XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
VIAJANDO NO TEMPO PARA O CENTRO DA TERRA: HERBERT GEORGE
WELLS E JÚLIO VERNE NO ENSINO DE FÍSICA
Prof. Ms. Júlio César David Ferreira (UFPR)
Este texto traz parte dos resultados de uma pesquisa apresentada no 10º Encontro de
Pesquisa em Educação da Região Sudeste, de título: A literatura de ficção científica e a
física: suas relações no âmbito do ensino-aprendizagem. Realizaremos aqui uma
reflexão sobre as relações entre campos do conhecimento que envolvem diferentes
gêneros discursivos: a literatura de ficção científica e a Física. Novamente partimos do
pressuposto de que todo professor é professor de leitura, e como decorrência, todas as
formas de leitura se complementam e criam entre si pontos de apoio para a construção
de sentidos. Assim, buscamos relações entre os livros de Júlio Verne e Herbert George
Wells, e os conteúdos escolares de física. Nos livros Viagem ao Centro da Terra (1864),
de Júlio Verne e A Máquina do Tempo (1895), de Wells, tomando Bakhtin (1997, 2009)
como referencial de análise, encontramos semelhanças entre as situações descritas pelos
autores e os enunciados de fenômenos físicos típicos de livros didáticos do ensino
médio, com algumas diferenças: a riqueza e complexidade nas quais os textos de ficção
científica são produzidos, com enredos que tornam os conceitos científicos altamente
contextualizados e favorecem a constituição de temas, ampliando as possibilidades de
compreensão do leitor e potencializando a produção de sentidos no ato da leitura. Estas
e outras diferenças, também marcadas por elementos comuns, a nosso ver, tornam
promissora a aproximação entre a literatura de ficção científica e a física no contexto do
ensino-aprendizagem, com o objetivo mais amplo de formar o leitor, um dos papéis
centrais da escola.
Palavras-chave: Linguagem, Ficção Científica, Ensino de Física, Produção de Sentidos.
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1. INTRODUÇÃO
A Física envolve vários tipos de leitura, porém, a predominância nos livros
didáticos mais utilizados pelos professores é de textos curtos, enxutos, com pouca ou
nenhuma referência a elementos próximos ao aluno, livros que melhor se adaptam ao
padrão de aula. A leitura de fruição é quase inexistente, devido à falta de
contextualização dos conceitos científicos. Em muitos casos, os alunos acabam
traumatizando-se, perdendo completamente o interesse pela disciplina, o que se torna
um grande obstáculo no processo de aprendizagem (FERREIRA, 2011).
O conhecimento científico, formal e abstrato, é importantíssimo no processo de
aprendizagem, entretanto cumpre salientar a importância da aproximação entre esse
conhecimento altamente estruturado e o conhecimento cotidiano, imediato, vivido pelos
alunos. O caráter abstrato (e intrínseco) dos conceitos estudados, não pode ser singular e
carente de menções ao conhecimento imediato do aluno. Em relação ao conhecimento
imediato e científico, Almeida (2004), com o aporte teórico de Bachelard, nos diz:
Tanto quanto a distinção entre conhecimento imediato e científico,
essa dinâmica do pensamento científico tem que ser levada em conta,
não apenas pelo filósofo que toma esse conhecimento como objeto de
análise, mas também pelos que queiram verificar o funcionamento de
outros conhecimentos cuja origem de alguma maneira mantenha
relação com o conhecimento científico; é o caso de leituras escolares
do discurso científico. (ALMEIDA, 2004, p. 32, grifos nossos)
A dinâmica do pensamento científico a qual a autora se refere está relacionada à
pluralidade do racionalismo pregada por Bachelard, que mesmo não se atendo
propriamente ao ensino, permite com sua teoria, uma melhor compreensão da evolução
do pensamento científico e as várias instâncias do racionalismo que a norteiam.
Se a Física se refere sempre a algo que existe ou pretende que exista, porque o
seu ensino é desprovido dos elementos da realidade? Como decorrência temos vários
aspectos, mas podemos destacar a dificuldade dos alunos em construir sentidos sobre os
conceitos científicos, a dificuldade em estabelecer réplicas – enquanto conceito
bakhtiniano e não enquanto respostas aos problemas algébricos que minimamente
tangem a Física vivida – ao discurso científico.
