HÉLIO OITICICA E A OBRA ABERTA
Carolina Votto Silva1
UDESC
Resumo
O presente artigo visa analisar questões referentes ao Programa Ordem de
Manifestação Ambiental ou Parangolé, no que tange a transformação da obra de arte
em conduta ético – estética, ressaltando a importância do conceito de invenção na
processo estético do artista Hélio Oiticica referente ao período de 1964 – 1969.
Palavras-chave: Parangolé, Conduta ético – estética, invenção, corpo.
Abstract
The aim of this paper is to analyze issues relating to the “Programa ordem de
manifestacao ambiental” ou “Parangole”, concerning the work of art’s transformation
in ethical conduct- aesthetics, emphasizing the importance of the concept of invention
in the aesthetic process of the artist Helio Oiticica, in the period of 1964 – 1969.
Keywords: parangole, ethical conduct - aesthetics, invention, body
Atualmente percebemos a existência de diferentes interpretações a
cerca do conjunto de obras do artista brasileiro Hélio Oiticica, abordagens que
tangenciam a esfera das múltiplas áreas do conhecimento e da própria teoria
da arte. Nesse exercício de experimentar o experimental aludindo a Mário
Pedrosa, Oiticica fora um artista incansável na busca da experimentação, da
totalidade da vida enquanto obra de arte, transgressor confesso provocou os
espaços instituídos da arte de seu tempo instaurando novos paradigmas para o
que atualmente compreendemos enquanto obra de arte.
Com isso, visamos aprofundar nesse espaço conceitual, o projeto
Ordem de Manifestação Ambiental, também denominado de Parangolé, marco
da
produção
poética
de
Oiticica,
onde
o
artista
definiu
como
a
desmaterialização da obra de arte, a constituição de uma conduta ético-estética
frente ao mundo da vida. Segundo Oiticica os Parangolés são muito mais que
obras de arte, eles inauguram um comportamento, uma forma de estar e olhar
o mundo. Como atesta Justino em sua obra Modernidade e Pós-modernidade
em Hélio Oiticica:
1
Mestranda em Artes Visuais da linha de Historia, Teoria e Critica de Arte pela Universidade do Estado
de Santa Catarina UDESC, SC. Formada em Filosofia licenciatura plena pela Universidade Federal de
Pelotas, UFPEL, RS.
Semelhante à palavra dadá, parangolé não significa nada: é uma
palavra que indica um signo solto, não no dicionário, muito mais na
vida. Oiticica, em uma entrevista (interview, abr., 1980), explica como
chegou até essa palavra. Em um passeio com seu pai pela Praça da
Bandeira (RIO), ele disse ter visto um mendigo que tinha construído
para si uma espécie de estranho abrigo, com uma placa fixada sobre
alguma coisa que poderia ser chamada de entrada daquele abrigo, na
qual estava um escrito indecifrável, que Oiticica leu Parangolé. O
artista considerou a palavra apropriada para designar seus novos
trabalhos, pois correspondia à impossibilidade de encaixar as suas
obras nas categorias existentes. Nada mais agradável do que
encontrar, ao acaso, uma palavra estranha para designar obras
igualmente estranhas. Oiticica se apropriou da invenção do mendigo.
Todavia, os parangolés vão adquirir, através da prática do artista, o
sentido de weltansechauung, fazendo a fusão do estético e do ético.
2
Serão sempre acontecimentos coletivos.
Nesse sentido, o artista visava além do tempo, à instauração da obra de
arte como acontecimento. Sendo os Parangolés capas manuseáveis, coloridas,
com frases inscritas com palavras de ordem, incitando o participador não
somente a vestimenta, ou a utilização do corpo como suporte. Mas sim como
nos salienta Oiticica, a Incorporação da obra, esse entre que atravessa não
somente o ato de vestir, mas de enfrentamento com o outro, isto é, do suprasensorial.
