1 O HOMEM AS DROGAS E A SOCIEDADE: UM ESTUDO SOBRE A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL1 JONAS VARGAS2 RESUMO: Há tempos a discussão sobre a política criminal de drogas é realizada na academia. Entretanto, na sociedade em geral predomina a visão única do proibicionismo. Assim, o presente estudo se propõe e reconstruir uma visão crítica sobre as drogas, seus usuários, a sociedade em que eles estão inseridos e a proibição dessas substâncias. Com essa nova visão analisa-se também de forma crítica a atual legislação que criminaliza o porte de drogas para consumo, suas incongruências num Estado Democrático e Direito e sua eficácia como norma penal. Por fim, ao revisitar esses argumentos da descriminalização, apresenta-se a política de redução de danos, modelo necessário para humanização do auxílio que deve ser dispensado às pessoas que usam essas substâncias. Palavras-Chave: Direito Penal – uso de drogas – proibicionismo – redução de danos. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2. O homem, a sociedade e a droga; 2.1 A droga; 2.2 O homem que usa drogas; 2.3 A sociedade do homem que usa drogas; 2.4 O proibicionismo; 3 O crime de porte de drogas para consumo no ordenamento jurídico brasileiro; 3.1 Críticas à criminalização; 3.1.1 O direito penal moral e sua função de “normalização social”; 3.2 A (in)eficácia do direito penal das drogas; 4 A política de redução de danos como alternativa ao proibicionismo; 4.1 A política de redução de danos; 4.2 Redução de danos no Brasil; 5 Considerações finais; Referências. 1 INTRODUÇÃO Todo dia, toda hora e em todo lugar. O assunto das drogas permeia quase todos os campos de debates, sem distinção de classe social nem nível intelectual, muito embora dentro das universidades e nos espaços acadêmicos essa discussão já ser considerada superada. Ao menos as duas vertentes opostas (proibicionistas e abolicionistas) já construíram de forma sólida seus argumentos. Entretanto, fora dos muros da academia, no seio da vida popular, somente um desses discursos encontra voz. A visão proibicionista sobre as drogas está arraigada na sociedade em geral de maneira tão incrustada que nem mesmo permite que o diálogo com a corrente oposta ocorra, o que 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador, Prof. Alexandre Lima Wunderlich, pelo Prof. Felipe Cardoso Moreira de Oliveira e pelo Prof. Marcos Eduardo F. Eberhardt em 27 de junho de 2011. 2 Acadêmico do Curso de Ciência Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: [email protected] 2 caracteriza uma verdadeira cegueira ideológica no campo das drogas, uma implícita censura à livre circulação de idéias entre as pessoas em geral que tomam o assunto como um tabu. Isso se vislumbra com clareza quando reparamos nas verdadeiras cruzadas contra essas substâncias levadas a cabo pela mídia, o governo e praticamente todos os setores da sociedade civil, reduzindo toda a complexidade que o tema abarca a uma simples frases como “Drogas-Nem Pensar”. Diante dessa realidade social, pretende-se no presente estudo (re)construir uma visão crítica sobre essas substâncias, sobre as pessoas que lançam mão delas e sobre a sociedade em que essas relações ocorrem. Pretende-se também vislumbrar criticamente a proibição que vem ocorrendo de forma ampla em quase todos os países do mundo. Destarte, após obter essa nova visão sobre o tema, analisar nossa atual legislação de drogas sob o mesmo enfoque crítico para verificar se a proibição do porte para consumo se coaduna com um Estado Democrático de Direito e se ela é eficaz para atingir os objetivos que se propõe. Por fim, pretende-se apresentar em linhas gerais a política de redução de danos, política que se considera mais adequada para atendimento aos usuários dessas substâncias. Sem dúvidas, para conseguirmos realizar esse objetivo é necessário que tenhamos em mente a transdisciplinaridade que envolve a matéria. Por esse motivo este estudo procurou manter-se aberto a outras áreas do conhecimento, como a psicanálise, a sociologia e a criminologia, pois se crê que uma mera análise da dogmática jurídica seria insuficiente para encontrarmos a “pedra filosofal” deste estudo que é a visão contestadora que se pretende apresentar do tema. 2 O HOMEM, A SOCIEDADE E A DROGA Das mãos dos “perigosos” e “enlouquecidos” moradores de esquinas, às festas da “elite social juvenil”, de rituais que remontam o Egito, Grécia e praticamente todos os povos da antiguidade até as religiões atuais. Épocas diversas, culturas diversas, contextos diversos e a droga presente em todos eles. A bem da verdade, se sabe que a droga sempre existiu e esteve sempre presente nos contextos religiosos, místicos, terapêuticos, festivos, entre muitos outros. Destarte, pode se considerar que a história das drogas é uma história inserida dentro da história da humanidade e o passar dos anos tão somente fez variar o papel que essas substâncias desempenham e o uso que se faz delas em cada cultura, a tal ponto que, de práticas sagradas, as drogas passaram a ser vistas hoje como uma epidemia social.3 Deste modo, podemos perceber que a questão do uso de drogas é extremamente complexa, pois abarca diversos fatores que se fazem necessário para podermos ter uma compreensão dessa complicada teia de relações que se centralização na substância psicoativa. Ciente dessa realidade, a própria psicanálise deixa clara que não pode dar conta sozinha da drogadição, fazendo menção de que o fenômeno resulta de três fatores interagentes entre o sujeito, 3 ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. 7. ed. rev. ampl. Madrid: Alianza, 1998, p. 25. 3 a droga e o contexto sócio-cultural. Assim sendo, é através desses três fatores que esse estudo será delinedado4 2.1 A DROGA A droga, por si só, é uma substância ou ingrediente químico qualquer que por sua natureza produz determinado efeito. Os gregos da antiguidade nos legam um conceito muito exemplificativo do que é a droga. Trata-se da palavra phármakon. Para eles, essa palavra designava uma substância dotada de duplo efeito: remédio e veneno. Nota-se, que a expressão phármakon não se refere a substâncias inócuas e nem a substâncias puramente venenosas. Ela designa um composto que naturalmente congrega em si potencial de cura ou de ameaça. O que faz phármakon assumir um ou outro efeito no organismo é a proporção de sua dose que pode ser curativa ou mortífera.5 XIBERRAS traz para a atualidade esse mesmo sentido para as drogas. Afirma a antropóloga que todas as substâncias psicotrópicas trazem potencialmente em si o poder de decuplicar as capacidades humanas ocasionando sensações caracterizadas pela euforia ou disforia. Entretanto, após a transição de um consumo moderado para a utilização intensiva, ou seja, quando o usuário perde o controle sobre o produto, esses efeitos assumem uma relação oposta, pois aquelas capacidades que antes se encontravam sobrepotenciadas agora passam a sofrer uma constante perda ou diminuição, o que caracteriza a passagem do remédio para o veneno.6 Não obstante, a definição do que seja a droga não é uma tarefa fácil, sendo empreendida por diversas áreas do conhecimento, cada qual tendo uma visão distinta sobre o tema. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), droga é qualquer substância capaz de modificar a função dos organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas ou de comportamento. Para farmacologia, todo produto capaz de desenvolver uma atividade farmacológica, independente de sua toxidade, seria considerado droga. Outros conceitos também foram criados levando-se em consideração as características desses produtos. Todavia, esse tema também não é uníssono e gera grandes discussões.7 Em termos de classificações, uma das primeiras adotadas sobre os efeitos eufóricos que a droga causa subdivide-se em cinco grandes famílias, as quais, para XIBERRAS, constituem a abordagem mais completa para qualquer reflexão acerca dos psicotrópicos e seus efeitos. São elas: Excitantia, Inebriantia, Euphorica, Hypnotica e Phantastica.8 Diversas outras classificações 4 NEVES, Carla Malinowski. Drogas: uso/abuso/toxicomanias. In: CRUZ, Firmo de Oliveira; KIRST, Patrícia Gomes. (Org.). Ampliando Acessos: ensaios sobre a clínica psicológica e redução de danos com dependentes químicos. Porto Alegre: Cruz Vermelha Brasileira/RS, 2001, p. 41. 5 ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. 7. ed. rev. ampl. Madrid: Alianza, 1998, p. 20. 6 XIBERRAS, Martine. A Sociedade Intoxicada. Lisboa: Instituto Piaget, 1989, pp. 49-50. 7 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, pp. 25-26. 8 XIBERRAS, Martine. A Sociedade Intoxicada. Lisboa: Instituto Piaget, 1989, pp. 51-54. 4 quanto aos seus efeitos podem ser usadas como os grupos que se dividem em narcóticos, sedativos, estimulantes, alucinógenos e substâncias químicas, ou, segundo uma visão farmacológica, classificadas em hipnóticos, ansiolíticos, neuropiléticos, psicoestimulantes, antidepressivos e psicodélicos. Todas essas espécies congregam muitas semelhanças e ao mesmo tempo se confundem. Isso porque, os efeitos das drogas não são únicos e podem variar substancialmente conforme a quantidade consumida e conforme a própria pessoa do usuário.9 Todavia, há um tipo de classificação que requer maior atenção devido a proposta deste trabalho. Trata-se da classificação jurídica que reduz todas as drogas em dois grandes grupos: as lícitas e as ilícitas10. Embora as outras contenham também falhas, sem dúvida, essa é a mais problemática delas. Isso porque, não se consegue vislumbrar razão lógica que determine qual substância será considerada lícita, qual será considerada ilícita. Embora se possa imaginar que o critério adotado seja o da lesividade à saúde humana (perspectiva médica), isso não se sustenta, pois substâncias como o álcool e o tabaco, que em outros tempos já foram consideradas ilícitas, hoje não são mais. Da mesma forma, existem outras substâncias menos lesivas que essas duas e, mesmo assim, são consideradas proscritas. Isso nos conduz à conclusão de que o único critério adotado é o político e moral.11 No Brasil, o que distingue quais drogas são consideradas ilícitas é a Lista F de substâncias do ANEXO I da Portaria nº 344/98 da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a qual é atualizada por Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC), sendo que a última alteração deu-se em 26 de outubro de 2006 (RDC nº 44/10). Portanto, é dessa Portaria que a Lei de Drogas de 2006 se vale para definir para quais as substâncias que se aplicam seus tipos penais (artigo 1º, § Único). Com efeito, temos que a parte integradora de diversos tipos penais são criados e alterados por atos do poder executivo, ou seja, é uma lei penal em branco que necessita o complemento de uma medida administrativa para sua formação. Contudo, as medidas dessa espécie não seguem o rigoroso procedimento de criação de uma lei penal, embora produza os mesmos efeitos incriminadores. Tal situação coloca em dúvida a constitucionalidade da Lei, pois o princípio da Reserva Legal Absoluta confere legitimidade somente às leis penais oriundas do poder legislativo, órgão idôneo e democrático para produzir tipos incriminadores que destituirão do cidadão sua liberdade.12 9 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, pp. 26-29. 