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2. REFERENCIAL TEÓRICO
Destacamos aqui a importância da linguagem como elemento essencial no
processo de ensino. A linguagem inscrita no âmbito do Ensino de Física tem despertado
muito interesse de pesquisadores. Nesta pesquisa, além de Zanetic (2006), que trata a
Ciência como uma parcela da cultura, propondo uma aproximação entre a Física e a
Literatura, tomamos como referencial teórico, Almeida (2004), com investigações e
reflexões pioneiras sobre a relação entre a linguagem e o Ensino de Física; Robilotta e
Babichak (1997) que também voltam seus olhares para o Ensino de Física permeado
pela linguagem.
Somamos a esses autores, Geraldi (2000; 2006); Smolka (2006) e Brait (2005),
que apesar de não tomarem como objeto de estudo o Ensino de Física, desenvolvem
suas pesquisas evidenciando a importância da linguagem no ensino-aprendizagem com
base na teoria da enunciação de Bakhtin (1997, 2009).
Nas aulas de Física, podemos e devemos buscar aproximações entre o objeto de
estudo (permeado pela abstração) e o conhecimento imediato e cotidiano do aluno. Essa
é uma das formas de por em prática o que Almeida (2004) chama de leituras escolares
do discurso científico. Bakhtin (1997, p. 290), referindo-se à significação linguística,
afirma:
O ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um
discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude
responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente),
completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do
ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de
audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas
primeiras palavras emitidas pelo locutor.
Com uma teoria unificadora da linguagem, Bakhtin conseguiu abordar e
relacionar os mais diversos aspectos antes separados por disciplinas próprias da
linguística, enriquecendo o estudo da linguagem em seu caráter mais notável, o da
comunicação, através dos enunciados. Seus estudos definem o enunciado como unidade
da comunicação verbal, sendo a oração definida como unidade da língua: “Cada
enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados”. (BAKHTIN,
1997, p. 291)
As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras
(numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de
palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da
língua — palavras, combinações de palavras, orações; mesmo assim,
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nada impede que o enunciado seja constituído de uma única oração,
ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma única unidade da
fala [...] (Ibid., p. 297)
Para Bakhtin, a comunicação se dá por meio de um exercício social. A situação
social e o meio social são os fatores que determinam completamente a estrutura da
enunciação. Em outras palavras, quando falamos ocupamos uma posição social e
ideológica, intrínsecas da composição e do sentido de nossas enunciações que são
frações de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta.
Nas palavras de Clark e Holquist (2008, p. 235): “Bakhtin concentra-se no
número relativamente limitado de fatores que governam a prática dos locutores e o usa
como meio de ordenar o número ilimitado de contextos em que tais locutores falam”.
Com este aporte teórico, analisamos a literatura de ficção científica representada
por livros de Júlio Verne e H. G. Wells.
3. OBJETIVOS
Temos como objetivos mais gerais, compreender como a presença da ficção
científica no ensino de física pode potencializar o processo de aprendizagem dos alunos,
possibilitando uma construção de sentidos mais amplos para os objetos estudados,
vistos sob diferentes perspectivas. O presente trabalho, em seu cerne, tem como
principal objetivo compreender como as aproximações entre áreas distintas do
conhecimento humano – aqui representadas pela ciência e pela literatura de ficção
científica – podem contribuir para o ensino de física, potencializando a construção de
sentidos e a apropriação dos conceitos científicos pelos alunos do Ensino Médio.
4. PROBLEMA DA PESQUISA
Há uma aparente contradição entre a construção de sentidos pelos alunos a partir
de textos de diferentes gêneros (dos livros didáticos e dos livros de ficção científica, por
exemplo), que fazem referência aos mesmos objetos, vistos sob diferentes perspectivas.
Zanetic (2006) alerta para o isolamento entre áreas diversas do conhecimento e
os problemas decorrentes desse afastamento. Muitas vezes o conhecimento científico
parece envolto por uma bolha, inatingível pela maioria das pessoas, quando na verdade
manifesta-se frequentemente em nossas vidas, seja quando utilizamos o computador,
seja quando praticamos um esporte.
