Cinema e Grande Saúde – Encontros com Almodóvar
Jaquelina Maria Imbrizi (*)
Alexandre de Oliveira Henz (*)
Sidnei José Casetto (*)
Angela Aparecida Capozzolo ( ∗ )
De perto todo mundo é normal.
Pedro Almodóvar
O projeto Cinema e Saúde está vinculado ao Programa de Extensão Arte e Saúde, da
Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista – que é composto por mais três
projetos: Laboratório de Sensibilidades; Inteligência Coletiva/Clube dos Saberes; e Literatura e
Clínica. O campus, implantado em 2006, objetiva a formação de profissionais de saúde para cinco
cursos de graduação: Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia e Terapia Ocupacional.
O projeto Cinema e Saúde teve início no mês de outubro de 2006, com a apresentação do
filme Fale Com Ela. Nos meses de novembro e dezembro foram apresentados os filmes Tudo Sobre
Minha Mãe e Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos. No ano de 2007, foram exibidos Ata-me
(mês de março); A lei Do Desejo (mês de abril) e De Salto Alto (mês de maio). As projeções de
filmes são seguidas de discussões entre estudantes dos cinco cursos de graduação, professores,
técnicos, integrantes da UATI (Universidade Aberta da Terceira Idade) e da comunidade. Busca-se,
nesses encontros, criar um espaço para compartilhar as impressões, sensações e percepções
produzidas nos participantes.
O projeto objetiva, por meio da exposição à linguagem cinematográfica, propiciar uma
experimentação estética que favoreça a ampliação de percepções de modo a problematizar
dicotomias. Por meio dos registros realizados das discussões foi possível identificar a
potencialidade dessas atividades para ampliar a formação dos futuros profissionais de saúde. Nesta
apresentação busca-se tecer considerações sobre esses encontros.
A hipótese é que o cinema almodovariano abriria a sensibilidade para a variedade de estilos
de vida que não se fecham em pré-definições. Nesse sentido, pode coadunar-se com uma concepção
de saúde como abertura ao risco: que não se interessa só pela freqüência e estabilidade de um
determinado comportamento, mas sim, que inclui a variabilidade das alternativas experimentadas
pelos sujeitos para driblar o sofrimento e enfrentar, com certa margem de segurança, os riscos. Essa
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Professores Adjuntos do Departamento de Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo- Campus Baixada
Santista.
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concepção pode favorecer uma prática profissional em saúde que sinalize para: “(...) um novo
modo, mais solidário (...), de conviver com condutas consideradas perigosas” (Caponi, 2003, p.77).
A abertura à multiplicidade de modos de subjetivação pode ser uma condição importante
para a atuação dos profissionais de saúde. Assim, parte-se do pressuposto que os temas
apresentados no cinema de Almodóvar ajudariam no processo de convivência com a diferença, as
fragilidades, as angústias e o sentimento de impotência. Temas como as diferentes orientações
sexuais, os tabus, a masturbação, o inusitado, a finitude e a morte, que marcam o cinema de
Almodóvar contribuiriam para a problematização da “realidade” e das concepções hegemônicas do
processo saúde/doença. Neste sentido, aumentariam a potência dos profissionais de saúde na busca
de alternativas de cuidado não controladoras.
Este cinema desacomoda valores, normas, formas de agir, de pensar e de fazer operantes no
processo de individuação. Almodóvar trafega em espaços considerados dicotômicos e, mais que
isto, oferece imagens, idéias, temas e personagens que quebram preconceitos e favorecem um
aumento da envergadura interior. O que nos aproxima da noção de Grande Saúde de Nietzsche
(2005).
Autodomínio, madura liberdade e disciplina capazes de permitir ao espírito
habitar a multiplicidade; abertura interior, envergadura interior para contornar
os narcisismos paralisantes de meio-caminho; excesso de forças plásticas que
dão forma à vida e a regeneram, lançando-a no ensaio, na aventura.
Almodóvar narra de forma pouco habitual. Raramente vai em linha reta e como o
próprio diretor nos lembra, referindo um provérbio chinês, em seu livro Fogo nas Entranhas: “O
demônio caminha em linha reta e evitar as retas é uma forma de debochar dos demônios.”
Almodóvar ( 2000, p.51).
Questões que emergiram nos encontros
Estranhamento
No início das discussões falava-se do conteúdo da história dos personagens com certo
distanciamento, como se fizessem parte do mundo artístico, como se não estivessem relacionados
com a experiência da vida comum, como se fosse algo a parte da “vida real”. No desenrolar das
discussões, o estranhamento vai deixando de ser alheio. O expectador acaba envolvido no jogo, de
modo que ele sentirá imediatamente a pressão do problema de saber se ele próprio está jogando bem
lá dentro, à margem do jogo ou excessivamente por fora (Deleuze, 1998).
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- A gente fica falando que os personagens utilizam muitas máscaras. Mas fico aqui refletindo, será
que são máscaras mesmo? Ou nós somos todos esses personagens ao mesmo tempo?(fala de um
estudante).
Encontros
Algumas falas refletem o fato de que os filmes de Almodóvar destacam a importância do
encontro entre pessoas das mais diferentes identidades profissionais, de gênero, de orientação
sexual e etc.. Nas discussões foi abordado que os encontros mais interessantes são aqueles que
ocorrem sem que as pessoas estejam fechadas em compartimentos moldados por identidades fixas.
