisa da corrupção e da penetração em seu meio
institucional para poder funcionar, em todas as etapas do sistema 71.
O tráfico de drogas, guardadas as devidas proporções, mantém as mesmas estruturas
de uma indústria globalizada, legalmente constituída. É oportuno lembrar que, as
transformações das indústrias globais, seja qual for a natureza, não seriam possíveis sem as
inovações e ferramentas da globalização 72.
O tráfico de drogas, entre as modalidades de crime organizado, é a mais perigosa e
devastadora, porque do tráfico de drogas, surgem diversos outros crimes e danos sociais
irreparáveis.
A escravidão não pertence mais ao passado. Para termos uma idéia, foram
necessários 400 anos para que 12 milhões de escravos africanos fossem levados ao novo
mundo e hoje, estima-se que 30 milhões de mulheres e crianças foram vítimas do tráfico,
somente na Ásia, nos últimos 10 anos.
O tráfico humano ainda não é o mais rentável (perde para o tráfico de drogas), mas é
o que mais cresce, e de forma avassaladora.
De modo geral, os escravos são oriundos de países pouco desenvolvidos. No entanto,
ultimamente tem se desenvolvido uma prática na Europa, onde turistas abastadas são
seqüestradas e vendidas em um mercado negro e desenvolvido.
A globalização trouxe o aumento da escravidão, vez que novos mercados foram
criados para os traficantes humanos. A abertura de fronteiras e a facilidade de movimentação
permitiram o aumento do contrabando 73 de seres humanos, notadamente de mulheres e
crianças.
O tráfico humano é a forma mais sórdida de circulação do trabalho na nova
economia global. 74As operações do tráfico sexual são eficientes e degradantes. A triste
realidade atual é que, onde houver demanda por sexo, os traficantes expandirão seus negócios,
ou seja, o mundo é o limite!
71
CASTELLS, v.3, op. cit., p. 227-231.
72
Os atravessadores de drogas não só podem usar o serviço de entrega rápida, como também podem, ao rastrear
um carregamento on-line, saber se chegou ou se ficou detido, o que os avisa para uma possível interceptação,
eliminando ou diminuindo a ação do governo em combater o crime.
73
Os termos contrabando humano e tráfico humano designam, em princípio, duas atividades diferentes. No
contrabando humano, o imigrante paga ao contrabandista pela travessia. No caso de tráfico, o traficante decide,
coage o imigrante e o vende como mão-de-obra. Mas na realidade, a distinção não é tão nítida.
74
NAÍM, op. cit., p. 88.
35
Tão nefasta como a prostituição global é a pedofilia. Um novo paraíso para o turismo
sexual de menores vem surgindo. Atualmente, países da América Central têm sido
identificados como possuidores de instalações hoteleiras especiais, dedicadas à prostituição
infantil.
Relacionada à prostituição, está pornografia infantil. A tecnologia é um dos
principais fatores responsáveis pelo crescimento desse tipo de atividade. Câmeras, vídeos,
mesas de edição caseiras, computação gráfica, tudo isso trouxe a indústria da pornografia
infantil para dentro de casa, o que significa difícil fiscalização. A internet abriu novos canais
de informação para os que procuram ter acesso a menores com intuito sexual, vez que o
anonimato assegurado pelo site eletrônico ajuda a romper a barreira do medo existente da
massa de pervertidos que vivem entre nós.75
Para Mario Daniel Montoya, estima-se que a cada ano mais de um milhão de
crianças são forçadas a exercer a prostituição, com finalidades sexuais e dentro da pornografia
infantil. Às vezes, somente pequenos grupos de criminosos de uma determinada região estão
relacionados com a prostituição; na maioria dos casos, a criminalidade internacional participa
do negócio76.
Desta forma, o Estado, por meio de sua Polícia, perde o controle, permitindo que o
crime organizado global, em suas variadas vertentes, mantenha a influência nas respectivas
bases nacionais.
Para Manuel Castells:
Com o Estado-nação sitiado, e as sociedades e economias nacionais já
inseguras de suas inter-relações com redes transnacionais de capitais e
pessoas, a influência crescente do crime global pode provocar um retrocesso
significativo dos direitos, valores e instituições democráticas77.
75
CASTELLS, v.3, op. cit., p. 185-186.
76
Ibid. p. 411.
77
Ibid, p. 241.
36
2.4.1 Crime Organizado. Definições
O crime organizado, além de uma realidade, virou moda no Brasil e no mundo.
78
Qualquer bando ou quadrilha que tenha tido uma ação criminosa eficaz e com lucro
considerado alto, a imprensa e até mesmo órgão estatais, os qualificam como crime
organizado.
Conceituar o crime organizado não é tarefa fácil. Diversos aspectos merecem ser
levados em consideração, como aspecto econômico, institucional e dimensão de atuação.
Assim, temos algumas definições retiradas da obra de Marcelo Batlouni Mendroni79:
Federal Bureau of Investigation (FBI):
Qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura formalizada cujo objetivo
primário é a obtenção de dinheiro através de atividades ilegais. Tais grupos
mantêm suas posições através do uso da violência, corrupção, fraude ou
extorsões, e geralmente têm significante impacto sobre os locais e regiões do
País onde atuam.
INTERPOL:
qualquer grupo que tenha uma estrutura corporativa, cujo principal objetivo
seja o ganho de dinheiro através de atividades ilegais, sempre subsistindo
pela imposição do temor e a prática da corrupção
ONU:
Organização de grupos visando à prática de atividades econômicas; laços
hierárquicos ou relações pessoais que permitem que certos indivíduos
dirijam o grupo; o recurso da violência, à intimidação e à corrupção; e à
lavagem de lucros ilícitos.
UE – União Européia:
Associação estruturada de mais de duas pessoas estabelecida durante um
período de tempo e que atue de maneira concertada com fim de cometer
delitos punidos com pena privativa de liberdade ou medida de segurança de
privação de liberdade de ao menos 4 anos, consistindo estes delitos um fim
em si mesmos ou um meio de obter benefícios patrimoniais e influir de
maneira indevida no funcionalismo da autoridade pública.
78
Neste sentido, o crime organizado deve ser entendido como sinônimo de organização criminosa.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2009. p. 16-18.
79
37
Por seu turno, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, realizada em 2000, entende como organizações criminosas um grupo
estruturado, em que atuam três ou mais pessoas com o objetivo de cometer um ou mais delitos
graves, com os quais possam obter – direta ou indiretamente – vantagem econômica indevida.
A Convenção esclarece que o grupo não pode se reunir de forma esporádica e fortuita para o
cometimento do delito e crime grave é aquele onde a pena cominada seja de privação de
liberdade no máximo de quatro anos80.
Assim, observa-se que existem diversas definições com pontos semelhantes, mas de
conteúdo geral distintas. No entanto, em apertada síntese, o crime organizado pode ser
definido como um agrupamento de pessoas baseado em forte hierarquia, com um intuito de
praticar atividades ilícitas lucrativas, para tanto, se utilizando do temor, corrupção e violência
onde sua área de atuação não fica restrita a uma atividade ou área geográfica.
É oportuno frisar que uma organização é um grupo de pessoas (grupo social) com
objetivos próprios e dissociados da vontade geral da sociedade. A organização nasce da
reunião de vontades individuais voltadas para a consecução de metas pré-definidas, mediante
prévia distribuição de tarefas em uma estrutura hierárquica e descritível. Diante dessa
premissa, qualquer organização que tenha como escopo conduta negativa que vai de encontro
ao sistema jurídico, é uma organização criminosa.
Apesar do conceito de organização criminosa ainda não ter sido definido com
sucesso, podemos citar suas principais características: 1) alto padrão organizativo; 2) a
racionalidade do tipo de empresário da “corporação criminosa”, que oferece bens e serviços
ilícitos (tais como drogas e prostituição) e vem investindo seus lucros em setores legais da
economia; 3) a utilização de métodos violentos com a finalidade de ocupar posições
proeminentes ou de ter o monopólio do mercado (obtenção do máximo lucro sem necessidade
de realizar grandes investimentos), redução dos custos e controle da mão-de-obra; 4) valer-se
da corrupção da força policial e do Poder Judiciário; 5) estabelecer relações com o poder
político; 6) utilizar a intimidação e o homicídio, seja para neutralizar a aplicação da Lei, seja
para obter decisões políticas favoráveis ou para atingir seus objetivos 81.
Dessa forma, fica reforçado o conceito preliminar de que o crime organizado seria
qualquer estrutura organizacional com fins lucrativos, decorrentes da prática de ilícitos penais,
em que a consecução desses, é previamente estabelecida.
80
OLIVEIRA, Adriano. Tráfico de Drogas Crime Organizado: Peças e Mecanismos. Curitiba, Juruá, 2008. p.
34.
81
MONTOYA, Mário Daniel. Máfia e Crime Organizado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 67-68.
38
Para Renata Almeida Costa, crime organizado seria um conjunto de crimes,
praticados por um grupo de indivíduos. Associados em função de suas vontades livres e
conscientes, dirigidos à consecução de metas e de fins comuns, que dependem para o êxito de
suas pretensões, da interação com outras organizações sociais, lícitas ou não, e mantém
características próprias de hierarquia e de divisão de função para sua subsistência 82.
Em outras palavras, a organização criminosa pode ser concebida como um
organismo ou empresa, cujo objetivo seja a prática de crimes de qualquer natureza – ou seja, a
sua natureza sempre se justifica por que - , e enquanto estiver voltada para a prática de
atividades ilegais. É, portanto, empresa voltada à prática de crimes 83.
Assim, é importante frisar que as mazelas e os problemas que uma organização, dita
legal tem, as organizações criminosas também têm, como problemas de recursos e de
recrutamento de pessoal, de disciplina e socialização.
Para Mario Daniel Montoya, não é possível estabelecer de maneira completa, certa e
definitiva, assim como na conduta criminosa do delinqüente isolado, quais as causas do
comportamento das organizações criminosas 84.
Apesar de expormos as principais linhas de aproximação conceitual e suas
respectivas definições, fica evidente a carência ou déficit de uma definição precisa e clara
para esse fenômeno criminal, uma vez que o crime não é homogêneo e o objeto da
organização criminosa é o delito. A definição rígida pode ignorar algumas organizações
criminosas em surgimento. Em um País como o Brasil, existirão diferentes organizações
criminosas com distintos modus operandi conforme a deficiência estatal da região que adotem
para operar85.
Como foi exposto, o combate ao crime organizado é a agenda da vez. A
criminalidade é uma real ameaça ao Estado Democrático de Direito. Esse poder paralelo,
amparado em um forte poderio econômico, ajuda a deteriorar o Estado de Direito. Para
Rodrigo Carneiro Gomes,
Com o Estado enfraquecido e debilitado pelas ações do crime organizado, as
necessidades da população não são providas, pois deixa de haver resposta
estatal à demanda social. Todos pagam o preço da atuação do crime
82
COSTA, op. cit., p. 190.
83
MENDRONI, op. cit., p. 20.
84
Ibid., p. 68.
85
Ibid, p. 21.
39
organizado: a ineficácia e a neutralização do Estado comprometem a
prestação dos serviços públicos a quem é de direito – o povo86.
Assim, o que pode ser feito para vivermos em sua sociedade do risco aceitável na
área social e de segurança? O direito punitivo (penal) é eficiente para responder a uma
sociedade que vive o medo e o temor? Como o Estado, com uma nova feição de soberania,
pode atuar e combater o risco do crime organizado?
2.5 OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE SOBRE O DIREITO PENAL
A pós-modernidade trouxe consigo uma série de modificações, que, em parte,
trouxeram benefícios diretos e imediatos aos sistemas jurídicos contemporâneos, e, em parte
causou o abalo ainda não plenamente solucionado de estruturas tradicionais, nos âmbitos das
políticas públicas, da organização do Estado e, principalmente, na eficácia do direito como
instrumento de controle social87.
Dessa forma, é perceptível que, com a pós-modernidade, houve uma projeção de
crise paradigmática no âmbito jurídico 88.
Com uma análise superficial da sociedade de 1970 até os dias de hoje, percebe-se um
crescimento abrupto das taxas de criminalidade, pobreza, diferenças sociais, guerrilhas civis,
organizações criminosas, formas pela quais a sociedade reage ao processo de sua
concretização perante a cultura pós-moderna em ascensão.
O surgimento destes novos problemas leva a sociedade a processo, nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos, de transição paradigmática. Dessa forma, essa transição
condensa os conflitos, multiplicam-se as formas de inconsistência do sistema oficial,
idealizado para retratar uma sociedade moldada sob cânones e princípios liberais, burgueses,
capitalistas, progressistas e cientificistas 89.
86
GOMES, Rodrigo Carneiro. O Crime Organizado na Visão da Convenção de Palermo. Belo Horizonte:
Del Rey, 2008. p. 03.
87
88
BITTAR, 2009, op. cit., p. 176.
Para maiores esclarecimentos sobre o conceito de paradigma e suas conseqüências para a evolução da ciência
vide: KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
(Coleção Debates).
89
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed.
São Paulo: Cortez, 2007. p. 165.
40
O Direito necessita de novos paradigmas para responder aos anseios da sociedade.
Em decorrência do fenômeno da globalização, o momento nunca foi mais propício. Os
tradicionais paradigmas que serviram ao Estado de Direito do século XIX não se encaixam
mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado contemporâneo para a execução
de política pública efetivas90.
Em sua obra "A Estrutura das Revoluções Científicas", Thomas Kunh observa que
"A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança
profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes
alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. [...]. O fracasso das regras existentes é
o prelúdio para uma busca de novas regras" 91 .
Diante deste panorama, fica inevitável perceber que, especificamente o direito penal,
merece ser revisitado, vez que novos atores, cenários, e complexos problemas surgiram na era
pós-moderna. E que para que este ramo do direito não se torne ineficaz e obsoleto, mudanças
de paradigmas se fazem também necessárias.
Nesse sentido “a efetividade do direito penal é a sua capacidade para desempenhar a
função que lhe incumbe no atual estágio de nossa cultura. [...] um direito penal que não tenha
esta capacidade será não efetivo e gerará tensões sociais e conflitos que acabarão destruindo
sua eficácia (vigência).92
O direito penal como ciência surgiu nos alvos tempos do iluminismo, e naquela
época havia uma grande tendência a sua limitação, seja através de especificações do bem
jurídico a ser tutelado ou de tipicidade penal.
Em outra época (segunda metade do século XX), o direito penal passou por um
aumento, em especial no direito penal secundário (sanção administrativa), objetivando uma
maior intervenção do Estado na sociedade. Atualmente, o direito penal expande nos dois
sentidos, tanto no direito penal clássico, como no direito penal secundário. Esse alargamento
se dá em decorrência do aparecimento de novos bens jurídicos e pela criminalização de
condutas até então inexistentes ou que estavam desprotegidas pelo Estado.
A sociedade globalizada, dita de risco, gera mais um fenômeno novo: a produção
legislativa de tipos penais, sem precedentes, em âmbito local e mundial.
90
BITTAR, op. cit. 2009, P. 181.
91
KUHN, op. cit., p. 95.
92
ZAFFARONI, Eugênio Rául; PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 348.
41
Assim, a relação pronta e supostamente eficaz encontrada pelos legisladores e
operadores do direito, é a resposta repressiva e aguda do aparelho estatal.
No entanto, entendemos que essa reação deve ser feita com cautela.
O sistema penal apresenta falhas, é verdade, mas não pode haver uma inflação
legislativa e não resolver o problema. É necessário detectamos os problemas pontuais e tentar
solucioná-los sem uma avalanche de leis inócuas. Nas palavras de Luciano Anderson de
Souza:
Desse modo, a ciência penal necessita cada vez mais estar atenta às novas
realidades, munida de eficaz sistemática e metodologia que lhe resgate a
credibilidade. A adoção, pelos estudiosos e aplicadores da lei penal, de
concepções ultrapassadas, isto é, incapazes de prover o intérprete de
elementos permissivos da real compreensão e soluções de inéditos
problemas, somente agravará as conseqüências sociais danosas93.
O avanço tecnológico inerente à sociedade do risco modernamente configurada
evidencia a necessidade de tutelar novos bens jurídicos. Nesse diapasão, o bem jurídico
individual, concreto, perde espaço, como também é colocada de lado, a responsabilidade
individual. Existe a necessidade, preeminente, de tutelar os bens jurídicos supra-individuais.
Se outrora, o direito penal clássico se preocupava com o individual e o liberal, agora está em
voga a tutela de bens jurídicos sociais, supra-individuais difusos.
Temos que concordar com o autor português Paulo Silva Fernandes, que assim
escreveu:
Do mesmo modo [que a sociedade] o crime se tornou global: é a
multiplicação da criminalidade organizada em redes altamente densificadas,
que percorrem todos os setores da sociedade. Sociedades são criadas com o
intuito único de praticar crimes ou facilitar ou cobrir a sua execução. A
evolução da técnica propiciou novas e perigosas formas de delinqüir. E o
crime por excelência da era global é o crime econômico. É o multiplicar, em
termos inéditos, tanto da criminalidade econômica como da delinqüência de
colarinho branco, como ainda e por ultimo dos crimes of the powerful, em
largas escala de circuitos criminosos que englobam a circulação de grandes
capitais e a movimentação de inúmeras pessoas e organizações,
freqüentemente à escala internacional ou global, em prol do fim comum, a
obtenção de lucros fabulosos provenientes da prática criminosa, tudo isto a
colocar novos e difíceis problemas ao direito penal de cunho clássico94.
93
SOUZA, Luciano Anderson de. A Expansão do Direito Penal e Globalização. São Paulo: Quartier Latin,
2007, p. 155.
94
SOUZA, Luciano, op. cit., p. 36-37.
42
Por seu turno, Silva Sanchez, ao analisar o direito penal e sua expansão, entende que
esta ciência perpassa por três velocidades, a saber: uma primeira velocidade, representada
pelo direito penal da “prisão”, em que haja rígido respeito aos princípios político-criminais
clássicos, às regras de imputação e os princípios processuais; uma segunda velocidade, para
os casos em que, por não tratar-se de prisão e sim de penas de privação de direitos e penas
pecuniárias, poderia haver uma flexibilização dos princípios básicos de política criminal, de
acordo com a intensidade da sanção; e uma terceira velocidade, onde o direito penal da
“prisão” concorra uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de
imputação e critérios processuais. 95
Assim, diante de um cenário de criminalidade organizada, crimes econômicos
profissionais e do próprio terrorismo, para onde avançar o direito penal? É o caso de
refletirmos sobre o problema com capacidade crítica frente à realidade vivenciada.
Diante deste panorama, com o aumento de criminalidade de todas as formas, a
sociedade espera algo do direito penal. Nesse aspecto, somos do entendimento que o direito
penal deve ser compreendido como algo mais amplo, ou seja, aqui deve ser incluído o direito
processual penal, e até mesmo a política criminal. O direito penal sozinho não é antídoto para
problemas sociais nem para a deformação de valores e de toda uma elite que se criou em uma
“cultura de ilicitudes”, falta de ética, e ao desrespeito total à autoridade.
Para conter a “cultura de ilicitude” se faz necessária uma reengenharia de instituições
especializadas que combatem o crime, como o Poder Judiciário, a Receita Federal, as Polícias
e o próprio Ministério Público. Em outras palavras, uma nova política criminal em tempos de
globalização.
95
SÁNCHES, op. cit., p. 183.
43
3 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS JURÍDICOS
No capítulo anterior, foi feita a análise contextualizada de forma a refletir sobre os
problemas pelos quais a sociedade atravessa para avaliação de uma nova postura do Estado e
de seus Órgãos, em especial o Ministério Público, frente aos novos desafios impostos pela
globalização.
O que procuraremos demonstrar nesse capítulo é a importância da interpretação
constitucional e dos princípios para um melhor entendimento do principio do promotor
natural que, conforme foi dito, enceta mudanças de postura e de paradigmas do Ministério
Público brasileiro, nesse novo contexto mundial.