Não obstante, se faz necessário esclarecer que esse projeto se instaura
a partir de 1964, onde Hélio já havia passado por seu ritual de iniciação na
Estação Primeira de Mangueira. Oiticica propõe com isso o exercício
experimental da liberdade, através da possibilidade de revisitar uma espécie de
homem primitivo, anterior ao moderno, instrumentalizado, herança de nossa
crença positivista.
Essa iniciação se faz presente no que o crítico Mário Pedrosa
corroborou: “Um dia deixa sua torre de marfim, seu estúdio, e integra-se na Estação
Primeira, onde fez sua iniciação popular, dolorosa e grave, aos pés do Morro da Mangueira,
mito carioca” 3. Quando o crítico se refere à iniciação dolorosa de Oiticica aos
pés da mangueira, este também esta reavaliando o conceito de artista
moderno, que se despe de sua torre de marfim aludindo à contemplação e a
mimeses de um mundo natural que perdem seu sentido. Pois se a um fim da
2
Justino, José Maria. Modernidade e Pós-Modernidade em Hélio Oiticica. – Curitiba: Ed. da UFPR,
1998.p. 43)
3
Ferreira, Glória. Crítica de Arte: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro, Funarte 2003. p 208.
2
arte como os românticos alemães nos afirmam, é talvez essa morte da
representação, do olhar desinteressado.
A arte moderna, no avanço de seus fenômenos, nos exige uma tomada
de posição, onde o pensamento estético não mais esteja enfronhado nos
ditames do representacional ou do contemplativo – figurativista, mas sim,
voltado a uma postura política atuante. Em sua obra Mundo, Homem, Arte em
crise Pedrosa explicita essa urgência de desconstrução do modelo moderno de
pensamento da arte: Nessa grave encruzilhada em que se encontra a Arte, o
artista é excitado por mil solicitações, vindas do mundo – ambiente, cada vez
mais amplo, mais complexo e surpreendente. O mundo exterior, o mundoambiente é uma permanente surpresa:
A posição do artista de hoje tende, assim, por um estranho retorno. A
equiparar-se à do artista das cavernas do paleolítico, espicaçado, dia
e noite, sensorial e magicamente, pelas formidáveis excitações do
seu mundo-ambiente, do mundo lá fora dos bisões, das renas, dos
bovídeos, da natureza, enfim, permanentemente misteriosa. Atuante,
anímica como o grande ser, mas onde o artista- caçador tinha de ir
buscar as principais fontes de sua sobrevivência e de sua tecnologia.
No mundo aberto de hoje, trata-se, ainda, e no fundo, de absorver, de
4
abarcar campos cada vez mais vastos, na apreensão sensorial .
Pois o artista vivencia em sua totalidade a experiência de confrontar-se
com o morro, a dança, a favela. No sentido mais profundo da busca da
totalidade-obra, conseqüência da existência transformada em obra de arte.
Com isso, Oiticica esclarece:
“O meu programa ambiental a que chamo parangolé não pretende
estabelecer uma nova moral ou coisa semelhante, mas derrubar
todas as morais, pois que estas tendem a um conformismo
estagnizante, a estereotipar opiniões e criar conceitos não criativos”.
Uma espécie de revolução pollockiana. O artista quer criar uma arte,
para além de bem e mal. Os parangolés são, então, programas
destinados a abrir o comportamento individual em direção ao
5
coletivo. Dessa forma, enriquecem a experiência da vida .
A música e a dança são para o artista uma forma de “comunhão com o
ambiente”. O espectador preconcebido por Oiticica descobre seu corpo através
4
Pedrosa, Mário. Mundo, Homem, Arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1986. p 219.
Justino, José Maria. Modernidade e Pós-Modernidade em Hélio Oiticica. – Curitiba: Ed. da UFPR,
1998.p. 43 -44)
5
3
da
interação
com
as
capas
coloridas,
transparece
estruturas
do
comportamento. Bem como, o corpo através da dança (samba) é apreendido
por outros sentidos. O espectador agora desejante dança, movimenta-se,
desloca-se
envolvido
–
invadindo
as
capas,
estandards
coloreos,
transfigurando assim a instauração de novos valores ou axiomas.