10 Na Holanda, a classificação jurídica dada pela Lei Holandesa do Ópio é diferente, pois agrupa as drogas em duas classes: as de risco inaceitável à saúde, chamadas “drogas pesadas” (compreendendo nesse grupo a heroína, cocaína, anfetaminas, LSD, etc) e aquelas que oferecem riscos menores, as “drogas leves” (como por exemplo, a maconha e o haxixe). Cf. REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 84. 11 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 35. 12 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: Estudo Criminológico e Dogmático. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 186-188. 5 Retornando à questão das drogas propriamente ditas, em síntese, temos que os múltiplos saberes que se projetam para entender as drogas redundam em diversas classificações desse produto. Essas diversas classificações, sem dúvida, não são suficientes para nos dar uma compreensão satisfatória sobre as drogas. Como dito, os efeitos delas são variáveis conforme a quantidade, forma de usar, frequência e, sobretudo, conforme a pessoa do usuário. A droga, o sujeito e o contexto sociocultural são indissociáveis, de modo que os efeitos resultantes do uso variam também conforme as predisposições psicológicas, os saberes e as expectativas dos consumidores. Portanto, para uma melhor compreensão, passemos a analisar o sujeito que se droga.13 2.2 O HOMEM QUE USA DROGAS Desde uma visão cartesiana, nossos sentidos corporais são os únicos veículos capazes de nos inserir na realidade externa do mundo. O psiquismo humano depende dessa realidade, no entanto, somente toca nela por intermédio de si mesmo, de seu corpo.14 Assim, a realidade que percebemos não é outra coisa senão aquilo que capturamos por nossos órgãos sensíveis, transmitimos através de nosso sistema nervoso e, por derradeiro, processamos e interpretamos por intermédio de nosso cérebro. A droga cumpre o papel de atuar intervindo em alguma fase desse processo e assim modificar a experiência da realidade vivenciada pelo usuário. Por conseguinte, o efeito da droga é resultante do intercâmbio entre ela própria e o usuário. Logo, imperativo reconhecermos a impossibilidade de trabalharmos com fórmulas prontas quando tratamos da relação do homem com as drogas, pois cada sujeito fará sua própria “costura” com a substância utilizada.15 Em relação às individualidades referentes ao consumo de drogas, existem dois grandes grupos: os usuários e os toxicômanos, ou dependentes. O usuário pode consumir a droga esporadicamente ou mesmo com certa frequência, contudo, ela nunca se transforma na razão máxima de sua vida. O toxicômano, por sua vez, é compelido por uma força física e psíquica muito poderosa a lançar mão sobre essa substância, de modo que elas passam a ser o valor soberano na regulação de suas existências em detrimentos de outros como os laços familiares, afetivos e profissionais. Ou seja, a diferenciação de um grupo para o outro se concentra na dimensão compulsiva que marca a ingestão desses produtos.16 Pode ocorrer de um sujeito ter muitos anos de consumo cotidiano, dele ser física e psiquicamente dependente, mesmo assim, não significa que esse sujeito seja um toxicômano, um viciado, pois o uso de drogas em sua vida pode ser tão somente um comportamento a mais, integrante de certos códigos 13 XIBERRAS, Martine. A Sociedade Intoxicada. Lisboa: Instituto Piaget, 1989, p. 33. ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. 7. ed. rev. ampl. Madrid: Alianza, 1998, p. 13. 15 NEVES, Carla Malinowski. Drogas: uso/abuso/toxicomanias. In: CRUZ, Firmo de Oliveira; KIRST, Patrícia Gomes. (Org.). Ampliando Acessos: ensaios sobre a clínica psicológica e redução de danos com dependentes químicos. Porto Alegre: Cruz Vermelha Brasileira/RS, 2001, p. 41. 16 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 223-225. 14 6 sociais. Entretanto, a constante busca de soluções para a toxicomania acaba gerando uma homogeneização, criando “valas comuns” conceituais que, do ponto de vista da psicanálise, nada contribui para o avanço da questão.17 Do ponto de vista social, essa vala comum destinada ao usuário de drogas gera um perverso efeito, o estigma, nos termos que nos foi legado pela criminologia da reação social e que está impregnado no pensamento da coletividade. O senso comum visualiza o uso de drogas como um comportamento diferente, desviante da “norma social” vigente. Essa mesma norma social não permite a existência desses comportamentos dentro da pureza de sua normalidade, pois considera que o “anormal” afeta o bom funcionamento de uma sociedade. Assim, ao nomear os sujeitos que usam drogas, ao “enquadrálos” como “drogados” fazem com que essas pessoas encontrem um lugar para elas dentro dessa ordem, uma espécie de depósito onde sobrepomos as diferenças, os desviados. Lembrando que não são apenas de muros e celas que se erguem os grandes depósitos, pois a forma mais perversa de segregação é aquela formada por nossas próprias concepções teóricas.18 Aliado a essa perspectiva, verifica-se que existe na sociedade uma cultura do medo e do pânico oriunda da violência cada vez mais recorrente nos grandes centros. Ressalta-se que essa violência é, em grande parte, uma violência simbólica, ou seja, não necessariamente formada por fatos concretos, mas sim por sensações sociais devido à proliferação do pânico veiculada pela mídia. Essa situação conduz a disseminação do preconceito aos grupos minoritários (desviantes) os quais a sociedade associa como responsáveis por essa onda de violência. Aqui também são inseridos os usuários de drogas, pessoas demonizadas sobre as quais se deposita “todos os males” da sociedade e a responsabilidade por todo caos existente. Assim, transformam os usuários de drogas em verdadeiros bodes-expiatórios da atualidade.19 Interessante notar que a criminalização atinge somente a parcela vulnerável da sociedade, a amarga massa de pessoas sem profissões, rejeitados pelo mercado de trabalho, descartáveis, ou mesmo aqueles que possuem alguma ocupação, mas mesmo assim enquadram-se dentro do “biótipo de suspeito”. Por outro lado, os “cidadãos de bem”, protegidos por esse manto simbólico, realizam suas práticas tóxicas imunes, a tal ponto que ALVES considera que o delito de porte de drogas para o consumo é o crime que provavelmente apresenta as maiores cifras ocultas, ressaltando que, se diferente fosse, se a repressão atingisse também as classes mais favorecidas (“se houvesse repressão as festas dos filhos e dos pais de classe média”), o objetivo antiproibicionista já teria sido alcançado. Ou seja, a seletividade é estrutural e está presente em qualquer âmbito de atuação do poder punitivo, bem como e principalmente nos crimes relativo às drogas.20 17 CRUZ, Walter Firmo de Oliveira. Intoxicação e Exclusão Social. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (24). Porto Alegre: APPOA, 2003, pp. 28-29. 18 CRUZ, Walter Firmo de Oliveira. Intoxicação e Exclusão Social. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (24). Porto Alegre: APPOA, 2003, p. 24. 19 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 42-43. 20 ALVES, Marcelo Mayora. Entre a Cultura do Controle e o Controle da Cultural: Um Estudo Sobre as Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 169-176. 7 Pobreza, uso de drogas e criminalidade é o estereótipo que a produção midiática cria e recria diariamente, resultando numa posição ainda mais vulnerável aos usuários, porquanto são vistos como agressores, marginais em potencial pelo simples fato de consumirem produtos capazes de alterarem suas consciências, o que legitima sua seleção pelas agências punitivas.21 Toda essa carga valorativa depositada sobre esse usuário vai resultar para ele uma busca cada vez maior de isolamento da sociedade, alterando suas relações de amizades e dificultando o diálogo com sua família. Para se defender dessa situação, ele se une com outros usuários, uma verdadeira solidariedade das drogas, adentrando cada vez mais em seu estigma de drogado.22 Dessa forma, a imagem que se vende no dia-a-dia do usuário de drogas vai se formando. No entanto, em que pese essa formação do estigma, a maioria dos destinatários finais dessas substâncias são pessoas “normais”, pessoas diferentes desse famigerado estereótipo veiculado pela mídia e pelas campanhas governamentais.23 Novamente retornamos à “vala comum conceitual”. Todo do usuário de drogas é um doente viciado, e todo usuário é criminoso. É o que professa a mitologia do senso comum, ao arrepio da realidade. Por isso faz-se necessário desconstruir essa falácia. Como bem nos lembra BIRMAN: Os usuários de drogas e os toxicômanos não são absolutamente criminosos. A criminalização destes indivíduos impede a aproximação deles de forma produtiva, já que dessa maneira eles são inseridos em um circuito diabólico regulado por acusações e culpabilizações.24 É a própria sociedade que gera o estigma, que seleciona e que criminaliza. Também, é essa mesma sociedade que gera o desejo pela droga. É o que veremos. 2.3 A SOCIEDADE DO HOMEM QUE USA DROGAS No período pré-socrático se acreditava que a felicidade dependia dos desígnios dos deuses, ou seja, um critério totalmente religioso. Sócrates altera essa visão ao pregar a felicidade como algo que deve ser por todos buscada e a filosofia seria o caminho para tal. Aristóteles afirma que todos os bens 21 ERWIG, Luísa Regina Pericolo. Exclusão e Vulnerabilidade Social nos Contextos dos Usuários de Drogas: Produção de Sentidos Sobre o Programa de Redução de Danos. 2003. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) - Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003, pp. 5961. 22 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 112-113. 23 BECK, Francis Rafael. A lei de drogas e o surgimento de crimes “supra-hediondos”: uma necessária análise acerca da aplicabilidade do artigo 44 da lei 11.343/06. In: CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 155. 24 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 222. 