Toda interpretação deve atender a compreensão ampla do mundo. Por meio da
interpretação, pode se realizar a sociedade, a justiça e especialmente, a vida, dentro de uma
perspectiva humana e para o ser humano, buscando uma interação mais plena e
verdadeiramente democrática.96
Nesse contexto, a interpretação que qualquer norma, seja ela regra ou princípio,
perpassa pela realização de justiça. Em relação às normas atinentes ao Ministério Público não
poderia ser diferente, por conseguinte, a interpretação e a análise dos princípios ganham
relevância ímpar para esse estudo.
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Todo problema exposto ao Sistema Judicial passa por um discurso, ou seja, é
permeado de diálogo (conflito de idéias, o dubium)97. Nesse processo, são produzidas
interpretações, que são resultantes de reflexões e análises dos mais variados objetos e
problemas que, em última análise, reclamam uma solução, conhecida como decisão. Dessa
forma, o sistema jurídico, por meio de seus intérpretes, em especial, seu intérprete nato, o
96
MOTTA, Moacyr Parra. Interpretação Constitucional sob Princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
p. 181.
97
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito, retórica, e comunicação: subsídios para uma pragmática do
discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 74.
44
magistrado, diante da necessidade de solucionar conflitos, deve interpretar o direito e aplicálo mediante criteriosa seleção de possibilidades. 98
Assim, o Poder Legislativo fornece o arcabouço de enunciados e Leis que, somente a
partir do caso em concreto, da subsunção, passam do estado de inércia e ganham dinamismo
quando interpretados e aplicados pelo Poder Judiciário.
Toda discussão tem como foco a linguagem nas proposições jurídicas, vez que todo
enunciado só existe com a linguagem, assim as palavras ditas pelo legislador podem ser
mutações quando analisadas pelo intérprete (juiz). Nesse contexto, o importante não é a
confecção da Lei e sim o momento de sua aplicação e interpretação. Daí, podermos afirmar
que decisão jurídica é o que o juiz interpreta.99
Diante dessas premissas, cabe distinguir a aplicação do direito, a hermenêutica 100 e a
interpretação.
A aplicação do direito consiste no enquadramento de um caso concreto na norma
jurídica adequada. Submete-se a lei a uma relação de vida real; procura-se se aponta o
dispositivo adaptável a um fato determinado. Em outras palavras, é a subsunção do fato à
regra jurídica.
A adaptação de um preceito ao caso concreto pressupõe: a) a Crítica, a fim de apurar
a autenticidade e, em seguida, a constitucionalidade da lei, regulamento ou ato jurídico; b) a
Interpretação, a fim de descobrir o sentido e o alcance do texto; c) o suprimento das lacunas,
como auxílio da analogia e dos princípios gerais do direito; d) o exame das questões possíveis
sobre ab-rogação, ou simples derrogação de preceitos, assim como acerca da autoridade das
disposições expressas, relativamente ao espaço e tempo.101
Nesse contexto, podemos afirmar que interpretação e aplicação não se realizam
autonomamente. É um equivoco conceber a interpretação como mera operação de subsunção.
O intérprete extrai o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso
em concreto. A interpretação do direito consiste em “concretar” a lei em cada caso, ou seja, na
98
GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da Proporcionalidade no Processo Civil: o poder de criatividade
do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 01.
99
GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006. P. 65.
100
A ciência que estuda a interpretação é a hermenêutica: este domínio teórico e especulativo tem por objeto
sistematizar critérios, métodos, regras, princípios científicos que possibilitem a descoberta do conteúdo, sentido,
alcance e significado da interpretação.
101
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996.
p. 07.
45
sua aplicação. Dessa forma existe uma igualdade entre interpretação e aplicação, não são
momentos distintos, porém uma só operação. A interpretação e aplicação fazem parte de um
processo unitário, superpondo-se.
No tocante à interpretação constitucional, a “concretização” e a “compreensão” só
são possíveis em face de um problema concreto. Logo, “não há interpretação da Constituição
independente de problemas concretos”. (interpretação = aplicação). Como forma de
esclarecimento, nos relata Daniella Dias:
A interpretação é o desvelamento do sentido da norma e do conteúdo,
viabilizando e elucidação de sentidos, conteúdos axiológicos que necessitam,
para sua efetividade, de concretização de realidade. A interpretação é
atividade que viabiliza a concretização da norma, transpondo o fosso
existente entre o abstrato (texto jurídico) e o concreto (fato social). Neste
sentido, a função interpretativa só ganha relevância e sentido se realizada em
razão da necessidade de análise de um caso concreto das questões que
necessitam de soluções jurídicas, de forma a se realizarem a justiça e a
consagração dos direitos humanos.102
Assim, quando não tivermos uma discussão visando à solução de um conflito
(dubium), estamos diante de um discurso jurídico. Caso contrário estaremos diante de um
discurso do direito, aquele realizado pelo intérprete autêntico.
A interpretação do direito tem caráter constitutivo – e não meramente declaratório –
e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de enunciados normativos e de fatos concretos
do cotidiano, de normas jurídicas a serem analisadas para a solução do problema, mediante a
definição de uma norma de decisão. O intérprete insere a norma na vida.
Daí concluirmos que, nenhuma interpretação ocorre no vazio. Muito pelo contrário, a
interpretação é uma atividade contextualizada, que leva em consideração as condições sociais
e históricas determinadas, produtoras de usos lingüísticos dos quais deve partir qualquer
atribuição de significado, em todos os domínios da hermenêutica jurídica. 103
Em outras palavras compreender e interpretar significam mais que a análise do texto
normatizado. É preciso situar os fatos em concreto, no tempo e no espaço; estar atento às
condições da época; saber as influências recebidas e as que exerceu. 104
102
DIAS, Daniella S. Desenvolvimento Urbano. Curitiba: Juruá, 2002. p. 75-76.
103
Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3. ed.. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 42.
104
MOTTA, op. cit.,p. 169.
46
3.2 INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA
É sem dúvida, envolver-se em campo de extremas dificuldades a tentativa de
interpretar um texto jurídico 105.
Interpretar a lei é descobrir o significado, o conteúdo e o alcance dos símbolos
lingüísticos, escritos em seus artigos, parágrafos, incisos e alíneas. A interpretação é A
interpretação é antes de qualquer coisa uma atividade criadora. Em toda interpretação existe,
portanto, uma criação de direito. Trata-se de um processo no qual entra a volição humana, em
que o intérprete procura determinar o conteúdo exato nas palavras, em imputar um significado
à norma.
Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se
sempre necessária, por mais bem formulado que seja o texto legal. A atividade interpretativa
busca, sobretudo, reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto em
face de determinado caso.106
Mas qual a etimologia do termo “interpretar”? Antônio Houaiss, em seu dicionário
da Língua Portuguesa107, descreve o termo “interpretar”, etimologicamente oriundo do latim
de interpretor, aris, atus, sum, Ari, ou seja, “explicar, traduzir, compreender, avaliar, decidir”.
Assim, interpretar é explicar, compreender, avaliar e, primordialmente, decidir. São essas
tarefas de que se ocupa o intérprete nato – o juiz.
Por seu turno, hermenêutica – do grego hermeneutiké, scilicet téchne, a arte de
interpretar – deriva de Hermes, deus grego, filho de Zeus e da ninfa Maia, quem, dentre suas
diversas atribuições, cabia servir de arauto dos olímpicos, intermediários entre homens e
deuses, intérprete da vontade divina.
105
Normas não são o texto nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação
sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e
as normas, no seu trabalho. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido
de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver
um dispositivo que lhe sirva de suporte.
106
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 103.
107
INTERPRETAR. In: HOUASSIS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001. p. 1636.
47
A hermenêutica pode ser conceituada como uma teoria geral da ciência do espírito
que engloba o estudo da atividade humana de interpretar, estando a interpretação jurídica
dentro da hermenêutica geral. 108
Por fim, podemos afirmar que o hermeneuta oferece enunciado e subsídios que
servirão à interpretação. O intérprete os torna como dados prévios, e deles se utilizará
segundo sua arte interpretativa.
3.2.1 A Missão de Interpretar
Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto;
reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de
uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém 109.
A lei encontra-se em seu estado bruto, atendendo a proposições jurídicas
potencialmente aplicáveis, mas cabe ao intérprete transformá-la em estado definitivo. Eis a
interpretação. Assim, todo e qualquer texto, por mais singelo que pareça, necessita de
interpretação.
Interpretar é nas palavras de Karl Larenz é uma atividade de mediação, pela qual o
intérprete traz à compreensão o sentido de um texto que se torna problemático. 110
Para Carlos Maximiliano interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente
tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando, é, sobretudo revelar o sentido
apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta111.
Diante dessas premissas, resta claro que a interpretação é necessária, onde aquele
velho brocado latino interpretatio cessat in claris era ingenuamente utilizado, além de
conduzir a um círculo vicioso, pressupõe a existência de leis cuja redação, se bem cuidada,
impediria dúvidas, obscuridades ou contradições, tornando dispensável o labor interpretativo.
108
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: Uma
contribuição ao Estudo das Restrições aos Direitos Fundamentais na Perspectiva da Teoria dos Princípios. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006. p. 24.
109
MAXIMILIANO, op. cit., p. 07.
110
LARENZ, Carl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Caloute Gulbekian, 1997,
p. 339.
111
MAXIMILINO, op. cit. p. 08.
48
Por outro lado, urge assinalar que qualquer interpretação possui um caráter
lingüístico destacável, quando exige que seus interlocutores falem a mesma linguagem, como
condição de possibilidade de sua mútua compreensão, afinal, quem fala uma linguagem que
mais ninguém fala, em realidade não fala. 112
Toda norma jurídica é objeto de interpretação, seja lei escrita (seu campo mais
freqüente), seja a decisão judicial, seja o direito consuetudinário, seja o tratado internacional.
Assim, a norma costumeira, a jurisprudência, os princípios gerais do direito podem, e devem
ser interpretados, para se esclarecer o seu real significado e alcance.
A interpretação legal é responsável pela criação da norma e de sua evolução. Toda lei
enseja interpretação, e o processo hermenêutico tem, sem dúvida, relevância superior ao
próprio processo de elaboração legislativa, uma vez que será por meio da interpretação da lei
que esta será aplicada e inserida em um contexto fático e específico, sendo adequada a toda
uma realidade histórica e os valores dela decorrentes.
Como já foi dito alhures, os textos legais são meras representações gráficas de ordens
e de condutas de uma determinada sociedade, aptas a regularem relações intersubjetivas. A lei
e o direito dependem de sua interpretação se realizar. Sem interpretação, direito (enquanto
norma jurídica) não há; só texto.
A necessidade de interpretar a lei é a busca do conhecimento que esta contém. O
intérprete tem como missão estabelecer uma conexão entre o passado e o futuro, entre o
hipotético e o real, no sentido de que o trabalho é buscar nos textos já existentes os preceitos
que prevalecerão no exame de casos regidos, em concreto, por eles.
Toda interpretação deve ao atender o bem comum, ou seja, às projeções da lei sobre
a vida das pessoas, dos grupos e da própria sociedade visando o justo. Antes de tudo, a
interpretação é prudência e coerência. Não há interpretação certa ou errada, mas sim coerente
ou não.
Nessa linha, o sistema constitucional brasileiro, elencou objetivos constitucionais que
traduzem os propósitos da República Federativa do Brasil.
Está localizado no art. 3.º da Constituição, ao dispor que “constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e
solidária. Assim, justa é a sociedade na qual se presencia a justiça substancial mediante a
112
GADAMER apud COELHO, op. cit, p. 40.
49
adoção de políticas públicas por parte do estado direcionadas à diminuição das
desigualdades. 113
Dessa forma, a Constituição e as Leis devem atender certas necessidades e devem ser
interpretadas no sentido que melhor atenda a finalidade para a qual foi criada e à falta de uma
melhor orientação, devem ser avaliadas visando os fins maiores do Estado, entre eles, o da
justiça.
3.2.2 Interpretação Constitucional
A interpretação constitucional busca compreender, investigar e revelar o conteúdo, o
significado e o alcance das normas que integram a Constituição. É uma atividade de mediação
que torna possível concretizar, realizar e aplicar as normas constitucionais.
Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:
Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a
um ou a vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o fim de se
obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente
fundada. Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da
constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito
contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei
constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz
fundamentalmente na «adscrição» de um significado a um enunciado ou
disposição linguística (“texto da norma”); (3) o produto do acto de
interpretar é o significado atribuído. 114
Em síntese, a interpretação constitucional consiste num processo intelectivo por meio
do qual enunciados lingüísticos que compõem a constituição transformam-se em normas
(princípios e regras constitucionais), isto é, adquirem conteúdo normativo.
O intérprete, ao realizar a sua função, deve sempre iniciá-la pelos princípios
constitucionais, é dizer, deve-se partir do princípio maior que rege a matéria em questão,
voltando-se em seguida para o mais genérico, depois o mais específico, até encontrar-se a
113
Ronald Dworkin na obra A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 09, afirma que “nenhum governo é legitimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de
todos os cidadãos sobre os quais afirme seus domínios e aos quais reivindique fidelidade e que a consideração
igualitária é a virtude soberana da comunidade política, sem ela o governo não passa de tirania”.
114
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria e Prática. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1997.
p. 1184-1185.
50
regra concreta que vai orientar a espécie. A respeito da importância dos princípios
constitucionais na atividade interpretadora, escreve Luís Roberto Barroso:
Ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes
as prescrições. A generalidade, abstratação e capacidade de expansão dos
princípios permite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e
buscar no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum jus,
summa injuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como
limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista
dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a
discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar
seu convencimento. 115
Paulo Bonavides assinala que a moderna interpretação da Constituição deriva de um
estado de inconformismo de alguns juristas com o positivismo lógico-formal que tanto
prosperou na época do Estado liberal. 116
Com efeito, continua o autor, até a Constituição de Weimar, vivia-se o período de
ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do Estado liberal. "Por
aonde veio a resultar um Direito Constitucional fechado, sólido, estável, mais jurídico do que
político, mais técnico do que ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito
Constitucional compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à
tensões e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade contemporânea."
Com o aparecimento do Estado Social, quando as constituições assumem a forma de
autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e
classes com interesses antagônicos e contraditórios, surge uma nova interpretação
constitucional, que "já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se
entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de
Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico
com o social...”. Completa o autor.
Os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo
abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica da Constituição,
voltada para a garantia e proteção de direitos humanos.
A prática da interpretação constitucional se difere da interpretação tradicional que se
utilizava com bases privatísticas.117 Vale dizer, existe diferença entre hermenêutica e
interpretação especificamente constitucional.
115
BARROSO, op. cit. p. 150.
116
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 424.
51
A Constituição, assim como o sistema de normas interno ao ordenamento jurídico, é
um sistema de regras e princípios. E essa natureza diferenciada de princípios e regras que leva
a entender uma interpretação constitucional diferenciada, diante da hermenêutica
tradicional118.
Nessa linha, Inocêncio Mártires Coelho entende que a Constituição possui uma
peculiar estrutura normativo-material, especificamente em sua parte dogmática, onde se
enquadram os direitos fundamentais. E, é esse aspecto que permite diferenciar a interpretação
constitucional da interpretação tradicional. Para o autor paraense, o exegeta deve escolher
uma perspectiva metodologicamente adequada ao objeto do seu trabalho hermenêutico, isto é,
deve haver estreita ligação entre método e objeto. 119
A interpretação constitucional, além de exigir conhecimento técnico elevado, exige
sensibilidade jurídica, política e social, do hermeneuta ou aplicador do direito, se quiser
penetrar no verdadeiro sentido das disposições constitucionais e nos seus reflexos no
ordenamento jurídico global. 120
Para Gisele Góes, “a interpretação deve culminar sempre na ratificação dos caminhos
políticos esposados pelo texto maior, para se estar diante de um sistema constitucional não só
eficaz, como também dotado de legitimidade”. 121
Assim, diante da importância da atividade interpretativa, mormente, a interpretação
constitucional para a consecução das metas escolhidas pela sociedade brasileira, que estão
inseridas na Constituição Federal de 1988, ganha relevância a atividade interpretativa no que
tange à aplicabilidade dos princípios constitucionais referentes ao Ministério Público.
117
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 5. Ed. São Paulo:
RCS Editora, 2007. p. 68.
118
Ibid, p. 71.
119
Ibid., p. 61.
120
BARACHO apud MOTTA, op. cit., p. 170.
121
GÓES, op. cit., p. 13.
52
3.3 PRINCÍPIOS JURÍDICOS
O constitucionalismo moderno vem tendo como característica marcante um
movimento de positivação dos princípios gerais do direito, sendo marco inicial desta nova
fase o advento do Estado social de direito.122Essa movimentação migratória dos princípios
jurídicos para as constituições, quer por princípios já reconhecidos pela legislação
infraconstitucional, quer pela incorporação de princípios oriundos do direito internacional,
acabam sendo marca preponderante das constituições atuais, incluindo aí, a Constituição
Brasileira.
A constitucionalização dos princípios jurídicos veio no mesmo momento em se
faziam ferrenha defesa doutrinária da força normativa e vinculativa dos princípios, idéia
oposta ao positivismo que até então, dominava o cenário jurídico. A utilização dos princípios
jurídicos apenas como fonte normativa subsidiária não tinha mais espaço na teoria
constitucional contemporânea.
Esse novo constitucionalismo, por seu turno, caracteriza-se pela prevalência da
Constituição. O dogma da submissão à lei é substituído pela máxima sujeição à Constituição,
que a esta altura, seria um sistema normativo aberto constituído por regras e princípios
voltados à consecução da justiça efetiva. Luis Roberto Barroso, com sua clareza peculiar,
arremata:
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo
abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões
acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é
a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem
a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da
chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos
fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A
valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos
textos constitucionais e reconhecimento pela ordem jurídica de sua
normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e
ética.123
Diante dessas premissas, torna-se inevitável o conhecimento, nem que seja
superficial, da estrutura e do conceito de princípios jurídicos.
122
Os marcos iniciais do Estado Social de Direito, conforme largamente difundido por historiadores e cientistas
políticos, são as constituições mexicanas de 1917 e a alemã de 1919 (Constituição de Weimar).
123
BARROSO, op. cit., p. 349-350.
53
A busca pelo conceito de princípio não é tarefa das mais fáceis em decorrência de
seu aspecto polissêmico. Sérgio Sérvulo da Cunha enumera onze acepções para o termo
princípio, no entanto, conclui:
Em todas essas acepções do termo “princípio” ressalta um aspecto seminal e
organizativo. O que permite dizer: o termo “princípio” designa uma entidade
presente em qualquer objeto que se possa intencionar (na realidade
considerada como um todo, nas coisas consideradas em si mesmas, na
natureza, na sociedade, no entendimento, no fazer e no agir), que faz parte
desse objeto como seu início, fundamento, idéia ou forma. 124
3.3.1 A Normatividade dos Princípios
Diante de tudo o que já foi exposto, podemos afirmar que o sistema jurídico do
Estado de direito democrático é um sistema normativo de regras e princípios 125, uma vez que
as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de
regras.
Outrora, a metodologia tradicional distinguia a normas dos princípios, no entanto o
novo constitucionalismo admite que tanto as regras e os princípios, são normas. A distinção
entre regras e princípios passou a ser uma distinção entre normas. Eis a normatividade dos
princípios.
A normatividade dos princípios, também chamada de positivação dos princípios, é de
vital importância. A inserção de princípios em nível constitucional resulta na formação de
uma escala hierarquizada, onde a interpretação das regras existentes numa Constituição é
basilada pelos princípios126.
Assim, princípio é toda norma jurídica considerada como determinante de outra
norma ou outras que lhe são subordinadas, que a pressupõe, desenvolvendo e especificando
ulteriormente o preceito maior em direção ao preceito menor. 127 Nessa linha de sistema
124
CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 10.
125
CANOTILHO, op. cit., p. 1143.
