Psicologia Social Crítica Como prática de libertação 4ª edição revisada e ampliada Pedrinho Guareschi Porto Alegre 2009 3 SUMÁRIO - Dedicatória ................................................................................... 06 - Apresentação ............................................................................... 07 - Introdução .................................................................................... 08 1 - Convite a uma viagem: o fio condutor ........................................ 12 2 - O mistério da Consciência ........................................................ 17 3 - Educação, Consciência e Psicologia Social .............................. 23 4 - Perscrutando a consciência: nossas cosmovisões ................... 28 5 - Cosmovisão do Liberalismo Individualista .................................. 34 6 - Cosmovisão do Totalitarismo Coletivista .................................... 44 7 - Cosmovisão do Comunitarismo Solidário ................................... 51 8 - O conceito de relação: misterioso e fecundo ............................. 60 9 - Sociedade: uma realidade complexa ......................................... 68 10 - Ideologia: um terreno minado .................................................. 74 11 - Comunicação: um novo personagem dentro de casa ............... 82 12 - Poder, essa realidade escorregadia ......................................... 91 13 - Cultura: um enfoque psicossocial ............................................ 98 14 - Ação e mudança ................................................................... 105 15 - Ética: uma presença indispensável ....................................... 111 16 - Consciência Social ............................................................... 119 17 - Psicologia Social, realização e felicidade.............................129 - Conclusão .................................................................................. 136 - Notas de Referências ................................................................. 138 - Índice dos Quadros Quadro 1 ........................................................................................ 15 Quadro 2 ........................................................................................ 29 Quadro 3 ........................................................................................ 34 Quadro 4 ........................................................................................ 44 Quadro 5 ........................................................................................ 51 Quadro 6 ........................................................................................ 75 Quadro 7 ...................................................................................... 107 Gráfico ........................................................................................... 35 5 Apresentação Convite à crítica mutante Pedrinho Guareschi é um mestre da palavra, pois escreve com uma clareza meridiana. Costumo distinguir escritores e palestrantes entre dois times: os que escrevem ou falam para ser admirados e os que o fazem para serem entendidos. Guareschi situa-se no segundo time, com a vantagem de ser um profundo conhecedor da matéria que trata e excelente educador, que nos ajuda a refletir e questionar o que somos, o que fazemos e a conjuntura que nos cerca. Seu olho crítico resgata-nos das mistificações ideológicas, tão bem explicitadas no cap. 11, e suas análises nos desafiam ao engajamento transformador da realidade. “Psicologia Social Critica” é uma obra que poderia ser intitulada “Manual de sobrevivência neste mundo globocolonizado”. A teoria literária ensina que tanto melhor se compreende um texto quanto mais se conhece o contexto em que ele foi produzido. E daí tira-se o pretexto, ou seja, o sentido, o significado. Assim, um alemão tem mais chances de entender melhor as obras de Goethe que um brasileiro. Este, porém, terá óbvias vantagens na leitura de Guimarães Rosa ou de Jorge Amado. É essa contextualização que o autor nos oferece neste livro, permitindo-nos conhecer melhor o momento histórico em que vivemos e quais os desafios e as alternativas que se nos apresentam. Numa linguagem sucinta e cristalina, Guareschi analisa as três cosmovisões predominantes em nossos tempos: o liberalismo individualista; o totalitarismo coletivista; e o comunitarismo social. Este último, que também pode ser qualificado de socialismo personalizante, ainda constitui uma utopia e, no entanto, como horizonte próximo quando, saídos do século 20 que nos fez provar os dois primeiros, acreditamos que “um outro mundo é possível”. Poder, comunicação, cultura e ética são outros temas abordados