Perseguindo esse impulso, o que Nietzsche denominou de embriaguez
Dionisíaca, Oiticica nomeou de “lucidez expressiva da imanência do ato”
(oiticica, 1986ª, p. 74). Vestir as capas, diz o artista, já é inaugurar uma nova
situação, que afasta radicalmente a posição de contemplação. O participante, à
medida que desdobra a capa, “tendo como núcleo central o próprio corpo, (...)
já vivencia a transmutação espacial: percebe ele, na sua condição de núcleo
estrutural da obra, o desdobramento vivencial desse espaço intercorporal” 6
Imerso
nessa
dimensão
Oiticica,
busca
a
não
definição
do
comportamento pelo ato da “lucidez”. Ele procura resgatar o mítico primitivo do
ser humano, o olhar “ingênuo” de quem olha algo pela primeira vez. Nesse
sentido, ele resgata a criança de Zaratustra, que no jogo da inocência nada
carrega de sua tradição, mas ao contrário, transborda inventividade em sua
relação com o mundo.
O jogo é o dispositivo utilizado em diferentes instâncias do pensamento
estético de Oiticica, vale ressaltar aqui, que a palavra estética para o artista é
uma condição de gratuidade e indeterminação, de fluidez com a vida, presente
segundo este no homem primitivo. Por isso esse lugar da indeterminação que
também nos conduz a condição ética, é o espaço da inocência na medida em
que provoca um estado total de liberdade.
E nesse direcionamento, o artista salienta em relação a sua escolha do
mosquito da mangueira como mascote do Parangolé, em um texto intitulado
Parangolé Social é Parangolé Poético de 14 de agosto de 1966:
Elegi nela o mosquito como mascote do parangolé, e mesmo no
futuro quando mosquito deixar a infância seu nome permanecerá
como símbolo que é da criança criadora. Aliás, sempre disse que no
morro não há cursos de pintura, ou disso daquilo, mas no samba
aproveita-se o que de espontâneo e criador possui cada criança; da
6
Idem. p. 46.
4
maneira mais livre possível (isto sim é o verdadeiro exercício
experimental da liberdade do qual fala Mário Pedrosa!). Mosquito é o
símbolo da criança criadora, verdadeiro gênio da dança, e quis desse
modo homenagear essa sua grande infância, esse seu talento inato.
E ainda com a capa andará o próprio passista por aí, isso que é bom!
Nesse ínterim, na busca incessante da atividade criadora, já que não
podemos descartar que para Oiticica uma condição ética – estética pressupõe
a invenção de novos valores e comportamentos onde a relação com o tempo
também se faz através da criação. Por isso, o artista situa que essa busca pelo
sentimento primitivo ressaltado nas manifestações ambientais se dá de forma
descontínua.
Mais adiante o artista ressalta em uma entrevista de 1968 a sua critica
ao tempo cronológico como uma prisão cruel. Tão logo a obra aberta nos
permite um transito entre os tempos passado – presente – futuro que se diluem
na experiência mítica. Nesse contexto se faz pertinente aludirmos o teórico
francês Didi – Huberman quando este questiona que o estudo das imagens
exige outro método de abordagem: Ante una imagen, tenemos humildemente de
reconocer lo seguiente: que probablemente ella nos sobrevivirá, que ante ella somos
el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es elemento del
futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más de memória y mas
de porvernir que el ser que la mira7.
Nesse ínterim, os Parangolés nos permitem o trânsito dos tempos,
quando a imagem somente se faz possível no corpo e pelo corpo, a sua
materialidade se desfaz ao entendê-la em um molde tradicional de obra. Pois, o
resgate a um tempo anterior ao moderno, isto é, a crença na racionalidade
como via sacralizada do comportamento. Os rituais primitivos pregavam uma
relação entre o corpo e a dança voltada a descoberta do mundo e das
significações possíveis a este também. Onde o tempo e o espaço se fundiam
na invenção despida do julgamento de valores.