126
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998,
p. 78.
127
Nesse sentido observa Celso Antônio Bandeira de Melo: “3. Princípio – já averbamos alhures – é, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
54
jurídico como ordem global, e de subsistemas, como ordens parciais, podemos dizer os
princípios, como normas que são, desempenham a função de dar fundamento material e
formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa. 128
O estudo dos princípios requer uma análise mais detalhada, agora nos quadros do
direito constitucional.
Desta forma, os princípios constitucionais expressam valores essência da
Constituição, trazem nítida a necessidade de equilíbrio e harmonia social. São, portanto, o
fundamento das regras, fornecendo a estas a densidade normativa necessária quando
utilizadas. Em outras palavras, são seus sustentáculos. 129
A principal abordagem é feita em relação à tipologia ou classificação dos princípios
constitucionais.
Na doutrina, entendemos a classificação de Canotilho, a mais clara e condensada,
que utiliza com referência a Constituição de Portugal. Segundo o autor, os princípios
constitucionais podem ter a natureza de “princípios jurídicos fundamentais”- são aqueles
historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que
encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional; os “princípios
políticos constitucionalmente conformadores” – são princípios constitucionais que explicitam
as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte; os “princípios constitucionais
impositivos”- são todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao
legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. Traçam, sobretudo ao legislador,
linhas de sua atividade política e legislativa; e os “princípios garantia”- tem como finalidade
precípua instituir direta e imediatamente um garantia aos cidadãos. 130
Ultrapassada a análise de conceitos e definições, oportuno adentrarmos no estudo do
comparativo entre regras e princípios, vez que já foi dito alhures que ambos são espécies
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica
e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes
componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave
que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de
sua estrutura mestra” (MELO apud, GRAU, op. cit. p. 78-79).
128
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceitos de Princípios Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Ed. Revistas dos
Tribunais, 2002. p. 77-78.
129
DIAS, Daniella S, op. cit., p. 86.
130
CANOTILHO, op. cit., p. 1148
55
normativas, no entanto com diferenças importantíssimas para o entendimento da nova
interpretação constitucional e, por conseguinte do entendimento do sistema jurídico atual.
3.3.2 A distinção estrutural entre regras e princípios jurídicos
A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser considerada com um
dos argumentos básicos da teoria dos direitos fundamentais. A consolidação da normatividade
dos princípios jurídicos é o fim da teoria formal-positiva e o início da teoria material da
Constituição e dos princípios constitucionais, voltados aos direitos fundamentais e aos direitos
humanos.
A primeira acentuação distintiva entre regras e princípios estaria em sua abstração.
As regras trazem a descrição de estados-de-coisa formados por um fato ou certo número
deles, enquanto nos princípios há um referência direta a valores. Desta forma, as regras se
fundamentam nos princípios, os quais sozinhos não tinham como fundamentar nenhuma ação,
dependendo para isso de uma regra concretizadora. Princípios, assim, têm um grau
incomparavelmente mais alto de generalidade e abstração do que a mais geral e abstrata das
regras.131
Mais tarde, Ronald Dworkin estabeleceu mais dois critérios, baseados em duas
idéias: a primeira, a do tudo ou nada, e a segunda, a do peso ou da importância132. Para o
norte-americano as regras são aplicáveis à maneira tudo ou nada, onde dado os fatos que uma
regra estipula, então ou a regra é válida, neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita,
ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. 133
131
GUERRA FILHO, op. cit., p. 95-96.
132
Para Dworkin, 2005, op. cit. p. 42, os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão
de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos
compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito
tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser por certo, uma mensuração exata e o
julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra
freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de
princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. As regras não têm essa
dimensão.
133
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: M. Fontes, 2002. p. 39.
56
Por outro lado, Humberto Ávila conceitua regras e princípios da seguinte maneira:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhe são axiologicamente
sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a
construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de completariedade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre estado de
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como
necessária à sua promoção. 134
Nesse aspecto, pode-se concluir que regras são normas que ordenam algo
definitivamente, são mandamentos definitivos. Regras são, por isso, normas que sempre
somente podem ser cumpridas ou não-cumpridas. Por outro lado, princípios são
“mandamentos de otimização”, na expressão de Alexy135, que se cumpre na medida da
possibilidade, fáticas e jurídicas, que se oferecem concretamente.
A normatividade dos princípios ou sua positivação e suas diferentes funções na
ordem jurídica traz à baila indagações e dúvidas no tocante à idéia de conflito entre eles.
Em suma, o conflito de regras resulta em uma antinomia, que deve ser resolvido pela
perda de validade de uma das regras em conflito, afasta-se a incorreta e aplica a regra mais
adequada ao caso em concreto. Antinomia jurídica própria é a situação que impõe a
extirpação, do sistema, uma das regras. 136
Complementa Ronald Dworkin:
Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão
de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada,
deve ser tomada recorrendo-se a considerações a considerações que estão
além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos
através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela
autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recente, à regra mais
específica ou coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir
a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes (nosso sistema
[norte-americano] utiliza essas duas técnicas). 137
134
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 78-79.
135
ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 132.
136
GRAU, 1998, op. cit., p. 97.
137
Ibid, p. 43.
57
A colisão entre princípios resulta apenas em que se privilegie o acatamento de um,
sem que isso implique o despeito total do outro. Há incompatibilidade, mas não exclusão. Daí
Eros Roberto Grau afirmar que esse tipo de conflito não resulta em antinomia 138. O mesmo
autor sugere solução para o conflito de princípios:
Isso significa que, em cada caso, armam-se diversos jogos de princípios, de
sorte que diversas soluções e decisões, em diversos casos, podem ser
alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a
recusando.
Cada conjunção ou jogo de princípios será informada por determinações da
mais variada ordem: é necessário insistir, neste ponto, em que o fenômeno
jurídico não é uma questão política e, de outra parte, a aplicação do direito é
uma prudência e não uma ciência.139
Os princípios, na medida em que não disciplinam nenhuma situação jurídica
específica, considerados de forma abstrata como se apresentam no texto constitucional, não
entram em choque diretamente, são compatíveis uns com os outros. No entanto, se em
determinado caso em concreto surgir uma colisão de princípios, a decisão a ser tomada é de a
privilegiar determinado princípio, em detrimento de outro, com a manutenção da validade de
todos, embora diminuídos, circunstancial e pontualmente, em sua eficácia. 140
É importante também frisar que, a colisão de princípios se resolve pela ponderação
de valores em que o operador jurídico realizará análise dos valores constitucionais em jogo e
qual deles, diante do caso em concreto, se faz mais importante.141
Por derradeiro, já sabemos que as regras são desdobramentos normativos dos
princípios, assim, é fácil concluir que não pode haver antinomias ou conflitos entre regras e
princípios. No entanto se, se tratar de um caso difícil, a solução é comparar os dois princípios
que dão sustentação às regras, sem se fazer verificação de pesagem entre a regra e o princípio,
em tese, conflitantes.142
Diante do que foi dito, verificaremos neste estudo, os princípios constitucionais
atinentes ao Ministério Público em especial, ao princípio do promotor natural, com o intuito
138
GRAU, op. cit., p. 98.
139
Ibid, p. 99.
140
GUERRA FILHO, op. cit., p. 67.
141
DIAS, op. cit., p. 104.
142
Willis Santiago Guerra Filho, op. cit., p. 52, assim escreveu: “Já na hipótese de choque entre regra e princípio,
é curial que esse deva prevalecer, embora aí, na verdade, ele prevalece, em determinada situação concreta, sobre
o princípio em que a regra se baseia.”
58
de se fazer uma análise referente à sua utilização no panorama jurídico brasileiro, com a
finalidade de avaliar uma melhor adequação do mesmo em uma era pós-moderna e de
organizações criminosas em expansão.
59
4 MINISTÉRIO PÚBLICO: ELEMENTOS ESSENCIAIS
Discutir o Ministério Público e o seu papel no sistema constitucional implica,
necessariamente, fazer uma incursão na sua história e nos objetivos que, há não muito tempo,
lhe foram traçados e que configuraram seu presente e condicionaram seu futuro.
Assim, quando se analisa e procura abordar, atualmente, as funções, a legitimidade
social e institucional e os limites da intervenção processual que cabem em cada sistema de
justiça ao Ministério Público, discute-se no fundo, em primeiro plano, a razão de ser – a
natureza – desta instituição no seio das instituições a quem o Estado incumbe de realizar a
justiça e o direito.143
Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil constitucional
peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses indisponíveis da
sociedade (art. 127 da CF-88). Assim, o Ministério Público buscar a justiça social, fundado
nos princípios fundamentais da República (art. 1.º, I e II da CF-88), tais como a cidadania e a
dignidade da pessoa humana e tendo como destinação final a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária (art. 3.º, I da CF-88), objetivo maior da nação brasileira.
É nesse contexto que se insere o presente capítulo, buscando analisar, pelo prisma
constitucional, o papel do Ministério Público e sua destinação originária, para avaliar se este
importante Órgão, essencial a função jurisdicional do Estado, vem acompanhando as
mudanças que o mundo pós-moderno vem passando.
4.1 A ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público possui origem controvertida, no entanto, para uma melhor
compreensão da Instituição do Ministério Público, é necessário, levar em conta razões
históricas que permearam seu nascimento e seu desenvolvimento até os dias de hoje. Nesse
sentido, a evolução do Ministério Público está ligada diretamente à evolução do Estado
moderno, notadamente, ao aparato relacionado à prestação da justiça.
143
CLUNY, Antônio Francisco de Araújo Lima. O Ministério Público na Hora da Globalização: O Presente e o
Futuro. Justitia, São Paulo, v. 64, n. 197, jul∕dez., p. 409, 2007.
60
Sobre a origem do Ministério Público, o estudo encontrado na doutrina serve apenas
para rememorar seu curso histórico. A doutrina especializada tende a rejeitar essas origens,
vez que nenhuma delas apresenta uma Instituição que reúna, ao mesmo tempo, todas as
atribuições que o Ministério Público moderno possui. Roberto Lyra, em sua obra conclui que
os gregos e romanos não conheceram, propriamente, a Instituição do Ministério Público. 144
Apesar disso, a pré-história do Ministério Público não deixa de ser importante. Berto
Valois descreveu os deveres do Ministério Público, no Egito, há 4.000 anos: I) é a língua e os
olhos do rei do país; II) castiga os rebeldes, reprime os violentos, protege os cidadãos
pacíficos; III) acolhe os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo o malvado e
mentiroso; IV) é marido da viúva e o pai do órfão; V) faz ouvir as palavras da acusação,
indicando as disposições legais aplicáveis em cada caso; VI) toma parte nas instruções que
descobrem a verdade.145
Assim, é certo afirmar que, na antiguidade, algumas funções exercidas pelo
Ministério Público atual, eram bem visíveis. No entanto, tratavam-se de funções atribuídas às
pessoas que não representavam um órgão, nem gozavam de prerrogativas semelhantes ao do
Ministério Público de hoje.
A origem próxima do Ministério Público contemporâneo está ligada à organização
do Estado, em especial à administração da justiça. Para tanto, o Ministério Público precisava
de um terreno fértil e da existência de princípios básicos inerentes a um Estado moderno, que
podemos enumerar: a) a superação da vingança privada; b) a entrega da ação penal a um
órgão público tendente à imparcialidade; c) a distinção entre acusador e Juiz; d) a tutela de
interesses da coletividade e não somente os do fisco e os do soberano; e, e) a execução rápida
e certeza da sentença dos juízes.
Desta forma, a origem próxima do Ministério Público é atribuída à França, nação que
foi o berço do Estado moderno.
Na França houve a criação dos “advocat et procureur du roi”. As funções dos
procuradores do rei destinavam-se não apenas a denunciar os que violassem a Lei, mas
também a executar a sentença proferida pelo Juiz, garantindo o proveito econômico da Coroa.
Com a Ordenança de Felipe, o Belo (Felipe IV), os procuradores do Rei ganharam
maior evidência e atribuições. Eles representavam a Instituição, assim, os interesses do
144
LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. 2. ed. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2001. p. 17.
145
Ibid., p. 17.
61
soberano, cujo poder se incrementava de sorte a opor-se àqueles da Igreja e os dos senhores
feudais146. Surgia, então, o Ministério Público.
O perfil atual do Ministério Público somente surgiu na França, após o conturbado
período da revolução, com o movimento de codificação patrocinado por Napoleão Bonaparte,
mormente pelo Código de Instrução Criminal e pela Lei datada de 20 de abril de 1810, que
lhe asseguraram o papel de titular da ação penal.
Como bem elucida Roberto Lyra:
Com a projeção individualista da Revolução Francesa, consolidaram-se
aquelas conquistas, que, assim, caminharam para o pacífico destino de
princípios fundamentais e distinguiram o Ministério Público como força
social.147
A expressão “Ministério Público” nasceu do exercício das funções dos procuradores
do rei franceses que, em seus ofícios ou correspondências se tratavam como ministério ou
função pública, visando se distinguir da função privada do advogado; de outra sorte, a
expressão “parquet” tem origem no estrado (tipo de madeira) existente nas salas de audiência,
onde os procuradores do rei podiam sentar-se lado a lado, com os magistrados.
Hélio Tornaghi assim lecionou:
O Ministério Público constitui-se em verdadeira magistratura diversa da dos
julgadores. Até os sinais exteriores dessa preeminência foram resguardados;
os membros do Ministério Público não se dirigiam aos juízes no chão, mas
de cima do mesmo estrado (parquet) em que eram colocadas as cadeiras
desses últimos e não se descobriam para lhe endereçar a palavra, embora
tivessem que falar de pé (sendo por isso chamados de “magistrature debout”
magistratura de pé).148
Paralelamente às origens francesas, temos as reminiscências históricas de Portugal,
em relação ao Ministério Público.
146
SOUZA, Motauri Ciochetti de. Ministério Público e o Princípio da Obrigatoriedade: Ação Civil Pública,
Ação Penal Pública. São Paulo: Método, 2007. p. 132.
147
148
Ibid., p. 20.
TORNAGHI, 1976, p. 277-278 apud JATAHY, Carlos Roberto de C. O Ministério Público e o Estado
Democrático de Direito. Perspectivas Constitucionais de Atuação Institucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007. p. 20.
62
Em Portugal, a primeira menção existente acerca do assunto é um diploma legal de
1289, em que se criava a figura do procurador do rei, cargo de natureza política e permanente,
no entanto, sem feições de magistratura.149
Como é sabido, por um longo período, vigorou em nosso país a ordem jurídica
portuguesa, que possuía três grandes marcos legislativos: as Ordenações Afonsinas,
Manuelinas e Filipinas.
Com as Ordenações Afonsinas, demonstrando a necessidade de se estabelecer uma
Instituição que apoiasse aqueles que reclamassem por justiça, bem como defendesse o
interesse geral, surge, em 1447, a figura do Procurador de Justiça.
As Ordenações Manuelinas cuidaram da figura do “Promotor de Justiça da Casa de
Suplicação”. E por fim, as Ordenações Filipinas de 1603 e que se cria, de maneira sistemática,
o Órgão de um Promotor de Justiça.
Em resumo, é nítido que o Ministério Público evoluiu junto com o Estado moderno e
que seu fortalecimento é inerente à democracia e ao Estado de Direito.
Ensina-nos Eduardo Ritt:
Assim, é com a República e as instituições políticas modernas, surgidas com
o ideal liberal, que o Ministério Público encontra sua vocação histórica. Com
a República, a soberania desloca-se da figura real para, pelo menos
formalmente, o povo, ser em nome desse exercido. Portanto, a instituição do
Ministério Público surge com o ideal de liberdade, caminhando aos poucos,
com a transformação da sociedade, principalmente, no século XX, na direção
da titularidade dos interesses sociais, gerais e difusos, no Estado
Democrático de Direito.150
Como forma de melhorar o entendimento, importante é a análise da Instituição do
Ministério Público brasileiro e seu desenvolvimento constitucional.
4.2 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL
Após análise superficial das origens do Ministério Público na história da
humanidade, faz-se necessária a análise da Instituição em terras brasileiras, vez que nos
149
150
JATAHY, op. cit., p. 15.
RITT, Eduardo. O Ministério Público como Instrumento de Democracia e Garantia Constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 117.
63
moldes aqui efetivados, não existe nada igual no mundo. A semelhança que podemos
encontrar entre o Ministério Público Brasileiro e os ministérios públicos alienígenas é que
todos possuem uma origem democrática e estão relacionados com o Estado de Direito. E
termina por aí!
O primeiro texto genuinamente brasileiro a ter relação com o Ministério Público é
datado de 1609. Nele foi prevista a figura do Promotor de Justiça, o qual deveria fazer parte
da composição do Tribunal da Relação da Bahia.
Com a criação da Casa de Suplicação do Brasil em 1808, no Rio de Janeiro, mais
uma vez era mencionado o cargo de Promotor de Justiça. Nessa oportunidade, foi
estabelecido, com exclusividade, o cargo de Procurador da Coroa. Nascia assim, a separação,
até então inexistente, das funções de defesa do Estado e do Fisco da defesa da Sociedade.
Com a independência do Brasil, 1822, sobreveio a Constituição outorgada de 1824,
que atribuiu ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional a acusação nos juízos de crimes,
ressalvadas as atribuições da Câmara dos Deputados, no que diz respeito à iniciativa
acusatória.
A partir de 1828, já existia um Promotor de Justiça junto a cada Tribunal de Relação,
inclusive o da Corte e em cada Comarca.
Dessa forma, apenas no Império, o Ministério Público passou a receber tratamento
sistemático. Com efeito, o Código de Processo Criminal de 1832 tratou acerca dos requisitos
para a nomeação do Promotor e das funções alusivas ao cargo. A reforma processual de 1841,
consubstanciada na Lei nº 261 de 03 de dezembro, reforçou a figura do Promotor de
Justiça. 151
Nessa mesma época, merece destaque a Lei nº 2.040 de 28.09.1871 (Lei do Ventre
Livre) que conferiu ao Promotor de Justiça a função de “protetor dos fracos e indefesos”,
estabelecendo que lhe competia velar também para que os filhos livres de mulheres escravas
fossem devidamente registrados.
151
A Lei estipulou em dois artigos a figura do Promotor de Justiça:
Art. 22. Os promotores públicos serão nomeados e demitidos pelo imperador ou pelos presidentes de províncias
preferindo sempre os bacharéis formados, que forem idôneos, e serviram pelo tempo que convier. Na falta ou
impedimento, serão nomeados inteirinamnete pelos juízes de direito.
Art. 23. Haverá pelo menos em cada Comarca um Promotor de Justiça que acompanhará o Juiz de Direito;
quando, porém se as circunstâncias exigirem, serão nomeados mais de um. Os Promotores venceram o ordenado
que lhes for arbitrado, o qual, na Corte será um conto e duzentos mil réis por ano, além de mil e seiscentos réis
por oferecimento do libelo, três mil e duzentos réis por cada sustentação no Júri, e dois mil e quatrocentos réis
por arrazoados escritos.
64
Somente na República, o Ministério Público passou a ser tratado como Instituição.
Pelo Decreto n. 1.030, o Ministério Público, expressamente, passou a funcionar perante as
justiças constituídas como “Advogado da Lei”, passou a ser o fiscal de sua execução, o
procurador dos interesses gerais, o promotor da ação pública contra todas as violações do
direito, o assistente dos sentenciados, dos alienados, dos asilados e dos mendigos, requerendo
o que for a bem da justiça e dos deveres da humanidade.152
A Constituição de 1891, assim como a Carta Magna que a antecedeu (Constituição
de 1824), não mencionou a Instituição do Ministério Público, no entanto, se reportou à figura
do Procurador Geral da República, assim como a Constituição de 1824, se reportara ao
Procurador da Coroa e à Soberania Nacional.