pelo autor e, ainda que intitulem capítulos separados, perpassam todas as páginas desta obra. E ele nos receita um bom método para saber se somos racistas ou machistas: basta perguntar a quem possui coloração de pele ou sexualidade diferente da nossa. Como se trata de um estudo da Psicologia Social não resisto à metáfora: neste livro, Guareschi é o analista que interpela a sociedade atual e a induz a acreditar nas suas possibilidades de conquistar mais justiça e liberdade. Frei Betto 7 Introdução Esse livro é fruto, em grande parte, de pressões. Pressões suaves, às vezes gostosas, em geral muito amáveis. As pressões provêm, fundamentalmente, de dois grupos: das pessoas da “academia”, isto é, colegas, bolsistas, participantes do grupo de estudos Ideologia, Comunicação e Representações Sociais, que conviveram comigo desde 1987, por uma parte; e, de outra parte, de pessoas que estão um pouco mais distantes, mas muito perto do coração, os batalhadores do Jornal Mundo Jovem, um “Jornal de Ideias”, que não deixam cair a peteca da utopia, da solidariedade, da criatividade, da esperança, da luta para a construção de uma nova sociedade. Esse segundo grupo, principalmente, me provocava dizendo: “você escreveu um livro de Sociologia Crítica, que já tem 62 edições, traduzido em várias línguas; por que não um livro de Psicologia Social Crítica, que é a área onde você gosta de trabalhar?” Bem, com isso eles estavam me sugerindo até mesmo o título do livro. Minha recusa em aceitar se devia, como sempre, à correria contra o tempo. Até que tive um pouco de sorte e consegui um “sabático”, isto é, um tempo de colocar em dia as coisas do corpo e da alma (aliás, não aceito essa dicotomia; melhor dizer assim: colocar em dia as coisas da minha vida). E assim, nos frios dias de Cambridge, Inglaterra, entre uma caminhada e outra, ia refletindo sobre essa provocação e construindo um roteiro de temas que poderiam fazer parte desse livro. Ele só vê a luz do dia agora, depois de dois anos, esperando por sugestões, críticas, reformulações. Gostaria que sua história fosse semelhante ao Sociologia Crítica, que sofreu três grandes reformulações na sua caminhada: na 4a, 28a, e 43a edição. Apesar de me considerar responsável por aquilo que esse livro apresenta, ele bebe, também, como não poderia deixar de ser, de muitas fontes amigas, o que o torna uma construção comunitária e solidária dos muitos que sonham e lutam junto com a gente. Contudo, se os dois grupos acima são os que me manifestaram explicitamente e me provocaram a que colocasse no papel essas reflexões, quem realmente me instiga e me questiona são outros personagens: são os que não têm como falar e são impedidos de poder dizer a palavra, expressar sua opinião, manifestar seu pensamento; os que são privados dos benefícios a que têm direito, numa democracia que queira 8 ser verdadeira e construir uma cidadania ativa. São privados até mesmo daquilo que produzem. São esses os meus inspiradores primeiros e centro de minha motivação. Não fosse por eles, não sei se me animaria a colocar no papel essas reflexões. Gostaria de sublinhar uma coisa: esses que sofrem, que não conseguem casa, terra, saúde, remédios, educação para eles e seus filhos, esses estão nessa situação, cada vez me convenço mais disso, porque não se dão conta das verdadeiras razões de aí estarem. Sua escravidão é mais profunda que o sofrimento e as privações físicas. Sua escravidão vem da “alma”, da consciência! E para mim é esse, precisamente, o campo da Psicologia Social. A Psicologia Social trata da relação entre o ser humano e a sociedade; ela se centra na relação, mostrando que não há um sem o outro. Ela é a ciência do “entre” (1). Na Sociologia se acentua mais a sociedade, o “fora”. Já a Psicologia é tentada a acentuar mais o “indivíduo”, o “dentro”. A Psicologia Social junta os dois, mostra que um é impossível sem o outro. E essa ligação é tornada possível através de dois conceitos fundamentais: a consciência e a relação. Por isso essas duas realidades perpassam todo esse livro, são seu fio condutor. Há algo que me pressiona e me diz que tenho obrigação de partilhar essas experiências e descobertas de minha caminhada. Partilhar com aqueles que, muitas vezes, estão em situações de dor e sofrimento. Não sei seus nomes, mas estarão sempre presentes, em cada linha desse trabalho. Perguntei-me também, qual seria a finalidade primeira tanto da Psicologia, como da Psicologia Social. Aos poucos fui me convencendo de que tal campo de saber só teria sentido se pudesse propiciar às pessoas uma vida “digna e boa”. Não saberia como encontrar legitimação para tal disciplina fora do compromisso de tornar as pessoas humanas mais