O TOMBAMENTO DA CAATINGA COMO ATO HUMANITÁRIO-PROTETIVO À
CULTURA NORDESTINA
Edmilson Ewerton Ramos de Almeida1
RESUMO
A caatinga vem sendo vítima de uma forte investida destrutiva do homem: no intuito principal de produzir
energia, esta vegetação, especialmente nos últimos anos, vem sendo devastada, com índices mais
preocupantes que os da floresta amazônica, causando um desequilíbrio ecológico em toda a região do
semiárido, com reflexos na economia nacional. Entretanto, o principal malefício desta prática é a
descaracterização da identidade cultural do homem nordestino interiorano, quando lhe é retirada uma
parcela significativa do seu contexto onde foi criado e educado, qual seja, a macambira, o xique-xique, o
mandacaru, que tanto inspiraram produções humanas, assim no cinema, como na literatura, na música, no
artesanato. Destarte, para que se possa garantir uma efetiva proteção desta geografia, é proposta uma
nova interpretação pós-positivista dos institutos constitucionais e infraconstitucionais, a fim de que a
ferramenta do tombamento, seja de maneira administrativa, seja judicial ou legislativa, possa incluir a “mata
branca” nos seus laços protetivos, transformando em patrimônio cultural brasileiro este componente
essencial da cultura nordestina, para o bem do ator sertanejo e da cultura brasileira, assegurando o direito
fundamental do homem à sua produção cultural.
Palavras-Chave: caatinga; cultura; tombamento
ABSTRACT
The “caatinga” has been the victim of a strong destructive onslaught of man: the primary purpose of
producing energy, this vegetation, especially in recent years, has been devastated, with rates of more
concern than the Amazon rainforest, causing an ecological imbalance in the whole region the semiarid, with
reflections on the national economy. However, the main evil of this practice is a distortion of the cultural
identity of the man northeastern backwoods, when it has withdrawn a significant portion of context where he
was raised and educated, that is, the macambira, xique-xique, mandacaru, which so inspired human
productions, both in film and in literature, music, crafts. Thus, so as to ensure an effective protection of this
geography, we propose a new post-positivist interpretation of constitutional institutions and infra, so that the
tool from tipping either way of administration, whether judicial or legislative, may include "white forest "in their
protective bond, making a Brazilian cultural heritage this essential component of northeastern culture for the
good of the actor and country music of Brazilian culture, ensuring the fundamental human right to its cultural
production.
Key-Words: caatinga; culture; tipping.
1 Aluno graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. [email protected]
1. CONTEXTUALIZAÇÃO E NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Entre 2004 e 2005, o Ministério da Integração Nacional promoveu estudos e
discussões acerca da atual delimitação do que se denomina “semiárido”, intencionando
analisar as potencialidades e necessidades desta região do território nacional, para, ao
fim, poder traçar planos de ação específicos. Assim, com essa atualização, desde 10 de
março de 2005, fora considerada uma nova geografia, para esta região: a área
classificada oficialmente como semiárido brasileiro aumentou de 892.309,4 km para
969.589,4 km, um acréscimo de 8,66%2
Em reforço aos atos da administração pública para a promoção e proteção deste
território, foi ampliado o projeto de monitoramento por satélite, que antes era limitado
apenas à região amazônica e agora cuidará de todos os biomas do território brasileiro.
Ademais, registra-se um Projeto de Emenda Constitucional (nº115/95) que objetiva
transformar a caatinga e o cerrado em patrimônio nacional, com apoio de diversas
camadas da população.
Na contramão destes impulsos e conquanto não tenha a mesma divulgação que o
vertiginoso “assassinato” da flora e fauna amazônica, que não deixa de ser preocupante,
a caatinga está sendo brutalmente devastada: esta região vem perdendo por ano uma
área de sua vegetação nativa equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo; segundo
o Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento da caatinga entre 2002 e 2008 foi de
16.576 milhões de quilômetros quadrados, restando, hoje, pouco mais da metade da
cobertura vegetal original típica do semiárido nordestino, enquanto que a Amazônia
perdeu 20% da sua vegetação em 40 anos.3
Esta “grande região seca” tem biomas exclusivos do Brasil – país que tem 92% do
espaço total dominado por climas que favorecem as chuvas – sendo uma das três regiões
semiáridas da América do Sul – a mais homogênea fisiológica, ecológica e socialmente de
todas elas.4 Não apenas por estes dados, mas pelas especificidades e excentricidades da
“mata branca” que acompanhou a formação do homem brasileiro, sua fixação no litoral e
posterior avanço interiorano, que ainda participa da formação da cultura nordestina e,
particularmente, cabocla, que fornece tantos fundamentos socioeconômicos e culturais,
2 MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Cartilha Nova Delimitação do Semi-árido Brasileiro.
Disponível em: < http://www.integracao.gov.br/desenvolvimentoregional/publicacoes/delimitacao.asp>.