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O conhecimento científico é especializado e rompe com o conhecimento
cotidiano na sua constituição. No caso da Física, esse conhecimento é produzido em
linguagem formal, com signos abstratos e a linguagem matemática. Como aponta
Robilotta e Babichak (1997), o conhecimento físico é altamente estruturado, e a
apropriação do mesmo pelos estudantes depende da (re)construção de conceitos que se
entrelaçam, formando uma rede complexa que se lança na compreensão de uma
importante dimensão da realidade.
De acordo com a proposta curricular do estado de São Paulo:
A ficção científica estimula a imaginação do adolescente, instigando a
busca pelo novo, pelo virtual e pelo extraordinário. Nesse sentido,
mesmo os jovens que, após a conclusão do Ensino Médio, não
venham a ter qualquer contato com práticas científicas, ainda terão
adquirido a formação necessária para compreender o mundo em que
vivem e participar dele, enquanto os que se dirigirem para as carreiras
científico-tecnológicas terão as bases do pensamento científico para a
continuidade de seus estudos e para os afazeres da vida profissional ou
universitária. (SÃO PAULO, 2008, p. 42)
Segundo Felício (1994, p. 3): “Por diferentes que sejam, a razão e a imaginação,
a ciência e a poesia dão acesso igualmente ao universo do espírito, que é irreal enquanto
nega a percepção, mas que por isso mesmo é profundamente super-real”. Neste ponto
podemos estabelecer um diálogo com Vigotski, colocando a imaginação humana como
elemento importantíssimo no desenvolvimento cognitivo e na interpretação da
realidade:
O edifício erguido pela fantasia pode representar algo completamente
novo, não existente na experiência do homem nem semelhante a
nenhum outro objeto real; porém ao receber forma nova, ao tomar
nova encarnação material, esta imagem cristalizada, convertida em
objeto, começa a existir realmente no mundo e a influenciar sobre os
demais objetos. Estas imagens cobram realidade. Podem servir de
exemplo desta cristalização ou materialização das imagens qualquer
aditamento técnico, qualquer máquina ou instrumento. Fruto da
imaginação combinadora do homem, não se ajustam a nenhum
modelo existente na natureza, mas emanam a mais convincente
realidade e vínculo prático com a realidade porque, ao materializar-se,
cobram tanta realidade como os demais objetos e exercem sua
influência no universo real que nos rodeia. (VIGOTSKI, 1997, p. 24,
apud ANDRADE; SMOLKA, 2009, p. 256-257)
Em sintonia com estes autores, o que defendemos aqui são as inúmeras
possibilidades de construção de sentidos para os conceitos científicos oferecidas pela
leitura de ficção científica, que traz consigo diversos elementos propícios à discussão
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científica, sempre permeados pelo universo da fantasia, do devaneio, importantes do
processo de aprendizagem.
Silva (1998), ao tratar do tema ciência, leitura e escola, nos traz três importantes
teses:
1ª tese: todo professor, independente da disciplina que ensina, é
professor de leitura;
2ª tese: a imaginação criadora e a fantasia não são exclusivamente das
aulas de literatura;
3ª tese: as seqüências integradas de textos e os desafios cognitivos são
pré-requisitos básicos à formação do leitor. (SILVA, 1998, p.123-127)
Basicamente, o que nos leva a buscar na literatura de ficção científica, possíveis
caminhos para a apresentação dos conceitos científicos e também para o seu ensino, é a
inércia no ensino-aprendizagem de Física. As aulas continuam sendo expositivas,
baseadas em livros simplistas e seguidas de listas de exercícios, refletindo em um
péssimo aproveitamento dos alunos, por não levar em conta toda a riqueza que envolve
a disciplina. (MENEZES, 2005).
5. CAMINHOS METODOLÓGICOS
Trata-se de uma análise documental de caráter qualitativo, onde através da
leitura e seleção de trechos dos livros, discutimos as possibilidades de inserção das
obras de ficção científica no contexto do ensino de Física, pois vemos esta aproximação
como um recurso potencializador do ensino da disciplina. Tomamos como categorias de
análise, conceitos da teoria de Bakhtin: gêneros do discurso, tema, significação e
dialogismo (FERREIRA, 2011).