A Constituição de 1934 foi a primeira a constitucionalizar o Ministério Público,
inovando o seu tratamento ao reservar a este Órgão capítulo próprio, inclusive distinguindo a
Instituição do Poder Judiciário, e, ao mesmo tempo, equiparando ambas as instituições como
dignidades fundamentalmente protegidas. 153
Na carta de 1937, editada sob a ditadura de Vargas, o Ministério Público,
constitucionalmente, sofreu um retrocesso, eis que apenas foi citado em artigos esparsos.
Na esfera infraconstitucional, nesse período, foi editado o Código de Processo Penal
Brasileiro, em 1941, em vigor até hoje que, juntamente com o Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, deu ampla importância ao Ministério Público.
Entretanto, com a Constituição democrática de 1946, a Instituição do Ministério
Público voltou a ter relevo.
Naquela Carta, o Ministério Público teve um Título próprio, fora dos demais
Poderes. Foi assegurado ao Membro do Ministério Público estabilidade e inamovibilidade,
bem como lhe foi outorgada a representação da União aos Procuradores da República, que
podiam, no entanto, delegar tais funções, nas comarcas do interior, aos Promotores de Justiça.
Na Constituição de 1967, o Ministério Público foi inserido na Seção e no Capítulo do
Poder Judiciário.
Em seguida, na Emenda nº 1/69, o Ministério Público retornou ao âmbito do Poder
Judiciário, mantendo, entretanto, a autonomia de organização e a carreira conforme os
previsto na antiga Constituição.
152
LYRA, op. cit., p. 23.
153
JATAHY, op. cit., p. 20.
65
E, finalmente, temos a Constituição Cidadã de 1988. Nela o Ministério Público foi
“reinventado”. Surgiu uma instituição nova e evoluída, fruto de um regime democrático e com
duplo objetivo: a de resguardar direitos tão vilipendiados pelo período de exceção e, ao
mesmo tempo, a de projetar um país mais justo para uma população tão carente de direitos.
Nessa linha, são as palavras de Eduardo Ritt: “Assim, se é certo que o Ministério Público
ocidental é filho da democracia e do estado de direito, o Ministério Público brasileiro,
especificamente é fruto da necessidade do estado democrático de direito”. 154
E dessa forma, às vezes não tão linear, se deu o desenvolvimento do Ministério
Público, como instituição. Todo esse processo evolutivo autorizou o Ministro Alfredo
Valadão a escrever:
O Ministério Público se apresenta como a figura de um verdadeiro Poder de
Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por certo
não seria tríplice, mas quádrupla, a divisão dos poderes. Ao órgão que
legisla, ao órgão que executa, um outro órgão acrescentaria ele – o que
defende a sociedade e a lei, perante a justiça, parta a ofensa de onde partir,
isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado. 155
4.2.1 O Ministério Público e sua Inserção na Arquitetura Constitucional Brasileira
A Constituição Federal de 1988 reverenciou o reconhecimento amplo e irrestrito de
garantias e direitos fundamentais. A Constituição Cidadã foi extensa e abrangeu direitos
individuais e coletivos, elencados ao longo de seu corpo.
Na mesma esteira, além de reconhecer direitos e garantias, o Constituinte percebeu a
necessidade da implantação de mecanismos e instrumentos, bem como de órgãos que, de
forma aparelhada e independente, pudessem tornar realidade os princípios insertos na
Constituição. Foi nesse cenário, respeitando os marcos norteadores da Carta de Curitiba 156,
que surgiu o Ministério Público que conhecemos.
154
LYRA, op. cit., p. 125.
155
Ibid., p. 23.
156
Por ocasião dos trabalhos preparatórios à Constituição de 1988, o Ministério Público, representado por seus
diversos segmentos, elaborou uma carta-proposta referente à disciplina da Instituição o que refletiria seus
principais anseios. A proposta foi aprovada em 1986, na ocasião do 1.º Encontro Nacional de Procuradores
Gerais de Justiça e Presidentes de Associações, realizado na capital do Estado do Paraná, no período de 20 a 22
de junho, tendo recebido a denominação de Carta de Curitiba.
66
O Ministério Público, consoante, o art. 127, caput, da Constituição Federal, é
Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado incumbido-lhe a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
A finalidade da existência do Ministério Público, diz o próprio texto constitucional, é
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, isto é, a função de defesa da sociedade no regime democrático, instituída pela
Carta de 1988.157
Merece destaque que a expressão permanente, acrescida da condição essencial, ou
seja, indispensável à própria função jurisdicional do Estado, gera impedimento ao próprio
Poder de Reforma da Constituição, caso existisse o interesse de retirar o Ministério Público
do arcabouço constitucional.
Desta forma, partindo-se da própria natureza da atividade desenvolvida do Ministério
Público, voltada ao bem-estar da sociedade, protegendo-a contra terceiros e, em especial,
contra o Estado, a sua existência deve ser considerada incluída no rol dos direitos e garantias
individuais, sendo vedada a apresentação de qualquer proposta de Emenda tendente a aboli-la
(art. 61,§4.º, V da CF-88). Assim, devemos considerar o Ministério Público como cláusula
pétrea.158
Nesse sentido leciona Emerson Garcia:
Por ser inócua a previsão de direitos sem a correspondente disponibilidade
de mecanismos aptos à sua efetivação, parece-nos que a preservação da
atividade finalística do Ministério Público está associada à própria
preservação dos direitos fundamentais o que reforça a sua característica de
cláusula pétrea e preserva a unidade do texto constitucional.
E continua o autor:
Além disso, a limitação material ao poder de reforma alcançará, com muito
maior razão, qualquer iniciativa que, indiretamente, busque alcançar idêntico
efeito prático (v.g. redução das garantias e prerrogativas de seus membros e
supressão da autonomia da Instituição, tornando-a financeiramente
157
JATAHY, Carlos Roberto de Castro. Curso de Princípios Institucionais do Ministério Público. 2. ed. Rio
de Janeiro: Roma Victor, 2006. p. 31.
158
Cf. Ministro Carlos Ayres Brito, em palestra proferida da sede do Ministério Público Fluminense em
04.06.2004, citada por Carlos Roberto C. JATAHY, 2006, op. cit., p. 32.
67
dependente do Executivo, e com isto, inviabilizando a sua atuação, que é
elemento indicativo de sua própria existência). 159
Por outro lado, a Constituição Federal também dispôs que, o Ministério Público é
Instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Desta forma, unindo o substantivo
Instituição com o adjetivo essencial, concluímos que, somente o Ministério Público pode
desempenhar atividades outorgadas pelo legislador constitucional e infraconstitucional,
imprescindíveis para a consecução final da justiça. 160
A essencialidade, na prática, também pode ser visualizada quando, em determinada
relação processual, a intervenção do Ministério Público for imprescindível. 161
Foi demonstrado até agora que, dentro da nova arquitetura da Constituição Brasileira,
específica e própria do Estado Democrático do Direito, o Ministério Público foi erigido à
condição de Instituição permanente e independente a qualquer Poder do Estado. Dessa forma,
o Ministério Público Brasileiro ganhou feição peculiar e sem similitude no mundo, com
atribuições específicas para uma sociedade carente de democracia e de justiça social, como é a
brasileira.162
Agora, diante deste panorama, é importante traçarmos um posicionamento do
Ministério Público em nossa Constituição, em especial, perante a teoria da separação de
poderes. Para isso, se faz necessário uma pequena digressão a essa teoria.
A princípio, é correto afirmar que o poder representa um incosteste fenômeno social
que, em último grau, se exterioriza pelos elementos concretos da força, em suas várias
acepções: econômica, militar e política.
Em termos mais amplos dentro da teoria estatal, no entanto, o poder, em sua noção
teórica, traduz o veículo instrumental pelo qual se alcança uma ordem social que,
representando uma idéia conceitual de direito, tem como finalidade o bem comum. 163
159
GARCIA, Emerson. Ministério Público, Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 48.
160
Ibid, p. 48.
161
Cabe frisar a decisão do STF (agravo de instrumento 172.244/RS, Rel. Min. Celso de Melo, DJ. 13.11.1995,
p. 38611), onde ficou determinado que, ato processual (audiência) em que membro do Ministério Público, tenha
sido previamente intimado, pode ocorrer com sua ausência, vez que esta falta não pode ser imputada ao aparelho
judiciário.
162
163
RITT, Eduardo, op. cit., p. 137.
De um modo amplo, busca-se associar a expressão bem comum à idéia de justiça (como valor axiológico),
forjando a concepção segundo a qual o bem comum seria a medida da justiça ou a própria finalidade da mesma,
em uma acepção ampla de direito.
68
A teoria da "separação de poderes" pressupõe a tripartição das funções do Estado,
distinguindo-as em legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional.
Aristóteles, já na antigüidade, em sua Política, lançou aquela que seria a base de uma
teoria acerca da separação das funções do Estado. Na concepção aristotélica o governo
dividia-se em três partes: a que deliberava acerca dos negócios públicos; a que exercia a
magistratura (uma espécie de função executiva) e a que administrava a Justiça.
John Locke (Ensayo sobre el gobierno civil) e Rosseau (Du contrat social) também
contribuíram para a construção da "separação de poderes" tendo a mesma sido realmente
definida e divulgada por Montesquieu em seu De l’esprit des lois, transformando-se, assim,
numa das mais importantes doutrinas políticas de todos os tempos, alçada à categoria de
princípio fundamental da organização política liberal.
A primeira constituição escrita que adotou na íntegra a doutrina de Montesquieu foi a
da Virgínia, em 1776, seguida pelas Constituições de Massachussetts, Maryland, New
Hampshire e pela própria Constituição Federal Americana de 1787. Nessa época, os
constitucionalistas norte-americanos, afirmaram de modo categórico, que a concentração dos
três poderes num só órgão de governo representava a verdadeira definição de tirania. 164
Assim, o principio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e
May, foi a base da doutrina exposta no Federalista, de contenção do poder pelo poder, que os
norte-americanos chamaram de sistema de freios e contrapesos (cheks and balances).
A Revolução Francesa proclamou o princípio nos seguintes termos: “Toda sociedade
na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada nem determinada a separação de
poderes, não tem Constituição”. (Declaração dos Direitos do Homem, art. 16).
Não obstante ter o princípio da "separação de poderes" sido uma constante no
ordenamento constitucional brasileiro segundo a fórmula preconizada por Montesquieu, a
Constituição do Império, excepcionalmente, adotou a separação quatripartita: poderes
Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário.
O princípio da separação e independência de poderes, malgrado constituir um dos
signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula universal
apriorística. Tão importante quanto essa divisão funcional básica é o equilíbrio entre os
poderes, mediante um jogo recíproco dos freios e contrapesos.
Por outro lado, nos dia de hoje, não só o princípio da separação de poderes, como a
própria tripartição de poderes, ou seja, a forma das funções do Estado é algo anacrônico, de
164
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996.
Tomo I. p. 191.
69
mera constituição ideológica, não científica165. Assim, deve a separação de poderes, ser vista
de forma relativizada, mitigada.
Dalmo de Abreu Dallari escreveu sobre o tema:
A primeira crítica feita ao sistema de separação de poderes é no sentido de
que ele é meramente formalista, jamais tendo sido praticado. A análise do
comportamento dos órgãos do Estado, mesmo onde a Constituição consagra
efetivamente a separação de poderes, demonstra que sempre houve uma
intensa interpenetração. Ou o órgão de dos poderes pratica atos que, a rigor
seriam do outro, ou se verifica a influência de fatores extralegais, fazendo
que algum dos poderes predomine sobre os demais, guardando-se apenas a
aparência de separação. 166
Desta forma, uma divisão de funções e não uma separação de poderes rígida é,
todavia, importante para possibilitar a eficiência do Estado e a independência de seus órgãos.
Diante de tudo que foi exposto, poderia o Ministério Público, ser um Poder de
Estado? De acordo com a teoria clássica da tripartição de poderes e o arcabouço
constitucional brasileiro, não.
Ocorre que, a realidade atual é outra.
Um dos pilares da teoria da separação de poderes foi a forma de contenção do poder
pelo poder. Nos dias de hoje, o Ministério Público, em decorrência das atribuições, que a
própria Carta Magna lhe conferiu, é um exímio Órgão de contenção de arbítrios do Estado.
O Ministério Público propicia o acesso à justiça, “zela pelo efetivo respeito dos
poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, consoante determina art.
129, II da CF-88. E ainda mais, o Parquet fiscaliza os demais órgãos públicos e o próprio
Poder Executivo.
Assim sendo, considerando a realidade e a ideologia da separação de poderes, a
discussão acerca de o Ministério Público ser considerado um “Quarto Poder” é válida. 167
Importante ressaltar que, não se trata de “frívola vaidade”, como ressalta o eminente
autor Emerson Garcia168, entender o Ministério Público como Poder Estatal. Nosso
165
Nesse sentido RITT, op. cit., p. 142-143.
166
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 221.
167
RITT, op. cit., p. 145.
168
Ibid., p. 45.
70
entendimento é que o reconhecimento do Ministério Público como Poder, ao menos no campo
ideológico, é o primeiro passo para uma independência total e irrestrita deste grande Órgão.
4.2.2 O Novo Perfil do Ministério Público Brasileiro
A Constituição de 1988 teve como fundamento o Estado de Direito e este, por sua
vez, está estritamente relacionado à idéia de democracia. Assim, o Estado defendido pela
Carta Maior é aquele que exerce seus poderes nos limites postos pelo direito e, em harmonia
com parâmetros traçados por estes, sempre com direitos e garantias respeitados, no tocante
aos indivíduos.
O art. 127, caput, da Constituição Federal comete ao Ministério Público, dentre
outros fins, a defesa da ordem jurídica 169 e do regime democrático.
Assim, o novo perfil do Ministério Público pressupõe a aferição e fiscalização de
todos os atos praticados pelos órgãos do Estado, podendo ajuizar as medidas necessárias ao
combate de abusos ou ilegalidades, sempre com o intuito de manter o Estado no limite da
Constituição e do direito. Logo, também é de se concluir que, ao Ministério Público compete
também, a defesa da ordem constitucional onde quer que, esta se encontre ameaçada. 170
Outra faceta do novo perfil do Ministério Público é a defesa do regime democrático.
A Constituição de 1988 estabeleceu no Brasil, de forma expressa, o Estado
democrático de direito, quando definiu os fundamentos do sistema de separação de poderes, a
soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa e ainda, o pluralismo político.
Agindo dessa forma, a Constituição fixou, de maneira absoluta, a democracia
participativa, como norma jurídica constitucionalmente positivada.
169
Nesse sentido a ordem jurídica não guarda similitude com a Lei, mas sim, com o direito, sendo noção
eminentemente mais ampla.
170
Nessa linha, asseverou Eduardo Ritt, op. cit., p. 157: A atuação do Ministério Público brasileiro, portanto, é
orientada para a supremacia constitucional e para o ordenamento jurídico como um todo não seja agredido, ou
por abusos de poder e por atos ilícitos de autoridades públicas (inclusive por atos de improbidade
administrativa), ou por atos ilícitos do próprio cidadão. Para tanto, utiliza-se da ação penal, da ação civil pública,
da ação direta de inconstitucionalidade e, até mesmo, da representação para fins de intervenção da União e dos
Estados, entre outras medidas para manter a legalidade (por exemplo, na defesa do patrimônio público contra os
desmandos do administrador público), nos termos do art. 129 da Carta constitucional de 1988.
71
Diante disto, a defesa do regime democrático importa em salvaguardar todos os
dispositivos formais da democracia representativa e do conteúdo material da própria
Constituição, em especial, os direitos e garantias fundamentais. Essa é uma das funções do
Ministério Publico Brasileiro.
Assim, o Ministério Público é também Instituição destinada à preservação dos
valores fundamentais do Estado enquanto comunidade e, para tanto recebeu a função de
efetivar esses direitos. O Ministério Público é um dos instrumentos de efetivação de
cidadania. 171
Enfim, para que Ministério Público bem desempenhe a defesa do regime
democrático, alguns princípios devem ser respeitados, a saber: a) a existência de mecanismos
pelos quais a grande maioria do povo possa tomar decisões concretas, não apenas para a
escolha de um governante ou um legislador a cada meia dúzia de anos e, a partir daí, faça este
o que bem entender mesmo contrariamente ao que prometeu antes de ser eleito, mas sim para
que o povo possa decidir as grandes questões que digam respeito ao destino do país e possa
controlar o exercício do mandato dos que foram eleitos, o que inclui necessariamente sua
cassação, em caso de violação dos compromissos partidários (recall); b) o funcionamento de
canais de manifestação (como criação, fusão, extinção de partidos; sufrágios freqüentes não
só para investiduras dos governantes, como também para as grandes questões nacionais etc..);
c) não sejam suprimidas pelo poder de emenda à Constituição as garantias fundamentais ao
exercício da democracia; d) haja total liberdade no funcionamento desses canais de controle;
e) sejam validamente apurados os resultados dessas manifestações (eleições, plebiscitos,
referendos); f) sejam efetivamente cumpridas as decisões ali tomadas (dever positivo); g)
sejam combatidos qualquer desvio de cumprimento das decisões ali tomadas (dever negativo);
h) sejam prioritariamente defendidos “aqueles que se encontrem excluídos, os empobrecidos,
os explorados, os oprimidos, aqueles que se encontrem à margem dos benefícios produzidos
pela sociedade”. 172
A promoção social está no núcleo do novo perfil constitucional do Ministério
Público. A defesa do regime democrático e dos interesses sociais reafirma o compromisso do
Ministério Público com a transformação, com a justiça, da realidade social. (art. 127, caput,
combinado com art. 1.º e 3.º da CF-88). Nesse sentido os objetivos elencados no art. 3.º da
171
172
Cf. RITT, op. cit., p. 162.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Acesso à Justiça e o Ministério Público. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
p. 50-51.
72
Constituição do Brasil vinculam o Ministério Público, ou seja, ele deve defender uma
sociedade livre, justa, solidária, com pobreza erradicada e com desigualdades sociais
diminuídas. Esta é a destinação de fundo do Ministério Público brasileiro.
Assim, para o Ministério Público cumprir sua destinação constitucional não mais se
sustenta o modelo institucional antigo. É preciso avançar com planejamento funcional e em
suas estratégias de atuação. A atuação individual e intuitiva dos membros do Ministério
Público deve ser superada por um novo modelo, em que o compromisso com a transformação
social, o planejamento estratégico e a eficiência passem a ser condições naturais em todos os
âmbitos da atuação institucional, jurisdicional ou extrajurisdicional. 173
Diante dessas árduas incumbências, resta ao Ministério Público, tentar aparelhar-se e,
ao mesmo tempo, modernizar-se.
Esta Instituição, ao longo da história, sempre esteve em mutação, daí também ser
chamado de agente de transformação social. 174
No pano de fundo do leque de atribuições conferidas ao Ministério Público, existe o
interesse maior e supremo que é a defesa da sociedade. A razão de ser do Ministério Público é
a comunidade, este quando age é em nome e em prol da sociedade.
A Constituição cidadã pugnou pela proteção dos direitos individuais e sociais, enfim,
pela defesa da sociedade. Nesse diapasão, os pobres os excluídos não tinham como se
organizar, ou buscar, ainda que individualmente, fazer valer seus direitos, de forma rápida e
eficaz. Do mesmo modo, erradicar ou amenizar a pobreza com uma melhor forma de justiça,
não tinha como ser efetivada por pessoas que sequer tinham consciência de seus direitos.
E no mundo globalizado, mais problemas e tarefas surgem para o Ministério Público
Brasileiro enfrentar. Assim, como combater uma criminalidade, que deixou de ser
desorganizada e pontual e passou a ser organizada e global? O Ministério Público pode ficar
inerte a esse fenômeno? O que pode ser feito?
Trata-se de enfrentar os novos desafios impostos na era pós-moderna, que quiçá
requer a construção de novos paradigmas de atuação e de novas funções que o Ministério
Público deva alcançar. Esse é, precisamente, um novo papel do Ministério Público.