Acesso em: 15 de março de 2010.
3 SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP por ano. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>. Acessado em: 03 de março de 2010.
4 AB’SÁBER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 4 ed. Ateliê: São
Paulo, 2007.
enfim, por todos os benefícios que ela traz ao homem, sendo fundamental à identificação
deste com a sua terra, a caatinga merece ser alvo de uma proteção incisiva.
Por sua vez, o Patrimônio Cultural brasileiro, alvo de proteção mais especial do que
outros bens nacionais, é composto, segundo o art. 216 da Constituição Federal, pelos
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em seu conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, incluindo-se os bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico, paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico.
Assim, por todo o exposto, para evitar a perpetuação da sua matança e da
descaracterização do ambiente natural, social, econômico e cultural ao seu redor, a
caatinga deve ser incluída nesse rol seleto. Para fundamentar esta defesa mais incisiva e
por entender que esta geografia encanta e influencia várias áreas do saber, buscou-se
realizar uma pesquisa bibliográfica interdisciplinar entre cartilhas, reportagens, artigos,
livros, informativos, no âmbito do direito, geografia, história, literatura, administração.
Como resultado, este trabalho se propõe, de início, a romper com a cultura elitista
de preservação, na qual é valorizado o patrimônio “de cimento e cal” ou, quando não,
focado apenas na proteção da biodiversidade amazônica e atlântica, esquecendo-se dos
outros espaços brasileiros. Segue-se com uma exposição clara e analítica sobre os
conceitos, princípios e objetivos constitucionais acerca do direito humanitário-cultural, sua
guarda e manutenção, dissecando a possibilidade de tombamento da caatinga,
classificando-a como patrimônio cultural, a fim de ajudar na preservação desta
significativa caracterização nordestina.
2. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO PATRIMÔNIO CULTURAL
Progressivamente à evolução conceitual dos termos “cultura” e “patrimônio cultural”
e ao enraizamento ou rejeição dos usos e costumes, varia a importância social e, por
consequência, a concepção legal de cuidado com a produção e identidade cultural.
Inobstante, a formação da identidade brasileira seja um patrimônio diversificado e
construído ininterruptamente a partir de heranças que se somam a novas concepções,
nas primeiras constituições, enquanto o país ainda se firmava como nação independente,
com bases políticas, administrativas e econômicas próprias, não houve preocupação com
o resguardo desta formação cultural.
Somente na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934,
percebe-se uma preocupação, apesar de ainda incipiente, preconceituosa e elitista, com o
fomento da cultura e a proteção dos objetos de interesse histórico e patrimônio artístico
do país, pois, nesta época reinava um maior favorecimento aos objetos culturais materiais
imobiliários e obras artísticas como pintura e escultura. Tal relevância seguiu-se por todos
os demais textos, sendo instituído desde 1946 que o amparo à cultura era dever do
Estado, deslanchando numa proteção bem mais robusta, completa e cuidadosa, quando
na promulgação da Constituição Cidadã de 1998.
Para que chegássemos nesta progressão histórico-legislativa, necessitávamos de
uma transformação conceitual e ideológica anterior: a cultura evoluiu de meras
manifestações artísticas e passatempos, para envolver toda a produção humana,
segundo a capacidade de criar e inventariar; adaptando o mundo natural, segundo a
valoração que lhe é atribuída.
Portanto, para o entendimento hodierno, a cultura é multifacetada, pois se
manifesta em diversas modalidades: nas obras de arte e ciência, vestuário, gastronomia,
arquitetura, sistema de valores, costumes, tradições, crenças, educação, linguagem,
natureza familiar e das relações sociais, concepção de tempo e lugar; a soma e
interrelação destas variáveis especifica e diferencia as civilizações, podendo ser
consideradas tanto por sociedades numa perspectiva micro – família, repartição de
trabalho, sala de aula, círculo de amizades – quanto por um universo maior de indivíduos
que compartilham desta semelhança – uma região global, uma descendência, um país:
Cultura abrange a língua e as diferentes formas de linguagem e de comunicação,
os usos e costumes quotidianos, a religião, os símbolos comunitários, as formas
de apreensão e de transmissão de conhecimentos, as formas de cultivo da terra e
do mar e as formas de transformação dos produtos daí extraídos, as formas de
organização política, o meio ambiente enquanto alvo de acção humanizadora.