8 perseguidos pelos homens (beleza, riqueza, saúde e poder) eram apenas meios de atingir a felicidade, essa sim, a única virtude buscada como bem em si mesma.25 Alteração total de paradigma deu-se com o cristianismo, pois este retirou a felicidade como meta desta vida terrena, postergando-a para uma vida pós-morte. No século das luzes a ideia novamente é reformulada e radicalizada. O iluminismo postula a felicidade como um direito inalienável do homem pela qual este deve sempre lutar. Contudo, a via para obter essa felicidade ganha opacidade, torna-se duvidosa, sem referências.26 Com efeito, a definição de felicidade restou turvada, não se sabendo se sua origem é uma dádiva do destino, uma recompensa pela virtude, ou uma graça obtida em uma vida após a morte. A única certeza que se tem é que a felicidade é sim possível, entretanto, não se sabe qual a via para alcançá-la. Esse pensamento foi consolidado na modernidade27 e tornou-se deveras agravado nessa sociedade pós-moderna, uma sociedade multicultural com perdas absolutas de referências, onde as certezas se tornaram difusas, controvertidas e ambíguas.28 Essa falta de referências na contemporaneidade foi também desenvolvida por autores de horizontes teóricos diferentes, como Nietzsche e Heidegger que caracterizaram o período pela “morte de Deus”, Weber pelo “desencantamento do mundo” e Freud pelo que chamou de “malestar na civilização”. BIRMAN considera que o mal-estar na civilização de Freud trata-se do mal-estar na modernidade, pois era o estatuto do sujeito no mundo moderno que instigava aquele autor em suas indagações que são perturbadoras até os dias de hoje.29 Nessa obra, FREUD afirma que o homem necessita de um propósito para a vida a fim de que essa continue a fazer sentido para ele. Embora as religiões costumem oferecer isso para seus fiéis, Freud considera-as apenas medidas paliativas e fixa-se num propósito que seja voltado diretamente à praxe da vida do homem, ou seja, sua busca pela felicidade. Essa felicidade pode ser compreendida em dois sentidos, um negativo e outro positivo. O primeiro refere-se à ausência de sofrimento e desprazer, enquanto a segunda refere-se à busca de prazeres cada vez mais intensos. Dessa forma, a atividade humana sempre estará voltada a essa finalidade, mesmo que somente de forma geral. Freud denomina isso de princípio do prazer.30 Por outro lado, o estado de infelicidade está constantemente ameaçando-nos através do poder superior da natureza, da fragilidade de 25 FERRAZ, Renata Barboza et. al. Felicidade: uma revisão. Rev. Psiq. Clín 34(5). Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34n5/a05v34n5.pdf>. Acesso em 12 de abril de 2011, p. 235. 26 CONTE, Marta et. al. Desvio, Loucuras e Toxicomanias: Leituras desde a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise. Revista de Estudos Criminais. Sapucaia do Sul, v.8, n.29, pg. 81-86, abr./jun., 2008, p. 83. 27 CONTE, Marta et. al. Desvio, Loucuras e Toxicomanias: Leituras desde a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise. Revista de Estudos Criminais. Sapucaia do Sul, v.8, n.29, pg. 81-86, abr./jun., 2008, p. 83. 28 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 20, 29 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 17-18. 30 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 30-33 9 nossos próprios corpos e da inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Dessas três fontes, as duas primeiras o homem nunca terá controle, devendo se limitar a tão somente aceitá-las e tentar de alguma forma mitigálas. Já a terceira, o ser humano sempre relutará em aceitá-la, de modo que a civilização é, em grande parte, a responsável pelo sentimento de desgraça do ser humano.31 Nesse sentido, Freud refere que a evolução cultural é a culpada pela maioria dos sofrimentos, pois cria uma lógica social que deve ser estritamente respeitada e impõe preceitos que devem ser sempre seguidos (“superego cultural”), a começar pela sublimação, ou até mesmo negação dos instintos. Do contrário, não haveria evolução civilizatória, de modo que esse excesso de ordem, essa restrição de liberdade, todos esses grilhões que a civilização impõe ao homem são condições sem as quais não haveria segurança social suficiente às formações civilizatórias.32 Entretanto, a obra “Mal-Estar na Civilização” data o ano de 1920 e a realidade de hoje, sem dúvida, não é mais a mesma de Freud. Mesmo que seu trabalho ainda seja considerado atual, as mudanças que a sociedade experimentou nos fazem recorrer a uma releitura de sua obra. Sobre essa nova sociedade, BAUMAN afirma que os últimos 40 anos foram decisivos para sua transformação e sua nova moldagem. O progresso tecnológico e administrativo do capital resultou na diminuição do emprego e gerou uma constante insegurança para aqueles que continuaram empregados, principalmente devido ao modelo flexível que o capital vem adotando. Concomitantemente a esse contexto, medra uma nova sociedade, a sociedade de consumidores. Desse modo, quanto mais sedutor for o mercado, mais a sociedade consumidora é segura e próspera. De outra sorte é o imenso hiato que se gera separando aqueles que podem satisfazer seu desejo e aqueles que desejam, mas estão impossibilitados de satisfazê-los. O consumo abundante conduz à fama e ao sucesso33, pois agora o quinhão de cada membro na participação social é medida na proporção de seu consumo e não na sua contribuição produtiva.34 Torna-se então o consumo sinônimo de felicidade. Felicidade essa que é o prazer buscado constantemente pelo homem, o propósito de sua existência segundo Freud. No entanto, isso é algo aterrador. Esperamos que a felicidade venha dos objetos que consumimos, mas não. Os objetos que consumimos não são conclusivos, eles estarão sempre remetendo-nos a um seguinte, e outro seguinte, levando a busca pela felicidade ao infinito.35 Aliado a essa impotência de gozar causada pelo consumismo, a sociedade contemporânea sofre outra alteração de paradigma. O “não” não 31 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 33. WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 8-11. 33 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 50-56. 34 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 171. 35 CONTE, Marta et. al. Desvio, Loucuras e Toxicomanias: Leituras desde a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise. Revista de Estudos Criminais. Sapucaia do Sul, v.8, n.29, pg. 81-86, abr./jun., 2008, p. 84. 32 10 encontra mais espaço no mundo, pois tudo está ao alcance do homem, tudo foi explorado, domesticado, tudo foi visto. Não há mais espaço para a infelicidade nos dias de hoje, vivemos a chamada “ditadura do gozar”.36 BIRMAN afirma que isso teve origem na descoberta de diversas drogas que combatem a angústia, de modo que a utilização de psicofármacos ascendeu vertiginosamente na clínica médica passando a ser utilizados numa escala sem precedentes pela população. Esse interesse clínico pelas perturbações funcionais do humor serve para manter o cidadão sempre em condições de participar da grande “sociedade do espetáculo”, pois os panicados e deprimidos são pessoas fracassadas nessa sociedade atual e não encontram espaço de atuação dentro dela. Eles não são pessoas “legais” que gesticulam performances na espetaculosa cena do mundo, eles não têm o “estilo” necessário para brilharem na cena social, eles precisam ser medicados para serem capazes de inflarem seus peitos e obesos de si mesmos dizerem decididamente “Cheguei”.37 Diante disso, é perfeitamente compreensível o espaço que as drogas ganharam nessa sociedade que nos referimos. Freud refere que o método mais interessante de evitar o sofrimento são aqueles que influenciam o próprio corpo, pois todo sofrimento não é outra coisa senão uma sensação e como tal só existe porque o sentimos. Das diversas formas de exercer essa influência, a intoxicação é a mais eficaz, pois produzem prazer intenso e imediato ao corpo ao mesmo tempo em que atua como “amortecedor de preocupações” por causar uma momentânea independência do mundo externo, refugiando o sujeito em um mundo próprio.38 Com efeito, o uso de drogas surge como uma promessa de satisfação final. Com ela todos os objetos de consumo podem ser descartados, ela anestesia a dor e o mal-estar de viver. E a tão almejada felicidade que antes estava escondida e não se sabia onde encontrá-la, agora não. O usuário de drogas sabe muito bem onde está o que ele deseja, onde encontrar o seu prazer, o usuário de drogas sabe sempre o que lhe falta. Portanto, o uso de drogas é um imperativo importante de nosso tempo. O uso de drogas é estritamente convergente com o discurso perpetuado na atualidade, o discurso produzido pela sociedade de consumo, o discurso do espetáculo, o discurso da ciência como promessa de solução para toda impossibilidade. Ou seja, o uso de drogas é um sintoma legítimo deste tempo.39 2.4 O PROIBICIONISMO Diversos tipos de proibições existem no mundo, seja de comportamentos ou de produtos. Por exemplo, o aborto, a pornografia, pesquisas sobre célulastronco, determinados jogos, preferências sexuais, etc. Todas essas espécies de proibições que se realizam encontram um ponto de convergência. São 36 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 15-18. 37 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 241-245. 38 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 34. 39 CONTE, Marta et. al. Desvio, Loucuras e Toxicomanias: Leituras desde a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise. Revista de Estudos Criminais. Sapucaia do Sul, v.8, n.29, pg. 81-86, abr./jun., 2008, pp. 82-84. 11 condutas de origens variadas, mas que não implicam, necessariamente, dano algum para terceiros. Nesse rol também se inclui a proibição as drogas que, por sinal, é considerada a proibição mais bem organizada, sistematizada e financiada do mundo.40 Essa proibição organizada e legalizada tornou-se um fenômeno global por conta dos Estados Unidos que iniciou a repressão aos entorpecentes internamente (a famosa Lei Seca) e, na sequência, sob o seu arrimo, foram realizadas diversas sessões e convenções promovidas pelas Nações Unidas sendo que a primeira delas foi a “Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 que buscava uma ação coordenada e universal entre os países signatários, ditando a política internacional de controle de drogas.41 Dez anos depois, é promulgado o Convênio Sobre Substâncias Psicotrópicas e, após dois anos, em 1971, o presidente estadunidense Nixon declara a guerra contra as drogas (war on drugs), modelo que se acentuou a partir do governo Reagan com o término da Guerra Fria (essa sucessão de guerras talvez demonstre uma necessidade de manter e gerir certos conflitos que sustentam as respectivas indústrias de controle).42 Por derradeiro, temos a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, conhecida como “Convenção de Viena”. Mantendo no seu núcleo essencial o binômio proibição/repressão, a Convenção buscou tratar o fenômeno das drogas como um problema mundial e uniforme a fim de obter um consenso entre os governos para haver uma harmonização legislativa. O modelo “war on drugs” foi também reconhecido e consagrado por ela como política de controle e difusão de drogas ilícitas.43 Ainda, cabe ressaltar que, após a Convenção de Viena, em 1998 foi realizada a Sessão Especial sobre Drogas, oportunidade em que foi apresentado o Programa das nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (PNUCID), intitulado de “1998-2008: Um Mundo Sem Drogas. Podemos Conseguir”. O quase cômico título do programa demonstra o quanto ele foi falho. Não por nada que, na época e com racionalidade, o New York Times classificou-o como uma mera “reciclagem de políticas irrealistas”.44 O objetivo de “um mundo sem drogas” não foi concretizado. Entretanto, a consagração da guerra às drogas, essa sim foi implementada. A expressão 40 PERDUCA, Marco. A política proibicionista e o agigantamento do sistema penal nas formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado. In: KARAM, Maria Lúcia (Org.). Globalização, Sistema Penal e Ameaça ao Estado Democrático de Direito. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 105-106. 41 REGHELIN, Elisangela Melo. Considerações político-criminais sobre o uso de drogas na nova legislação penal brasileira. In: CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 88. 42 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14. 43 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 12. 44 MARONNA, Cristiano. Proibicionismo ou morte? In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 56. 12 “guerra contra as drogas” é explicativa por si mesma e evoca um duplo efeito. Primeiramente, a principal característica de uma guerra é seu estado de exceção. Na guerra, qualquer medida excepcional é admitida, mesmo que ela seja excrescente, mesmo que contrarie princípios legais consagrados, mesmo que sacrifique direitos fundamentais do homem. Na guerra, qualquer medida pode ser tomada se necessária para combater o inimigo comum. A guerra é um estado de exceção.45 No segundo efeito, a expressão evoca um expansionismo do poder militar/industrial com emprego de tecnologia própria, espionagem e toda sorte de estratégias bélicas, nos termos de uma guerra clássica. O inimigo que deve ser agora combatido não é mais o comunista, o inimigo-público, o Grande Satã disseminador do mal. Agora, esses inimigos são, além de meras plantas e substâncias químicas que são as drogas, pessoas que produzem, transportam, vendem e consomem essas substâncias, pessoas que na maior parte das vezes nem mesmo portam armas, o que demonstra a assimetria desse “combate” que se realiza.46 Além disso, esta famigerada guerra esconde uma gama de objetivos latentes como o aumento do poder de ingerência e controle do Estado. Nesse sentido, em nome do combate às drogas, diversos direitos e garantias fundamentais são suprimidos, o que é deveras perigoso quando aplicado em prol de interesses políticos (associa-se grupos dissidentes com tráfico de drogas e permite repressão institucional contra eles). Da mesma forma, o proibicionismo atua como uma forma de sujeição dos países aos Estados Unidos através de sua política de certificação, ou seja, se o país não é um bom combatente às drogas, se ele não é um país certificado, além de não receber auxílios, será taxado como “conivente com o tráfico” e sofrerá diversas sanções econômicas por parte dos Estados Unidos.47 Além de tudo isso, a redução da complexa questão das drogas a uma simples guerra é uma eficiente forma de encobrir a incapacidade estatal de lidar com outros problemas. Sabe-se que a diminuição do uso problemático de drogas não depende tão somente de um sistema de saúde eficiente, mas também, principalmente, de um intensivo trabalho de assistência social, sem falar na questão da desigualdade social, diretamente relacionada com o uso problemático de drogas. Portanto, a guerra às drogas assume um importante papel para o Estado: encobrir sua impotência de lidar com a questão de forma eficiente e vender à sociedade uma imagem de que este mesmo Estado está operando constante e diligentemente em resolver seus problemas e propiciar melhor qualidade de vida à população.48 Por fim, não se pode negar o interesse econômico que se esconde atrás da política proibicionista. O tráfico de drogas movimenta altas somas de 45 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14. 46 MARONNA, Cristiano. Proibicionismo ou morte? In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 53-55. 47 MARONNA, Cristiano. Proibicionismo ou morte? In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 10. 48 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 10. 13 dinheiro por diversos países, passando por bancos privados no processo de “lavagem” a fim de retornarem à economia. Outrossim, a proibição torna as drogas escassas no mercado, atuando, portanto, como reguladora de preços e engordando ainda mais os lucros relacionados ao mercado da droga.49 Não por outros motivos que GIACOMOLLI considera as drogas um fenômeno transnacional, multifuncional e multidimensional de poder, pois coloca Estados Nacionais em estado de crise, golpeia a economia de países produtores e coloca em cheque os sistemas judiciais.50 3 O CRIME DE PORTE DE DROGAS ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO PARA CONSUMO NO Todo esse contexto repressivo que foi visto também se aplica ao Brasil, signatário das três convenções das Nações unidas que versam sobre o tema. Não obstante, o primeiro registro de uma preocupação legislativa no nosso país concernente ao uso de drogas é encontrado nas Ordenações Filipinas,51 entretanto, a primeira legislação que pode ser considerada de fato brasileira deu-se com o Código Penal republicano de 1890. Esse Código sofreu variações por conta de alguns decretos que modificaram o dispositivo até que, em 1940, foi promulgado o vigente Código Penal que regulou novamente a matéria trazendo em seu artigo 281 a seguinte redação: “Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar a consumo substância entorpecente. Pena: 1 a 5 anos de reclusão, e multa de 02 a 10.000 cruzeiros”. Na sequência, uma série de leis alteraram esse dispositivo, culminando na Lei 6.368/76, lei que perdurou por quase 30 anos no ordenamento, prevento tratamentos tão somente punitivos aos usuários e traficantes. 52 No ano de 2002 entrou em vigor a Lei 10.409 que, por conta do veto do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, somente entrou em vigor a parte procedimental, descartando-se a toda alteração material. Ou seja, a Lei de 2002 não passou de um mero acidente de percurso no histórico das legislações sobre drogas.53 A tão esperada alteração da parte material somente deu-se com o advento da atual Lei de Drogas, a Lei 11.343 de 2006 que mudou radicalmente a até então vigente Lei 6.368/76, trazendo como principal alteração a descarceirização do crime de porte para consumo. Assim sendo, ao usuário, em nenhuma hipótese serão aplicadas penas 49 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 186-192. 50 SICA, Leonardo. Funções Manifestas e Latentes da Política de War on Drugs. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 187. 51 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão: Comentários à Lei 5.726. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 33. 52 REGHELIN, Elisangela Melo. Considerações político-criminais sobre o uso de drogas na nova legislação penal brasileira. In: CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 88-89. 53 SIMANTOB, Fábio Tofic. Repressão às drogas: a que será que se destina? Consulex, Brasília, v. 14, n. 316, p. 29, mar. 2010. 14 privativas de liberdade, todavia, outras sanções penais a esse delito foram cominadas, de modo que foi mantida a lógica repressiva54 Essa mesma Lei também formalizou uma série de medidas para que se reconheça o usuário como sujeito de garantias, devendo ser tratado com respeito e dignidade. Ressalta-se o artigo 4º, inciso I (respeito à autonomia da vontade), artigo 19, inciso II e VI (realização de atividades de prevenção que evitem o preconceito, a estigmatização e que reconheçam o “não-uso”, o “retardamento do uso” e a redução de riscos) e artigo 20 (realização de atividades à usuários e dependes para melhoria da qualidade de vida, redução de riscos e danos).55 Especificamente em referência ao delito de porte para consumo, tem-se que o sujeito passivo é o próprio Estado. Isso porque, o bem jurídico que esse delito tutela é a saúde pública, pois o uso dessas substâncias coloca os sujeitos em risco de tornarem-se viciados e do vício das drogas tornar-se uma epidemia social.56 3.1 CRÍTICAS A CRIMINALIZAÇÃO Esta foi a evolução histórica das legislações de drogas no país e o panorama geral do tratamento previsto aos usuários atualmente. Cumpre salientar que a visão humanitária que esta Lei dispensou acabou por não passar de letra morta. Isso porque, uma vez mantida a conduta como crime, mesmo que não prevendo penas privativas de liberdade, as conseqüências da criminalização continuam se operando sobre os usuários. O processo de “junkyzação”, nas palavras de CARVALHO, continua ocorrendo, ou seja, continua sendo fomentado no imaginário popular a identificação do usuário de drogas com subculturas criminais, continuam essas pessoas sendo isoladas, rotuladas e silenciadas devido à clandestinidade de suas atividades. Com efeito, resta claro que o atendimento humanitário somente será viável após a retirada da questão do uso da esfera criminal.57 Ainda assim, ao tratarmos de uma conduta criminalizada, necessário é termos em mente o bem jurídico que ela se pretende tutelar, pois este é o elemento normogenético de qualquer tipo penal, é o ponto fundamental e estrutural da análise das condutas delitivas.58 Na Lei de Drogas, o bem jurídico que se pretende tutelar com a punição do usuário é, como já visto anteriormente, a saúde pública. Todavia, este é um bem de difícil definição tendo em vista sua formulação genérica e vaga que acaba estendendo a tutela do direito penal a âmbitos indefinidos e incertos. Não obstante, a conduta de usar drogas ofende somente a saúde individual daquele que lança mão dessas 54 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 68. 55 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 161. 56 FILHO, Aluízio Bezerra. Lei Antidrogas Aplicada e Comentada. 3. ed. rev. atual. Curitiba: Juruá, 2010, pp. 15-16. 57 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: Estudo Criminológico e Dogmático. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. pp. 156-157. 58 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 53. 15 substâncias. Os efeitos lesivos que a droga pode causar ao organismo circunscrevem-se somente a integridade física do usuário, sendo falacioso falar que ofendem a saúde pública59 Sustentar a proteção desse bem jurídico criminalizando as drogas é presumir abstratamente que todo aquele que entrar em contato com essas substâncias tornar-se-á um doente, trata-se de uma presunção de lesão, ou seja, de um crime de perigo abstrato, uma criminalização que não se sustenta diante de um direito penal mínimo.60 . 