ALETHEIA Revista de Psicologia No 27 (1) - Jan./Jun. 2008 ISSN 1413-0394 Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente Emir Schneider Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e Comunitário Jairo Jorge da Silva Pró-Reitora de Ensino a Distância Sirlei Dias Gomes Capelão Geral Pastor Gerhard Grasel Ouvidora Geral Eurilda Dias Roman ALETHEIA Revista de Psicologia da ULBRA Disponível on-line pelo portal PePSIC: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php ISSN 1981-1330 Indexadores: Index-Psi Periódicos (CFP); LILACS (BIREME); IBSS; PsycINFO (APA); PePSIC; Latindex; CLASE Editora Profª. Dra. Mary Sandra Carlotto Editores Associados Prof. Dr. Mauro Magalhães Profª Dra. Sheila Gonçalves Câmara Apoio Editorial Profa. Dra. Tânia Rudnicki Profa. Dra. Lígia Braun Shermann Profa. Dra. Maria Piedade Rangel Meneses Profa. Ms. Fernanda Serralta Conselho Editorial Dra. Ana Maria Benevides Pereira (UEM, Maringá/BR) Dra. Ana Maria Jacó-Vilela (UERJ, Rio de Janeiro/BR) Dra. Antonieta Pepe Nakamura (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Carlos Amaral Dias (ISMT/Lisboa/PT) Dra. Dóris Vasconcelos Salençon (Sorbone, Paris/FR) Dr. Eduardo A. Remor (UAM, Madrid/ES) Dr. Francisco Martins (UnB, Brasília/BR) Dr. Hugo Alberto Lupiañez (UDA, Mendoza/AR) Dra. Isabel Arend (UG, Bangor/UK) Dr. João Carlos Alchieri (UFRN, Natal/BR) Dr. Jorge Béria (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Jorge Castellá Sarriera (UFRGS, Porto Alegre/BR) Dr. José Carlos Zanelli (UFSC, Florianópolis/SC) Dra. Jussara Maria Körbes (ULBRA, Canoas/BR) Dra. Maria Lúcia Tiellet Nunes (PUCRS, Porto Alegre/BR) Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi (CEULM, Manaus, BR) Dra. Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS, São Leopoldo/RS) Dr. Mário Cesar Ferreira (UnB, Brasília/BR) Dr. Ramón Arce (USC, Santiago de Compostela/ES) Dr. Ricardo Gorayeb (FMRP-USP, Ribeirão Preto/BR) Dra. Rita de Cássia Petrarca Teixeira (ULBRA Gravataí/BR) Dr. Vicente Caballo (UG, Granada/ES) EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen Assinaturas Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 29 - Sala 202 Bairro São José - Canoas/RS - CEP: 92425-900 Fone: (51) 3477.9118 - Fax: (51) 3477.9115 [email protected] www.editoradaulbra.com.br Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta/exchange Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Biblioteca Martinho Lutero - Setor de Aquisição Av. 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Universidade Luterana do Brasil CDU 159.9(05) Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero Aletheia, Revista semestral editada pelo Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o pensamento dos Editores ou Conselho Editorial Sumário 5 Editorial Artigos de pesquisa 7 Stress, coping e adaptação na transição para o segundo ciclo de escolaridade: efeitos de um programa de intervenção Stress, coping and adaptation in middle school transition: effects of an intervention program Karla Sandy de Leça Correia, Maria Alexandra Marques Pinto 23 Auto-revelação na Internet: um estudo com estudantes universitários Self-disclosure in the Internet: A study with university students Ana Cristina Garcia Dias, Marco Antônio Pereira Teixeira 36 Recordação autobiográfica: reconsiderando dados fenomenais e correlatos neurais Autobiographical recollection: Reconsidering phenomenological data and neural correlates Gustavo Gauer, William Barbosa Gomes 51 Fenomenologia da queixa depressiva em adolescentes: um estudo crítico-cultural Phenomenology of the depressive complaint in adolescents: a critical cultural study Anna Karynne da Silva Melo, Virginia Moreira 65 Projeto do futuro e identidade: um estudo com estudantes formandos Project of future and identity: a study with senior college students Larissa Hery Ito, Dulce Helena Penna Soares 81 Um estudo prospectivo sobre o estresse cotidiano na 1ª série A prospective study on daily hassles in first grade Edna Maria Marturano, Elaine Cristina Gardinal 98 Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família Elderly man: experiencing of roles played during family vital cycle Ivanilza Etelvina dos Santos, Cristina Maria de Souza Brito Dias 111 Imagem corporal em crianças institucionalizadas e em crianças não institucionalizadas Physical image in institutionalized children and non institututionalized children Lorena Emilia Zortéa, Carla Meira Kreutz, Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann 126 Habilidades Sociais Educativas Parentais e problemas de comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares Parental Social Educational Skills and behavior problem: comparing fathers and mothers of preschoolers Alessandra Turini Bolsoni-Silva , Edna Maria Marturano Artigos de atualização 139 O movimento de João de Santo Cristo no mundo: a via-crúcis de uma identidade The movement of João de Santo Cristo in the world: the via-crucis of an identity Andresa Jaqueline Toassi, Michele Caroline Stolf, Maria Chalfin Coutinho, Dulce Helena Penna Soares 157 Vínculos familiares na adolescência: nuances e vicissitudes na clínica psicanalítica com adolescentes Family bonds in adolescence: nuance and vicissitude in psychoanalytical clinic with teenagers Aline Bedin Jordão 173 Psicoterapia de casal: modelos e perspectivas Couple psychotherapy: Models and perspectives Terezinha Féres-Carneiro, Orestes Diniz Neto 188 Compreender a gestão a partir do cotidiano de trabalho Understanding management from everyday work life Leny Sato, Fábio de Oliveira 198 A seca enquanto um hazard e um desastre: uma revisão teórica The drought while a hazard and a disaster: a theoretical review Eveline Favero, Vivien Diesel 210 A toxicomania enquanto doença incurável e sua relação com um tratamento possível The drug addiction as an incurable disease and its relation with a possible treatment Amanda Schreiner Pereira 222 Psicologia e epistemologia: por uma perspectiva ética de potencialização da vida Psychology and epistemology: trough an ethical perspective for the potency of life Jardel Sander da Silva Relato de experiência 233 Reflexões acerca do atendimento psicológico a desempregados Reflections on psychological counseling to unemployed individuals Janine Kieling Monteiro, Clarissa Machado Pesenti, Daiane Maus, Daniela Bottega, Fabiane Rosa Machado Resenha 243 La invención ecológica. Narraciones y trayectorias de la educación ambiental en Brasil Bodil Andrade Frich 247 Instruções aos autores 253 Instructions for the authors 259 Instrucciones a los autores Editorial A revista Aletheia tem-se mantido fiel à sua concepção ao longo de seus 11 anos de existência, estando no nome do periódico sua maior representação. Sua trajetória é marcada pelo compromisso com o desenvolvimento da Psicologia como ciência e como profissão, e sua conceituação junto à CAPES, reconhecimento da sua qualidade. Desnecessário elencar todas as dificuldades para chegarmos a esse estágio, uma vez que todos os periódicos nacionais, em maior ou menor escala, possuem uma história singular de luta para manter-se em dia e com alto grau de reconhecimento entre seus pares. Muitas dificuldades perpetuam-se, e outras novas, com certeza, irão surgir. A Aletheia construiu seu espaço e mantém-se no âmbito de um curso de graduação, o que torna sua história diferenciada de outros periódicos. É, portanto, uma grande satisfação para o Curso de Psicologia da ULBRA Canoas, quando comemora seus 25 anos, contar com o reconhecimento e a confiança crescente da instituição, dos autores, consultores, pareceristas e leitores. O retorno positivo que a Aletheia tem recebido de toda a comunidade científica é a força que a mobiliza a seguir em frente em sua trajetória, fazendo caminho, mudando sempre, mas mantendo-se fiel ao seu fluxo, como um rio. Ser capaz, como um rio Que leva sozinho A canoa que se cansa, De servir de caminho Para a esperança E de levar do límpido A mágoa da mancha, Como o rio que leva e lava Crescer para entregar Na distância calada Um poder de canção, Como um rio decifra O segredo do chão. Se é tempo de descer, reter o Dom da força Sem deixar de seguir E até mesmo sumir Para, subterrâneo, Aprender a voltar E cumprir no seu curso O ofício de amar. Como um rio, aceitar Essas súbitas ondas Feitas de águas impuras Que afloram a escondida Verdade nas funduras. Como um rio, que nasce De outros, saber seguir Junto