173
ALMEIDA, Gregório Assagra de. O Ministério Público no neo-constitucionalismo: Perfil constitucional e
alguns fatores de ampliação de sua legitimação social. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; ALVES, Leonardo
Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson Alves. Temas Atuais do Ministério Público: a atuação do parquet
nos 20 anos da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 48-49.
174
Nesse sentido JATAHY, 2007, op. cit., p. 71.
73
4.3 PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A Constituição de 1988 (art. 127, §1.º) e a Lei Complementar n.º 8625/93, parágrafo
único do art. 1.º, apresentam como princípios institucionais do Ministério Público: a unidade,
indivisibilidade e a independência funcional. Todo o arcabouço de direitos e garantias
conferidas aos membro do Ministério Público, como órgão da própria sociedade, decorre
destes princípios que informam o sistema.
Conforme já foi visto no capítulo 3, as constituições são compostas de normas
classificáveis em duas categorias principais: os princípios e as regras. Nessa linha, com o
rompimento de uma dogmática positivista, os princípios não são mais vistos como meros
instrumentos de interpretação e de integração das regras. Princípios são concebidos como
forma de expressão da própria norma, sendo sua observância cogente e, qualquer ato de
afastamento deles inválido.
Diante dessas premissas, conclui-se que os princípios contemplados nos art. 127, §1.º
da Constituição da República e nos art. 1º, caput, da Lei n.º 8625/93 são normas de conduta,
sendo obrigatória sua observância pelo legislador infraconstitucional, pela Administração
Superior do Ministério Público e por tantos quantos se relacionarem com o Ministério Público
no exercício de sua atividade finalística.175
4.3.1 Princípio da Unidade do Ministério Público
Consoante este princípio, o Ministério Público constitui uma Instituição única,
gerando desdobramentos na atuação de seus membros, que não podem ser concebidos na sua
individualidade, mas como representantes e integrantes de um só organismo, em nome do
qual atuam. Membro e Instituição formam um só todo.
Para Hugo Nigro Mazzilli, unidade significa que os membros do Ministério Público
integram um só órgão sob a direção de um só chefe. 176
175
Nesse sentido GARCIA, op. cit., p. 56.
176
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 66
74
Assim, afirmar que a unidade é o princípio institucional do Ministério Público é o
mesmo que dizer estarem seus integrantes organizados em um único órgão e submetidos a
uma única chefia (Procurador-Geral).177 Essa seria o prisma orgânico do princípio da unidade.
No entender de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro:
a unidade do Ministério Público não significa que qualquer de seus membros
podem praticar qualquer ato em nome da Instituição, mas sim, sendo um
organismo, os seus membros presentam (não representam) a Instituição
sempre que atuarem, mas a legalidade de seus atos encontram no âmbito da
divisão de atribuições e demais princípios e garantais impostas pela lei. Da
mesma forma, o Poder Judiciário no exercício de sua função jurisdicional, se
manifesta através dos diversos juízos, presente também aqui o princípio da
unidade. O fato de um juiz absolutamente incompetente julgar uma causa
não significa dizer que a instituição não está se manifestando. Esta sim,
entretanto, o processo contém vício porque o juiz extrapolou o âmbito de sua
competência, fixada na lei. As conseqüências dos vícios serão aquelas
fixadas em lei.178
Veja-se que inexiste unidade entre Ministérios Públicos Estaduais e nem entre os
diversos ramos do Ministério Público da União. O princípio constitucional da unidade só
incide no âmbito de cada Ministério Público.179
É importante ressaltar que o princípio da unidade não significa que os atos e
posicionamentos dos membros do Ministério Público são únicos e numa mesma linha. A
chefia (base do princípio da unidade) é emissora de ordens e condutas administrativas e não
de conduta pessoal funcional, propriamente dita. Desta forma, o princípio da unidade, não
significa uniformização de atuação e sim, uma estruturação organizacional constituída de
meras recomendações destituídas, a princípio, de imperatividade. Assim, caso fosse diferente,
a unidade do Ministério Público estaria em rota de colisão com o princípio da independência
funcional, o que não é o caso.180
177
Nesse sentido ver: SILVA NETO, Manoel Jorge e Silva. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 449; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 1140 e MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 17.ª. São Paulo: Atlas, 2005. p. 356.
178
CARNEIRO, O Ministério Público no Processo Civil e Penal: promotor natural, atribuição e conflito. 6.ª ed.
Rio de Janeiro, Forense, 2003. p. 42.
179
Foi nesse sentido a decisão do Superior Tribunal de Justiça: “O Ministério Público é uno e indivisível, mas
apenas na medida em que os seus membros estão submetidos a uma mesma chefia. Essa unidade e
indivisibilidade só dizem respeito a cada um dos ministérios públicos que o sistema jurídico brasileiro
consagrou”. (STJ, ROMS 5563/RS. Rel. Min. César Asfor Rocha, 1.ª turma, decisão: 21.08.95, DJ1, de
16.10.95, p. 34.609).
180
Cf. GARCIA, op. cit., p. 56.
75
Por outro lado, sob o prisma funcional, o princípio da unidade significa que, o Brasil,
só se pode falar em um único Ministério Público, já que a Instituição, por intermédio de cada
um de seus ramos, desempenha, no seu âmbito de atuação, as funções institucionais que lhe
foram atribuídas pelo texto constitucional. 181
Segundo Carlos Roberto de Castro Jatahy:
A unidade traduz a identidade do Ministério Público como Instituição. Seus
membros não devem ser identificados na sua indivisibilidade, mas sim como
integrantes de um mesmo organismo, que tem função a exercer de exercer as
tarefas constitucionais que lhe foram conferidas pela Carta Magna. Ao
atuarem, oficiam em nome da Instituição apresentam como um todo. Deve
existir no ordenamento constitucional brasileiro apenas um Ministério
Público, embora com atribuições distribuídas e multifacetadas perante os
vários ramos do Poder judiciário da União e das justiças estaduais. 182
Nesse sentido, o princípio da unidade do Ministério Público consagra que os seus
membros têm a mesma missão, ou seja, tem como destinação aquela estabelecida no art. 127,
caput, do CF-88.
4.3.2 Princípio da indivisibilidade do Ministério Público
Para o professor Hugo Nigro Mazzilli indivisibilidade significa que seus membros
podem ser substituídos uns pelos outros, não arbitrariamente, mas seguindo a forma
estabelecida em lei. 183
Esse princípio é corolário da própria idéia de unidade do Ministério Público. A
substituição dos membros, uns pelos outros, permite que os trabalhos do “parquet” não sejam
paralisados como, por exemplo: no caso de férias, no caso de licenças para tratamento de
saúde ou outros afastamentos autorizados pelas respectivas leis orgânicas. Assim sendo, as
substituições ocorrem sem prejuízo da atuação de todo o órgão.
No entanto, a principal importância e relevância do princípio da indivisibilidade não
é regular o trabalho ministerial. Sua importância reside em podermos afirmar que o “parquet”,
181
GARCIA, op. cit., p. 57.
182
JATAHY, 2006, op. cit., p. 37.
183
MAZZILLI, op. cit., p. 66.
76
como órgão, não pode ser dividido internamente em vários outros órgãos autônomos e
desvinculados entre si. 184
Assim, a indivisibilidade impede a ocorrência de solução de continuidade na atuação
do Ministério Público e também, do mesmo modo, impede que este seja dividido. São as
palavras de Paulo César Carneiro:
Este princípio é uma decorrência natural do princípio da unidade e nele
poderia estar compreendido. Significa que a instituição, o organismo, não
pode ser dividido. Quando um membro da instituição substitui outro, é o
próprio Ministério Público que continua a atuar. Um pode ser substituído por
outro, sem qualquer vinculação de opinião, e sem que tal fato cause a
cindibilidade da instituição. É preciso deixar novamente bastante claro que
uma coisa é a possibilidade de “in genere” de substituição de um membro
por outro, todos obviamente, componentes do mesmo organismo; outra, bem
diversa, diz respeito à legalidade dos atos praticados pelo substituto. 185
A indivisibilidade pressupõe substituição legal e não arbitrária e está vinculada, em
tese, ao princípio do promotor natural e à garantia da inamovibilidade 186, que veremos mais
adiante.
4.3.3 Princípio da Independência Funcional do Ministério Público
Entendemos ser o princípio da independência funcional do Ministério Público o mais
importante da Instituição. É dele que decorrem os outros princípios.
Para o princípio da independência funcional, os membros do Ministério Público, no
desempenho de suas atividades, não estão subordinados a nenhum órgão ou Poder, mas
somente à sua consciência, já que suas manifestações devem ser sempre fundamentadas em
lei.
A independência funcional significa que cada membro e órgão do Ministério Público
gozam de independência para exercer suas funções, em face dos outros membros e órgãos da
mesma instituição. Isso significa que, no exercício da atividade-fim do Ministério Público,
184
Cf. BULOS, op. cit., p. 1140.
185
CARNEIRO, op. cit., p. 42.
186
Nesse sentido JATAHY, 2006, op.cit., p. 44
77
cada qual deles pode tomar as decisões últimas afetas à Instituição, sem se ater a ordens de
outros membros ou órgãos da mesma Instituição. 187
Para Manoel Jorge e Silva Neto, a independência funcional dos membros do
Ministério Público indica a autonomia de convicção, razão por que tudo que realizam está,
exclusivamente, atrelado aos ditames de consciência de cada um. 188
Sábias são as colocações, em relação ao princípio da independência funcional do
Ministério Público, feitas por Emerson Garcia:
A Constituição de 1988, caminhando no mesmo norte de diversos países
democráticos, buscou circundar o Ministério Público de diversas garantias e
prerrogativas, todas imprescindíveis ao exercício independente de suas
relevantes funções, possibilitando uma proteção adequada contra as
retaliações que seus membros certamente sofreriam sempre que
contrariassem os detentores do poder, político ou econômico, ou mesmo
aqueles adeptos ao tráfico de influência.
E prossegue o eminente autor:
De acordo com o princípio da independência funcional, aos membros do
Ministério Público são direcionadas duas garantias vitais ao pleno exercício
de suas funções: a) podem atuar livremente, somente rendendo obediência à
sua consciência e à lei, não estando vinculados às recomendações expedidas
pelos órgãos superiores da Instituição em matérias relacionadas ao exercício
de suas atribuições institucionais; b) não podem ser responsabilizados pelos
atos que praticarem no estrito exercício de suas funções, gozando de total
independência para exercê-los em busca da consecução dos fins inerentes à
atuação ministerial. 189
Desta forma, em razão da independência funcional de seu cargo, poderá o membro
do Ministério Público analisar livremente os fatos submetidos à sua apreciação, zelando pela
prevalência da situação que se afigure mais justa, a que melhor se ajustar à sua consciência e
ao ordenamento jurídico.
Para ser uno e indivisível, o Ministério Público necessariamente deve ser
independente, no entanto, o reverso não é verdadeiro, para ser independente, o Ministério
Público prescinde da Unidade e Indivisibilidade. Daí, ser o princípio mais importante.
187
Cf. MAZZILLI, 2005, op. cit., p. 67.
188
SILVA NETO, op. cit., p. 450.
189
GARCIA, op. cit., p. 65.
78
De que adiantaria termos um Ministério Público em unidade, com atuações
uniformes e com membros, uns substituindo os outros, em um órgão sem nenhuma fissura, se
ao tomar uma decisão, o Promotor de Justiça não tivesse liberdade de convicção ou escolha?
De que serviria a obediência estrita ao propalado princípio do promotor natural, que veremos
a seguir, sem independência funcional? A resposta é que, no Brasil, não tem como existir
Ministério Público sem independência funcional.
Nesse diapasão, é importante esclarecer que independência funcional não se
confunde com autonomia institucional. Autonomia institucional é a capacidade do Ministério
Público de autogestão, administrativa e funcional, exercendo a independência preconizada no
texto constitucional.
De outra banda, a hierarquia administrativa não prejudica a independência funcional.
Nesse aspecto, a hierarquia tem o propósito exclusivo e único de viabilizar a organicidade
administrativa. Voltamos a ressaltar que não existe hierarquia em sentido funcional.
Enfim, o membro do Ministério Público defende a sociedade e para tanto, nada pode
obstar e contrariar seu modo de pensar e agir. O Ministério Público dependente não é
Ministério Público, consoante o que está expresso no texto constitucional, ou seja, o
Promotor∕Procurador deve estar imune a pressões externas (dos agentes dos poderes dos
Estados e dos agentes do poder econômico) e internas (dos órgãos da Administração do
Superior do Ministério Público). A independência funcional seria, nesse sentido, uma garantia
da própria sociedade antes mesmo de ser uma garantia do membro do Ministério Público.
79
5 A TEORIA DO PROMOTOR NATURAL
Como foi visto, ao lado de expressa atribuição de funções de relevância social, a
Constituição Federal impôs ao Ministério Público princípios próprios, como do a unidade,
indivisibilidade e da independência funcional de seus membros. Nessa mesma linha, permitiu
o desvendamento de outros princípios decorrentes, como o princípio do promotor natural, ao
qual este capítulo é dedicado.
Antes de tudo, para a completude da destinação imposta pala Constituição ao
Ministério Público, todas as garantias e prerrogativas aos seus membros se fazem necessárias.
Em relação ao princípio do promotor natural, não poderia ser diferente. Desta forma, o
promotor natural é princípio do Ministério Público que comporta mais de uma abordagem, ou
seja, decorre de princípios outros e ao mesmo tempo, é garantia de seus membros.
Sendo assim, uma análise (doutrinária e jurisprudencial) atualizada do princípio
do promotor natural, torna-se indispensável para se verificar se, de fato, o Ministério Público
é um Órgão hodierno e eficaz.
O princípio do promotor natural tem sido regularmente discutido no âmbito de
nossos tribunais superiores há mais de 30 anos, em especial no seio da Suprema Corte, ora
pelo seu plenário, ora por turmas, sem uma clara conclusão sobre o tema.
Seu argumento embrionário partiu da doutrina e, como precursores membros e exmembros do Ministério Público como Hugo Nigro Mazzilli, Jacques Camargo Penteado e
Sérgio Demoro Hamilton (MP/SP) e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (MP/RJ). A idéia inicial
era que, ao Ministério Público deveria ser dado o mesmo tratamento dispensado ao Poder
Judiciário, no tocante ao Princípio do Juiz Natural.
Para entender o assunto com maior clareza, faz-se necessário contextualizar a
época em que tal doutrina surgiu. Afinal, qualquer análise ou interpretação só é válida se
conhecermos o momento histórico em que foi realizada.
80
5.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL
O princípio do promotor natural surgiu na doutrina nos meados da década de 70,
momento em que o Brasil vivia um regime de exceção, quando todo e qualquer movimento de
democracia era repelido de plano. Nesse sentido, foram as palavras de Hugo Nigro Mazzilli:
Há muito nos posicionamos contra os chamados promotores de encomenda,
escolhidos discricionariamente pelo chefe do Ministério Público – já o
fazíamos desde 1976 de forma pioneira, ainda sob época da ditadura
militar.190
Naquela época não havia respeito às instituições que guardassem relação com o
Estado Democrático de Direito. Tudo era permitido no tocante à violação de direitos e
garantias fundamentais. Nesse cenário, o Ministério Público tinha evidência mínima.
Naquela altura, existia a prática deletéria (hoje quase inexistente) dos poderosos
locais pedirem ao Governador, em nível estadual, e ao Presidente, em nível federal, a
substituição de juízes e membros do Ministério Público que estivessem “atrapalhando” sua
“justiça privada”, no que, quase sempre, eram atendidos em seus pleitos, sendo os
“indesejáveis” removidos, às vezes para Comarcas de mais difíceis provimentos, isto é, ao
cumprir suas funções, eram punidos por suas instituições.
É importante ressaltar também que, neste período, o Ministério Público estava sob a
égide da “Carta de 1969”, onde este figurava na estrutura do Poder Executivo, realidade muito
distante da que conhecemos atualmente.
De outra banda, a defesa da sociedade não estava sob responsabilidade do Ministério
Público. Ele não tinha forças e instrumentos para lutar contra os arbítrios dos governantes, e
nem mesmo contra as ilegalidades cometidas por um cidadão comum. A criminalidade era
ingênua e altamente amadora. Em resumo, o mundo era outro, o a estrutura de governo era
outra e a mentalidade era outra. Tudo era diferente.
Diante dessas premissas, vamos entender a doutrina do princípio do promotor
natural.
Segundo essa doutrina, o promotor natural consiste na existência de um órgão do
Ministério Público, previamente estabelecido pela Lei para oficiar nos casos que sejam afetos
à Instituição.
190
MAZZILLI, 1988, op. cit., p. 68.
81
São as palavras de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro:
A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado, decorre
do princípio da independência, que é imanente à própria instituição. Ela
resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou
formal que figure em determinado processo que reclame a intervenção do
Ministério Público, em ter um órgão específico do “parquet” atuando
livremente com atribuição predeterminada em lei, e, portanto, o direito
subjetivo do cidadão ao promotor (aqui no sentido lato), legalmente
legitimado para o processo. Por outro lado, ela se constitui também como
garantia constitucional do princípio da independência funcional,
compreendendo o direito do promotor de oficiar nos processos afetos ao
âmbito de suas atribuições.191
E continua o autor:
Este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos
membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão, que
tem assegurado, nos diversos processos em que o MP atua, que nenhuma
autoridade ou Poder poderá escolher promotor ou procurador específico para
determinada causa, bem como que o pronunciamento deste membro do MP
dar-se-á livremente, sem qualquer tipo de interferência de terceiros. 192
O postulado do promotor natural se baseia no comando constitucional segundo o
qual ninguém será processado ao não ser pela autoridade competente.
Nelson Nery Junior escreveu sobre o tema:
A idéia do promotor natural surgiu, embrionariamente, das proposições
doutrinárias pela mitigação do poder de designação do Procurador-Geral de
Justiça, evoluindo para significar a necessidade de haver cargos específicos
com atribuição própria a ser exercida pelo promotor de justiça, vedada a
designação pura e simples, arbitrária, pelo Procurador-Geral de Justiça. 193
Para a teoria do promotor natural, este seria o reverso do promotor de encomenda de livre escolha do Procurador-Geral, que o designa e o afasta ad nutum.194
O princípio do promotor natural, segundo, essa teoria, visa, em última análise,
impedir a atuação do acusador de exceção, designado com propósitos políticos pouco
recomendáveis, daí porque não se vislumbra se possa aceitar designações casuísticas. Dessa
191
CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 47.
192
Ibid., p. 47.
193
NERY JÚNIOR, op. cit., p. 87.
194
Cf. MAZZILLI, 2005, p. 69.
82
forma, o princípio visa impedir que o chefe do Ministério Público encarne seu papel como
déspota, dotado de poder ilimitado.
Para a teoria, os pressupostos para aferição do princípio do promotor natural são os
seguintes: a) investidura no cargo de membro do Ministério Público; b) existência de órgão de
execução; c) lotação por titularidade e inamovibilidade do membro do Ministério Público no
órgão de execução, ressalvadas as hipóteses legais de substituição e remoção; d) definição em
lei das atribuições do órgão.195
Sobre o tema do promotor natural, também escreveu Pedro Henrique Demercian:
Na realidade – o princípio do promotor natural – trata-se de uma expansão
para o regime jurídico do Ministério Público, da tradicional garantia
construída no âmbito da jurisdição. É, por assim dizer, um desdobramento
do princípio do juiz natural, e que foi concebido com a mesma preocupação
de limitar o arbítrio estatal no desenvolvimento do processo. 196
Em um primeiro momento, o princípio do promotor natural combateria o arbítrio,
insurgindo-se contra os que violam, com prepotência, as franquias individuais e,
principalmente a garantiria a ordem jurídica, protegendo o membro da Instituição, na medida
em que lhe assegura o pleno exercício e independente de seu mister, quanto a tutelar a própria
coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando um promotor cuja intervenção se
justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.
Completando esta teoria, temos a idéia de que seria inconcebível um acusador de
exceção, já que inexiste juízo de exceção.