3.1.1 O Direito Penal Moral e Sua Função de “Normalização Social” Uma vez que o delito de uso de drogas não pode ser considerado ofensivo a coletividade, pois o dano é ao próprio usuário e nem mesmo podese presumir um perigo dessa conduta por conta do que foi apresentado, tem-se que aquilo que a Lei de Drogas pune, hoje, não pode ser outra coisa senão a própria lesão que o usuário causa a sim mesmo (quando causa). Há tempos a autolesão não é punida no direito penal, de modo que a criminalização do uso de drogas viola o princípio constitucional da lesividade, positivado no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.61 O princípio da lesividade é aquele que transporta para o direito penal a questão geral da exterioridade e da alteridade do direito. Desta forma, toda conduta que não apresente o condão de lesar outrem não pode ser punida, pois ela é tão somente uma atitude interna, puramente individual. Assim, não está o Estado legitimado e nem mesmo o direito é o instrumento adequado para interferir e educar os cidadãos, mesmo que suas atitudes sejam pecaminosas, imorais, escandalosas ou simplesmente diferentes.62 Levando em conta essas considerações, verificamos que a proibição do consumo de drogas funda-se em um substrato moralista como bem salienta COSTA ao referir-se que a reprovação ao uso de drogas existe por razões meramente morais e não jurídicas.63 No mesmo sentido se manifesta PAIXÃO ao criticar a criminalização de práticas sexuais desviantes, jogos, prostituição, aborto e drogas, práticas que se referem a preferências e decisões de indivíduos quanto ao uso de seus corpos e seus bens que, embora possam ser consideradas imorais, não podem ser consideradas ilegítimas. Dessa maneira, delitos oriundos desses vícios privados não passariam de uma construção irônica, fútil e déspota da regulação pública sobre matéria privada, uma 59 CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. Uso de drogas, eficiência e bem jurídico. In: CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 17-18. 60 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 433. 61 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 82. 62 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 91. 63 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 117. 16 intromissão indevida do Estado na vida dos indivíduos, reflexo do antigo fundamentalismo no direito penal moderno.64 Esse referido fundamentalismo que interfere no direito penal moderno remonta à época em que Estado, moral e religião confundiam-se entre si. No direito penal isso se refletia na criminalização de pensamentos, convicções e opções pessoais, uma verdadeira amálgama entre delito e pecado que culminou no maior massacre da humanidade, a inquisição. Foi a partir do século XV que, levada a cabo por filósofos e pelas experiências que resultaram na descoberta do Novo Mundo, se produziu a ruptura entre a moral do clero e o modo de produção das ciências. Nas ciências jurídicas isso foi demarcado pela transição do jusnaturalismo teológico para o antropológico.65 Esse processo ficou conhecido como secularização e tornou-se um princípio para o direito penal moderno oriundo do iluminismo, fundando uma nova racionalidade jurídica. Antes se punia o autor pelo o que ele era, pelo seu grau de periculosidade/perversidade, agora, pune-se a conduta do infrator que resultou em dano, exterior e perceptível, a terceiro. Isso reduziu a esfera do direito penal, pois imunizou o “ser”, sendo inviolável sua liberdade de consciência, de pensamento, seu foro íntimo. Dessa forma, a secularização tornou-se a principal característica dos regimes republicanos e é, hoje, um marco da democracia, servindo de legitimador/deslegitimador de toda atividade do poder estatal. Diversos princípios de nossa constituição têm origem nesse princípio mãe como o da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vida privada, liberdade de manifestação de pensamento, liberdade de crença religiosa, liberdade de convicção filosófica ou política e garantia da livre manifestação do pensar (artigo 5º, incisos X, IV, VI, VIII e IX, respectivamente).66 Com efeito, ao criminalizar o uso de drogas, conduta autolesiva, o Estado está interferindo diretamente na esfera interior do indivíduo que, por conta do princípio da secularização, é inviolável. Portanto, estamos diante de uma flagrante violação da vida privada e da intimidade da pessoa, pois dispor sobre o próprio corpo é um direito inarredável do indivíduo. Do mesmo modo, o ser humano tem o direito de consumir a droga que quiser assim como tem o direito de comer a comida que quiser. Se a droga vai afetar sua saúde, o problema é dele, se a comida vai fazê-lo engordar, também é problema dele. Novamente, não pode o Estado punir criminalmente atos autolesivos, não pode o Estado querer regular a vida das pessoas através do direito penal por aquilo que elas são, por suas personalidades, por suas estranhezas, extravagâncias, ou por quaisquer que sejam suas diferenças. O Estado precisa conviver com a alteridade, deve abster-se de querer “normalizar” os cidadãos com suas concepções filosóficas, religiosas e morais, ou seja, o Estado, para ser reconhecido como democrático de direito, deve ser um Estado laico, 64 PAIXÃO, Antônio Luiz. Problemas Sociais, políticas públicas: o caso do tóxico. In: ZALUAR, Alba (Org.). Drogas e Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 132-134. 65 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 5-7. 66 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 7-17. 17 secularizado, respeitando as diferenças e a personalidade de cada um dos indivíduos membros de sua comunidade.67 Portanto, em síntese, a simples posse para uso pessoal das drogas qualificadas com ilícitas e também o próprio consumo delas não afeta bem jurídico alheio e não causam perigo concreto, direto e imediato a terceiros. Consequentemente, o uso e o porte para tal diz respeito unicamente ao indivíduo, à sua intimidade e à suas opções pessoais, pois, se suas condutas não afetam de forma concreta o direito de outrem, pode o indivíduo ser e fazer o que quiser. Desta forma, desautorizado está o Estado a intervir criminalmente nessas condutas.68 3.2 A (IN)EFICÁCIA DO DIREITO PENAL DAS DROGAS De tudo visto, resta ainda uma importante indagação sobre a criminalização do uso de drogas. Ainda que se acredite que a saúde pública possa ser defendida juridicamente pela proibição do uso de drogas, mesmo que para isso seja necessária a mais severa ingerência na vida privada dos cidadãos, essa criminalização é idônea, eficaz à obtenção dos objetivos por ela almejados, ou seja, é eficaz para tutelar a saúde pública e para melhorar a qualidade de vida do usuário? De pronto, tendo em vista as repercussões sociais que a criminalização gera, acreditamos que a resposta seja inexoravelmente não. Vejamos.69 O critério (princípio) da idoneidade de uma norma penal é um importante mecanismo para auferir sua legitimidade como norma impositora de penas a determinadas condutas, sendo condição sine qua non para sua vigência conforme um direito penal voltado à máxima proteção de bens com o mínimo necessário de proibições e castigos. Assim sendo, em nome da utilidade e da separação do direito da moral, o princípio da idoneidade obriga a considerar injustificada toda a proibição que previsivelmente não seja eficaz para desempenhar o papel para o qual se propôs, qual seja, proteger determinado bem jurídico.70 Nesse norte, COSTA estabelece três critérios para que a pena tenha aptidão a proteger bens jurídicos. O primeiro leva em conta que o direito penal não é o único mecanismo de controle social existente, embora seja o que disponha dos mecanismos mais graves para tanto. Assim sendo, as agências de controle social devem se organizar de forma proporcional, deixando ao direito penal a proteção somente dos valores mais importantes e que todas elas atuem de forma harmoniosa entre si. O segundo critério diz respeito ao sentido de justiça que a sociedade deve vislumbrar na norma. E, por fim, o 67 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 79-82. 68 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/06. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 71. mar-abri 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 138-139. 69 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre a inidoniedade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 102. 70 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pp. 433-434. 18 terceiro critério estabelece que a norma penal deve respeitar o princípio da responsabilidade pessoal subjetiva para poder alcançar sua finalidade de reafirmação de bens jurídicos.71 Estabelecidos os critérios para verificação da idoneidade de uma norma penal, resta agora cruzar com a criminalização do uso de drogas para verificar se ela é apta a atingir seus objetivos. Diante disso, o primeiro ponto a se considerar é que a política proibicionista faz imperar no seio social não só uma proibição das drogas, mas também uma proibição da livre circulação de ideias ao impor um discurso único e inquestionável que demoniza essas substâncias e seus usuários. Deste modo, o proibicionismo deseduca, desinforma e oculta fatos, impede que as pessoas tenham acesso ao conhecimento sobre a droga e seus efeitos, limitando-se apenas a moldar opiniões conformistas e imobilizadoras.72 Esse discurso proibicionista se manifesta nas campanhas educativas e governamentais onde se veicula mensagens extremamente reducionistas como “não às drogas”, “drogas – estou fora” passando sempre a imagem do usuário como uma pessoa degradada, negativa, contribuindo com sua estigmatização. Isso resulta num afastamento familiar dada a dificuldade de diálogo frente a essa tenebrosa imagem criada do usuário. Não somente da família ele se afasta, mas de toda sociedade, pois encontra apoio somente entre outros usuários, o que tende a aumentar cada vez mais o seu consumo de drogas. Além disso, caso se trate de um dependente, ele estará também cada vez mais distante do tratamento e dos órgãos de assistência. A lógica da criminalização impede o usuário de buscar ajuda médica, pois isso equivaleria à confissão do seu crime. Além do mais, a função controladora que a lei penal atribui aos setores sanitários e médicos encarregados desses casos influi negativamente na relação entre profissional e paciente, que deve ser pautada pela confiança e diálogo, inviabilizando, muitas vezes, o sucesso do tratamento.73 Ainda assim, a criminalização, sob a pretensão de defender a abstrata saúde pública, acaba sacrificando a saúde individual e concreta dos usuários. A ilegalidade das drogas faz com que as pessoas procurem substâncias cujos efeitos sejam produzidos de forma mais rápida no organismo. A intenção é ficar o menor tempo possível em posse da droga para evitar a possibilidade de um flagrante. Ocorre que a maioria dessas substâncias possui consequências mais severas ao organismo, principalmente porque grande parte delas é de uso intravenoso o que favorece o contágio pelo vírus HIV, entre outros. Esse risco à saúde se agrava ainda mais quando o consumo é realizado em locais não 71 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 107-109. 72 KARAM, Maria Lúcia. Drogas e Redução de Danos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 64. jan-fev 2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 130. 73 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 111-113. 