Cultura significa humanidade, assim como cada homem ou mulher é, antes do
mais, conformado pela cultura em que nasce e se desenvolve.
Para além do que é universal, cada comunidade, por força de circunstâncias
geográficas e históricas, possui a sua própria cultura, distinta, embora sempre em
contacto com as demais e sofrendo as suas influências. Mas, nos nossos dias de
hoje, a circulação sem precedentes de bens culturais e de pessoas conduz, algo
contraditoriamente,
a
(MIRANDA, 2006, p.2)
tendências
uniformizadoras
e
de
multiculturalismo.
Pelo exposto, conclui-se que a cultura compõe e denuncia a própria identidade do
homem, sendo totalmente temporal e histórica, pois reproduz valores e costumes próprios
da época em que está imersa, resultando em herança para as gerações posteriores. A
caatinga, por sua vez, é tanto matéria-prima para outras produções, quanto modelo
inspirador, para a criatividade inventiva, além de compor a identidade do sertanejo,
caracterizando seu lar; doce e árido, mas ainda lar. Trazendo esses conceitos para um
crivo constitucional, Carlos Frederico Marés de Souza Filho assevera:
Pela leitura da lei e da Constituição de 1988, bem cultural é aquele bem jurídico
que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser representativo, evocativo
ou identificador de uma expressão cultural relevante. Ao bem cultural assim
reconhecido é agregada uma qualidade jurídica modificadora, embora a
dominialidade ou propriedade não se lhe altere. Todos os bens culturais são
gravados de um especial interesse público – seja ele de propriedade particular ou
não -, que pode ser chamado de socioambiental, (SOUZA FILHO, 2006, p. 36
apud GALDINO)
Assim, percebendo a necessidade de guardar a identidade, ação e memória dos
grupos sociais, nas suas mais diversas formas de manifestação, foram lançadas as
diretrizes fundamentais sobre o tratamento com a cultura no Estado brasileiro
contemporâneo: arts. 215 e 216 do Título VIII – “Da ordem Social” – na Constituição da
República de 1988.
Nestes dispositivos já estão fixadas as obrigações do Estado, quais sejam, garantir
a todos o pleno exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultura nacional,
incentivar a valorização e difusão das manifestações culturais e proteger as
manifestações culturais dos grupos participantes do processo civilizatório nacional (art.
215, caput, §1º). Assim como também prevê a edição de leis que disponham sobre a
fixação de datas comemorativas, que estabeleçam o Plano Nacional de Cultura (art. 215,
§2º e §3º) e que estabeleça incentivos para a produção e o conhecimento de bens e
valores culturais (art. 216, §3º).
Ainda, traz a definição do conceito de patrimônio cultural como os bens de natureza
material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e
um rol exemplificativo de suas formas expressivas (art. 216, caput, e incisos I ao V). Por
fim, além de já promover o tombamento legal de todos os documentos e sítios detentores
de reminiscências históricas dos antigos quilombos (art. 216, §5º) e fazer implicações
recomendações administrativas (art. 216, §2º e §6º), afirma que a promoção e proteção
do patrimônio cultural brasileiro é de responsabilidade do poder público, com a
colaboração da comunidade, por meio de um rol exemplificativo: inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação (art. 216, §1º).
Ainda, conquanto os períodos comentados tenham importância ímpar, outros tantos
espaços constitucionais e infra-constitucionais são destinados a esta matéria: art. 5, VI e
LXXIII; art. 19, I; art. 23, III; art. 24, VII; art. 30, IX; art. 129, III; art. 210, todos da CF/88;
Lei 3.924/61; Lei 8.159/91; Lei 8.313/91; Lei 10.221/01; Lei 4.717/65; Lei 7347/85.
2.1. Instituto de proteção do patrimônio cultural: tombamento como efetivação
constitucional e eficácia na proteção à caatinga
O Estado, agindo legal e legitimamente, tem o dever de convocar para si a
responsabilidade de manter a ordem pública, em virtude de sua própria função e natureza
soberana. Tal aspecto influencia as diversas áreas do direito privado, onde, utopicamente,
em um sonho de Estado (neo)liberal, os agentes teriam completa liberdade de ação.