com outros sendo E noutros se prolongando E construir o encontro Com as águas grandes Do oceano sem fim. Mudar em movimento, Mas sem deixar de ser O mesmo ser que muda Como um rio. (Thiago de Mello) A todos desejamos uma boa leitura! Os editores 6 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.7-22, jan./jun. 2008 Stress, coping e adaptação na transição para o segundo ciclo de escolaridade: efeitos de um programa de intervenção Karla Sandy de Leça Correia Maria Alexandra Marques Pinto Resumo: A transição escolar pode ser entendida como um período de crise normativa na vida de crianças e adolescentes. O estudo analisou as diferenças nos factores de stress relevantes na transição de ciclo escolar, as estratégias de coping utilizadas e dois índices de adaptação, académico e social, entre três grupos de estudantes: grupo que participou num programa com sessões acerca da Transição (n=83) no 4º ano de escolaridade; grupo que participou deste programa e de treino de Competências Sociais (n=22); e um grupo de controlo (n=104).Os resultados apontam que o grupo que foi submetido a um programa de promoção de Competências Sociais e de sessões sobre a Transição utilizou com maior frequência estratégias de coping, particularmente, as de distracção cognitiva e comportamental, do que os outros dois grupos. Não se verificaram diferenças nos níveis de stress escolar e nos dois índices de adaptação entre os três grupos considerados. Palavras-chave: stress, coping, transição. Stress, coping and adaptation in middle school transition: effects of an intervention program Abstract: This study analyzes the differences in the stress factors that are relevant in school transition, coping strategies used and two adaptation indexes, academic and social, between three groups of students: a group that took part in a program with sessions about Transition (n=83) in the fourth year, a group that, in addition to this program, took part in Social Skills training (n=22) and a control group (n=104). The results reveal that the group that profited with the Social Skills training and other sessions related with the Transition, made use of coping strategies more frequently, especially the cognitive-behavioral distraction ones, than the other two. There were no differences in school stress levels and the two adaptation indexes in the three groups. Key words: Stress, coping, transition. Introdução A transição de ciclo escolar constitui uma experiência significativa na vida de uma criança ou jovem, e um grande desafio ao seu desenvolvimento. Existem evidências de um aumento dos níveis de stress e perturbação emocional associados a essas transições (Cleto & Costa, 2000; McManus, 1997; Wenz-Gross, Siperstein, Untch & Widaman, 1997). Na transição para o segundo ciclo de escolaridade, o pré-adolescente é confrontado com toda uma série de mudanças que tem que integrar, numa fase em que grandes alterações estão também a ocorrer em seu desenvolvimento. A entrada na Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 7 adolescência implica mudanças em nível biológico, emocional, cognitivo e social, e a mudança de escola e ciclo escolar acarreta alterações no contexto escolar, nas regras de funcionamento, nas relações com os professores e no grupo de pares. Em termos académicos, a estrutura do meio escolar torna-se mais complexa e aumentam as expectativas em relação ao desempenho do aluno (Wenz-Gross & cols., 1997). O tamanho da nova escola, de modo geral, é significativamente maior, o rigor académico mais elevado, os círculos sociais e a pressão de pares são mais sentidos, a disciplina é mais focada e directiva, a estrutura escolar e o método de ensino muda, o número de professores e disciplinas aumenta, existe um menor suporte emocional da parte dos professores, e uma diminuição do contacto entre os alunos e os professores (Gutman & Midgley, 2000). A estrutura do grupo de pares também é afectada, e os alunos são confrontados com outros alunos mais velhos na mesma escola. Em nível social os alunos devem lidar com uma rede de pares mais flutuante e de maior dimensão, numa fase de desenvolvimento em que as relações com o grupo de pares se intensificam e tomam uma maior relevância (Elias, Gara & Ubriaco, 1985), e em que novas relações têm de ser estabelecidas. Nesta fase começam a emergir relações professor-aluno potencialmente mais conflituosas, em que, por um lado, os alunos procuram progressivamente mais autonomia, e por outro, os professores dão maior ênfase ao controlo e à disciplina (Wenz-Gross & cols., 1997). De acordo com a revisão de literatura realizada por Akos e Galassi (2004), os alunos parecem identificar três categorias primárias de preocupações relativas à transição, nomeadamente, académica, processual e social. Este trabalho se insere no âmbito de estudos acerca dos processos de stress e coping e das suas relações com a adaptação na mudança de ciclo escolar. O stress e o desafio inerentes à adaptação podem criar crises desenvolvimentais mesmo para indivíduos com mais recursos (Akos, 2002). A forma como são resolvidas essas crises depende da avaliação que é feita das exigências e dos recursos de coping que são mobilizados para fazer face a essas mesmas exigências (Lazarus & Folkman, 1984). Na ausência de modelos específicos ou teorias que expliquem os processos de stress-coping na criança, é utilizado o modelo transaccional de Lazarus e Folkman (1984), desenvolvido para explicar este processo em adultos, mas que tem sido utilizado como referencial teórico em muitas investigações sobre os processos de adaptação em crianças e adolescentes (Causey & Dubow, 1992; Compas, 1987; McManus, 1997; Ryan-Wenger, 1990, 1992; Seiffge-Krenke, 1995). Na perspectiva da teoria de stress e coping de Lazarus, a avaliação individual dos stressores relaciona-se mais com a resposta biopsicossocial do indivíduo do que com o acontecimento em si mesmo (Lazarus & Folkman, 1984). Do ponto de vista dos resultados de adaptação, não é o stress, per se, que é importante, mas sim a forma como nos confrontamos com ele, ou seja, o coping. O coping está associado ao ajustamento emocional e comportamental nas crianças e adolescentes (Causey & Dubow, 1992; Compas, Davis, Forsythe & Wagner, 1987), e pode ser entendido como um mediador da relação entre stress e saúde-doença. 8 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Para Ryan-Wenger (1994) e Lima, Serra de Lemos e Prista Guerra (2002), o coping é um conceito que se insere num termo mais abrangente que é a adaptação, e refere-se ao esforço comportamental e cognitivo por parte de um indivíduo no sentido de lidar e gerir os stressores, bem como a relação pessoa-meio. Assim, o coping é concebido como voluntário, consciente e intencional. De acordo com o modelo transaccional o stress refere-se a “uma relação particular entre o indivíduo e o ambiente, que é considerado por este como ameaçador e muito superior aos seus recursos e capaz de pôr em perigo o seu bem-estar” (Lazarus & Folkman, 1984, p.43). Alguns estudos (Alspaugh, 1998; Hirsch & Rapkin, 1987; Seidman, Allen, Aber, Mitchell & Feinman, 1994) revelam uma associação entre stress escolar e o ajustamento emocional e académico dos alunos. Os estudos apontam uniformemente para um declínio no desempenho académico após a transição escolar (Alspaugh, 1998; Gutman & Midgley, 2000; Seidman & cols., 1994; Seidman, Aber & French, 2004). A transição para o “junior high school”1 tem sido consistentemente associada a uma diminuição na motivação académica das crianças e à diminuição na sua percepção de competência académica (Alspaugh, 1998; Anderman & Midgley, 1997; Cantin & Boivin, 2004; Wigfield, Eccles, MacIver, Reuman & Midgley, 1991). Alguns estudos referem que diminuições na auto-estima (Cantin & Boivin, 2004; Seidman & cols., 1994; Wigfield & cols., 1991) e outras manifestações de distress psicológico estão associadas a esta transição escolar normativa. Contudo, estas alterações podem ser apenas temporárias, como sugerido por estudo relativos à auto-estima em que as mudanças reveladas não se mantêm para além do primeiro ano do segundo ciclo (“junior high school”) (Cantin & Boivin, 2004; Wigfield & cols., 1991). No contexto português, as investigações sobre stress, coping e adaptação nas transições escolares são escassos. Cleto e Costa (2000) realizaram um estudo acerca das estratégias de coping e a adaptação de alunos de 7º ano de escolaridade, não tendo sido encontradas diferenças na adaptação à escola entre os alunos que permaneciam no mesmo contexto escolar e os que mudavam de escola na transição para o terceiro ciclo. As autoras justificaram os resultados sugerindo que a transição para o segundo ciclo poderá ter contribuído para a aprendizagem e mobilização de recursos pessoais de coping e sociais necessários na adaptação à transição subsequente, na entrada para o terceiro ciclo. Pereira e Mendonça (2005) realizaram um estudo com crianças que mudaram de escola na transição para o segundo ciclo de escolaridade. Os acontecimentos indutores de stress relacionados com o domínio académico foram identificados como os mais freqüentes, destacando-se a realização dos trabalhos e actividades escolares (81%), quer por dificuldades de concretização, quer pelo facto de terem de gerir várias exigências em simultâneo, o que implica uma maior capacidade de organização e de auto-regulação por parte dos alunos. 