Neste trabalho, tomamos como objetos de análise, livros de Júlio Verne e
Herbert George Wells. Em nossa pesquisa de mestrado fizemos uma análise
aprofundada da obra de Júlio Verne no contexto do ensino de Física e apresentaremos
aqui alguns dos seus resultados.
Iniciamos o trabalho com uma pesquisa genérica sobre a obra de Júlio Verne e
H. G. Wells, selecionando o material destes renomados autores da literatura de ficção
científica, tendo como prioridade a busca por fragmentos que ilustrassem o
envolvimento entre a Física e a Literatura. Em muitos casos isso ocorreu no contraste de
ambientes: o científico e o literário, o futurista e o primitivo, o concreto e o abstrato.
Neste trabalho apresentaremos alguns resultados das análises de Viagem ao Centro da
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Terra (1864), de Júlio Verne e A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells, buscando
evidenciar e compreender as aproximações entre esferas distintas da atividade humana:
Literatura (Ficção Científica) e Ciências (Física).
Uma defesa precursora desse tipo de atividade interdisciplinar foi
apresentada pelo físico e escritor inglês Charles P. Snow (1905-1980)
quando, há cerca de 40 anos, sugeria que a separação que existia entre
as comunidades de cientistas naturais e de escritores dificultava a
solução de diversos problemas que envolviam a humanidade à sua
época. [...] Snow defendia que uma aproximação entre os dois
universos intelectuais era essencial para possibilitar um eficaz diálogo
inteligente com o mundo. (SNOW, 1993, apud ZANETIC, 2006, p. 8)
6. DESENVOLVIMENTO
Em nossos pressupostos, os conceitos da teoria bakhtiniana dão o embasamento
necessário para que possamos identificar importantes características da ficção científica.
A análise dos gêneros discursivos, por exemplo, contribui com o a identificação do
leitor que os autores buscam em seus textos, muitas vezes empregando o gênero
científico mais sistematizado, enquanto em outros momentos, a ausência de rigor
permite que leitores construam sentidos sem a necessidade de aprofundamento no
estudo dos conceitos.
O conceito de tema nos proporciona comparar a forma de apresentação dos
conteúdos da Física dos livros didáticos com a dos livros de ficção científica. Nos livros
didáticos, em diversos casos, o conceito ou conjunto de conceitos é sintético, asséptico,
carente de alguns elementos contextualizadores (que possibilitam o diálogo com outros
textos, outras esferas), enquanto nos livros de ficção científica são apresentados vários
elementos verbais e não verbais que tornam a constituição do tema mais rica e
complexa. Cumpre salientar que não intentamos em nossa pesquisa a comparação entre
os livros didáticos e os de ficção. São livros com finalidades diferentes, produzidos sob
condições diferentes e principalmente utilizados para desígnios diferentes, contudo, não
podemos desconsiderar as semelhanças e diferenças que ambos podem estabelecer
reciprocamente, tampouco as reflexões sobre essas características voltadas para o ensino
de Física.
A significação, que para Bakhtin é o “estágio inferior da capacidade de
significar”, é o contraponto para o conceito de tema. Uma significação é idêntica em
qualquer instância histórica, cultural e social, devido a seus elementos constituintes que
são abstratos, convencionais, sem existência concreta independente, mas que também
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são indispensáveis para a construção da enunciação. Os livros simplistas (didáticos ou
não), carentes de temas bem desenvolvidos, podem dar a falsa sensação de maior
eficácia na compreensão de seu conteúdo quando objetivam os conceitos por vias
diretas, altamente abstratas (resumos, diagramas, postulados, equações, etc.),
entretando, para Bakhtin a verdadeira compreensão dos enunciados é ativa, é responsiva
através das réplicas, e isso só é possível diante da riqueza na composição dos temas que
são “estágios superiores reais da capacidade linguística de significar”.