Portanto, sob a égide de um Estado Social, o direito de propriedade, a fim de que
esta seja gozada e fruída sob os limites constitucionais, pode sofrer intervenções, através
dos institutos previstos: desapropriação, ocupação temporária ou provisória, requisição,
limitação administrativa, servidão administrativa ou pública e tombamento.
.
A superação do Estado liberal e a adoção do modelo de Estado social e
democrático impõem à propriedade privada limitações de outra ordem, como o
dever de cumprir sua função social. Isso não importa na criação de dois regimes
jurídicos para a propriedade privada, um definido pelo Direito Privado e outro de
natureza pública. O regime jurídico do Direito de propriedade é um só: definido
pelo Direito Privado com as derrogações impostas pelo Direito Público.
(FURTADO, 2007, p.742)
Como supra-demonstrado, com fulcro principal no art. 216, §1º, da Constituição
Federal e regulamentação específica no Decreto-Lei nº25/37, o tombamento é apenas
mais uma das diversas formas de intervenção do Estado na propriedade, com a aplicação
específica para proteção de aspectos histórico-culturais significativos, utilidade esta que
também não lhe é exclusiva.
Assim, Nos termos do art.1º da referida legislação infraconstitucional: “Constitue o
patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes
no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico.”.
A partir deste conceito, extraímos que o instituto do tombamento seria aplicável
restritivamente ao patrimônio histórico e artístico nacional e, portanto, para a proteção do
patrimônio cultural brasileiro que não se encaixe nessa categoria, restariam as outras
ferramentas constitucionais.
Tal interpretação é partilhada por Hely Lopes Meirelles e José dos Santos Carvalho
Filho: ambos condenam o tombamento de florestas, reservas naturais e parques
ecológicos. O primeiro, especialmente, afirma que o referido instrumento não é o meio
mais adequado para a preservação da flora e da fauna, porque as florestas são bens de
interesse comum e estão sujeitas ao regime legal especial estabelecido pelo Código
Florestal, Lei n. 4.771/65, que indica o modo de preservação de determinadas áreas
florestais; o mesmo ocorrendo com a fauna, que é regida pelo Código de Caça, Lei n.
5.197/67, e pelo Código de Pesca, Decreto-Lei n. 221/67.5
Inobstante esta exata aplicação da subsunção e um perfeito raciocínio de encaixe
das peças legais, resta um problema ortoprático: as normas específicas não tem a
eficácia esperada. A caatinga, um dos principais símbolos da cultura nordestina e de
presença maciça na identidade do sertanejo, vem sofrendo um desmatamento vertiginoso
ao longo das últimas décadas e, especialmente, nos últimos anos; carregando com ela
um desequilíbrio ecológico sem precedentes naquela região. Esta vegetação vem sendo
transformada em lenha e carvão destinados a abastecer siderúrgicas em Minas Gerais e
Espírito Santo ou a mover indústrias de gesso e cerâmica instaladas no próprio semiárido.
Ademais, este problema não afeta apenas uma lacuna cultural regional, mas
também, a ecologia e economia mundiais, pois o abate da caatinga foi responsável pelo
lançamento de 25 milhões de toneladas de carbono por ano na atmosfera - o dobro do
corte das emissões de carbono planejado pelo governo com medidas de eficiência
energética em 2020. Ainda, a região do semiárido já foi identificada como uma das áreas
mais vulneráveis no Brasil às mudanças climáticas, se essa brutalidade continuar, um
5 TJ/SP. autos N. 748/95.
terço da economia pode ser afetado com o aumento da temperatura.
Encarado com esta realidade, o atual Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, deu
a seguinte declaração: “Sem estimularmos alternativas de geração de energia, como gás
natural ou energia eólica [dos ventos], não vamos conter o desmatamento na caatinga.” 6
Por todo o exposto, em vista deste contracenso entre a perfeita compensação
normativa e uma falha em sua aplicabilidade, novo rumo deve ser seguido. Utilizando-se
de fundamentos legais e sem perder a eficácia social, para alcançar a justiça, a utilização
da jus filosofia pós-positivista mostra-se conveniente.