1 Na estrutura do sistema educativo nos E. U. A. a transição de ciclo ocorre na passagem do quinto para o sexto ano (para a middle school), ou na passagem do sexto para o sétimo ano de escolaridade (junior high school) Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 9 Por outro lado, verificou-se um maior nível de stress associado a acontecimentos referentes à relação com o professor e com as regras da escola. As crianças apresentavam um elevado grau de preocupação perante incidentes relacionados com a pressão para o desvio e violência na escola, em situações de incumprimento de regras na sala de aula e problemas na relação com o professor (Pereira & Mendonça, 2005). Relativamente às estratégias de coping, Lima, Serra de Lemos e Prista Guerra (2002) verificaram num estudo com alunos portugueses do primeiro e segundo ciclo, com idades compreendidas entre os 8 e os 12 anos, com base no Schoolagers’Coping Strategies Inventory – SCSI (Ryan-Wenger, 1990), que as crianças mais novas utilizavam estratégias de distracção cognitiva/comportamental mais frequentemente e consideram-nas mais eficazes do que as mais velhas. À medida que a idade aumentava, diminuiu o número de crianças que utilizavam estratégias de distracção cognitiva/comportamental, assim como a percepção da eficácia deste tipo de estratégias (Lima & cols., 2002). Tendo em conta o stress associado à mudança de ciclo escolar indicado por alguns estudos, e as implicações deste na adaptação dos alunos ao novo contexto, torna-se importante promover medidas que facilitem a integração dos mesmos. Tal como Pereira e Mendonça (2005) salientam, as intervenções devem ser desenvolvidas antes e depois da transição ter ocorrido, e tendo em conta as diferentes dimensões do stress a que estão sujeitos os alunos em transição de ciclo escolar. Neste sentido, a presente investigação surge com o objectivo de estudar os fenómenos de stress, coping e adaptação em alunos que transitaram para o segundo ciclo de escolaridade, comparando dois grupos que se beneficiaram de programas de intervenção relacionados com a transição e um grupo de controlo. Um dos grupos experimentais foi composto de alunos que participaram num programa de promoção de competências na transição escolar, denominado “Transições” no terceiro período do 4º ano de escolaridade, enquanto que o outro grupo participou num programa de promoção de competências sócio-emocionais, ao longo de três anos, finalizando no terceiro período do 4º ano de escolaridade com o programa “Transições”. Tendo em conta que o objectivo do programa “Transições” seria preparar os alunos para a transição de ciclo escolar e para a mudança para um novo contexto, e diminuir a ansiedade e o stress perante esta mudança, é esperado que as crianças dos grupos que beneficiaram deste programa apresentassem um leque maior de estratégias de coping, percebessem menos stress e estivessem mais adaptadas do que as do grupo de controlo. Era igualmente esperado que estas diferenças fossem mais acentuadas para o grupo que beneficiou previamente do programa de promoção de competências sócio-emocionais. Finalmente, pretendeu-se ainda explorar as diferenças nos níveis de stress, coping e adaptação em função da variável escola de proveniência, isto é, a escola que os alunos frequentaram no 4º ano de escolaridade, uma vez que as características das escolas de onde estes transitaram poderiam ser relevantes para a compreensão dos resultados. 10 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Método Amostra A amostra foi constituída de 209 alunos que frequentavam o 5º ano de escolaridade pela 1ª vez, em três escolas de 2º e 3º ciclo de escolaridade do ensino público da área de Lisboa. A escolha das escolas deveu-se ao facto de serem a sede de Agrupamento da qual fazem parte as escolas de 1º ciclo de ensino básico onde foi desenvolvido um programa de competências na Transição do 1º para o 2º ciclo, no ano lectivo 2004/2005. Foram considerados três grupos: um grupo que beneficiou de um programa de promoção de competências na transição escolar, denominado Transições no terceiro período do 4º ano de escolaridade (n=83), um grupo que para além desta intervenção beneficiou de um trabalho em nível das competências sócio-emocionais, ao longo de três anos (n=22), e um grupo que não beneficiou de qualquer intervenção (n=104). No total da amostra, a percentagem de alunos de sexo masculino (49,3%) e de sexo feminino (50,7 %) eram semelhantes, e tinham idades compreendidas entre os 9 e os 15 anos, estando a maioria dentro do escalão etário dos 10 aos 11 anos (78,9%). Contudo, é de salientar a percentagem considerável de alunos que frequentavam pela primeira vez o 5º ano de escolaridade com idades entre 12 e 15 anos (20,4%). Foram considerados como indicadores sócio-econômicos a profissão do pai e da mãe. Pode-se verificar que 75% das respostas obtidas indicavam pais desempregados, operários, empregados de serviços e comércio, enquanto que os restantes 25 % correspondiam a empresários e quadros médios e superiores. No que se refere à profissão da mãe, apenas 11,7% correspondiam a empresárias e quadros médios ou superiores, sendo as restantes 88,3% distribuídas pelas profissões doméstica, operárias, empregadas dos serviços e do comércio, e ainda 19,4% desempregada. Instrumentos Para além dos dados biográficos, o questionário utilizado incidiu nas seguintes variáveis: Índice de Desempenho Acadêmico: Para avaliar a adaptação académica foi construído para este estudo um índice de desempenho académico que corresponde à média das notas do final do primeiro período nas disciplinas Língua Portuguesa, Matemática, Língua Estrangeira, História e Geografia de Portugal, Ciências da Natureza, Educação Física, Educação Visual e Tecnológica e Educação Musical. Indicador de Apoio Social: Para avaliar a adaptação do ponto de vista social foi construído para este estudo um indicador de apoio social, nomeadamente o número de pessoas com quem a criança acha que pode contar para o ajudar quando tem algum problema ou quando se sente triste ou preocupado com alguma coisa, e o grau de satisfação com o apoio que espera dessas pessoas, avaliado numa escala de 1 (Nada Satisfeito) a 4 (Muito Satisfeito) para cada pessoa indicada. Para calcular o índice de Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 11 apoio social foi efectuado o somatório do grau de satisfação dividido pelo número de pessoas referido, obtendo assim a média de satisfação com o apoio social esperado. School Stress Inventory (Siperstein & Wenz-Gross, 1997; versão portuguesa de Pereira, 2003): Este instrumento tem por objectivo avaliar a ocorrência de acontecimentos perturbadores em contexto escolar e o nível de stress associado a esses acontecimentos em estudantes do “middle school”, que corresponde ao segundo ciclo, do sexto ao oitavo ano de escolaridade. A versão original deste instrumento é constituída por 53 itens, que correspondem a acontecimentos potencialmente geradores de stress, e cuja resposta assenta numa escala de 0 a 4. O aluno deve decidir se cada acontecimento ocorreu durante aquele ano lectivo, sendo atribuída a pontuação 0, para os acontecimentos que não ocorreram, e de 1 (não preocupado) a 4 (muito preocupado) para os acontecimentos que ocorreram naquele ano lectivo atendendo à forma como se sentiu, ou seja, ao nível de stress associado. As análises factoriais apoiam uma