O processo dialógico é a base para toda a teoria de Bakhtin. É através do
dialogismo que o autor dialoga com o leitor, que ambos dialogam consigo mesmo, e
antes de tudo, os discursos dialogam com outros discursos. A obra de Júlio Verne, por
exemplo, tem características dialógicas muito particulares.
7. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Nos livros analisados, não só pudemos notar características favoráveis à
divulgação das Ciências, à apresentação de conceitos e à contextualização de temas
presentes nos livros didáticos, como constatamos com o crivo da teoria de Bakhtin,
apropriações de gêneros realizadas pelos autores.
As análises nos deram fortes indícios de um grande potencial que a ficção
científica possui enquanto elemento contextualizador de situações de conhecimento
físico, similares às apresentadas nos exercícios escolares, mas enriquecidas pela
aventura, pelo enredo, pela descrição minuciosa dos vários elementos constituintes de
um tema.
Como exemplo dos resultados de nossas análises, trazemos um trecho de Viagem
ao Centro da Terra que consiste em um diálogo onde o personagem Áxel faz uma
indagação ao Sr. Otto Lidenbrock, sobre a absurda ideia de penetrar-se a terra até o seu
centro:
[...] – Sim, não resta a menor dúvida de que o calor eleva-se de um
grau em cada vinte e três metros de profundidade abaixo da superfície
do globo. Ora, admitindo-se esta constante proporção e sendo o raio
terrestre de mil e quinhentas léguas, existe no centro temperatura
superior a duzentos mil graus. As matérias no interior da terra
encontram-se em estado de gás incandescente, visto que os metais,
como o ouro, a platina e as rochas mais duras, não resistem a tal calor.
Tenho, portanto, o direito de perguntar se é possível penetrar-se em
semelhante meio! (VERNE, 1964, p. 42)
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Áxel apoia-se no fato de que o calor está relacionado à profundidade da terra e,
através de argumentos matemáticos (próprio das manifestações do gênero científico),
atesta a inviabilidade da expedição. Outros parâmetros entram nesta análise: o aumento
da pressão atmosférica devido à profundidade, a rigidez das rochas e a escuridão na
escavação, que dão a uma cavidade de tais dimensões com um comportamento parecido
com o de corpo negro, onde a radiação incidente na superfície (necessária para
iluminação do percurso) é quase totalmente absorvida pela cavidade, aumentando
vertiginosamente a temperatura. O que nos chama a atenção é a maneira pormenorizada
através de dados relativamente precisos pela qual Verne descreve a situação, não
deixando de lado o caráter fantasioso da empreitada ao centro da Terra.
Ainda no mesmo livro, um trecho onde Áxel descreve de maneira díspar, as
intensas mudanças meteorológicas:
[...] O tempo, se assim se pode dizer, deverá mudar dentro em breve.
A atmosfera carrega-se de vapores saturados de eletricidade formada
pela evaporação das águas salinas. As nuvens se abaixam
sensivelmente e tomam cor azeitonada uniforme. Os raios elétricos
mal conseguem atravessar a opaca cortina baixada sobre o palco onde
está representado o drama da tempestade.
[...] Nem bem proferiu as últimas palavras, o horizonte do sul muda
subitamente de aspecto. Os vapores acumulados condensam-se em
água, e o ar, violentamente atraído pra preencher o vácuo produzido
pela condensação, transforma-se em furacão. (VERNE, 1964, p.200201)
A condensação das nuvens, a tensão elétrica estabelecida devido às cargas
elétricas na atmosfera e formação de um furacão são alguns dos itens ilustrados na
respectiva descrição, rica em detalhes, a qual, somente um observador muito atento
conseguiria notar, além de estar recheada de conceitos físicos.
Neste caso, o gênero discursivo empregado por Verne está em uma transição
entre o literário e o científico. O estilo, ou seja, a simples escolha das palavras pode
remeter à descrições diversas de uma tempestade. Do trecho em questão, muito proveito
pode-se tirar desde que se reconheça uma situação sendo descrita sob diferentes
perspectivas.