O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito
posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a
categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão
de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar
voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. (BARROSO, 2005)
Esta lógica interpretativa tem aspectos próprios: (i) força normativa da constituição;
(ii) expansão da jurisdição constitucional; (iii) nova interpretação constitucional, no tocante
aos desafios de hermenêutica normativa que as formas tradicionais – gramatical,
histórico, sistemático, teleológico – não solucionam, utilizando-se, principalmente, de uma
tática constitucionalista irradiante e de um espírito intervencionista do poder público e
mais participativo da sociedade.7
Por fim, apesar de dissensões doutrinárias, a solução mais eficaz, sob uma égide
constitucional firme – fulcrado nas imposições legais, sem perder o fim último, qual seja,
alcance da justiça – é lançar mão do instituto do tombamento, seja na via administrativa,
judicial ou mesmo legal, para garantir o direito humanitário-cultural do homem vivente do
semiárido a um dos símbolos maiores de suas raízes: a presença da “mata branca”.
Tal privilégio ao tombamento não significa que este instituto vá desbravar sozinho
as especificidades de uma proteção ambiental, pelo contrário, defende-se a utilização das
regras e privilégios de um tombamento unindo-os às características peculiares do
regramento normativo da fauna e flora.
Destarte, garante-se a eficácia da proteção à caatinga pelas obrigações positivas e
6 SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP por ano. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>. Acessado em: 03 de março de 2010.
7 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio
do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>.
Acessado em: 25 de fevereiro de 2010.
negativas impostas aos proprietários e vizinhos deste espaço cultural guardado pela
Constituição Federal e o Decreto-Lei nº25/37, inexistentes no Código Florestal e no
Código de Caça, como por exemplo: (i) dever de fazer obras de conservação; (ii)
assegurar ao poder público o direito de preferência; (iii) dar conhecimento ao órgão
competente no caso de extravio ou furto do bem; (iv) não pode destruir, demolir ou mutilar
o bem e somente poderá restaurá-lo, após a obtenção de autorização especial; (v) estão
obrigados a suportar a fiscalização dos órgãos competentes; (vi) os vizinhos não podem,
sem prévia autorização, fazer construções que impeçam ou reduzam a visibilidade do
bem tombado, nem colocar cartazes e anúncios.
3. DIREITO FUNDAMENTAL À CULTURA
Por todo o exposto, percebe-se que o zelo com o patrimônio cultural brasileiro
perpassa todo o texto constitucional e infraconstitucional, através da proteção preventiva
ou interventiva no uso dos instrumentos legais e legítimos – ação popular, ação civil
pública,
políticas
públicas
de
incentivo
e
garantia,
tombamento,
inventário,
desapropriação, dentre outros. Tais garantias são necessárias, pois, o acerco histórico e
cultural de uma comunidade é um bem jurídico de alto valor, sendo a própria
representação dos significados daquela civilização.
Estes conceitos já pairavam na ideia de direitos humanos desde a sua segunda
geração, que objetivou a afirmação dos direitos sociais, culturais e econômicos,
pertencentes à coletividade, suplantando a ideologia liberal do século XIX. Assim, com a
crescente importância dada ao “bem comum”, evoluiu-se até a terceira geração, com
direitos imbuídos de valores humanistas, universais e fraternos, consolidando o direito à
cultura como a verdadeira afirmação de um povo e, portanto, merecedor de ser
considerado fundamental, pois, sem memória, não há identidade.
Neste mesmo pensamento, defende prof. Milton Ângelo (1998, apud LIMA) que a
manutenção, incentivo e preservação das manifestações históricas, artísticas e culturais é
uma das facetas dos direitos fundamentais, já que os direitos humanos “são aqueles
referentes à satisfação daquelas necessidades reais fundamentais, para sobrevivência da
espécie humana, como entidade biológica, espiritual e cultural”.
Portanto, conclui-se que a definição da caatinga como patrimônio cultural e sua
guarda através do tombamento não é descartável e simplório processamento
administrativo, judicial ou legislativo, mas é algo aprofundado: caracterizado o especial
interesse público, passa a tratar-se de um ato protetivo-humanitário, quando consistente
na afirmação do direito fundamental à cultura, cujo corolário legal é o art.27 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, in verbis:
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e
materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual
seja autor.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente propaga-se o ditado “água é vida”. De fato, este líquido preciso é
requisito para que a biologia se desenvolva e a sua falta, por consequência, traz morte.