estrutura em três factores tanto na versão original (Wenz-Gross & cols., 1997) como na versão portuguesa (Pereira, 2003): Um factor denominado Stress Académico, constituído por 14 itens (eg. “ter notas baixas na minha ficha de avaliação de fim de trimestre”); outro de Stress Social, constituído por 15 itens (eg. “ter dificuldade em fazer novos amigos”) e um terceiro factor de Stress em Relação aos Professores e Regras, formado por 20 itens (eg. “entregar um trabalho fora de prazo”). Esta estrutura em três factores explica 33,86% da variância encontrada. Dos 53 itens da versão original foram retirados 4 itens na adaptação portuguesa por não cumprirem o critério de inclusão (peso factorial superior a 0,30) relativamente a nenhum dos factores. Os estudos psicométricos da versão original e da adaptação portuguesa apoiam a existência de bons índices de fiabilidade e de validade do instrumento. Os factores revelaram coeficientes de consistência interna com valores entre 0,74 e 0,82 para a escala original (Wenz-Gross & cols., 1997), superior a 0,80 na versão portuguesa (Pereira, 2003).Os valores do α de Cronbach no presente estudo, são de 0,96 para a escala total, e entre 0,90 e 0,91 para as sub-escalas, indicando uma boa consistência interna Schoolager’s Coping Strategies Inventory (Ryan-Wenger, 1990; versão portuguesa estudada por Lima, Serra de Lemos & Prista Guerra, 2002): Este é um instrumento de auto-relato, que avalia o tipo, a frequência e o grau de eficácia das estratégias de coping utilizadas pelas crianças entre os 8 e os 12 anos de idade (RyanWenger, 1990), e é constituído por 26 itens. As crianças cotam cada estratégia de coping quanto à frequência de uso perante stress, e quanto ao grau de eficácia, numa escala de 0 a 3, sendo obtidas três medidas: o valor da escala de Frequência, o valor da escala de Eficácia, e o valor total da escala SCSI. A análise factorial exploratória dos dados da versão original (Ryan-Wenger, 1990) revelou uma estrutura não suficientemente clara, pelo que a autora optou por considerá-la como um instrumento unidimensional. Na adaptação portuguesa foram excluídos os itens 2, 16, 20, 22, e 23, que apresentavam valores baixos na análise da consistência interna da escala. As análises factoriais revelaram uma estrutura em três factores semelhante para a escala de frequência e de eficácia, considerada pelas autoras bastante satisfatória, interpretável e conceptualmente coerente (Lima & cols., 2002). 12 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Na escala de Frequência, o factor 1 é constituído por 10 itens (eg. “jogar um jogo ou fazer qualquer coisa do género”) e agrupa estratégias que podem ser designadas de distracção cognitiva e comportamental. O factor 2 agrupa itens que descrevem formas de lidar com stressores geralmente designados de comportamentos de acting out, ou de exteriorização de afectos negativos (eg. “andar à luta com alguém”). Finalmente o factor 3 inclui itens que se referem a estratégias activas ou de diálogo interno que incluem formas de a criança lidar com os problemas centrando-se nos recursos próprios na tentativa de os resolver (eg. “fazer alguma coisa para resolver o problema”). A análise factorial da escala de Eficácia revela uma estrutura factorial igual à da escala de Frequência, à excepção de um dos itens (item 15). Relativamente à consistência interna das Escala de Frequência e de Eficácia foram encontrados valores aceitáveis de α de Cronbach, superiores a 0,75 tanto na versão original (Ryan-Wenger, 1990) como na versão portuguesa (Lima & cols., 2002), e superiores a 0,82 no presente estudo. Os valores a de Cronbach para os factores indicam uma boa consistência interna (α>0,70), tanto para a adaptação portuguesa de Lima e cols. (2002) como no presente estudo, com excepção do factor referente às estratégias activas ou de diálogo interno em que os valores de µ são mais baixos (α de 0,56 para a escala de frequência, e de 0,57 para a escala de eficácia no presente estudo), mas considerados suficientes para o reter na análise dos resultados. Procedimento No ano lectivo 2004/2005 foram desenvolvidos dois programas com alunos do 4º ano de escolaridade: um programa denominado “Transições” e um programa de treino de Competências Sociais. O programa “Transições” tinha por objectivo preparar os alunos para a mudança de ciclo e escola. As sessões, de carácter lúdico-pedagógico, pretendiam dar a conhecer antecipadamente a realidade da nova escola, nomeadamente, os diversos espaços e suas funções e regras, disciplinas, e treinar competências de organização do material e do tempo. O programa de Competências Sociais pretendia desenvolver competências como a comunicação verbal e não verbal, comportamento assertivo, capacidade de resolução de problemas, e tomada de decisão. Após a transição para o quinto ano de escolaridade foram aplicados os instrumentos de forma a perceber os efeitos da intervenção efectuada, comparando os dois grupos experimentais com um grupo de controlo, não tendo existido um pré-teste. A aplicação dos instrumentos foi realizada maioritariamente no contexto de sala de aula ao grupo total da turma, nas aulas de Formação Cívica, entre Janeiro e Março de 2006. Foram seleccionadas as turmas que continham alunos que participaram nos programas referidos no quarto ano de escolaridade. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 13 Resultados Em primeiro lugar testou-se a equivalência dos três grupos, relativamente à idade, distribuição de sexo e das profissões do pai e da mãe. Não foram encontradas diferenças significativas na média das idades (F(2,206)=2,285; p>0,05), na distribuição dos sexos (c2=4,720, p>0,05), na distribuição das profissões do pai (c2=5,786; p>0,05), e da mãe (c2=7,689; p>0,05) dos três grupos considerados. Diferenças no Stress Escolar nos grupos referentes à participação no Programa Não se verificaram diferenças significativas nos três grupos relativamente ao Stress Escolar total (F(2,206)=1,49; p>0,22), ou ao Stress Académico (F(2,206)=2,16; p>0,11), Stress Relacionado com o Professor e Regras (F(2,206)=1,04; p>0,35) e Stress Social (F(2,206)=0,83; p>0,43), conforme mostra o Tabela 1. Tabela 1 – Análise da variância do stress escolar nos três grupos: Transições, Competências + Transições, e Sem Intervenção Transições Transições + Competências Sociais Sem intervenção Stress Académico M 24,74 30,38 23,85 DP 14,66 13,19 12,41 Stress Professor/ Regras M 23,20 27,98 21,98 DP 19,14 17,93 16,44 Stress Social M 16,00 18,65 14,91 DP 14,08 13,17 11,16 Stress Escolar Total M. 63,94 77,01 60,74 DP 44,44 41,49 36,15 Fonte da variação Soma dos quadrados g. l. Média dos uadrados F 2,159 Stress Académico 778,459 2 389,229 Dentro dos grupos Entre grupos 37140,063 206 180,292 Total 37918,522 208 Stress Professor /Regras Entre grupos 654,589 2 327,294 Dentro dos grupos 64648,345 206 313,827 Total 65302,934 208 1,043 Stress Social Entre grupos 263,344 2 131,672 Dentro dos grupos 32721,253 206 158,841 Total 32984,597 208 0,829 Stress Escolar Total Entre grupos 4813,608 2 2406,804 Dentro dos grupos 332734,94 206 1615,218 Total 337548,55 208 *p<.05 14 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 1,490 Diferenças nas estratégias de coping nos grupos referentes à participação no Programa Verificaram-se apenas diferenças significativas na frequência de estratégias de coping de distracção cognitiva e comportamental (F(2,206)=4,27; p<0,05), e na frequência total de estratégias de coping (F(2,206)=3,61; p<0,05). O grupo que beneficiou de Competências Sociais e Transições apresentou maior frequência de estratégias de distracção cognitiva (M=16,23, DP=4,77) e maior frequência total de estratégias de coping (M=28,60, DP=8,25) do que os grupos Transições (M=13,16, DP=2,63; e M=24,03, DP=7,64), e sem intervenção (M=13,51, DP=4,20; e M=23,90, DP=7,56), de acordo com o teste de Tukey (p<0,05). Não se verificaram diferenças significativas entre os três grupos no que se refere à frequência de estratégias de coping de acting out e de estratégias activas ou de diálogo interno ou à eficácia das três dimensões de coping. Tabela 2 – Análise da variância da frequência do coping nos três grupos de intervenção: Transições, Competências + Transições, e Sem Intervenção Transições Transições + Competências Sociais Sem intervenção M 13,16 16,23 13,51 DP 2,63 4,77 4,20 Escala de Frequência da SCSI Distracção