19 apropriados, não higiênicos, o que ocorre por conta da clandestinidade dessas práticas.74 Além do mais, como se já não bastasse os riscos inerentes à própria droga que é consumida, o proibicionismo gera uma concreta possibilidade de que essa substância ingerida esteja alterada e repleta de impurezas de todo o gênero. Isso porque, a produção e distribuição da droga ocorrem sempre na ilegalidade, de modo que inexiste controle de qualidade realizado por órgão de proteção ao consumidor sobre essa substância.75 A conclusão de que a utilização do direito penal com relação ao uso de entorpecentes não é eficaz para a tutela de bens jurídicos é fácil de ser percebida, pois, pelo contrário do que se promete, a criminalização acaba violando a saúde concreta do próprio usuário. Isso porque, a lógica proibicionista causa perplexidade entre as agências de controle social e retira a efetividade de todas as demais instâncias, dificultando, quando não impedindo, que o usuário encontre ajuda médica e/ou psicológica para seu problema. Com isso, temos que a criminalização das drogas não se coaduna com o primeiro dos três critérios anteriormente elencados, de modo que ela não se mostra eficaz na tutela de bens jurídicos.76 O segundo critério, o que se refere à aceitação da norma como justa pela sociedade, também não se perfaz. FERRAJOLI afirma que são inócuas as proibições incapazes de surtir um míninimo efeito intimidatório na sociedade como os crimes de aborto, adultério, concubinato, mendicância, fuga de presos e uso de drogas.77 Por outro lado, o uso de drogas, dada sua natureza (inconstitucional) de crime de perigo abstrato, é um dos delitos que apresenta a mais alta taxa de cifra negra, sendo somente uma parca parcela dos usuários que são flagrados pelo direito penal. Deste modo, a aplicação aleatória da norma faz com que a sensação de segurança da sociedade não seja ameaçada com a ocorrência do delito, fazendo com que a sociedade acredite que aquelas condutas sejam irrelevantes para o direito penal, logo, qualquer condenação passa a ser vista como injusta.78 Da mesma forma, o terceiro critério, aquele que exige que a norma penal volte-se para os fatos e não para o autor, também é lesado. A criminalização de um vício privado, de uma conduta meramente autolesiva, é uma interferência penal que se direciona tão somente a preferências e decisões subjetivas de determinados indivíduos, ou seja, uma interferência penal 74 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 86. 75 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre a inidoniedade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 100-101. 76 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 113. 77 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 433. 78 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre a inidoniedade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 96-97. 20 ideológica e moralista.79 Nestes termos, a criminalização das drogas não se trata de uma reprovação pela conduta dos cidadãos, mas sim sobre o seu modo de vida. Portanto, o terceiro critério de verificação da aptidão da norma também não foi certificado. Ou seja, a criminalização das drogas não tem a capacidade de reforçar os valores que se comprometeu a proteger, pelo contrário, é sentida pela sociedade como injusta desproporcional, servindo mais a desconfirmar valores do que defendê-los.80 Não somente desconfirmar, a própria criminalização das drogas retro alimenta a geração de crimes numa paradoxal norma penal com efeitos criminógenos. Isso quer dizer que, ao proibir a droga gera-se um problema de mercado, pois quanto maior a repressão, mais se torna escasso o produto e mais o seu preço se eleva.81 Deste modo, mesmo com a inflação dos preços, os usuários não deixarão de adquirirem a droga, o que levará muitos a valerem-se de métodos ilícitos para angariarem fundos e poderem adquirir a substância. Assim, produtos de valor insignificante tornam-se bens valiosos pela proibição, o tráfico torna-se um negócio extremamente lucrativo, de modo que a própria criminalização das drogas é que dá suporte à viabilidade do crime.82 De qualquer sorte, toda essa discussão de idoneidade da norma penal que criminaliza o uso de drogas torna-se perfumaria quando ela é confrontada constitucionalmente. É cediço que a Constituição Federal é o plexo de normas de mais alta hierarquia dentro de nosso sistema e que nenhuma outra pode antagonizar-se a ela, dada a sua supremacia. Entretanto, a criminalização das drogas encerra conflito com uma série de princípios constitucionais como foi exposto no decorrer do estudo. Esses princípios podem ser, em linhas gerais, sintetizados na violação do princípio da legalidade ao utilizar-se de normas penais em branco para auferir qual substância será proibida. Princípio da taxatividade por realizar tipificações genéricas com excessivo emprego de verbos que muitas vezes causa confusão até mesmo na identificação de qual delito o autor cometeu, se tráfico ou porte para uso. Princípio da humanidade, tendo em vista a irracionalidade e a desproporcionalidade entre as penas cominadas ao usuário e ao traficante. Princípio da ofensividade, por incriminar condutas de perigo abstrato, presumido, que não causam lesão concreta a bens jurídicos de terceiros. E, por fim, a criminalização do uso de drogas viola a presunção de inocência ao considerar que todo usuário, tornar-se-á, ou um 79 PAIXÃO, Antônio Luiz. Problemas Sociais, políticas públicas: o caso do tóxico. In: ZALUAR, Alba (Org.). Drogas e Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 132-134. 80 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 117. 81 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/06. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 71. mar-abri 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 189. 82 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre a inidoniedade constitucional da criminalização do porte e do comércio de drogas. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 98-100. 21 doente, ou um delinquente. Portanto, não é outra a conclusão senão a inconstitucionalidade do delito de uso de drogas.83 Diante de todo esse contexto, a única coisa que parece explicar a torpeza que é a criminalização das drogas é a necessidade de aplacar o suposto “clamor social” através de políticas criminais populistas, um verdadeiro fenômeno de expansão do direito penal. Deste modo, legisla-se criando penas cada vez mais altas a fim de reduzir a criminalidade, para reforçar o consenso moral que existe na sociedade e, sem dúvida, para ganhar maior reconhecimento eleitoral das massas. Ou seja, o que justifica a criminalização das drogas é uma política criminal meramente “publicitária” que se vale de legislações de emergência para “acalmar” a população, ou “conter” determinado tipo de criminalidade, mesmo que para isso suprima direitos e garantias fundamentais dos cidadãos preconizados na Carta Constitucional.84 Sem dúvida, isso pode explicar, mas nunca justificar a criminalização. O proibicionismo não é e nem nunca foi capaz de, como num passe de mágica, acabar com o problema das drogas,85 pelo contrário, vários estudos comprovaram que a repressão não foi capaz de evitar o alastramento dessas substâncias.86 Assim sendo, frente todos esses danos que o proibicionismo causa aos direitos fundamentais e à própria preservação do modelo do Estado democrático de direito, os quais certamente são muito mais nefastos que os efeitos das drogas propriamente ditos, a conclusão única que se sobressai é a retirada da ordem jurídica interna (e internacional também) das legislações repressiva em matéria de drogas.87 4 A POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS COMO ALTERNATIVA AO PROIBICIONISMO Como foi explanado anteriormente, o uso de drogas é uma consequência natural da sociedade em que vivemos e que sua criminalização é uma afronta à Constituição Federal e aos princípios basilares do direito penal garantista. Além disso, trata-se de uma modelo ineficaz para atingir seus objetivos (utópicos) de erradicação dos entorpecentes. Por outro lado, o mero não agir estatal em relação às práticas tóxicas seria deveras prejudicial à sociedade de modo que não se propõe que o Estado mantenha-se totalmente alheio à questão porque, sem dúvidas, este tem deveres para com os cidadãos 83 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 174-175. 84 CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. Uso de drogas, eficiência e bem jurídico. In: CALLEGARI, André Luís; WEDY, Miguel Tedesco. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 14. 85 GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/06. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 71. mar-abri 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 201. 86 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 37. 87 KARAM, Maria Lúcia. Drogas e Redução de Danos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 64. jan-fev 2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 140. 22 e desses não se pode esquivar.88 Isso porque, não se tem dúvida que o consumo dessas substâncias pode ser feito de diversas formas, variando entre o pólo positivo, uso cultural, e o negativo, a toxicomania. Portanto, ao propor a descriminalização, se espera não que o Estado abdique sua atuação. Nestes termos, faz-se necessário uma reformulação de seus modos de operar a fim de oferecer a devida assistência que os usuários de drogas necessitam, principalmente aqueles em que o uso se configura como problemático, respeitando seus direitos e garantias fundamentais, contribuindo assim para a formação de uma sociedade mais justa, livre e humana.89 4.1 A POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS Assim como a história das drogas se confunde com a história do homem, a história da redução de danos se confunde com a história das drogas. Isso porque, sempre existiu entre os usuários dessas substâncias a preocupação de como utilizá-las de modo a evitar ao máximo os prejuízos por elas causados90. Sem embargo, somente no final do século XX é que essa preocupação tornou-se objeto de políticas públicas que passaram a ser implementadas nos primeiros países. Não obstante, já na década de 20, mais precisamente no ano de 1926, tem-se na Inglaterra o primeiro registro de tentativa de aplicação de uma política reducionista. Um grupo de médicos britânicos (Rolleeston Commitee), após adquirir experiência no tratamento de dependentes químicos, recomendou ao governo que, em alguns casos, os pacientes somente eram capazes de levar uma vida produtiva se continuassem a usar drogas. Seguindo essa orientação, o Ministro da Saúde britânico, sir Humphrey Rolleston, defendeu o uso da heroína no tratamento para dependentes daquela substância, o que veio a ser conhecido como Projeto Rolleston. Posteriormente, o projeto foi desaprovado, vindo a ser retomado somente na década de 80 quando diversos países colocaram em prática variados programas de redução de danos.91 Essa propulsão experimentada nessa década originou-se principalmente devido à proliferação espantosa de uma doença até então desconhecida, extremamente letal e sem cura, a AIDS92. Os usuários de drogas injetáveis tornaram-se grupo de risco devido ao compartilhamento de seringas, sendo esse o alvo principal das primeiras medidas de redução de danos. 