Por outro lado, através deste ensinamento popular, disseminou-se a ideia errônea de que,
em virtude do volume mais baixo e periodicidade incomum de chuvas do semiárido, lá não
haveria vida; seria uma terra sem graça, nem atrativos.
Este mito tem raízes mais antigas. Na verdade, o semiárido, compreendido
prioritariamente pelo interior da região nordeste, tem sua história econômica, social,
política e natural diretamente associada a seu caráter de território auxiliar, onde,
desprovido de recursos naturais propícios aos interesses dos europeus e de posição
estratégica para exploração que possuía a região litorânea, restou-lhe a utilidade de
atividade-meio: a pecuária. Dessa forma, cresceu desprestigiada, longe do sistema
implantado no Brasil colônia, o que possibilitou a construção histórica de uma cultura e de
uma sociedade com características identitárias peculiares em interação com esse
ambiente particular. 8
Assim, o interior do Nordeste, já castigado pelo seu desprestígio, acabou de
afundar junto com sua região, quando, do início do séc XX, o Brasil deixou
paulatinamente de ser uma economia centrada na agroexportação, voltando os seus
olhos para o Sudeste, uma nascente economia industrial, urbanização e modernização.
Com o passar das décadas, intensificou-se a realidade econômica decadente e
desprestigiada do Nordeste, unido a políticas pública vazias, de falso incentivo, que
engordavam os bolsos e o status dos coronéis e seus currais de poder, quer sejam estes
8 AGUIAR, José Otávio; BURITI, Catarina de Oliveira. “Revisitando o Semiárido: Cenários de Vidas e de
Sol”. Revista Território e Fronteiras. nº 2, julho/dezembro 2009. p.171-201.
de natureza eleitoreira, financeira ou religiosa.
Não obstante, o interior do Nordeste ainda possuía (e possui) seus sobreviventes.
Gente que, para amenizar um pouco a dureza de sua realidade, sobrevivia(vive) de fazer
comédia, como a personagem João Grilo, do romance “O auto da Compadecida” de
Ariano Suassuna, ou mesmo na criatividade e nos sonhos de Fabiano, personagem de
“Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Gente que não sai da sua terra pela falta de água; o
clima semiárido e a vegetação “sem cor” nunca foram obstáculos intransponíveis, pois a
criatividade e o desenvolvimento tecnológico conseguem suplantar essas adversidades;
mas o descaso do poder público, a falta de perspectiva e de dignidade levam a uma
diáspora em massa.
Por todo o exposto, compreende-se que elevar a vegetação semiárida ao nível de
patrimônio cultural não vai solucionar todos os problemas socioeconômicos e políticos
daquela região, mas o tombamento da caatinga merece tamanha relevância porque este
bioma faz parte da vida e da identidade de um povo que ama sua terra, de uma sociedade
que nasceu e se formou ao redor da macambira, do xique-xique e mandacaru. Ter esta
memória preservada é questão de patrimônio cultural brasileiro e, mais ainda, é questão
de direitos humanos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB’SÁBER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas.
4 ed. Ateliê: São Paulo, 2007.
AGUIAR, José Otávio; BURITI, Catarina de Oliveira. “Revisitando o Semiárido: Cenários
de Vidas e de Sol”. Revista Território e Fronteiras. nº 2, julho/dezembro 2009.
p.171-201.
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O
triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acessado em: 25 de fevereiro de
2010.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Fórum: Belo Horizonte,
2007.
GALDINO, Carlos Alberto da Silva. Patrimônio Cultural: tratamento jurídico e sua
proteção.
Disponível
em:<
http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/conteudo/cao/cme/artigos/galdino_carlosalberto_patrim
onio_cultural.doc>. Acessado em: 06 de abril de 2010.
LIMA, Vinícius Lins Leão. Tombamento e sua visão Constitucional. Disponível em: <
www.jfrn.gov.br/docs/doutrina149.doc>. Acessado em: 10 de abril de 2010.
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Cartilha Nova Delimitação do Semi-árido
Brasileiro.
Disponível
em:
<
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimentoregional/publicacoes/delimitacao.asp>.
Acesso em: 15 de março de 2010.
MIRANDA, Jorge. Notas sobre cultura, Constituição e Direitos Culturais. Disponível
em:
<http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/MirandaJorge.pdf>
Acessado em: 08 de abril de 2010.
SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP por ano.
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>.
Acessado em: 03 de março de 2010.
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