Cog. E Comportamental Acting Out M 3,08 3,98 2,81 DP 2,61 3,25 2,54 Activas/ Diálogo Interno M 7,79 8,39 7,58 DP 2,81 3,15 3,09 M 24,03 28,60 23,90 DP. 7,64 8,25 7,56 Frequência Total Fonte da variação Soma dos quadrados g. l. Média dos quadrados F 4,269* Distracção Cog. E Comportamental Entre grupos 168,056 2 84,028 Dentro dos grupos 4054,532 206 19,682 Total 4222,587 208 Acting Out Entre grupos 25,340 2 12,670 Dentro dos grupos 1448,209 206 7,030 Total 1473,548 208 1,802 Activas/ Diálogo Interno Entre grupos 12,059 2 6,030 Dentro dos grupos 1840,955 206 8,937 Total 1853,014 208 0,675 Frequência Total Entre grupos 424,186 2 212,093 Dentro dos grupos 12100,119 206 58,738 Total 12524,304 208 3,611* *p<.05 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 15 Tabela 3 – Análise da variância da eficácia do coping nos três grupos: Transições, Competências + Transições, e Sem Intervenção Transições Transições + Competências Sociais Sem intervenção M 15,76 16,99 15,78 DP 4,64 3,80 4,04 Escala de Eficácia da SCSI Distracção Cog. E Comportamental Acting Out M 4,17 4,24 3,61 DP 3,31 3,26 3,12 M 12,02 12,50 12,19 DP 3,52 3,74 3,80 M. 31,95 33,72 31,58 DP 8,51 8,75 8,47 Activas/ Diálogo Interno Eficácia Total Fonte da variação Soma dos quadrados g. l. Média dos quadrados F 0,799 Distracção Cog. E Comportamental Entre grupos 29,084 2 14,542 Dentro dos grupos 3751,062 206 18,209 Total 3780,147 208 Acting Out Entre grupos 17,745 2 8,873 Dentro dos grupos 2129,448 206 10,337 Total 2147,193 208 0,858 Activas/ Diálogo Interno Entre grupos 4,331 2 2,155 Dentro dos grupos 2800,427 206 13,594 Total 2804,737 208 0,159 Eficácia Total Entre grupos 83,622 2 41,811 Dentro dos grupos 14945,558 206 72,551 Total 15029,180 208 0,576 *p<.05 Diferenças na adaptação nos grupos referentes à participação no Programa Foram considerados os dois índices de adaptação, um do ponto de vista académico e outro social, e testada a análise de variância nos três grupos. Não se verificaram diferenças significativas nos três grupos relativamente às notas escolares (F(2,157)=2,45; p>0,09) e à média de satisfação com o apoio social (F(2,178)=0,74; p>0,47). 16 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Diferenças relativas à escola de proveniência Foram estudadas as diferenças em nível do stress escolar, estratégias de coping e adaptação tendo em conta a escola de 1º ciclo frequentada pelos alunos no ano anterior. Uma vez que os alunos transitaram de vinte e oito escolas de 1º ciclo, e que algumas delas estavam muito sub-representadas na amostra do estudo, tornou-se necessário agrupar algumas escolas de proveniência (aquelas com menos de cinco sujeitos na amostra), tendo sido utilizado o critério de pertencerem ao mesmo agrupamento de escolas. Relativamente ao stress, não foram verificadas diferenças significativas no nível de stress académico (F(14,194)=2,41; p<0,01), stress relacionado com os professores e regras (F(14,194)=2,69; p<0,01), stress social (F(14,194)=2,65; p<0,01), e no nível de stress escolar total (F(14,194)=2,81; p<0,01) de acordo com a escola de proveniência. Ao analisar as diferenças entre alunos provenientes de diferentes escolas de 1º ciclo, através do método de Tuckey (p<0,05), pode-se verificar que os alunos provenientes das escolas 1 e 7, onde foram desenvolvidas actividades referentes à transição, apresentaram em média, maior stress académico do que os alunos da escola 14 (escola sem intervenção). Por outro lado, verificou-se que os alunos da escola 1 apresentaram, em média, mais stress relacionado com professores e regras, do que os alunos provenientes das escolas 4 (escolas com intervenção) e 6 (escola sem intervenção), e maior stress social, e stress escolar total do que os das escolas 4 e 10 (que beneficiaram de intervenção), e 6 e 14 (sem intervenção). Relativamente à frequência de estratégias de coping, verificamos existirem diferenças significativas entre os grupos provenientes de diferentes escolas de primeiro ciclo na frequência de estratégias de coping de distracção cognitiva (F(14,194)=1,91; p<0,05), e de estratégias de coping activas ou de diálogo interno(F(14,194)=1,74; p=0,05), e na frequência total de estratégias de coping utilizadas (F(14,194)=2,45; p<0,01). Com base no método de Tukey HSD (p<0,05), verifica-se que os alunos da escola 3 (alvo de intervenção) apresentaram em média maior frequência de estratégias de coping de distracção cognitiva do que os alunos das escolas 6 (sem intervenção). Por outro lado, os alunos provenientes da escola 6 (sem intervenção) utilizaram em média, com menor frequência estratégias de coping activo, e menor frequência total de estratégias do que os alunos das escolas 3 e 7 (alvo de intervenção), e 12 (sem intervenção). Em nível da eficácia percebida das estratégias de coping não foram verificadas diferenças significativas em qualquer das dimensões da escala entre os grupos provenientes de diferentes escolas (de acordo com o método de Tukey, p>0,05). Por outro lado, não se verificaram diferenças significativas relativamente às notas escolares (F(14,145)=1,69; p>0,05) e à média de satisfação com o apoio social nos grupos estabelecidos de acordo com a escola de proveniência (F(14,166)=1,08; p>0,05). Discussão Ao comparar o grupo que beneficiou de competências sociais e competências inerentes à transição escolar, com o grupo que participou apenas nas sessões sobre a Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 17 transição escolar e o grupo sem intervenção, não foram encontradas diferenças no nível de stress escolar total nem nos vários factores de stress. O facto de alguns alunos terem beneficiado de intervenção antes da transição para o quinto ano de escolaridade, não parece ter tido implicações nos níveis de stress percebidos após a transição. Tendo em consideração que um dos objectivos da intervenção era diminuir o stress na transição escolar era esperado que o grupo Competências sociais e Transições, e o grupo Transições, apresentassem níveis de stress mais baixos do que o grupo sem intervenção. Este resultado pode ter tido diferentes explicações. Por um lado, o facto da recolha de dados ter sido feita por uma técnica que trabalhou com algumas das crianças inquiridas no contexto dos programas Transições, pode ter facilitado a exposição das preocupações por parte destas crianças. O trabalho realizado, em pequenos grupos, terá, nessa perspectiva, permitido estabelecer uma relação de confiança, e a possibilidade de expressar as suas emoções e preocupações. Um dos aspectos trabalhados no grupo Competências Sociais e Transições é a expressão emocional, a identificação e expressão de afectos tanto positivos como negativos. Por outro lado, o momento em que foi realizada a recolha de dados poderá também ter influência. O facto dos questionários terem sido aplicados no segundo período escolar, terá permitido existir um ajustamento inicial perante a entrada na nova escola e na nova rotina escolar. O programa Transições implicou sobretudo questões processuais referentes à transição, tendo sido abordadas as novas rotinas escolares e a complexidade do novo ambiente escolar. Na fase em que a recolha de dados foi efectuada teria existido tempo suficiente para a adaptação às mudanças processuais inerentes à transição. Segundo Akos e Galassi (2004), a maior parte dos alunos provavelmente adaptarse-á mais facilmente aos aspectos processuais da transição do que às questões académicas ou sociais. As preocupações a nível processual devem ser antecipadas uma vez que a transição implica uma mudança de um meio escolar mais simples para outro mais complexo. O envolvimento em actividades conjuntas em diferentes ambientes requer que a pessoa se adapte a várias pessoas, tarefas e situações, implicando que aumente o alcance e flexibilidade das suas competências sociais e cognitivas (Bronfenbrenner, 1979). Relativamente às estratégias de coping, o grupo que beneficiou de Competências Sociais e Transições, apresenta maior frequência total de estratégias e maior frequência de estratégias de distracção cognitiva e comportamental, do que o grupo que beneficiou unicamente das sessões relacionadas com a transição, e do que o grupo sem intervenção. Tendo em consideração que este grupo beneficiou de um treino de competências pessoais e sociais era esperado que tivessem alargado o leque de estratégias de confronto disponíveis. O facto de utilizarem