conscientes, livres e felizes. Espero que isso fique claro na discussão que segue. Na construção desse livro, minha prática foi escutar a muitos, a todos os que podia, discernir sobre o que diziam e decidir sobre o que iria incorporar nestas discussões. Digo isso para deixar claro que a responsabilidade última do que aqui vai é exclusivamente minha. Mas bebi de muitas fontes, incluí experiências que vivi e experiências contadas por outros. É uma convergência de mil rios que formam esse estuário de águas que gostaria fossem alimentar milhares de irmãos(ãs) por esse Brasil e por esse mundo afora. E agora um ponto importante. No início, relutei em colocar referên9 cias sobre os temas que ia discutindo. Escrevi tudo sem nada na minha frente. Mas depois as pressões foram tantas para que ao menos indicasse, de longe, onde se poderiam buscar mais referências e subsídios sobre os temas, ou onde possivelmente eu teria bebido tais ideias. Resolvi, então, colocar notas ao final, de tal modo que não atrapalhassem a leitura. Mas muitas coisas não são referenciadas. Por favor, não me perguntem de onde veio isso tudo. Certamente foram inspiradas por diferentes contextos e pessoas. Na maioria das vezes, contudo, não me lembro mais de onde teriam surgido. Também confesso que isso não me interessa tanto, pois considero o que estou apresentando como algo próprio, que já está incorporado em mim e faz parte de meu mundo existencial. Lembro-me aqui de Barthes, em sua aula: “Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender... Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de sabedoria e um máximo de sabor possível” (2). Repito que considerei muito importante deixar claro o fio condutor central que ia me guiando na caminhada. Ele pode ser entrevisto na tentativa de superação de inúmeras dicotomias, tais como entre indivíduo e sociedade; entre o externo e o interno; entre o corpo e a mente; entre o processo, o mutável, e a estrutura, o estável; entre o individual e o geral (social); entre o discurso e sua representação; caminha-se por um campo intermediário, que é o que entendo por relação, um social dialético, a pessoa-relação, como procuro explicar no capítulo 1. Uma das maiores dificuldades foi escolher os temas que iria apresentar. Numa primeira seleção, vieram mais de 60. Fui reduzindo, juntando alguns, vendo sua importância e urgência, até que cheguei aos que seguem. Gostaria que o leitor tivesse clareza de que se trata de uma seleção. Pretendi com eles formar um conjunto mais ou menos homogêneo de temas que dessem conta do que penso ser o essencial da Psicologia Social, orientados por um fio condutor que estivesse sempre presente ao olhar do leitor. À primeira vista esse livro pode dar a impressão de ser demasiadamente “simples”, não apresentar ares “acadêmicos”. Oxalá isso seja assim. Sempre me guiei, em minhas atividades e escritos, por um princípio: 10 prefiro não dizer algo se não puder dizê-lo com clareza. Como dizia o crítico literário Boileau: “Ce que pense bien, s’expresse clairement, et les mots por le dire, arrivent aisement”: o que pensa corretamente, expressase com clareza e as palavras para dizer o que pensa chegam com facilidade. Sempre fiz questão de dizer as coisas, por mais complicadas e complexas, com clareza, com simplicidade. Aliás, das centenas de cartas que recebi e recebo sobre o Sociologia Crítica, o que mais nele ressaltam é: “a gente entende o que você quer dizer!” É a isso que gostaria de permanecer fiel. Afinal, faço parte de um grupo de pessoas que têm um carisma especial, herdado de seu inspirador, um grande intelectual do Século das Luzes: o carisma de ser popular, de defender o povo, principalmente o oprimido por imposições de qualquer tipo. Já ouviu falar nos redentoristas? Pois sou um deles (3). Finalmente, alguns poderão achar esse livro um tanto pretensioso, dando a impressão de querer dizer como as coisas são de tal modo que essa pareça ser a única maneira possível. Seria uma pena se ele deixasse essa impressão. Mas quero aqui deixar absolutamente claro que essa não é minha intenção. Estou plenamente convencido do que discuto a seguir, mas sei que esse é um modo de ver as coisas. E vou logo avisando e insistindo em um ponto: por favor, não aceite nada do que é dito aqui, pelo simples fato de ser dito. Esse seria um comportamento de submissão, de alguém que aceita as coisas devido apenas à autoridade de quem as diz. Seria horrível. Minha intenção, com essa conversa, é questionar, fazer a pergunta instigadora, provocar, para que cada um reflita, busque as razões de por que acha que as coisas são assim e, livre e conscientemente, assuma suas convicções, seus valores. Vamos às reflexões. 11