Até mesmo porque o ato de julgar também é uma invenção moderna, a
escala de valores criada pela civilização ocidental e cristã, obviamente nesse
sentido, a imagem acaba por adquirir outro significado, pois com o cristianismo
7
Didi – Huberman, Georges. Ante El Tiempo – 1ª ed. Adriana Hidalgo editora, Buenos Aires, 2006. p 12.
5
a representação se torna determinante e modifica a compreensão de nosso
repertório imagético. Oiticica em outro texto intitulado A Dança na minha
experiência de 1966, esclarece o que para ele é ser um fazedor de imagens e
como estas se modificam na experiência do Parangolé:
As imagens são móveis, rápidas, inapreensiveis - são o oposto do
ícone, estático e caracteristico das artes plásticas – em verdade a
dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial →
está ai apontada a direção da descoberta da imanência. Esse ato, a
imersão no ritmo, é um ato puro criador, uma arte - é a criação do
próprio ato, da descontinuidade: é também, como o são todos os atos
da expressão criadora, um criador de imagens aliás para mim, foi
como que uma nova descoberta da imagem, abarcando, como não
poderia de deixar de ser a expressão plástica na minha obra.
Nessa busca pelo estado de imanência o artista, explora o que Justino
caracteriza como a perseguição por um estado de reconquista da inocência,
como quem olha algo pela primeira vez. Essa gratuidade se faz presente no
mítico, espaço que se faz anterior, como um estado puro, selvagem. Despido
do olhar viciado da civilização. O “mostrador” de imagens que nos remete a
transformação do comportamento, visto que, no estado primitivo, o homem
vivencia a experiência estética no seu grau de indeterminação e, por
conseguinte, vivenciava o estado de arte por excelência.
Por isso, Oiticica almejava que o homem moderno vivenciasse esse
estado ético, de descoberta da imanência através do Parangolé, mesmo
possuindo consciência de que esse estado de inocência não seria ignorar os
valores. Pois o mundo em um estado mítico simplesmente se torna desprovido
de valores e juízos, permitindo assim, situar a liberdade em seu estado pleno e
aberto. Poderíamos alargar essas pretensões ao entendimento da sociedade
grega, já que o artista era leitor dos textos clássicos desse período, além de
que em diferentes momentos, cita como a ética dos gregos influenciou seu
trabalho.
Leitor de Kant e igualmente dos gregos, Oiticica sabe que a
experiência estética é possível em outros territórios que não
exclusivamente o da arte. A dimensão estética é a região do prazer,
prazer dos olhos, do intelecto, do corpo. Quando a própria arte
submete-se ao mercado e ao sistema, dificulta a experiência estética.
É preciso, pois, buscá-la em outra parte. Cabe ao artista romper esse
circula viciado e buscar outras vias. O caminho de Oiticica foi a
6
antiarte, a não- situação, o não-discurso, isto é, o esforço em negar o
8
esteticismo para recuperar o estético .
E mais adiante, Maria Justino, situa a semelhança do conceito de acaso
em Cage a proposição - Parangolé, visando que se para Oiticica a obra se faz
no campo da indeterminação, essa gratuidade não é composta de incoerência,
muito pelo contrário, poderíamos situá-la em um campo inventariado de
armadilhas. Pois nos Parangolés não nos sobram arestas para delimitações
conceituais a priori, já que o artista pontua a obra como abertura radical ao
comportamento.
Sendo importante ressaltar que as capas vistas como elementos vitais
dos Parangolés, mesmo tendo sido elaboradas em 1964, a primeira realização
pública de um Parangolé ocorre somente um ano depois, durante a vernissage
de Opinião 65 no MAM do Rio de Janeiro. E logo após, vários artistas se
integram ao programa ambiental, fornecendo outros elementos poéticos, como
foi, por exemplo, a capa Exercício Experimental da Liberdade criada por
Rubens Gerchmann. Oiticica colocará que essas intervenções permitiam que
as pessoas vestissem poemas, cores e consequentemente incorporassem
vivências.