88 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico – uma abordagem da criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In: REALE JR, Miguel (Coord.). Drogas: Aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 117. 89 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 26. 90 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestredo em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010, p. 169. 91 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 114-115. 92 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 115. 23 Como dito, foi na Inglaterra que ocorreu o primeiro registro de uma política de redução de danos. Embora o projeto do Ministro sir Humphrey Rolleston não tenha sido levado adiante na década de 20, aproximadamente 60 anos após, a ideia foi retomada com o que ficou conhecido como “modelo de redução de danos de Mersey”, implementado no ano de 1985 em Liverpool. O modelo de Mersey tornou-se referência mundial a tal ponto que, anos mais tarde, Liverpool foi a cidade escolhida para ser a sede da primeira Conferência Nacional sobre o tema. A partir desse programa, foi aberta a primeira clínica pública para tratamento de drogodependentes (Drug Dependency Clinic) entre outras diversas medidas que foram sendo desenvolvidas.93 Outro país que merece nossa atenção é a Holanda e sua tão famosa Lei do Ópio (opium act) de 1976. Essa lei criou uma polêmica mundial ao permitir a posse de até 5 gramas de maconha e do cultivo de até 10 pés da planta para o uso pessoal. Na verdade, a Lei diferenciou o tratamento dado a drogas consideradas de riscos aceitáveis à saúde buscando, ao invés de erradicá-las, inserir socialmente seus usuários. Em 1980, foi criada a Junkiboden, uma liga de usuários de drogas que vem junto com o Estado trabalhando na criação de novas políticas. Foi desse trabalho em conjunto que partiu o primeiro programa de troca de seringas holandês, em 1984. Entretanto, certos países que adotam o proibicionismo (EUA e Suécia, principalmente) costumam criticar o modelo desenvolvido nos Países Baixos. Dentro da própria população holandesa há pessoas que criticam o modelo, principalmente devido ao “turismo da droga” que tem se desenvolvido no país.94 Não obstante esse desenvolvimento particular ocorrido em cada país, o considerado marco referencial do início do movimento de redução de danos foi a I Conferência Internacional realizada em Liverpool em 1990. Dois anos após, na III Conferência Mundial o movimento obteve reconhecimento científico, passando então a atrair a atenção de profissionais das áreas da saúde, jurídica, sociólogos, filósofos, cientistas políticos, dentre outros, tornando-se objeto de estudos em diversos países e ganhando a forma que passamos então a analisar.95 A questão nuclear, o ponto central da redução de danos é a preocupação com o uso propriamente dito. Ou seja, o modelo reducionista projeta-se para além da questão se o sujeito deveria usar ou não a droga, se isso é bom ou ruim, moral ou imoral, legal ou ilegal e parte do pressuposto de que se ele está consumindo-as é porque elas fazem parte de sua realidade. Partindo desse princípio, as ações reducionistas objetivam trazer melhores condições de vida a esses usuários, minimizando os riscos que o uso de drogas pode causar a sua saúde e sua vida social.96 Assim, aceitando o alvedrio do cidadão para usar ou não a droga, o modelo reconhece-o como sujeito detentor de direitos fundamentais que devem ser respeitados. Trata-se, 93 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 80-83. 94 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 84-87. 95 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 79 96 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 26. Uso Indevido Uso Indevido Uso Indevido Uso Indevido 24 portanto, de uma forma humanista e ética de encarar questão. Dentro dessa perspectiva, a redução de danos projeta-se para além de realizações destinadas somente aos usuários, buscando também alterações de ordem legislativa e cultural a fim de mudar a percepção existente na esfera médica, educacional, midiática, enfim, trabalhando para transformar o senso comum que impera hoje na sociedade referentes às drogas e seus usuários97. Essa constante busca pela humanização do sujeito que se droga é fundamentalmente desenvolvida ouvindo essas pessoas para que o diálogo possa provocar reflexões e críticas sobre suas próprias atitudes. Isso culmina em um tratamento, terapia ou auxílio desenvolvido em coautoria entre o redutor de danos e o próprio usuário. Deste modo, as propostas de auxílio moldam-se a cada caso e vão sendo construídas na medida do próprio desenvolvimento e amadurecimento da pessoa que está sendo auxiliada. Consequentemente, há uma tendência delas serem sempre realizáveis, o que aumenta suas chances de sucesso. De forma contrária, o modelo tradicional de tratamento (proibicionista) privilegia metas utópicas e inatingíveis como a própria abstinência, por conseguinte, tendendo ao fracasso.98 Além do mais, essa conjugação de possibilidade de fala do sujeito com a possibilidade dele participar ativamente na formação do seu próprio tratamento assume um papel de suma importância, pois serve de vínculo entre o esse cidadão e a sociedade de que ele está afastado, regatando assim sua autoestima e sua cidadania.99 Em fim, valemo-nos das características da redução de danos propostas por Riley e O’Hare que, com muita propriedade, esboçou de forma concisa as principais diretrizes do modelo: a) Pragmatismo: o uso de determinadas substâncias para alteração da consciência é inevitável e certo nível de consumo de drogas é normal em uma sociedade, motivo pelo qual muitas vezes é mais factível conter os danos do que tentar eliminar as drogas; b) Valores Humanitários: respeito à dignidade e aos direitos dos consumidores de drogas; c) Avaliação dos danos: imprescindível analisar-se o caso para ver se é mais importante a redução do consumo ou a modificação da maneira como é usada a droga; d) Balanços de custos e benefícios: deve-se analisar uma série de variáveis a fim de medir o impacto do projeto de redução de danos, a curto e longo prazos, inclusive para calcular seus custos em comparação a outras medidas; e) Hierarquia de objetivos: o intuito é de analisar prioridades e começar o trabalho exatamente por elas.100 97 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.76. 98 ERWIG, Luísa Regina Pericolo. Exclusão e Vulnerabilidade Social nos Contextos dos Usuários de Drogas: Produção de Sentidos Sobre o Programa de Redução de Danos. 2003. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) - Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. pp. 7071. 99 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p, 117 100 RILEY, Diana; O’HARE, Pat, 1999. apud WEIGERT, 2010, pp.116-117. 25 Todavia, se faz necessário apontar que a redução de danos não é um objetivo simples para se concretizar. Inúmeras dificuldades surgem na aplicação dessas diretrizes, sendo que as principais delas são fundamentalmente o proibicionismo em si mesmo e o desconhecimento da população sobre o tema. O proibicionismo, pois o medo da polícia, o medo de se mostrar perante a sociedade como usuário de drogas (estigmatizar-se), faz com que o sujeito não se envolva com os projetos. Por outro lado, a falta de conhecimento da população também é um grande obstáculo, pois a sociedade em geral crê que tais medidas servirão de estímulo ao uso de drogas e afastarão os usuários dos tratamentos convencionais (que buscam a abstinência).101 Existem também as dificuldades intrínsecas à própria proposta como aquelas decorrentes da criação de uma política que vise o diálogo, dando oportunidade de fala ao assistido. Ao colocar em prática essas medidas, os profissionais redutores de danos se defrontam com o grande desafio de estar trabalhando em conjunto com o assistido na criação de sua identidade, o que se torna extremamente sensível tendo em vista as múltiplas diferenças culturais e sociais que esses sujeitos deparam-se ao longo de sua trajetória. Isso faz com que possam ocorrer conflitos entre os redutores e os assistidos, tornando ainda mais difícil a realização do trabalho.102 Entretanto, para além dessas dificuldades, crê-se que a redução de danos ainda é a forma mais condizente de assistência aos usuários de drogas, pois suas ações são norteadas pelos direitos e garantias fundamentais do cidadão, resguardando e recuperando a dignidade daqueles que por livre vontade desejam utilizar substâncias psicoativas em suas vidas. Diante de tudo isso, pode-se vislumbrar que o proibicionismo e a redução de danos, em suas essências, são políticas fundadas em bases opostas. De fato, pois a primeira nunca vai aceitar alternativa diversa da abstinência enquanto a segunda se valerá, em muitos casos, da própria droga para dar melhores condições de vida ao cidadão, sendo a abstinência uma entre diversas alternativas que se apresentam ao homem para uma vida melhor. Além do mais, os efeitos da estigmatização decorrentes da criminalização fazem com que os usuários se afastem da sociedade, agrupando-se em subculturas, portanto, afastando-se dos programas de ajuda, inviabilizando assim toda a proposta reducionista. Ou seja, o proibicionismo, ao tutelar o bem jurídico saúde pública, acaba também sacrificando a saúde concreta dos usuários envolvidos com drogas.103 Muito embora os dois modelos tenham incompatibilidades em sua essência, e que uma verdadeira e efetiva política de redução de danos somente poderá ser realizada após a descriminalização104, isso não significa 101 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp 127-128. 102 ERWIG, Luísa Regina Pericolo. Exclusão e Vulnerabilidade Social nos Contextos dos Usuários de Drogas: Produção de Sentidos Sobre o Programa de Redução de Danos. 2003. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) - Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. pp. 8688. 103 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: Estudo Criminológico e Dogmático. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 158. 104 KARAM, Maria Lúcia. Drogas e Redução de Danos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. nº 64. jan-fev 2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 144. 