Na parte: Os raios elétricos mal conseguem atravessar a opaca cortina baixada
sobre o palco onde está representado o drama da tempestade, por exemplo, o leitor se
depara com uma situação onde uma tempestade forma-se, moldada estilisticamente por
Verne, que, sob o viés do gênero científico, poderia tomar a seguinte forma: A diferença
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de Potencial Elétrico criada entre as nuvens, devido ao desequilíbrio de suas cargas
elétricas, provoca descargas elétricas, ou seja, os raios. O tema é composto de
maneiras diferentes nos dois casos, entretanto as duas formas são importantes e se
complementam, ampliando as possibilidades de compreensão.
A leitura dos livros de ficção científica representa em alguns casos, o primeiro
contato do leitor com o conceito científico, e em outros, o seu estudo mais aprofundado,
desde que conduzida por um professor atento às potencialidades de uma boa ficção
científica.
Ainda a título de resultados de nossas análises, apresentamos um importante
trecho de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells:
– [...] Um cubo instantâneo pode existir?
– Não consigo seguir você, – disse Filby.
– Um cubo que não dure absolutamente nenhum tempo pode ter uma
existência real? – Filby ficou pensativo.
– Claramente, qualquer corpo real deve se estender em quatro
direções: deve ter Comprimento, Largura, Espessura e Duração, –
prosseguiu o Viajante do Tempo. – Mas por uma enfermidade natural
da carne, a qual vou lhes explicar em um momento, tendemos a passar
por cima desse fato. Há, na realidade, quatro dimensões, três das quais
chamamos de planos do espaço, e uma quarta, o Tempo.
Existe, no entanto, uma tendência a formar distinção irreal entre
aquelas três dimensões e esta, porque nossa consciência se move
intermitantemente em um único sentido, ao longo dessa última
dimensão, do começo ao fim de nossas vidas.
– Isso – disse um homem muito jovem, fazendo esforços
espasmódicos para acender seu cigarro sobre o lampião – isso... está
muito claro, realmente.
– Agora, é interessante que isso seja tão amplamente negligenciado –
continuou o Viajante do Tempo, com um leve acesso de alegria. – Eis
realmente o que se entende por Quarta Dimensão, embora algumas
pessoas que dela falam não saibam o que dizem. É apenas uma outra
maneira de olhar para o Tempo. Não há nenhuma diferença entre
Tempo e qualquer uma das três dimensões do Espaço, exceto a de que
nossa consciência se move ao longo dela. Mas alguns tolos tomaram
conta do lado errado da ideia. (WELLS, 1994, p. 12-13).
Neste trecho, Wells atinge uma concepção de “tempo” muito próxima à
definição postulada no século seguinte por Einstein em sua Teoria da Relatividade:
[...] Wells parece prenunciar o que a teoria de relatividade traria a
partir de 1905. [...] Percebe-se que algumas das indagações
fundamentais da física faziam parte do ambiente cultural da época.
(REIS; GUERRA; BRAGA, 2005, p. 31).
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Não nos resta dúvida da grande relevância da ficção científica aqui representada
por Verne e Wells no contexto do conhecimento científico escolar. Os conceitos
presentes nos livros analisados aparecem direta e indiretamente, onde muitas vezes
podem ser utilizados para uma leitura de pretexto (GERALDI, 2006), ou seja, um ponto
de partida para a discussão sobre assuntos científicos pós-século XIX.
Não podemos dizer que se aprende efetivamente a Física lendo somente a
literatura de ficção científica, pois não é esse o desígnio da leitura desse gênero,
entretanto, pudemos encontrar muitos elementos que somados a um ensino
sistematizado dos conceitos, ampliam as oportunidades de compreensão dos alunos
assim como a produção de sentidos.
Na teoria de Bakhtin, a riqueza na composição do tema emana da diversidade de
elementos verbais e não verbais que o constituem. A literatura e a ciência podem
reciprocamente compartilhar inúmeros pontos de apoio e também de conflito. O conflito
conceitual causado pela literatura no contexto científico é diminuto comparado às
possibilidades de construções mais amplas de sentidos que pode suscitar. Tais conflitos
podem ser superados quando concebemos a literatura e a ciência como parcelas da
cultura humana que igualmente contribuem para a nossa formação intelectual. Em
sintonia com a proposta de João Zanetic, acreditamos que a literatura de ficção
científica e a física interagem entre si e se complementam.
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