A partir disso, os Parangolés se situam como obras rasgadamente
abertas, recorrem a outras linguagens como a música, a poesia, o teatro e a
contestação política. Com isso, absorve o conceito de obra de arte tradicional e
instaura a obra como ação viva, presença dotada de organicidade. Sendo a
experiência total a que Oiticica chamou de vivencia, radicalização do
comportamento, onde era impossível prever qual seria a reação de cada
participante do ritual a que o artista propunha.
Oiticica reinterpreta a dialética hegeliana: O concreto se faz na
construção dialética a partir de seus momentos, mas o processo se
efetua tanto nos momentos de determinação como no acaso. O
artista funciona como a razão negativa do momento dialético, que faz
aparecer à contradição. A razão positiva, lugar do participante, se
eleva a síntese. A obra se reconhece na ação, que se realiza no finito
8
Justino, José Maria. Modernidade e Pós-Modernidade em Hélio Oiticica.– Curitiba: Ed. da UFPR,
1998. p 48 – 49.
7
e mediante o finito. O criador nada mais é que o resultado da série de
9
seus atos .
Nesse viés, os Parangolés nos remetem tanto a imagem dialética que
pressupõem a contradição, quanto ao paradoxal, presentes no ato de conduzir
o participador ao estado selvagem, já que não há um dispositivo de controle
para o comportamento e as sensações advindas da experiência total com a
obra. Ao mesmo tempo em que o artista se coloca como condutor desse
estado, elevando a um labirinto de proposições.
E mais adiante, podemos perceber como o artista busca através dessas
proposições a descoberta do corpo, as capas como vestimenta deste também
de transformabilidade das estruturas do corpo, a que esse denominou de multi
– experiências. Já que, o corpo não representa a moldura e nem o quadro da
obra, criando assim uma metamorfose da obra e do corpo no instante de sua
duração.
Para Oiticica a incorporação da obra se faz em uma condição ética –
estética no momento em que a descoberta do corpo, nos permite a invenção do
comportamento, por isso o artista escolhe utilizar o termo indeterminação, ao
invés de acaso, visto que, este último é carregado de sentido no seu uso
habitual e ordinário. Enquanto a indeterminação nos permite através da dança
e no caso do artista, o samba, já que a experiência com o morro da mangueira
advinha de uma busca de desintelectualização, a transformação radical da
invenção em nosso cotidiano.
Em um texto apresentado no MAM do RJ em 1968, o artista esclarece: Os
meus parangolés podem ser mais facilmente apreendidos num contexto como o do
Programa do Chacrinha ou na quadra da mangueira do que numa galeria de arte. A
crítica ao sistema institucionalizado da arte aparece premente nessa afirmação
de Oiticica, sendo que devemos levar em consideração, que quando este
afirma a apreensão dos parangolés na mangueira, por exemplo, este não se
refere a uma folclorização do trabalho ou a saliência da cultura brasileira no
sentido massificado.
9
Idem. p 76.
8
As capas, além de resgatar o mito, são formas de solapar a
sociedade repressiva. É bem possível, através do mito, elaborar uma
crítica à visão instrumental do homem. O mito recupera a imaginação
e é uma forma de superar o homem abstrato, privado de concreção,
alienado. O mito devolve uma imagem sintática do mundo. Sem ele,
“toda civilização perde o sadio vigor criativo, que é a sua força
natural: pois somente o horizonte circunscrito pelo mito pode
assegurar o fecho e a unidade de uma civilização em movimento”
(Nietzsche, 1977, p. 147). Além do mais, Oiticica quer restituir o riso
10
ao homem sério .
Pois para Oiticica a sociedade contemporânea é extremamente coibidora,
repressiva, não libera o que a de mais vital no ser humano. E nesse viés pode
se retornar ao entendimento que o artista possuía dos gregos, já que era uma
sociedade que vivenciou diferentes catástrofes e buscou na arte formas de
soerguimento, mesmo possuindo na razão seu lugar de origem, essa não
brutalizava e nem escravizava o homem, mas visava uma condição ética estética. Como é o exemplo tanto dos estóicos, como dos epicuristas11.