26 que no Brasil, hoje, mesmo com a ratificação do proibicionismo realizada pela Lei 11.343/06, não haja ações dessa política acontecendo. Vamos então conhecer em linhas gerais a aplicação da redução de danos no nosso país. 4.2 REDUÇÃO DE DANOS NO BRASIL Embora o Brasil venha paulatinamente mitigando o proibicionismo, a repressão ainda é a forma de atuação em nosso país. Por esse motivo o programa de redução de danos vem se desenvolvendo com grandes dificuldades e tem ainda uma atuação reduzida, voltada predominantemente à prevenção da AIDS entre usuários de drogas.105 Na década de 70 muitas drogas injetáveis passaram a entrar no país através do Porto de Santos, consequentemente, aquela cidade tornou-se a “Capital da AIDS” no país. Diante desse quadro, foi realizada a primeira tentativa de redução de danos em nosso país através de medidas de trocas de seringas. Todavia, a ação foi considerada um incentivo às drogas e foi vetada por uma decisão judicial.106 Posteriormente, na década de 90, impulsionados principalmente por universidades intermediadas pelos Centros de Referência Nacionais para Drogas e AIDS em conjunto com alguns projetos governamentais e nãogovernamentais, práticas reducionistas foram novamente retomadas. No ano de 1994, a Coordenação Nacional de DST e AIDS criou um setor chamado “Projeto Brasil” com o objetivo de elaborar estratégias para prevenir o uso indevido de drogas e a transmissão sexual e sanguínea de doenças contagiosas.107 Nesse meio tempo, em 1995 na cidade de Salvador, é realizado o primeiro programa de troca de seringas do país, desenvolvido pelo renomado Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (ligado à Universidade Federal da Bahia), programa que, devido o reconhecimento da instituição, não enfrentou problemas com a rejeição social.108 Todo esse empenho para implementar ações de redução de danos no Brasil contribuiu para que fossemos reconhecidos como o principal país a incorporar políticas reducionistas na América Latina. Isso fez com que no ano de 1998, em São Paulo, fosse realizada a IX Conferência Internacional de Redução de Danos. Nesse mesmo ano também foram criadas diversas associações e redes a fim de ampliar o movimento, destacando-se entre elas a ABORDA (Associação Brasileira de Redutores de Danos), a RELARD (Rede Latino-americana de Redução de Danos) e a REDUC (Rede Brasileira de Redução de Danos).109 No âmbito federal, o principal projeto da rede pública são os Centros de Atenção Psicossocial a Álcool e Drogas (CAPS AD). Esses 105 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 126. 106 POTTER, Raccius Twbow. Crack, É Melhor Pensar – um estudo sobre o proibicionismo e as alternativas oferecidas pela política de redução de danos em Porto Alegre. 2010. 246 f. Dissertação (Mestredo em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010, 107 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 94. 108 REGHELIN, Elisangela Melo. Redução de Danos: Prevenção ou Estímulo ao Uso Indevido de Drogas Injetáveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 97. 109 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128. 27 centros atuam dentro dos princípios do Sistema Único de Saúde e não recebem apoio da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD). Este é um projeto gratuito, embora não exista em muitas cidades do país e seus profissionais careçam de maior qualificação técnica.110 Neste panorama, temos hoje no Brasil uma política de redução de danos de aplicação extremamente tímida devido ao baixo investimento público na área da saúde e também a política proibicionista que faz com que os poucos programas que são situações isoladas e pontuais levadas em grande parte pela iniciativa de ONGs e trabalhadores voluntários, não atinjam muitas pessoas que necessitem de tal auxílio.111 Essa pobreza nas iniciativas de redução de danos no Brasil está relacionada com a opção por um outro modelo de origem americana, conhecido como justiça terapêutica. Conforme aponta ALVES através de seus estudos realizados nos Juizados Especiais da cidade de Porto Alegre sobre a resposta dada pelo judiciário ao delito de porte de drogas para consumo112, cada juizado possui seu modelo próprio de resposta, não obstante, esse modelo sofre variações de juizado para juizado, o que, por sua vez, demonstra o imbróglio existente quanto à aplicação da Lei de Drogas. Contudo, entre essas respostas existe uma certa predominância, qual seja, o encaminhamento para a Justiça Terapêutica. Este encaminhamento pode ser feito em sede de transação penal, “pré-transação penal” (uma medida extralegal que consiste no encaminhamento, se da vontade do autor do fato for, a um órgão vinculado a Justiça Terapêutica e após comprovar a frequência nesse órgão, o feito é extinto. Do contrário é retomado desde sua fase inicial, possibilitando o oferecimento da transação penal propriamente dita), requisito da suspensão condicional do processo e também como aplicação de pena.113 A referida Justiça Terapêutica é um projeto que tem por ponto central a substituição do processo penal por uma pena alternativa que consiste em um tratamento monitorado àqueles usuários que cometem crimes relacionados às drogas. Desta forma, parte-se do pressuposto de que o usuário de drogas não necessita de punição, mas de medidas que lhe possibilitem sua recuperação biopsicossocial devido à degradação que a droga lhe causa. Para concretizar esse objetivo, é realizado um “convênio” entre a justiça e profissionais da saúde, onde este realiza a intervenção terapêutica e o outro desempenha a função de coagir o sujeito a participar da terapia, pois o descumprimento das medidas impostas acarretará a retomada do processo penal tradicional. Ou seja, trata-se de uma medida terapêutica imposta pelo judiciário e levada a 110 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 128-129 111 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 128-129 112 ALVES, Marcelo Mayora. Entre a Cultura do Controle e o Controle da Cultural: Um Estudo Sobre as Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 177-178. 113 ALVES, Marcelo Mayora. Entre a Cultura do Controle e o Controle da Cultural: Um Estudo Sobre as Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 187. 28 cabo por profissionais da saúde a fim de recuperar os usuários de sua doença, a toxicomania.114 Com efeito, é notória a distinção entre redução de danos e justiça terapêutica, sendo políticas ontologicamente opostas. Primeiramente, precisamos considerar que a Justiça Terapêutica é estritamente vinculada à lógica repressiva, apenas cambiando a pena por um tratamento, uma medida, ambas compulsórias, ambas retirando a possibilidade de fala, impedindo reinserção do usuário e negando-lhe sua qualidade de sujeito. A submissão a essas medidas torna-o mero objeto de intervenção pelo laboratório criminológico-sanitário, não sendo outra coisa senão um atavismo ao, há muito superado, positivismo criminológico.115 Além disso, esse “tratamento” que vem sendo dispensado aos usuários de drogas carece de um sistema organizacional lógico, pois todos os selecionados pelos órgãos policiais acabam sendo conduzidos exatamente às mesmas sessões e participando exatamente do mesmo modelo de terapia. Como se sabe, o uso de drogas compreende uma gama muito grande de possibilidades, desde os toxicômanos àqueles que não representam risco algum (e não necessitam tratamento algum). Deste modo, estes últimos acabam tendo que se submeterem obrigatoriamente a tais grupos, ao cabo de que outros que realmente careceriam de auxílio não participam pelo simples motivo de que o sistema penal, por sua característica seletiva, acaba pinçando somente algumas pessoas enquanto muitas outras não. Portanto, um tratamento massificado para todos os casos selecionados pelo sistema penal não representa outra coisa senão uma mera improvisação de que se trata alguma coisa, uma fantasia de que essa pobreza terapêutica que se realiza será capaz de surtir algum efeito.116 Destarte, resta claro que a justiça terapêutica não é outra coisa senão o velho proibicionismo travestido de uma nova política, agora com contornos humanitários e moralizadores (prometendo a salvação ao usuário de drogas). Sem dúvida, a justiça terapêutica não se confunde com as práticas de redução de danos, pois não cabe ao judiciário querer curar ou tratar indivíduos, isso não é e não pode ser tarefa do direito penal, isso deve ser feito longe das agências punitivas, deve ser feito por profissionais adequados respeitando as individualidades e opções de vida de cada cidadão. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No derradeiro umbral que encerra esse estudo, cumpre salientar que o ser humano é, por sua natureza, um ser psicoativo. Assim sendo, sempre estará em busca de novas sensações e de novas e mais eficazes formas de alterar sua consciência, seja através das drogas, das artes, do misticismo, enfim, da maneira que cada pessoa considerar mais adequada conforme o 114 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Uso de Drogas e Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 132. 115 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: Estudo Criminológico e Dogmático. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. pp. 277-279. 116 ALVES, Marcelo Mayora. Entre a Cultura do Controle e o Controle da Cultural: Um Estudo Sobre as Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 200-203. 29 desejo que se almeja. Por esse motivo o uso de drogas sempre fez parte da história da humanidade. Entretanto, nas últimas décadas essas substâncias passaram a serem caçadas com detentoras de todo mal da humanidade, principalmente devido ao impulso dos Estados Unidos e das Nações Unidas, de modo que praticamente todos os países do mundo incorporaram em seus ordenamentos legislações repressivas às drogas. Nosso país também está inserido nesse contexto, de modo que uma série de leis penais sobre drogas já estiveram em vigor em nosso território. Atualmente vige a Lei 11.343/06 que, embora tenha descarceirizado o delito de porte para consumo, manteve-o na esfera penal, ou seja, continuamos a operar dentro de uma lógica proibicionista, policialesca, em detrimento de diversas garantias e direitos dos cidadãos, o que, sem dúvidas, não coaduna com o Estado Democrático de Direitos que é anunciado em nossa Constituição. Diante disso, necessário se faz retirar a conduta de porte para consumo pessoal da esfera do direito penal, porquanto não é um policial nem um juiz que será capaz de ajudar aquele cidadão que tem suas práticas tóxicas. Para realizar esse auxílio com efetividade existem as práticas de redução de danos, essas sim, respeitando a liberdade de cada indivíduo conseguem construir um futuro melhor para esses sujeitos, com ou sem a droga. Que este estudo possa ter unido sua luz com a de muitos outros a fim de que a sociedade como um todo possa desentorpecer a razão e por um fim, já tardio, a essa falaciosa guerra que promete paradoxalmente estabelecer a paz social através das armas. Guerra esta que esta que foi perdida há muito tempo, mas que ainda não se acordaram para “bater em retirada” suas tropas. REFERÊNCIAS ALVES, Marcelo Mayora. Entre a Cultura do Controle e o Controle da Cultural: Um Estudo Sobre as Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 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