com maior frequência as estratégias de distracção cognitiva e comportamental, do que os demais grupos pode representar uma forma de confronto perante situações em que não é percebido qualquer controlo sobre os acontecimentos indutores de stress. Estes resultados vão de encontro com o estudo de Lima e cols., (2002), que indica que as crianças mais novas utilizam com maior frequência e consideram mais eficazes este tipo de estratégias. Uma variável que interessaria introduzir em 18 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 futuros estudos corresponde à percepção de controlo das crianças sobre os stressores. Alguns estudos mostram que o sentido de controlo sobre o stressor tem impacto no bem-estar, no comportamento de coping e nos resultados. Hardy, Power e Jaedicke, citados por Ryan-Wenger Sharrer e Campbel (2004), verificaram que as crianças que sentiam que não tinham qualquer controlo sobre os stressores diários respondiam com maior evitamento do que as crianças que percebiam algum controlo. Assim, seria útil identificar as percepções de controlo da criança sobre o stressor, e estudar a relação entre o controlo, tipos de estratégias utilizadas e resultados. Em situações em que a criança percebe baixo controlo do stressor, e em que se considera existir potencial para a mudança nessa percepção, esta pode ser ajudada a encontrar formas de recuperar algum controlo e mudar respostas maladaptativas. Por outro lado, não se verificaram diferenças nos dois índices de adaptação do ponto de vista académico e social. O grupo que beneficiou de Competências Sociais e sessões referentes à Transição apresenta em média notas escolares e satisfação com o apoio social semelhantes aos do grupo que participou unicamente no programa Transições e do grupo sem intervenção. A inexistência de diferenças entre os grupos nos indicadores de adaptação pode ser explorada tendo em conta o papel da variável “escola de proveniência”. Ainda que os grupos estudados sejam equivalentes em relação à distribuição por sexo, idade e em nível das distribuições das profissões do pai e da mãe, o critério de inclusão nos dois tipos de intervenção pode contemplar variáveis estranhas, designadamente a “escola de proveniência”, que podem interferir nos resultados. Foram incluídas no grupo Transições todas as crianças que frequentavam escolas de 1º ciclo de escolaridade abrangidas pelos projectos de prevenção primária de cinco freguesias de Lisboa. Contudo, o facto de algumas destas crianças terem beneficiado de programas de competências sociais e pessoais para além das sessões relacionadas com a transição introduz algumas variáveis que importa ter em conta. Este grupo é constituído por alunos provenientes de duas escolas de primeiro ciclo (escolas 3 e 7). Na escola 3 foram trabalhadas competências sociais e pessoais com todos os alunos de 4º ano de escolaridade, finalizando o terceiro período do terceiro ano de intervenção com sessões temáticas acerca da transição. Contudo, na escola 7 o programa de competências foi aplicado a uma das duas turmas de 4º ano, tendo sido o critério de selecção desta turma a dificuldade de aprendizagem e problemas de comportamento revelados por alguns dos seus alunos, sendo assim uma turma sinalizada. Desta forma, e uma vez que não foi efectuado um pré-teste, não é possível comparar dentro de cada grupo as diferenças antes e depois da intervenção. O facto do grupo Competências Sociais e Transições estar ao mesmo nível de adaptação do que os outros dois grupos pode não traduzir que a intervenção não promova a adaptação dos alunos. Este grupo poderia manifestar antes da intervenção índices de desempenho escolar e satisfação com a rede social inferiores aos outros dois grupos, e a intervenção ter levado ao esbater das diferenças iniciais. De futuro seria importante realizar um estudo experimental que contenha um préteste e outros dois momentos de avaliação, logo após a intervenção, e após a transição escolar. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 19 O relevo da variável “escola de proveniência” na explicação dos resultados do presente estudo torna-se mais claro ainda pelo facto de se terem encontrado diferenças entre alunos provenientes das diferentes escolas de primeiro ciclo, estatisticamente significativas tanto ao nível do stress escolar como do tipo de estratégias utilizadas, e tendencialmente significativas ao nível da adaptação académica (notas escolares). Os alunos provenientes da escola 1 (alvo de intervenção) apresentam valores de stress total, stress académico, stress relacionado com os professores e regras, e stress social mais elevados. Por outro lado, ao analisar as médias das notas escolares obtidas no primeiro período do 5º ano, verificamos que os alunos provenientes das escolas 1 e 9 (com intervenção referente à transição escolar) apresentaram notas mais baixas, embora as diferenças não sejam estatisticamente significativas. Este facto poderá traduzir diferenças nas populações que frequentam estas escolas e que não foram contempladas neste estudo. Uma das diferenças corresponde à raça ou etnia dos alunos. Na zona onde uma das escolas está inserida existem alunos filhos de imigrantes, chineses, indianos e de países de Europa de Leste. O facto de pertencerem a uma cultura diferente, pode afectar a adaptação à escola e implicar experiências adicionais de stress, para além da transição de ciclo e espaço escolar que não foram contempladas no presente estudo. Tal como Seiffge-Krenke (1995) refere, a acumulação de acontecimentos normativos e de mudanças resultantes de processos maturacionais acelerados, pode levar a um aumento do nível de stress. Por outro lado, o facto de alunos provenientes de determinadas escolas apresentarem mais estratégias de coping de determinado tipo poderá traduzir diferenças relacionadas com características da escola, como sejam, o darem maior ou menor controlo aos alunos, existirem programas de apoio aos alunos, etc. Assim, o estudo de stress, coping e adaptação na transição deve ter em conta não só as características da escola para a qual os alunos transitam mas também as características da escola de proveniência. O facto da escola de primeiro ciclo estar próxima a nível geográfico da escola para a qual o aluno transita, as características organizacionais da escola, a existência ou não de programas de apoio ao aluno, pode ter implicações na forma como é vivida a transição. Referências Akos, P. (2002). Student perceptions of the transition from elementary to middle school. Professional School Counseling, 5(5), 339-347. Akos, P., & Galassi, J. P. (2004). 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Recebido em agosto de 2007 Aceito em março de 2008 Karla Sandy de Leça Correia: psicóloga; mestre em Psicologia, área de especialização em Stress e BemEstar; doutoranda em Psicologia da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Maria Alexandra Marques Pinto: psicóloga; doutora em Psicologia, área de especialização em Psicologia da Educaçao; professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Endereço para correspondência: [email protected] 22 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.23-35, jan./jun. 2008 Auto-revelação na Internet: um estudo com estudantes universitários Ana Cristina Garcia Dias Marco Antônio Pereira Teixeira Resumo: O objetivo deste estudo foi verificar diferenças na disposição de universitários para auto-revelarem-se em contextos face a face (FaF) e virtuais (chats). Um questionário que avalia seis áreas de auto-revelação foi aplicado a 180 universitários com idades entre 18 e 36 anos (56,1% mulheres). Os participantes foram solicitados a avaliar sua intenção de auto-revelação nos seguintes contextos: FaF com amiga, FaF com amigo, desconhecida em um chat e desconhecido em um chat. A disposição para revelação de si foi mais alta para o contexto FaF do que para o virtual nas seis áreas. Algumas diferenças entre os sexos foram observadas. Os resultados sugerem que os estereótipos de gênero tendem a ser reproduzidos nas relações virtuais, e que os chats são considerados um contexto menos favorável à auto-revelação do que o contexto FaF. Palavras-chave: auto-revelação, Internet, comunicação. Self-disclosure in the Internet: A study with university students Abstract: The aim of this study was to compare undergraduates’ intent to self-disclose in face to face (FtF) and