Embora não tenha sido objeto de explícita remissão no § 1.º do art. 127, a sua base
constitucional é o art. 5.º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente”.
Desta forma, o princípio do promotor natural seria imanente ao novel sistema
constitucional brasileiro, assentando-se nas cláusulas da independência funcional e da
inamovibilidade dos membros da Instituição, vedando assim, designações casuísticas e
arbitrárias pela chefia ministerial.
Para Cândido Furtado Maio Neto, o princípio do promotor natural “é todo aquele
agente ministerial com poderes a atribuições administrativas e jurisdicionais exclusivas
previamente estabelecidas na Constituição, em lei penal adjetiva e nas normatizações ou
195
Cf. BULOS, op. cit., p. 532.
196
DEMERCIAN, op. cit., p. 74.
83
instruções superiores do Ministério Público, devidamente publicados na imprensa oficial da
União ou dos Estados.” 197
Hugo Nigro Mazzilli escreveu a respeito:
A mera designação, para qualquer função do Ministério Público, é um dos
instrumentos pelos quais se acentua ainda mais a indesejável concentração
de poderes manejados pelo Procurador-Geral de Justiça, o que submete os
membros da Instituição e aniquila de fato e em última análise todas as
garantias constitucionais de independência funcional e inamovibilidade
conferidas à Instituição.198
Segundo a teoria do promotor natural, no Ministério Público, todos os cargos devem
ter atribuições únicas, específicas e com funções previamente estatuídas na lei. Não são
tolerados os cargos genéricos, cuja função não esteja delineada precisamente na lei. 199
O princípio do promotor natural pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de
um lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente o
cargo correspondente ao seu órgão de atuação, seja aquele que irá oficiar no processo
correspondente, salvo as exceções previstas em lei, vedado, em qualquer hipótese, o exercício
das funções por pessoas estranhas aos quadros do parquet. E ainda, todo e qualquer ato do
procurador-geral que contrarie tal princípio, ainda que editado com aparência de legalidade
como designações, avocação, delegação e formação de grupos especiais, é absolutamente
nulo, incapaz de produzir qualquer tipo de efeito e sujeito a medidas legais que visem ao
restabelecimento da observância do princípio do promotor natural. 200
Assim, nos moldes em que foi concebida, isto é, em sua gênese criatória, uma
simples leitura conclui que a teoria do princípio do promotor natural, é extremamente rígida,
não admitindo mitigações e nem relativismo.
Não obstante, analisaremos alguns aspectos doutrinários importantes para justificar a
releitura do promotor natural em nosso ordenamento jurídico.
197
MAIA NETO, Cândido Furtado. Promotor de Justiça e Direitos Humanos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008.
p. 104.
198
MAZZILLI, 2007, op. cit., p. 118.
199
NERY JUNIOR, op. cit., p. 91.
200
Ibid, p. 48.
84
Preliminarmente, entendemos que adotar o princípio do promotor natural com base
na inamovibilidade de seus membros merece reparos201. A inamovibilidade é uma garantia
funcional, cuja finalidade é proteger o pleno exercício das funções dos membros do parquet,
contra desmandos de autoridades hierarquicamente superiores. É a garantia quem tem o
promotor de justiça de permanecer no local/lugar do qual é titular, impedindo sua remoção exofficio, salvo por motivo de interesse público, assegurada, no caso, a ampla defesa. A
inamovibilidade tem relação com o âmbito espacial, enquanto o promotor de justiça natural
guarda estreita relação como termo designação.
O princípio do promotor natural pressupõe a fixação das atribuições legais do órgão
da Instituição e a identidade física do promotor ao processo que lhe é afeto.202
Outrossim, se esta fosse a justificativa deste postulado, deveríamos adotá-lo na
Defensoria Pública, uma vez que o §.1° do art. 134 da Constituição, também assegura aos
defensores públicos, a prerrogativa da inamovibilidade. Surgiria o “Defensor Público
Natural”.
No que concerne à alegação da independência funcional do Ministério Público como
forma de justificar a existência do promotor natural, entendemos ser a mais acertada.
Uma das formas de burla à independência funcional é a designação casuística de um
promotor para atuar em feito originariamente atribuído a outro. Não há como negar a
designação casuística como forma de clara afronta à independência funcional.
Assim, o promotor natural se constitui em um dos desdobramentos possíveis da
independência funcional.
Das justificativas que resguardam a existência do Princípio do Promotor Natural, a
mais “perigosa” seria de tratar com similitude absoluta o Ministério Público com a
Magistratura.
201
Nesse sentido: Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, op. cit., p. 36 e FONTELES, Claudio Lemos. Reflexões em
Torno do Princípio do Promotor Natural. In: _____. Ministério Público Federal: visão do biênio 2003/2005.
Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União; Fundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva,
2006. p. 21.
202
Nesse sentido: FONTELES, op. cit., p. 28.
85
O Ministério Público possui base jurídica e estrutura normativa-organizacional
ímpar. A própria constituição tratou de fazê-lo. Desta forma, o Ministério Público não pode
ser tratado como se magistratura fosse. 203
5.2 O PROMOTOR NATURAL COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
Um ponto se destaca na questão do promotor natural no nosso ordenamento jurídico.
Ele versa sobre a definição jurídica e doutrinária do que sejam princípios jurídicos, o modo e
a forma como tais princípios se encontram inseridos no ordenamento jurídico, além de sua
abrangência e de sua penetração no segmento que lhe correlato.
Não foi em vão, e muito menos sem pretensão que, em capítulo inteiro deste estudo,
tratamos de interpretação, princípios e regras, elementos essenciais para a elucidação deste
ponto.
203
Edinaldo de Holanda Borges em parecer que ofereceu no HC n.º 387.974-0/DF, que a nosso ver, esclarece
melhor a questão:Estabelece o § 1° do art. 127 da Constituição Federal […]. Essa é a regência fundamental, o
arcabouço normativo sobre o qual repousa toda edificação jurídica e doutrinária do Órgão que a história
denominou de Ministério Público. Sobredito alicerce constitucional do império normativo, da concepção de
KELSEN, cria um parâmetro jurídico-ideológico que limita e conduz toda conceituação do Ministério Público
em suas esferas ônticas do exercício funcional. Essa diretiva fundamental, elevada a nível constitucional, não só
define o Órgão, como o distingue e o separa dos Poderes constituídos, sobressaindo características inominadas e
próprias. Tais predicamentos constitucionais individualizadores separam e distinguem o Ministério Público do
Poder Judiciário, evitando que as normas nucleares de ambos sejam confundidas, na dimensão do desempenho
funcional[…].Do sobredito paralelo entre as funções judicante e ministerial avulta a diferença que se irradia
entre o poder de iniciativa e o poder de decisão. Se ambos não se identificam em sua estrutura formal, também
não o fazem em seus princípios regentes. A Teoria Fixista do Juiz Natural, que emana do inciso LIII do art. 5º da
Constituição Federal se contrapõe ao princípio constitucional da indivisibilidade que compõe o Ministério
Público (§ 1ºdo art. 127).Pelo princípio da indivisibilidade, todos os Membros do Ministério Público são
reciprocamente substituíveis, tornando o órgão uma totalidade homogênea, o que se contradiz com a noção de
Promotor Natural, que traduz uma prefixação unitária. São dois princípios constitucionais de regência diferente e
que se contrapõem em termos e finalidade. O Juiz Natural é garantia individual de julgamento independente. A
indivisibilidade é postulado de garantia coletiva da defesa de bens sociais e públicos, que não pode ser fixado em
apenas um Membro, mas em todo o Órgão. A diferença sobranceira que se estabelece entre o Poder Judiciário e
o Ministério Público, na lição de Bruzzone é a conotação política de suas funções. Ao Ministério Público
compete a realização da política criminal da sociedade organizada. A missão do Poder Judiciário, dizia ele,
reside no controle e interpretação da lei penal, material e forma, mecanismo pelo qual se ampliará ou se limitará
o campo de punibilidade e, em conseqüência, a perseguição e investigação […]. Investigar um delito assumindo
funções policiais ou quase policiais é tarefa de órgãos administrativos, não do órgão jurisdicional […]. Essa
conotação constitui a diferença que conduz SIEGERT a afirmar a impossibilidade de aplicação dos princípios
que regem o Juiz ao Ministério Público. […] Se dois postulados constitucionais, o do Juiz Natural e o do
Princípio da lndivisibilidade, estruturam fundamentalmente dois órgãos, não é razoável, nem jurídica, a
aplicação inversa das regras, conferindo à estrutura de um órgão o alicerce normativo do outro. Estender a regra
fixista do Juiz Natural, para criar o Promotor Natural é dividir as funções do Ministério Público, em
contraposição à indivisibilidade constitucional. É afronta ao princípio da não contradição emanado da lógica
formal.
86
Para efeito de rememoração, a doutrina divide o gênero norma: as normas princípios
e as normas-disposição. Luis Roberto Barroso afirma que “normas-princípios têm,
normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema”
enquanto que as normas-disposição, às quais também se refere como regras, “têm eficácia
restrita às situações específicas às quais se dirigem.”204
O princípio jurídico, como norma, é encontrado de forma explícita ou implicitamente
no ordenamento jurídico e é especial, na medida em que, diferente das regras, possui caráter
geral, abstrato e, principalmente, forte elemento axiológico.
Não é preciso descrever, neste ponto, todas as discussões teóricas envolvendo a
distinção entre regras e princípios e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido
empregados para extremar as duas espécies normativas. O que nos interessa agora é a
distinção essencial entre princípios e regras.
Uma forma bastante resumida de apresentar a questão é a seguinte: as regras
descrevem comportamentos (positivos ou negativos), sem se ocupar diretamente dos fins que
as condutas descritas podem realizar, ao contrário, os princípios estabelecem estados ideais,
objetivos e seriam alcançados, sem explicitarem, necessariamente, as ações que devem ser
praticadas para que esse fim seja alcançado.205
Assim, onde a teoria do promotor natural melhor se enquadraria, em nosso sistema
jurídico?
A nosso ver, promotor natural, em nosso ordenamento jurídico, seria considerado
princípio.
Apesar de o promotor natural descrever conduta – designação de membro do
Ministério Público pelo Procurador-Geral – este também estabelece ideal, objetivo e possui
conteúdo axiológico, como um princípio jurídico.
A norma do promotor natural pretende produzir um efeito específico: evitar supostos
arbítrios de Procuradores-Gerais em designações, avocações ou afastamentos espúrios e
dotados de intenções perniciosas, bem como a garantia processual que todo processo o
acusador será previamente definido. Nesse aspecto com efeito geral.
O fato é que, a tese do promotor natural, em decorrência da importância de sua
utilização e a vasta discussão em nosso ordenamento jurídico, já demonstra tratar-se de um
204
BARROSO, op cit, p. 151.
205
ÁVILA, op cit, p. 64 e ss.
87
verdadeiro princípio constitucional. 206 A existência expressa de norma referente ao promotor
natural não torna sua utilização duvidosa, pois o mesmo, como já demonstrado, decorre dos
princípios que regem o processo e do princípio da independência funcional.
Ocorre que em determinados momentos, o princípio pode entrar em rota de colisão
com os princípios da unidade e indivisibilidade, que foram esmiuçados anteriormente. Nesse
caso, dependendo do caso em concreto, devemos utilizar a ponderação e afastar aquele
princípio que seja menos indicado ao caso concreto.
Sendo assim, considerando a impossibilidade de designações por parte do
Procurador-Geral, nas situações em que o princípio do promotor natural possa vir a prejudicar
uma investigação criminal ou uma persecução processual, como ficariam outros princípios de
nosso ordenamento jurídico, como o da segurança da social e da eficiência do Ministério
Público, uma vez que o aproveitamento dos recursos humanos deste órgão ficariam limitados?
Diante da pós-modernidade, globalização e do crime organizado, o principio do
promotor natural é passível de releitura e de nova interpretação como princípio jurídico
imanente em nosso sistema jurídico, face aos novos desafios serem enfrentados pelo
Ministério Público no desenvolvimento de suas funções institucionais.
5.3 O PROCURADOR-GERAL, DESIGNAÇÕES E GRUPOS ESPECIALIZADOS
O poder de designar é derivado poder de hierarquia administrativa, o qual faz parte
da estrutura do Ministério Público, sendo um dos seus desdobramentos de sua autonomia
administrativa. E mais uma vez relembramos que essa hierarquia não atinge o plano
funcional, já que aos membros do “parquet” foi assegurada, constitucionalmente, a garantia da
independência funcional.
Designação é ato pelo qual o Procurador-Geral de Justiça indica Órgão do Ministério
Público para oficiar em determinado processo. Este conceito é direcionado para a atividade
processual do Ministério Público e engloba quaisquer atividades do “parquet”, como Órgão
interveniente, antes ou iniciado o processo.207
206
Nesse sentido: SOUZA, Motauri, op. cit., p. 174.
207
CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 60.
88
Nessa linha, foi visto que, todo ato do Procurador-Geral que vise ferir o princípio do
promotor natural, segundo a doutrina 208 que defende esta teoria, seria nulo, ficando vedadas
designações, ainda que, com aparência de legalidade.
As designações do Procurador-Geral são válidas, desde que seja respeitada a garantia
da independência funcional do membro do Ministério Público.
A sociedade clama por uma persecução criminal judicial, com plena autonomia,
isenta de motivações subalternas e, principalmente, com presteza e eficácia. E foi com esse
desiderato que foram criados, na última década, os grupos especializados, no âmbito do
Ministério Público.
E convém ressaltar que a idéia de criação de grupos especializados não é
recepcionada pelos doutrinadores que defendem a teoria do promotor natural. Vejamos esta
passagem de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro:
Na realidade, as equipes especializadas não são órgãos de execução criados
por lei com atribuições pré-determinadas; por esta razão elas somente podem
se apresentar como serviços auxiliares do gabinete do Procurador-Geral de
Justiça, não sendo possível aos membros designados para atuarem nestas
equipes exercerem atribuições afetas a órgãos de execução específicos, sob
pena de ofensa ao princípio constitucional do promotor natural, garantia
também do equilíbrio processual e da igualdade das partes.209
Sem embargo do que já foi dito, não parece que a atuação de um promotor
especializado no lugar de outro possa repercutir em um processo, causando-lhe nulidade. 210
O Ministério Público possui os princípios da unidade e indivisibilidade, terreno em
que as designações são perfeitamente solidificadas. O cuidado que se tem que ter é de evitar
excessos arbitrários e casuísticos e para tanto, o Ministério Público possui outros instrumentos
hábeis como remédios – o princípio da independência funcional e o da garantia da
inamovibilidade.
208
Para Hugo Nigro Mazzilli (2007, op cit., p. 124): “As designações só podem ocorrer quando haja prévia
hipótese legal, como por exemplo: a) na recusa do arquivamento do inquérito policial ou do inquérito civil; b)
nos casos de atribuição originária do Procurador-Geral, em que se resolva efetuar delegação, porque, sempre que
originariamente lhe caiba agir, pode praticar diretamente o ato, avocar sua prática ou designar quem haja por ele,
como nas ações penais originárias; c) nos casos de impedimento, suspeição, conflito de atribuições, recaindo a
designação sobre o substituto automático; d) nas hipóteses excepcionais de afastamento compulsório; e) quando
de designações quaisquer, em que os agentes envolvidos voluntariamente se disponham a aceitar a designação,
pois aqui neste último caso não estaria havendo nenhuma remoção compulsória, evidentemente.”
209
CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães. O Ministério Público e suas Investigações Independentes. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 64.
210
Nesse mesmo sentido: DEMERCIAN, op. cit., p. 76.
89
Assim entendemos perfeitamente salutar e legal a criação de grupos especializados,
com cargos abertos e genéricos, para melhor utilização de membros do Ministério Público. A
Instituição, por determinação constitucional, é um dos pilares do Estado Democrático de
Direito e para concretização de seus fins, a “forma” – criação de grupos especializados - não
pode ser embaraço de realização de suas metas. Dessa forma, o principio do promotor natural
não deve atuar como fator de “engessamento”, a ponto de inviabilizar, a atuação conjunta de
promotores em determinada situação cujas peculiaridades a recomendem para um
desempenho mais eficiente das funções ministeriais, como no combate às organizações
criminosas.
A preocupação reside na retirada abrupta e intencional de membro de Ministério
Público de determinado feito pelo Chefe da Instituição. Nesses casos, existe clara e evidente
afronta ao princípio do promotor natural que deve repelida com veemência.
Designação é diferente de retirada de atribuição. Designação é conseqüência do
principio do promotor natural, desde que observados critérios pré-estabelecidos.
Existem casos cuja complexidade – como o combate ao crime organizado – exige a
participação de promotor mais especializado e experiente, e seria retrocesso exigir que neles
apenas o promotor natural pudesse funcionar.
Sobre o tema, escreveu o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no
HC 69599-0/RJ:
[…]
Nem me parece que o sistema constitucional constitua óbice à continuidade e
ao aprofundamento da experiência de grupos especiais de promotores,
dedicados a matérias específicas: na medida em que constituídas na forma da
lei, o plexo de atribuições das tais equipes, ipso facto, estará subtraído da
esfera protegida das atribuições legais ordinárias do agente que tenha a sua
demarcação na competência do juízo perante a qual sirva. Estou, data vênia,
em que opinião contrária é fruto do mesmo mimetismo a que aludi e parte da
falsa idéia de que a rotina ronceira de que o ofício de cada órgão do
Ministério Público dever ter atribuições coextensivas ao de um órgão do
Judiciário. Nada, entretanto, o impõe e as conveniências da administração
dos fins institucionais do Ministério Público freqüentemente desaconselham.
[…]
90
5.4 O PROCURADOR DE JUSTIÇA NATURAL
É interessante traçarmos algumas linhas a respeito dos Procuradores de Justiça
(membros do Ministério Público que exercem suas atribuições junto à segunda instância dos
Tribunais de Justiça), para verificarmos se, caso existisse a regra do promotor natural, essa os
alcançaria.
A Lei Orgânica do Ministério Público do Pará, ao cuidar das atribuições dos
Procuradores de Justiça, estabelece que eles têm atribuição junto à segunda instância, junto ao
Tribunal de Justiça do Estado, respeitando a competência privativa do Procurador-Geral de
Justiça (art. 58 da Lei Complementar n.º 57, de 06 de julho de 2006). Dessa forma, é de se
concluir que esses Órgãos do Ministério Público agem, na realidade, como delegatórios do
Procurador de Justiça.
Assim, os Procuradores de Justiça têm atribuições para atuar em todos os feitos da
segunda instância que sejam de atribuição do Procurador-Geral de Justiça, salvo naqueles
casos em que essa atribuição for, nos termos da Lei, privativa.
De outra banda, o Código de Processo Penal, em seus artigos 610, caput e art. 613
estabelece que, nos tribunais, a vista dos autos deve ser aberta ao Procurador-Geral. Assim,
com se trata de oficiar perante tribunais (esta não é atribuição privativa do Procurador-Geral),
os demais Procuradores de Justiça também podem se manifestar, caso o Procurador-Geral não
tenha se manifestado. Trata-se de atribuição residual. 211
Com efeito, a organização de distribuição de feitos entre Órgãos do Ministério
Público de segunda instância tem como finalidade apenas organizar os serviços internos, fato
totalmente diferente ao que acontece ao promotor natural, segundo àquela teoria.
Sendo assim, não haveria, portanto, razão para entender tal princípio aos
Procuradores de Justiça.212
Diante do que foi exposto, mais uma vez, a teoria do promotor natural é relativizada.
Entendemos que princípios e garantias dos membros do Ministério Público são
estabelecidos com o intuito de atingir a Instituição como um todo. O princípio do promotor
natural, caso admitíssemos em sua integralidade, só alcançaria uma parcela da Instituição. E
por outro lado, não nos parece razoável que, ao ingressar no Órgão, o membro do Ministério
211
Cf. Pedro Henrique Demercian, op. cit., p. 85.