E nessa linha descontinua, Oiticica mapeia:
O mito do gênio, do modelo das morais dominantes, caem diante
dessa aspiração maior de uma nova realidade que se constitui da
soma dos esforços milenares a busca pelo homem de si mesmo – o
processo criador, reservado ao gênio, ao sábio, tende a espraiar-se
para fora do seu condicionamento, mantido a longo tempo cerrado
por uma casta de ‘eleitos’, e a se incorporar, pelos esforços contínuos
da humanidade que se transforma em cada individuo. Processo
criador e vida se confundem. Quem poderá julgá-los?
Nesse texto citado acima intitulado “Critério para o julgamento das obras
de arte contemporâneas”, realizado no MAM Rio em 23 de maio de 1968.
Oiticica sintetiza a importância de pensarmos a arte vinculada à vida e nesse
contexto a urgência de destituirmos os juízos, pois em seu projeto os valores
se perdem pelo gesto, o ato que sendo intensificado no tempo e no espaço
produz intervalos, impossíveis de serem capturados através da racionalização
cartesiana. Pois é um pensamento que se constitui em labirintos, mais um
10
Idem. p 86.
Para os povos da antiguidade grega-helenistica a existência se desenvolvera a partir de uma condição
ética -estética, para os estóicos essa permuta se desencadeara através da ataraxia, profunda indiferença
com as questões do mundo, ao mesmo tempo em que se permitiam a escolha do que desejavam abordar,
podendo assim incorrer em contradições. Já os Epicuristas, pensaram sua ética através do hedonismo,
refugiaram-se em um jardim, e o prazer instantanêo era o ato da criação e da retórica.
11
9
apanágio ao mítico, as estruturas que saltam e não as que permanecem em
estado retilíneo.
Portanto, ao pensarmos os Parangolés como obras abertas ao conceito
de invenção, prerrogativa de uma condição ético – estética, vislumbramos as
capas, as cores, as palavras, as vivencias anteriores ao homem civilizado em
seu plano de imanência ao que o filósofo francês Gilles Deleuze nos coloca em
sua obra “O QUE É A FILOSOFIA?”
Contemplar, refletir, comunicar são outra coisa senão opiniões que se
faz sobre o pensamento, a tal época e em tal civilização? A imagem
do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de
direito. O pensamento reivindica “somente” o movimento que pode
ser levado ao infinito. O que o pensamento reivindica de direito, o que
ele seleciona, é o movimento infinito ou o movimento do infinito. É ele
que constitui a imagem do pensamento. O movimento do infinito não
remete a coordenadas espaço-temporais, que definiriam sucessivas
de um móvel e os pontos fixos de referência, com relação às quais
estas variam. (...) O que esta em movimento é o próprio horizonte: o
horizonte relativo se distancia quando o sujeito avança, mas o
horizonte absoluto, nós estamos nele sempre e já, no plano de
12
imanência .
Referências:
Deleuze, Gilles. O QUE É A FILOSOFIA? / Rio de Janeiro. Ed 34, 1992.
Didi – Huberman, Georges. Ante El Tiempo – 1ª ed. Adriana Hidalgo editora, Buenos
Aires, 2006.
Ferreira, Glória. Crítica de Arte: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro, Funarte,
2003.
Justino, José Maria. Modernidade e Pós-Modernidade em Hélio Oiticica. / Curitiba:
Ed. da UFPR, 1998
Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto / Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
Pedrosa, Mário. Mundo, Homem, Arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1986.
SITES:
Arquivo HO - Programa Hélio Oiticica
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?Fuseaction=doc
umentos&pesquisa=simples
12
Deleuze, Gilles. O QUE É A FILOSOFIA? / Rio de Janeiro. Ed 34, 1992. p 53 – 54.
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Hélio Oiticica e a obra Aberta