virtual environments (chatrooms). A questionnaire covering six areas of selfdisclosure was applied to 180 university students aged between 18 and 36 years (56,1% women). Participants were asked to evaluate their intent to self-disclose in the following situations: FtF with a female friend, FtF with a male friend, to an unknown female in a chatroom, and to an unknown male in a chatroom. Intent to self-disclose was higher for the FtF context than for the virtual context, in all six areas. Some gender differences were observed. Results suggest that gender stereotypes tend to be reproduced in virtual relationships, and that chatrooms are considered a context less favorable to self-disclosure than the FtF context. Key words: self-disclosure, Internet, communication. Introdução A expansão do uso da Internet, principalmente a partir da década de 1990, vem produzindo mudanças na forma das pessoas se relacionarem umas com as outras. Antes desse período, a Internet era vista basicamente como um recurso capaz de oferecer uma grande quantidade de informações impessoais, chegando a ser considerada eventualmente uma ameaça às relações pessoais devido à redução dos contatos presenciais necessários à obtenção de informações (Weisgerber, 2000). No entanto, a penetração da rede no cotidiano fez com que milhares de pessoas adquirissem o hábito de dispensar várias horas de lazer na utilização da Internet, além do tempo já gasto no desenvolvimento de atividades relacionadas ao trabalho e ao estudo (Leitão & Nicolaci-da-Costa, 2000). Assim, de um simples instrumento de pesquisa ou fonte de informações, a Internet passou a ter um papel fundamental na vida social de muitas pessoas. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 23 Nicolaci-da-Costa (2005) observa que a Internet está provocando impactos profundos em diferentes setores da vida social e pessoal dos indivíduos. Para a autora, esta tecnologia revolucionária vem reconfigurando tanto as relações sociais quanto a própria subjetividade. Ela está possibilitando a emergência de um sujeito flexível, adaptável, inquieto, ágil, aberto à experiência e multifacetado. Este indivíduo sente prazer em quase tudo que faz online e utiliza a rede, especialmente, com objetivos de auto-expressão e auto-conhecimento. Para Nicolaci-da-Costa (2005), a Internet oferece diferentes espaços através dos quais os sujeitos podem se expressar, sendo que muitas vezes um mesmo indivíduo pode ocupar simultaneamente diversos desses espaços. Na Internet as pessoas podem, através da revelação de si, construir diferentes narrativas sobre seu eu, apresentando diferentes características, identidades ou facetas de seu si-mesmo. O conhecimento de si é construído através do retorno oferecido pelo outro; retorno este que é uma resposta a essa revelação de si. Contudo, devido à multiplicidade de espaços e possibilidades de narrativas que o ambiente virtual oferece, a auto-revelação (ou self-disclosure) está sujeita a inúmeras variações e redefinições, tendo como ponto de unificação apenas o próprio sujeito enunciador da narrativa pessoal. A auto-revelação é um aspecto central a ser estudado no contexto da rede. A revelação de si, além de ser um instrumento importante na construção da identidade, é a principal via através da qual se desenvolvem as relações na Internet. Mas teria a autorevelação via rede as mesmas características que a auto-revelação em contextos face a face? Esta é uma questão que tem sido abordada na literatura recente sobre Internet. Merkle e Richardson (2000) indicam que, diferentemente do contexto face a face, a Internet é um ambiente onde a auto-revelação tem um papel central nas interações que são estabelecidas. É através das habilidades que o indivíduo tem para se auto-revelar e compartilhar pontos de vista pessoais na rede que uma relação pode ser construída, mantida ou transformada. Na rede, a revelação de si cumpre a função de aproximar pessoas que, no contexto presencial, poderiam tanto sentir-se atraídas por outros fatores (como, por exemplo, a aparência) como distanciadas por preconceitos ou estereótipos (Schnarch, 1997). Assim, a revelação de si na Internet pode ser considerada o comportamento-chave em torno do qual se desenvolvem as relações interpessoais na rede. Alguns autores, como Merkle (1999), indicam que a revelação de si, apesar de possuir uma função semelhante – a aproximação de pessoas – ocorre de maneira diferente nos contextos face a face e virtual, uma vez que é realizada predominantemente entre pessoas desconhecidas, que percebem o intercâmbio de informações pessoais como uma oportunidade única de se conhecerem e manterem as relações por eles iniciadas. Em outras palavras, se não há revelação de si, não há o estabelecimento e manutenção de uma relação interpessoal. Além disso, a Internet, por possibilitar a comunicação em situação de anonimato, permite a vivência de uma experiência clássica relatada na literatura sobre a revelação de si conhecida como a “situação do estranho”. Esta situação se caracteriza pela revelação espontânea de aspectos da sua intimidade que um sujeito pode fazer a um estranho em ambientes cotidianos, como um trem, por exemplo. Essa revelação ocorreria porque o anonimato daria ao sujeito que se revela uma sensação de liberdade e proteção, uma vez que os riscos de sofrer algum tipo de conseqüência negativa devido à revelação são menores do que em situações que envolvem pessoas conhecidas. 24 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Apesar da sua importância, observa-se que os estudos sobre a auto-revelação na Internet são ainda incipientes. Os primeiros trabalhos desenvolvidos sobre o tema foram feitos, em sua maioria, por terapeutas de família utilizando-se de observações clínicas, revisões de literatura e experiências de trabalho em sites destinados a responder questões sobre sexualidade na rede (Grayson & Schwartz, 2000; Leon & Rotunda, 2000; Merkle & Richardson, 2000; Schnarch, 1997; Suller, 1999). Observa-se ainda um volume restrito de estudos empíricos destinados a conhecer de maneira detalhada as diferenças entre a revelação de si nos contextos face a face e na rede. Velkovska (2002), em um estudo que teve por objetivo compreender as conversações íntimas na rede, observou que a revelação de si no ambiente virtual seguia um protocolo implícito, no qual os indivíduos, para estabelecerem e manterem uma relação, deviam realizar tanto perguntas quanto oferecer respostas acerca de si mesmos. Nas situações em que isso não ocorreu, observou-se tanto estranhamento como desinteresse pela manutenção desse contato via rede. A autora considerou que o fluxo contínuo de troca de informações é o que garante o estabelecimento deste espaço comum; desta forma, silêncios não costumam ser tolerados na rede. Já no contexto face a face, a auto-revelação não é tão essencial, embora esta cumpra a tarefa de aproximar pessoas que já se conhecem fisicamente e buscam uma maior afinidade e/ou proximidade. As relações estabelecidas presencialmente não se fundam exclusivamente na auto-revelação, uma vez que existem outras vias para a troca de informações e sentimentos. Na verdade, alguns autores sugerem que a autorevelação via rede, especialmente no que se refere aos aspectos íntimos, ocorre de maneira mais rápida e profunda do que nas relações estabelecidas no contexto presencial, uma vez que o distanciamento físico e o anonimato facilitariam a revelação (Joinson, 2001; Parks & Floyd, 1996). A ausência do olhar do outro e a não identificação pessoal seriam fatores que diminuiriam a vergonha e a auto-avaliação de si provocada pela exposição presencial. Além das diferenças já descritas, Merkle e Richardson (2000) acreditam que a revelação de si na Internet pode ser menos influenciada pelos estereótipos de gênero tradicionais, presentes no contexto face a face. Por exemplo, há evidências de que, em contextos presenciais, as mulheres tendem a falar mais de si (Cozby, 1973; Foubert & Sholley, 1998; Shulman, Laursen, Kalman & Karpovsky, 1997) e a enfatizar mais os aspectos emocionais nas suas revelações do que os homens (Radmacher & Azmitia, 2006). Merkle e Richardson (2000) sugerem que as diferenças de gênero que são geralmente encontradas nas situações de revelação face a face podem ser diminuídas ou mesmo anuladas na rede. Neste sentido, acreditam que a Internet oportunizaria para os homens a possibilidade