212
Cf. Ibid., p. 86.
91
Público tenha um portfólio de prerrogativas e garantias e, ao alcançarem seu último nível na
carreira, essa sejam diminuídas. Não faria qualquer sentido.
O importante é que se mantenha a independência do Membro do Ministério Público,
seja ele Promotor ou Procurador. Assim, não é possível e admissível a retirada abrupta de
determinado Procurador de caso para ele distribuído.
5.5 NORMAS POSITIVAS QUE AJUDAM A ENTENDER O PRINCÍPIO DO
PROMOTOR NATURAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No tocante ao arcabouço constitucional, os constituintes de 1988 não inseriram na
Carta Política em vigor um único dispositivo que, expressa e especificamente, tratasse do
princípio ou garantia do promotor natural.
Daí que, em visão preliminar, diante dessa atitude da Assembléia Nacional
Constituinte, ousamos em entender que o princípio do promotor natural em nosso sistema
constitucional deve ser utilizado com temperamentos.
Em sede constitucional, os defensores da teoria do promotor natural213 indicam que o
fundamento deste princípio repousaria no art. 5.º incisos XXXVII e LIII, os quais refletem,
respectivamente “que não haverá juízo ou tribunal de exceção” e que “ninguém será
processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Essa fundamentação é a mesma do juiz natural e, como veremos mais adiante,
Ministério Público e Poder Judiciário são instituições distintas, logo não passíveis de
comparações.
Na legislação infraconstitucional, existem as seguintes legislações que versam sobre
o tema: a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LOMP, Lei nº 8625/93) e a Lei
Complementar n.º 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União).
Vejamos na LOMP:
O art. 10, inciso IX, letra “g”, do mencionado diploma legal estabelece que
“compete ao Procurador Geral de Justiça, por ato excepcional e fundamentado, exercer as
funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão ao
Conselho Superior do Ministério Público”.
213
Nesse sentido: DANTAS, Marcelo Navarro. Princípio do Promotor Natural. Salvador: Jus Podvm, 2004.
p. 47.
92
O art. 24, do mencionado diploma estabelece que o “Procurador Geral de Justiça
poderá, com a concordância do Promotor de Justiça Titular, designar outro Promotor para
funcionar em feito determinado, de atribuição daquele”.
Por seu turno, o art. 57, XIII da Lei Complementar n.º 75/93 estabelece que
“compete ao Conselho Superior do Ministério Público Federal autorizar a designação, em
caráter excepcional, de membros do Ministério Público Federal, para exercício de atribuições
processuais perante juízos, tribunais ou ofícios diferentes dos estabelecidos para cada
categoria.”
Desta forma, para os que aguardavam que legislação infraconstitucional trouxesse
expressamente em seus dispositivos o princípio do promotor natural, a espera foi em vão. O
legislador infraconstitucional, além de não expressar o princípio, demonstrou sua
relatividade.214
A nosso ver, se existe possibilidade de afastamento ou designação de membro do
Ministério Público de determinada causa, não há como se falar em promotor natural como
regra absoluta e fechada.
É evidente que promotores especializados têm melhores condições de instruir
inquéritos e ajuizar ações civis e penais mais complexas. Os ganhos são de qualidade e de
celeridade para o Ministério Público e para a sociedade.
Vejamos as palavras de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro:
É certo, e disso não temos a menor dúvida, que a intenção do legislador foi a
de possibilitar naqueles casos de especialização de matéria, de existência de
relevante interesse público, da necessidade de dedicação quase exclusiva de
promotor a determinada causa, fosse possível designar outro para permitir
melhor desempenho processual ou mesmo evitar eventual comprometimento
da Instituição. 215
À guisa de conclusão, como forma de reforçar o entendimento que, na legislação
infraconstitucional não contempla, em absoluto, o princípio do promotor natural, Rogério
214
Tanto é que Paulo Cézar Pinheiro Carneiro (op. cit., p. 77), em passagem de sua obra, reconhece a intenção
da Lei em afastar tal postulado. Fundamental, agora, examinar em separado as únicas duas hipóteses que
poderiam, em tese, determinar o afastamento do promotor do exercício pleno ou em parte de suas atribuições
fixadas em li, com possível reflexo na teoria do promotor natural.
215
CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 22.
93
Theófilo Fernandes, ao enfrentar a questão, concluiu que as disposições normativas citadas
constituem uma afronta ao promotor natural e são eivados de inconstitucionalidade. 216
5.6 O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DISPENSADO PELO STF ACERCA DO
PROMOTOR NATURAL
O princípio do promotor natural teve sua primeira aparição no Colendo Supremo
Tribunal Federal, ainda sob a égide da Constituição de 1967/69. Trata-se do julgamento do
RHC 48728/SP, publicado em 16.11.1971. 217
Naquele julgamento, assim como nos demais que se sucederam sobre a matéria, o
princípio do promotor natural não foi reconhecido explicitamente, mas negado.
Naquele debate, o voto vencido do Ministro Antônio Neder buscava fundamentar o
princípio do promotor natural como sendo uma expansão do juiz natural e que decorria da
legalidade e do devido processo legal. 218
Dessa forma, no citado julgamento, não vingou a tese do promotor natural e o tema
permaneceu basicamente na doutrina, até que, com o advento da Constituição de 1988, o STF
voltou a se manifestar sobre ela, a partir da década de 90.
216
FERNANDES, Rogério Theófilo. Do Promotor Natural. Boletim Jurídico. Uberaba/MG, a.4, nº 188.
Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1437 acesso em: 4 mar, 2009.
217
Trata-se de caso histórico, o da denúncia do, então Procurador de Justiça Hélio Bicudo, contra o famigerado
esquadrão da morte (o recorrente era ninguém menos que o delegado Sérgio Fleury).
218
A tese capitaneada pelo Ministro Relator Luiz Gallotti foi vencedora e pode ser resumida com o seguinte
trecho de diálogo:
[…]
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator):
- O que não se pode escolher é o juiz. O Procurador pode-se.
O Sr. Ministro Antonio Neder:
- Não. Nem o Procurador pode tanto.
...
O Sr. Ministro Antonio Neder:
-...a Constituição expressa, no art. 153, § 15º., que é proibido Tribunal de exceção.
- O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator):
- Mas não diz que é proibido acusador de exceção. Acusador é parte, Tribunal é juiz.
O Sr. Ministro Antonio Neder:
- O texto não comporta essa distinção: se é proibido Tribunal de exceção, são vedados o juiz e o julgamento
excepcionais; e se não é permitido julgamento de exceção, obviamente não se pode compreender julgamento
criminal sem acusador e defensor.
- O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator):
- Mas está escrito Tribunal; V. Exa., vai ler acusador?
94
Em outubro de 1991, já sob a égide da atual Constituição, a 1.ª turma do STF, no
julgamento
do
HC
68.739-3/DF,
Relator
Ministro
Sepúlveda
Pertence,
admitiu
implicitamente a existência do princípio do promotor natural, buscando conciliá-lo com os
princípios da unidade e indivisibilidade do Ministério Público.
O mais importante julgamento (leading case) do STF sobre a matéria, no entanto,
ocorreu quase um ano depois, em 06 de agosto de 1992, quando em sessão plenária, a Corte
Maior apreciou o HC 67.759-2/RJ.
Assim, em agosto de 1992 foi a julgamento o Habeas Corpus n° 67.759-2, oriundo
do Rio de Janeiro, onde se questionava a designação de um promotor especial, pelo
Procurador Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para atuar em todos os
procedimentos persecutórios penais resultantes de determinada operação policial, denominada
“Operação Bandeja”, efetuada na Capital Carioca. Neste HC, o impetrante sustentava que tal
designação ofendia o Princípio do Promotor Natural que, na hipótese, seria o titular da
Promotoria da 5ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.
Neste julgamento, o Ministro Celso de Mello, o qual foi o Relator, entendeu existir o
Principio do Promotor Natural, entretanto, manifestou-se no sentido de que tal Princípio, no
Sistema Jurídico Brasileiro, depende de Lei para que tenha aplicabilidade, e enquanto não
sobrevier a disciplina legislativa pertinente, não há como aplicar ou mesmo invocar o
Princípio do Promotor Natural. Neste mesmo sentido foi o voto do Ministro Sydney
Sanches, que entendeu que a Constituição de 1988 não contém explícita, nem implicitamente
o Principio do Promotor Natural, nada impedindo, porém, que Lei Infraconstitucional viesse a
adotar tal princípio.
No mesmo julgamento os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos
Velloso votaram pela existência do Princípio do Promotor Natural no Sistema Jurídico
Brasileiro, independentemente de intermediação legislativa, pois o mesmo decorre do
princípio da independência funcional do Ministério Público e da garantia da inamovibilidade,
ambos relacionados com os princípios do Juiz Natural e do Devido Processo Legal.
Por outro lado, manifestaram-se posição de expressa rejeição à existência desse
Princípio os Ministros Paulo Brossard, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves.
Desta forma, por seis votos a três, mais uma vez, o STF rechaçou a teoria do
promotor natural.
O pleno do STF voltaria ao tema no HC 69.599-0/RJ, sob a relatoria do Ministro
Sepúlveda Pertence, mantendo implicitamente o reconhecimento de que o princípio do
promotor natural encontrava guarida na Constituição, mas agora tratava de conciliar o
95
postulado com a existência de grupos especializados de trabalho. Concluiu-se que o
reconhecimento do princípio não colide com a criação destes grupos especializados, desde
que, e na medida em que, serão obedecidos critérios objetivos de designação.
A partir de então, o STF, em seus julgamentos, apenas se reportou ao princípio sem
enfrentá-lo.219
5.6.1 Os Julgamentos do RE 387974/DF e HC 90277-4/DF
A 2.ª Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE
387974/DF, em 12 de maio de 2003, por meio da relatoria da Ministra Ellen Gracie, assim se
pronunciou:
No tocante ao mérito, adoto a posição que foi fixada pela maioria da Corte
no julgamento do HC 67759, Rel. Min. Celso de Melo, DJ 01.07.93.
Naquela ocasião o plenário rejeitou a tese do promotor natural. Ao seu
expresso afastamento (entendimento manifestado pelos ministros Moreira
Alves, Néri da Silveira, Paulo Brossard e Octavio Gallotti), somou-se a
posição mais cautelosa, embora concorrente, dos ministros Sydney Sanches
e Celso de Melo, para quem a intervenção legislativa se faz necessária para
tornar possível a aplicabilidade do princípio.
Desta forma, é de se concluir que, após mais de trinta anos de debates sobre o tema
na Suprema Corte, composta por “cidadãos de notável saber jurídico”, a existência ou não do
princípio do promotor natural em nosso ordenamento jurídico encontrou uma definição: o
princípio do promotor natural, para o STF, não existe!
219
Verificar os seguintes julgados: HC 71429-3/SC; HC 74052-9/RJ; HC 77723-7/RS; RHC 80476-4/SC e HC
81998-2/GO.
96
Nessa mesma esteira, no recente julgamento do HC 90277-4/DF (Operação
Anaconda), realizado pela 2ª turma em 17.06.2008, tendo como relatora novamente a Ministra
Ellen Gracie, a existência do princípio foi, por unanimidade, rejeitada mais uma vez. Extrai-se
da longa ementa:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DO
PROMOTOR NATURAL. INEXISTÊNCIA (PRECEDENTES). AÇÃO
PENAL ORIGINÁRIA NO STJ. INQUÉRITO JUDICIAL DO TRF.
DENEGAÇÃO. 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra julgamento
da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que recebeu denúncia
contra o paciente como incurso nas sanções do art. 333, do Código Penal. 2.
Tese de nulidade do procedimento que tramitou perante o TRF da 3ª Região
sob o fundamento da violação do princípio do promotor natural, o que o
representaria. 3. O STF não reconhece o postulado do promotor natural
como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759, Pleno, DJ 01.07.1993):
"Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA
PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO: Divergência,
apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural:
necessidade de "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio
(Ministro
CELSO
DE
MELLO);
incidência
do
postulado,
independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA
PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). Reconhecimento da possibilidade de instituição de princípio do Promotor
Natural mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). - Posição de expressa
rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros
PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e
MOREIRA ALVES". 4. Tal orientação foi mais recentemente confirmada no
HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não
há que se cogitar da existência do princípio do promotor natural no
ordenamento jurídico brasileiro […] Habeas corpus denegado.”
(grifamos).
Diante de tudo o que foi exposto, restou claro que o princípio do promotor natural
sofre resistência em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. Teria, de fato, o Supremo
Tribunal Federal, por meio dessas decisões, rejeitado, terminantemente o princípio do
promotor natural em nosso ordenamento?
Entendemos que não. Primeiro é importante
ressaltar que a maioria das decisões é resultante de Turmas do Supremo Tribunal Federal, não
devendo representar a posição fechada daquela Corte; segundo, o fato de haver, naquelas
hipóteses, considerado que não houve vulneração da independência pelo ato do ProcuradorGeral, ali analisado, não indica, de per si, apreço ou desapreço pelo postulado objeto deste
estudo, porque em vários casos o Supremo admitiu o princípio, mas entendeu que,
concretamente, não tinha sido afrontado.
97
Desta forma, o principio do promotor natural, segundo o Supremo Tribunal Federal,
deve ser analisado no caso em concreto, vez que até então, segundo àquela Corte, não foi
detectado caso de violação do postulado, doravante relativizado, do promotor natural.
O Ministério Público Brasileiro, como agente de transformação social em um regime
democrático, atravessa por uma fase de desafios, acentuada face à pós-modernidade, onde
novos desafios se fazem presentes, como o crime organizado. Nesse cenário, novos
paradigmas de atuação se fazem necessários. Assim, a relativização do princípio do promotor
natural, ou seja, seu afastamento em determinados casos, é uma realidade que não pode passar
despercebida, sob pena de inviabilizar a atuação ministerial no combate ao crime organizado.
5.7 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
Em todo o mundo, o Ministério Público é o interprete dos interesses gerais na
punição e o responsável direto pela eficácia e pela legalidade desta missão.
Fiel depositário de tradições e reflexo de tendências, o “parquet” é precursor de uma
época em que, na sociedade, só se ouvirá uma voz legítima, a dela própria, como resumo puro
e real de anseios, ainda não alcançados.
Nesse sentido, se faz necessário uma reflexão da situação atual de nossa
administração da justiça.
Em primeiro lugar, é forçoso afirmamos que a justiça penal de nosso país, não tem
alcançado em nível de eficácia tolerável que a sociedade brasileira exige e merece. E esta
falha de prestação de serviço, ocasiona enormes danos comunitários, que não são mais
aceitáveis.
Como foi visto, o mundo passa por mudanças em todos os seus níveis. A sociedade
pós-moderna detém características, até então desconhecidas, que erradia aspectos negativos.
O homem mudou.
A globalização como fenômeno, veio acrescentar elementos outrora desconhecidos
nas relações humanas, onde o homem tem sofrido conseqüências nefastas e incontroláveis. O
mundo mudou.
Desta forma, diante de essa transformação, elementos novos surgiram em um cenário
mundial. Referimos-nos ao crime organizado, que de forma surpreendente, mudou para
sempre, o modo de lhe dar com o ilícito, com a contravenção.
98
Sendo assim, o problema da administração da justiça criminal deve ser entendido
como um problema de todos, inclusive do Ministério Público. E para tanto é necessário um
órgão eficaz, independente, para que possa fazer frente a essa nova realidade.
O Ministério Público não pode ser concebido e nem analisado, em uma mentalidade
de trinta anos atrás.
Hoje os tempos são outros. Instrumentos e princípios jurídicos que ajudaram a
consolidação do Ministério Público enquanto Órgão defensor do Regime Democrático (como
é o caso do princípio do promotor natural) não devem ser utilizados como forma de
inviabilizar o trabalho do “parquet”. A sociedade reclama por uma resposta e o Ministério
Público deve adequar-se para dá-la.
No caso do crime organizado, a velha fórmula do bando ou quadrilha para tipificá-lo
não é mais capaz de subsumir as sofisticadas organizações criminosas, hoje atuantes em todo
o globo. Daí a necessidade inadiável de enfrentamento desse fato alarmante, que vem se
constituindo no tema principal e mais importante da agenda de estudiosos do direito penal.
Assim, uma mudança na mentalidade, na conduta e na postura do Ministério Público
brasileiro, onde se priorizasse o combate ao crime, seria suficiente por ora, para enfrentar a
criminalidade organizada, respeitando-se, é claro, as garantias do Estado Democrático de
Direito, sem ingressar no direito penal de emergência 220, com sacrifícios às garantias
individuais.
Desta forma, o Ministério Público deve estar apto a enfrentar o problema do crime
organizado e outros que se aprimoraram e se disseminaram com a globalização.
Sobre o tema Daniella Dias escreveu:
O promotor de justiça se vê diante de um paradoxo: as estruturas jurídicas e
as instituições com quem trabalha não possuem “lentes” para ver e resolver
conflitos complexos, muito menos para viabilizar, de forma eficiente, o
exercício de sua função jurídico-constitucional de protetor da ordem
democrática e dos interesses sociais e individuais indisponíveis 221.
220
Para Hassan Choukr Fauzzi na obra Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p.
05: “Legislação de emergência é aquilo que foge aos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo,
constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade.”
221
DIAS, Daniella S. Algumas Reflexões Pessoais Sobre os Desafios que o Ministério Público Deve Enfrentar
na Atualidade. Revista do Programa de Pós-gradução em Direito da Universidade da Amazônia, Belém,
v.3, n. 3, 2007. p. 66.
99
E prossegue:
Diante desse paradoxo e da necessidade de redimensionamento das
atividades ministeriais para dar novo sentido e legitimidade à própria
instituição, tendo em vista o resgate da democracia e da cidadania, o
Ministério Público busca solucionar os problemas complexos e difusos,
dentro da crise paradigmática porque passa o estado democrático de
direito.222
Na sociedade brasileira, a violência e o crime estão difusamente propagados. São
resultados da explosão do descontrole pós-moderno e da desigualdade social.
Nesse cenário, o Ministério Público adota nova feição institucional, despido de
alinhamento subserveniente a qualquer dos Poderes de Estado (em especial do Poder
Executivo). Agindo assim, o Ministério Público se estabelece para ser a voz da sociedade
brasileira ante o Poder Judiciário, tanto na área criminal como na área cível.
Dessa forma, as ações institucionais, em especial por meio de grupos especializados,
marcam as defesas na seara ambiental, das minorias, do patrimônio público e a própria
persecução criminal. A atuação do “parquet” vai ao encontro também, dos autores ligados às
organizações criminosas de todos os matizes, até então indiferentes à pretensão punitiva.
Para tanto, o Ministério Público deve se despir de conceitos e regras anacrônicas que
não ajudam o desempenho institucional, como da adoção total e irrestrita do princípio do
promotor natural.
Se tal postulado for adotado de forma fechada e inflexível em nosso ordenamento, a
atuação ministerial, na área criminal, sofrerá um choque. A criação de grupos de promotores
especializados e designações específicas de membros para atuarem no combate ao crime
organizado é hoje, uma realidade vital para a proteção da sociedade.
A teoria do promotor natural pressupõe limites físicos e geográficos à atuação o
Promotor de Justiça. No entanto, em uma era pós-moderna e globalizada onde o crime o
organizado não possui “fronteiras”, precisamos de um Ministério Público também “sem
fronteiras”, onde com uma atuação articulada possa exercer sua função de forma eficaz.
É a dinâmica dos dias atuais. No entanto essa postura encontra resistências.
Resistência advinda de grupos políticos internos do próprio Ministério Público, de membros
mais conservadores que ainda tem a idéia que o órgão é um fim em si mesmo e que, em
decorrência de experiências passadas negativas, insistem em não mudar. E principalmente, da
resistência do próprio crime organizado, uma vez que através dele (recursos e habeas corpus
222
DIAS, 2007, op. cit., loc. cit.
100
impetrados por réus em processos crimes) que o princípio do promotor natural é levado e
defendido em nossos Tribunais Superiores.