É difícil encontrar quando se pretende previamente definir a identidade. Ou seja, garantir o território
antes do encontro, parece ser uma forma de impedir a experiência.
É interessante perceber que houve referência entre os estudantes às experiências de
acompanhamento de pessoas que estão vivenciando no segundo ano da universidade, como
exemplo da possibilidade de encontros que não se limitavam ao seu pertencimento de classe, sexo,
raça, credo, doenças e etc.
Os estudantes apontam que o cinema de Almodóvar põe em dúvida a noção de realidade
única. Ao contrário da imposição de apenas um estilo de vida para as pessoas, indica para variadas
posições subjetivas, dificilmente mostradas no cinema.
Desejo
Está presente em muitos filmes de Almodóvar um desejo que embaralha e desnaturaliza os
gêneros. No filme De Salto Alto, por exemplo, a filha se apaixona por um homem que se traveste de
mulher tendo como modelo a imagem da mãe dela, que é uma famosa cantora. Ao final a própria
lógica dos modelos (mãe-travesti-filha-homem-mulher) é posta em xeque.
Por meio de personagens fora e dentro dos padrões, Almodóvar conta a história do desejo, a
que precisamos ser atados para que cedamos à potência da vida. Em Ata-me, é como se o tema do
filme fosse as sinuosidades do desejo desenhadas por sua força e a resistência contra ele.
- Será que é necessário ser tão rígido e politicamente correto? Aceitar as imposições culturais que
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delimitam o que é certo e o que é errado?(fala de um estudante).
O desejo, em Almodóvar, não está inscrito somente no registro da falta, mas também no da
invenção e do transbordamento.
- Por que a falta faz as pessoas construírem a vida em volta dela? Será que a maioria das nossas
escolhas tem a ver com a falta? Será que sempre estarão relacionadas às nossas carências? (fala
de um estudante).
A fala seguinte, de uma aluna que tem acompanhado a maioria dos encontros indica um dos
efeitos que nos parece fecundo “antes saía incomodada e até com dificuldades para dormir e agora
consigo compreender muitas coisas” (fala de uma estudante).
Algumas considerações.
A falsidade de um juízo não é uma objeção contra
esse juízo... A questão é saber até que ponto ele promove ou conserva a vida...
NIETZSCHE.
O verdadeiro festejo nos encontros do projeto Cinema e Saúde, não passa necessariamente
pelo aplauso ou pelo prazer, embora tampouco isto esteja excluído, mas pelos ecos que suscitam os
filmes de Pedro Almodóvar, pelas notas recônditas que eles venham a tocar na alma dos envolvidos
com as sessões. O que acontece nas exibições dos filmes e após, tenta escapar a um ritual
acadêmico; às vezes os ecos ocorrem muito longe dali, e da maneira mais imprevista, indireta. É
sempre onde menos esperamos que aquilo que se produz nesses encontros, silêncios e debates
acabam ecoando. É conhecida a referência de Deleuze à carta que recebeu da associação dos
catadores de papel, depois da publicação de seu livro A Dobra, em que eles diziam: A Dobra somos
nós... Essa estranha concepção de encontro nos é muito cara, não por que enfatize a cultura e a
erudição, nem pelo encontro necessariamente com pessoas, mas com cores, sons, idéias, silêncios,
hesitações, balbucios.
Neste projeto, que continua, tudo isto diz de uma posição que é ética, estética e política.
Ética, porque o que emerge de nossos encontros não é um conjunto de regras tomadas como um
valor em si para se chegar à verdade (um método), nem um sistema de verdades tomado com um
valor universal: ambos são da alçada de uma posição de ordem moral. O que diz um pouco do que
fazemos no ciclo Almodóvar é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e
afirmamos uma certa perspectiva do trabalho em saúde a partir dessas diferenças. As verdades que
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se produzem com este tipo de rigor, assim como as regras que se adota para engendra-las, só têm
valor enquanto conduzidas e exigidas por problemas colocados por diferenças que nos
desassossegam. Estética, porque não se trata de dominar um campo de saber já dado, mas sim de
criar um campo sensível que seja a encarnação das forças que nos inquietam, buscando fazer do
pensamento obra e arte. Política, porque neste ciclo de cinema exercitamos inclusive uma espécie
de guerrilha contra nós mesmos, se trata de uma luta contra as forças em nós que obstruem as
nascentes inventivas: forças reativas, forças reacionárias.
Essas foram algumas notas avulsas, um rápido percurso por uma certa experimentação com
a saúde que esses filmes puderam propor. Uma experimentação, lugar possível para inscrever o
início de um debate.
Referências Bibliográficas:
ALMODÓVAR, Pedro. Fogo nas Entranhas.Tradução de Eric Nepomuceno, prefácio de Regina
Case, Rio de Janeiro, Dantes, 2000.
CAPONI, Sandra. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos
Machado de (orgs.). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2003, 176 p. (55-77).
DELEUZE, G.,PARNET C. Diálogos Trad. brasileira de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora
Escuta, 1998.
EVANS, Peter Willian. Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
NIETZSCHE, Friederich. Prefácio. Humano Demasiado Humano. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
_________________.`Para além do bem e do mal. Prelúdio de uma filosofia do Futuro. São Paulo:
Companhia da Letras, 1992.
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Texto na íntegra - Instituto de Psicologia da USP