Nessa linha, o que seria da “Operação Anaconda”, se o princípio do promotor natural
fosse adotado em sua plenitude? Certamente cairia por terra. No entanto, a mais recente
decisão sobre o princípio do promotor natural (HC 90277/DF), o postulado foi afastado e a
operação foi mantida. O trabalho do Ministério Público não foi em vão!
No mesmo sentido, sábias e corajosas as palavras de Antônio Scarance Fernandes:
Há com a exarcebação do princípio – do promotor natural -, riscos e
dificuldades. O Ministério Público como parte, corre riscos de se tornar
órgão inerte, burocratizado, sem forças para realizar eficiente persecução
penal. É difícil conciliar o princípio do promotor natural com um Ministério
Público mais dinâmico, com um promotor que exerce papel decisivo na fase
de investigação fica difícil a atuação dos promotores criminais. 223
E continua o autor:
se por um lado, o princípio tem a vantagem de evitar a possibilidade de o
Procurador-Geral, movido por influências estranhas, retirar do promotor
natural a atribuição para atuar em determinado inquérito ou processo, traz
também o risco de fazer com que o Ministério Público, Instituição que pela
sua natureza deve ser como característica fundamental a agilidade, o
dinamismo, mormente ante as exigências contemporâneas de maior atuação
na fase de investigação e de maior eficiência no combate aos crimes graves e
à criminalidade organizada torne-se um órgão inerte, burocrático. 224
É justamente nesse último ponto que se questiona: o promotor natural, nos moldes
que foi concebido e justificado, representa algo positivo ao Ministério Público? Entendemos
que não. O promotor natural, se utilizado de forma absoluta, engessa a Instituição e não
“blinda” os promotores de justiça, como argumentam os defensores desta teoria.
Na realidade, é instrumento nas mãos das organizações criminosas, na tentativa de
inviabilizar o trabalho do Ministério Público.
Diante de tudo que foi exposto, o princípio deve servir ao Ministério Público e não
ao contrário. Por isso e por outros motivos aqui expostos, o mesmo deve ser interpretado de
acordo com a destinação constitucional do Ministério Público, para se fazer valer em nossa
atual realidade.
223
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1999. p. 239.
224
Ibid. loc. cit.
101
Os membros do Ministério Público, para a formação de sua consciência institucional,
para compreensão da complexidade e da extensão de sua missão e, principalmente, para uma
atuação eficaz, precisam estar integrados aos demais ambientes de significação social e
política. Vivemos em uma sociedade em rede. Para Castells “como tendência histórica, as
funções e os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em
torno de redes” e estas, segundo o autor “constituem a nova morfologia social de nossas
sociedades e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os
resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. 225Assim, o Ministério
Público não poderia ficar indiferente a esse processo.
O reconhecimento e a legitimação social do Ministério Público implicam, por isso,
mais ciência e imaginação na organização dos meios de que se dispõe, mais, melhor,
diversificada e permanente formação de seus membros, em uma especialização crescente,
mais coordenação, trabalho coletivo e pluridisciplinar.226
O principio deve ser relativizado como forma do Ministério Público enfrentar novos
desafios para sua atuação, o que pressupõe a criação de estruturas administrativas mais
flexíveis, que possibilitem a atuação em grupos especializados ou mesmo parcerias de
membros de Promotorias distintas, sem que isso leve a uma interpretação de “bloqueio” que
venha engessar ou deslegitimar a atuação do Ministério Público brasileiro.
225
226
CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 565.
CLUNY, Antônio Francisco de Araújo Lima. O Ministério Público na Hora da Globalização: O presente e o
Futuro. Revista Justitia, São Paulo, v. 197, p. 409-426, 2007.
102
6 CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, parece útil apresentar um breve resumo dos objetivos gerais
da presente dissertação, por meio dos quais se poderá ter uma visão de conjunto do trabalho,
para em seguida, apresentar, de forma mais analítica as principais idéias desenvolvidas ao
longo do texto.
O objetivo deste estudo foi contribuir para uma melhor análise acerca do princípio
do promotor natural o tornando um instituto mais atual, eficaz e de acordo com a nova
destinação constitucional do Ministério Público e para atingir esse objetivo algumas
proposições centrais foram estudadas. Em primeiro lugar, apresentou-se uma contextualização
do momento pelo qual a sociedade (pós-moderna) atual atravessa, com a avaliação de
fenômenos como a globalização e da criminalidade organizada e seus reflexos para o direito e
as Instituições que tem como finalidade a defesa da sociedade, como o Ministério Público.
Em seguida, foi feito uma avaliação da interpretação e de princípios, uma vez que, apesar de
não expresso no ordenamento jurídico brasileiro, o promotor natural é princípio
constitucional.
O estudo por fim, ocupa-se de mais outros dois temas, estes vinculados
diretamente ao propósito geral. O primeiro é a análise do Ministério Público enquanto
Instituição permanente e indispensável à administração da justiça brasileira, partindo de seu
histórico, princípios constitucionais e sua destinação, ou seja, seus elementos essenciais. E por
último, a avaliação específica do princípio do promotor natural, desde sua concepção
doutrinária até as mais recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, tudo com a finalidade
de uma melhor leitura do mesmo, em tempos de globalização e de criminalidade organizada.
De forma analítica, é possível demonstrar as principais idéias desenvolvidas ao
longo do estudo nas proposições que se seguem, na ordem em que foram tratadas no texto.
1. No final do século que passou, uma revolução tecnológica com base na
informação transformou nosso modo de pensar, de produzir de consumir, de negociar, de
administrar de comunicar e de viver.
A pós-modernidade é uma nova era da humanidade, caracterizada, a rigor, por
processos de mudança estrutural que deslocam a lógica de funcionamento desse período de
transição – como, por exemplo, o modo de produção de bens materiais proeminentemente
manufatureiros – para um modelo onde a informação (e seus mecanismos de produção,
103
organização, codificação e disseminação) ganha a centralidade do sistema de sociabilidade
entre os indivíduos e os povos.
A pós-modernidade, como movimento intelectual, é a critica da modernidade, a
consciência da necessidade de emergência de outra visão de mundo, a consciência do fim das
filosofias da história e da quebra das grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que
sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade.
Uma nova economia surgiu em escala global nos ultimas décadas do século XX.
Trata-se de uma economia informacional, global e em rede. É informacional porque a
produtividade e a competitividade dos agentes dessa economia dependem de sua capacidade
de gerar, processar e aplicar, de forma eficiente, a informação baseada em conhecimentos; é
global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação assim como seus
componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação, tecnologia e
mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma rede de
conexões entre agentes econômicos; e, é em rede porque nas novas condições históricas, a
produtividade é gerada e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes
empresariais.
Para a economia, a globalização é um fenômeno de derrubada de fronteiras
comerciais, industriais e econômicas, entre os países do plante Terra. É o livre comércio
intenso. Globalização é a intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades
distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que
acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa.
Na sociedade moderna a ênfase era dada ao perigo, na pós-moderna é dada ao
risco, vez que o perigo só existe em função do risco. O risco, e não mais a segurança, gera o
perigo. Assim, a sociedade pós-moderna é sinônimo de sociedade de risco. O risco pósmoderno se caracteriza pela ausência de segurança e a presença da contingência. É de
domínio doutrinário que a sociedade caracteriza pela pós-modernidade e nunca pela
indeterminação e pela instabilidade, geradas pela falta de segurança e pela possibilidade
premente do dano em face do risco inerente às ações.
A dinâmica da globalização reduziu os entraves ao movimento de pessoas, bens e
transações financeiras. As barreiras comerciais e financeiras foram derrubadas. Com isso, os
grupos internacionais do crime organizado puderam expandir a sua ação e organização. Nas
últimas duas décadas, as organizações criminosas vêm estabelecendo, cada vez mais, suas
operações de uma forma transnacional, aproveitando-se da globalização econômica e das
novas tecnologias de comunicação e transporte.
104
O crime organizado beneficia-se da globalização da economia, do livre comércio,
do desenvolvimento das telecomunicações e do sistema financeiro internacional. O crime
forma uma rede paralela ao Estado, com um poderio financeiro gigante, em decorrência da
facilidade de “lavagem de dinheiro” e do grande poder de influência (corrupção). O fenômeno
da globalização encontra-se presente nas práticas ilícitas. Talvez seja esta a marca mais
evidente, na atualidade, do crime organizado.
O crime organizado pode ser definido como um agrupamento de pessoas baseado
em forte hierarquia, com um intuito de praticar atividades ilícitas lucrativas, para tanto, se
utilizando do temor, corrupção e violência onde sua área de atuação não fica restrita a uma
atividade ou área geográfica.
O Direito necessita de novos paradigmas para responder aos anseios da sociedade.
Em decorrência do fenômeno da globalização, o momento nunca foi mais propício. Os
tradicionais paradigmas que serviram ao Estado de Direito do século XIX não se encaixam
mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado contemporâneo para a execução
de política pública efetivas.
2. Toda interpretação deve atender a compreensão ampla do mundo. Por meio da
interpretação, pode se realizar a sociedade, a justiça e especialmente, a vida, dentro de uma
perspectiva humana e para o ser humano, buscando uma interação mais plena e
verdadeiramente democrática.
Toda interpretação deve ao atender o bem comum, ou seja, às projeções da lei
sobre a vida das pessoas, dos grupos e da própria sociedade visando o justo. Antes de tudo, a
interpretação é prudência e coerência. Não há interpretação certa ou errada, mas sim coerente
ou não. A interpretação deve culminar sempre na ratificação dos caminhos políticos
esposados pelo texto maior, para se estar diante de um sistema constitucional não só eficaz
como também dotado de legitimidade.
A constitucionalização dos princípios jurídicos veio no mesmo momento em se
faziam ferrenha defesa doutrinária da força normativa e vinculativa dos princípios, idéia
oposta ao positivismo que até então, dominava o cenário jurídico. A utilização dos princípios
jurídicos apenas como fonte normativa subsidiária não tinha mais espaço na teoria
constitucional contemporânea.
É possível afirmar que o sistema jurídico do Estado de direito democrático é um
sistema normativo de regras e princípios, uma vez que as normas do sistema tanto podem
revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras.
105
A inserção de princípios em nível constitucional resulta na formação de uma
escala hierarquizada, onde a interpretação das regras existentes numa Constituição é basilada
pelos princípios.
A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser considerada com
um dos argumentos básicos da teoria dos direitos fundamentais. A consolidação da
normatividade dos princípios jurídicos é o fim da teoria formal-positiva e o início da teoria
material da Constituição e dos princípios constitucionais, voltados aos direitos fundamentais e
aos direitos humanos. Nesse aspecto, pode-se concluir que regras são normas que ordenam
algo definitivamente, são mandamentos definitivos. Regras são, por isso, normas que sempre
somente podem ser cumpridas ou não-cumpridas. Por outro lado, princípios se cumprem na
medida da possibilidade, fáticas e jurídicas, que se oferecem concretamente.
3. Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil
constitucional peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses
indisponíveis da sociedade (art. 127 da CF-88). Assim, o Ministério Público buscar a justiça
social, fundado nos princípios fundamentais da República (art. 1.º, I e II da CF-88), tais como
a cidadania e a dignidade da pessoa humana e tendo como destinação final a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I da CF-88), objetivo maior da nação brasileira.
Sobre a origem do Ministério Público, o estudo encontrado na doutrina serve
apenas para rememorar seu curso histórico.
O primeiro texto genuinamente brasileiro a ter relação com o Ministério Público é
datado de 1609. Nele foi prevista a figura do Promotor de Justiça, o qual deveria fazer parte
da composição do Tribunal da Relação da Bahia.
Na Constituição Federal de 1988 o Ministério Público foi “reinventado”. Surgiu
uma instituição nova e evoluída, fruto de um regime democrático e com duplo objetivo: a de
resguardar direitos tão vilipendiados pelo período de exceção e, ao mesmo tempo, a de
projetar um país mais justo para uma população tão carente de direitos.
O Ministério Público propicia o acesso à justiça, “zela pelo efetivo respeito dos
poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, consoante determina art.
129, II da CF-88. E ainda mais, o “parquet” fiscaliza os demais órgãos públicos e o próprio
Poder Executivo.
Assim sendo, considerando a realidade e a ideologia da separação de poderes, a
discussão acerca de o Ministério Público ser considerado um “Quarto Poder” é válida. Nosso
106
entendimento é que o reconhecimento do Ministério Público como Poder, ao menos no campo
ideológico, é o primeiro passo para uma independência total e irrestrita deste grande Órgão.
Outra faceta do novo perfil do Ministério Público é a defesa do regime
democrático. A Constituição de 1988 estabeleceu no Brasil, de forma expressa, o Estado
democrático de direito, quando definiu os fundamentos do sistema de separação de poderes, a
soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa e ainda, o pluralismo político.
Diante dessas árduas incumbências, resta ao Ministério Público, tentar aparelharse e, ao mesmo tempo, modernizar-se.
Esta Instituição, ao longo da história, sempre esteve em mutação, daí também ser
chamado de agente de transformação social.
A Constituição de 1988 (art. 127, §1.º) e a Lei Complementar n.º 8625\93,
parágrafo único do art. 1.º, apresentam como princípios institucionais do Ministério Público: a
unidade, indivisibilidade e a independência funcional. Todo o arcabouço de direitos e
garantias conferidas aos membros do Ministério Público, como órgão da própria sociedade,
decorre destes princípios que informam o sistema.
Consoante este princípio, o Ministério Público constitui uma Instituição única,
gerando desdobramentos na atuação de seus membros, que não podem ser concebidos na sua
individualidade, mas como representantes e integrantes de um só organismo, em nome do
qual atuam. Membro e Instituição formam um só todo.
Por outro lado, sob o prisma funcional, o princípio da unidade significa que, o
Brasil, só se pode falar em um único Ministério Público, já que a Instituição, por intermédio
de cada um de seus ramos, desempenha, no seu âmbito de atuação, as funções institucionais
que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional.
Indivisibilidade significa que seus membros podem ser substituídos uns pelos
outros, não arbitrariamente, mas seguindo a forma estabelecida em lei.
Para o princípio da independência funcional, os membros do Ministério Público,
no desempenho de suas atividades, não estão subordinados a nenhum órgão ou Poder, mas
somente à sua consciência, já que suas manifestações devem ser sempre fundamentadas em
lei.
4. O princípio do promotor natural tem sido regularmente discutido no âmbito de
nossos tribunais superiores há mais de 30 anos, em especial no seio da Suprema Corte, ora
pelo seu plenário, ora por turmas, sem uma clara conclusão sobre o tema.
107
Segundo essa doutrina, o promotor natural consiste na existência de um órgão do
Ministério Público, previamente estabelecido pela Lei para oficiar nos casos que sejam afetos
à Instituição.
O princípio do promotor natural, segundo, essa teoria, visa, em última análise,
impedir a atuação do acusador de exceção, designado com propósitos políticos pouco
recomendáveis, daí porque não se vislumbra se possa aceitar designações casuísticas. Dessa
forma, o princípio visa impedir que o chefe do Ministério Público encarne seu papel como
déspota, dotado de poder ilimitado.
Embora não tenha sido objeto de explícita remissão no § 1.º do art. 127, a sua base
constitucional é o art. 5.º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente”.
Desta forma, o princípio do promotor natural seria imanente ao novel sistema
constitucional brasileiro, assentando-se nas cláusulas da independência funcional e da
inamovibilidade dos membros da Instituição, vedando assim, designações casuísticas e
arbitrárias pela chefia ministerial.
A norma do promotor natural pretende produzir um efeito específico: evitar
supostos arbítrios de Procuradores-Gerais em designações, avocações ou afastamentos
espúrios e dotados de intenções perniciosas, bem como a garantia processual que todo
processo o acusador será previamente definido. Nesse aspecto com efeito geral.
O fato é que, a tese do promotor natural, em decorrência da importância de sua
utilização e a vasta discussão em nosso ordenamento jurídico, já demonstra tratar-se de um
verdadeiro princípio constitucional. A existência expressa de norma referente ao promotor
natural não torna sua utilização duvidosa, pois o mesmo, como já demonstrado, decorre dos
princípios que regem o processo e do princípio da independência funcional.
Diante da pós-modernidade, globalização e do crime organizado, o principio do
promotor natural é passível de releitura e de nova interpretação como princípio jurídico
imanente em nosso sistema jurídico, face aos novos desafios serem enfrentados pelo
Ministério Público no desenvolvimento de suas funções institucionais.
As designações do Procurador-Geral são válidas, desde que seja respeitada a
garantia da independência funcional do membro do Ministério Público.
A sociedade clama por uma persecução criminal judicial, com plena autonomia,
isenta de motivações subalternas e, principalmente, com presteza e eficácia. E foi com esse
desiderato que foram criados, na última década, os grupos especializados, no âmbito do
Ministério Público.
108
Assim entendemos perfeitamente salutar e legal a criação de grupos
especializados, com cargos abertos e genéricos, para melhor utilização de membros do
Ministério Público. A Instituição, por determinação constitucional, é um dos pilares do Estado
Democrático de Direito e para concretização de seus fins, a “forma” – criação de grupos
especializados - não pode ser embaraço de realização de suas metas. Dessa forma, o principio
do promotor natural não deve atuar como fator de “engessamento”, a ponto de inviabilizar, a
atuação conjunta de promotores em determinada situação cujas peculiaridades a recomendem
para um desempenho mais eficiente das funções ministeriais, como no combate às
organizações criminosas.
O importante é que se mantenha a independência do Membro do Ministério
Público, seja ele Promotor ou Procurador. Assim, não é possível e admissível a retirada
abrupta de determinado Procurador ou promotor de caso para ele distribuído.
Diante de tudo o que foi exposto, restou claro que o princípio do promotor natural
sofre resistência em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. No entanto, não
vislumbramos se tratar de rejeição. Primeiro é importante ressaltar que a maioria das decisões
é resultante de Turmas do Supremo Tribunal Federal, não devendo representar a posição
fechada daquela Corte; segundo, o fato de haver, naquelas hipóteses, considerado que não
houve vulneração da independência pelo ato do Procurador-Geral, ali analisado, não indica,
de per si, apreço ou desapreço pelo postulado objeto deste estudo, porque em vários casos o
Supremo admitiu o princípio, mas entendeu que, concretamente, não tinha sido afrontado.
O Ministério Público Brasileiro, como agente de transformação social em um
regime democrático, atravessa por uma fase de desafios, acentuada face à pós-modernidade,
onde novos desafios se fazem presentes, como o crime organizado. Nesse cenário, novos
paradigmas de atuação se fazem necessários. Assim, a relativização do princípio do promotor
natural, ou seja, uma interpretação estendida em determinados casos, é uma realidade que não
pode passar despercebida, sob pena de inviabilizar a atuação ministerial no combate ao crime
organizado.
O Ministério Público deve estar apto a enfrentar o problema do crime organizado
e outros que se aprimoraram e se disseminaram com a globalização.
Se o principio do promotor natural for adotado de forma fechada e inflexível em
nosso ordenamento, a atuação ministerial, na área criminal, sofrerá um choque. A criação de
grupos de promotores especializados e designações específicas de membros para atuarem no
combate ao crime organizado é hoje, uma realidade vital para a proteção da sociedade.
109
Há ainda uma observação final a fazer. A pretensão deste estudo não é
desconhecer o princípio do promotor natural, eliminando com isso, uma garantia dos
membros do Ministério Público e da própria sociedade em ter o devido processo legal
respeitado. O objetivo deste trabalho foi apresentar uma nova interpretação do principio do
promotor natural, vez que a sociedade atravessa por mudanças impactantes, como a
globalização e a criminalidade organizada. Assim, é fundamental, portanto, desenvolver outra
linha de pensamento acerca do promotor natural, para que este não enfraqueça o Ministério
Público, mas ao contrário, o solidifique.
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LAURO FRANCISCO DA SILVA FREITAS JUNIOR