de falar mais abertamente de seus sentimentos e emoções, enquanto para as mulheres a rede ofereceria a liberdade para revelarem seus desejos e fantasias secretas, sem comprometer a imagem pessoal. Contudo, algumas pesquisas têm mostrado que alguns esterótipos de gênero presentes nas relações face a face também se manifestam no ambiente virtual (por exemplo, Merkle, 1999; Punyanunt-Carter, 2006; Whitty, 2002). Na literatura brasileira, não foram localizados estudos que abordassem especificamente o tema da auto-revelação na Internet com jovens universitários. Em função disso, esta pesquisa teve por objetivo investigar, exploratoriamente, possíveis diferenças nas intenções Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 25 de revelação de si, entre jovens universitários, em contextos face a face e virtuais (chats ou salas de bate-papo), além de verificar diferenças entre os sexos. As questões norteadoras de pesquisa foram: os jovens percebem o ambiente virtual como mais propício ou menos propício à revelação pessoal a outra pessoa? Se diferenças entre os contextos virtual e presencial são percebidas, estas diferenças dependem dos temas de revelação e do sexo do interlocutor? E, por fim, homens e mulheres diferem quanto à sua disposição para revelar-se nos contextos virtual e presencial? Método Participantes Participaram desta pesquisa 180 universitários com idades entre 18 e 36 anos (M= 20,8; DP= 3,4), dos quais 56,1% eram mulheres. Os estudantes eram provenientes dos cursos de Psicologia, Engenharias e Enfermagem, e cursavam do primeiro ao sexto semestre dos cursos. A amostra foi obtida por conveniência. Aproximadamente 85% dos participantes declararam já terem utilizado chats (salas de bate-papo) pelo menos uma vez. Entre os usuários, 18,9% relataram utilizar os chats uma vez ou mais durante a semana. Instrumento O instrumento utilizado nesse estudo foi uma escala de revelação de si inspirada no Questionário de Revelação de Si de Jourard (1971), que foi adaptado para o português por Vilarinho (1988) com uma amostra de estudantes universitários. A escala de Vilarinho é composta por 40 itens distribuídos em seis áreas de revelação: atitudes e opiniões em geral (opiniões), gostos e interesses pessoais (gostos e interesses) , percepções sobre o trabalho (trabalho), atitudes e sentimentos em relação a dinheiro (dinheiro), aspectos da personalidade (personalidade), e percepções e sentimentos sobre o corpo (corpo). No formato utilizado por Vilarinho os itens são apresentados aos sujeitos em cartões, sendo os mesmos instruídos a marcar, em uma folha com uma grade de respostas, o quanto eles estariam ou não dispostos a revelar determinados aspectos de si (indicados nos cartões) a diferentes pessoas. São exemplos de itens do instrumento (para cada uma das áreas de revelação de si): “O que faz eu realmente me sentir: aborrecido, ansioso ou com medo” (personalidade), “Sobre o modo como gasto meu dinheiro: no que gasto mais folgadamente ou até bastante” (dinheiro), “Em relação à moda do vestuário: o que eu não gosto de usar” (gostos e interesses), “Minhas opiniões sobre os aspectos morais de um homem: o que eu considero digno e nobre” (opiniões), “Os meus sentimentos sobre diferentes partes do meu corpo: pernas, quadris, cintura, busto, etc: o que eu não gosto em mim” (corpo) e “As condições do meu trabalho: que eu acho precárias e desfavoráveis” (trabalho). Nesta pesquisa foram alterados a forma de apresentação da escala e os alvos da revelação (situações de revelação). Ao invés de serem utilizados cartões individuais com cada um dos itens, estes foram apresentados impressos em uma mesma folha de respostas, como itens de um inventário. Respeitou-se, contudo, a ordem de apresentação dos itens. Já os alvos da revelação foram alterados em função dos objetivos desta pesquisa. Assim, para cada item, os participantes deveriam avaliar, em uma escala 26 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Likert de 5 pontos, o quanto estariam ou não dispostos a revelar o aspecto de si descrito no item nas seguintes situações de revelação (alvos): amigo face a face, amiga face a face, desconhecido no chat e desconhecida no chat. A divisão dos alvos em “amigo/a face a face” e “desconhecido/a no chat” teve a função de caracterizar uma situação de não anonimato e de anonimato daquele que se revela, respectivamente. Os índices de consistência interna (alpha de Cronbach) observados nesta pesquisa para as seis áreas e as quatro situações de revelação (alvos) variaram de 0,74 a 0,92, indicando boa fidedignidade. É importante ressaltar que o instrumento empregado não pretende avaliar a intensidade ou freqüência de comportamentos reais de revelação de si, mas sim a intenção dos respondentes para se engajarem em tais comportamentos. Procedimentos Os questionários foram aplicados em salas de aula, após contato com os professores e sua autorização. No início da aplicação foram explicados os objetivos e procedimentos da pesquisa, solicitando aos jovens a sua participação. Esclareceu-se que o estudo buscava conhecer a revelação de si de universitários nas salas de batepapo da Internet, e que a participação no mesmo era opcional e voluntária. Foi explicado a forma de preenchimento do questionário e esclarecido ainda que não existiam respostas certas ou erradas, pois o interesse da pesquisa era conhecer as opiniões acerca da revelação de si nas salas de bate-papo. Informou-se também que os participantes não receberiam uma devolução individual acerca dos resultados da pesquisa, uma vez que os questionários eram anônimos. Termos de consentimento para participação na pesquisa foram obtidos antes do preenchimento do instrumento. Análise dos dados A fim de investigar a existência de diferenças no nível de revelação de si entre homens e mulheres nas diferentes situações de comunicação foram realizadas análises de perfil para cada uma das áreas avaliadas. A análise de perfil (Tabachnick & Fidell, 2001) é um procedimento de análise multivariada na qual se verifica se o perfil de médias para um conjunto de variáveis (neste caso, os níveis de intenção de revelação nas diferentes situações: com amigo face a face, com amiga face a face, com um desconhecido no chat, com uma desconhecida no chat) é diferente para os grupos sendo comparados (no caso, homens e mulheres). O delineamento utilizado na análise foi, portanto, um delineamento fatorial 2 (fator entre-sujeitos: sexo – masculino, feminino) x 4 (fator intra-sujeitos: situação de comunicação – com amigo face a face, com amiga face a face, com um desconhecido no chat, com uma desconhecida no chat), sendo este útlimo fator considerado como medida repetida. Resultados Com o intuito de tornar mais compreensível a apresentação dos resultados, as informações relativas às análises estatísticas são descritas, inicialmente, de uma forma abreviada. Posteriormente, as médias obtidas são comentadas, sinalizando quando diferenças estatisticamente significativas tiverem sido observadas. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 27 Em primeiro lugar foram realizadas as análises de perfil para cada uma das áreas de revelação. Para todas as seis áreas, os testes multivariados (usando o critério de Wilks) revelaram um efeito significativo (p<0,005) do fator situação de comunicação, indicando que pelo menos uma média diferia das demais quando comparadas as quatro situações de comunicação. A análise mostrou ainda uma interação significativa (p<0,005) entre os fatores sexo e situação de comunicação (nas seis áreas), o que ensejou a realização de análises específicas buscando identificar em quais situações de comunicação, dentro de cada área, havia diferenças significativas entre os sexos, além de diferenças entre as quatro situações de comunicação. Estas análises específicas consistiram em testes t para comparações de médias. Dado o caráter exploratório do estudo, adotou-se como critério para decidir se uma diferença específica era estatisticamente significativa um valor de p<0,01. Tabela 1 – Médias (e desvios-padrão) do Nível de Auto-Revelação em Função do Sexo e da Situação de Revelação para as Seis Áreas de Auto-Revelação Situação de Revelação Área / sexo Área: gostos e interesses Mulheres Homens Área: trabalho Mulheres Homens Área: corpo Mulheres Homens Área: personalidade Mulheres Homens Área: dinheiro Mulheres Homens Área: opiniões Mulheres Homens Face a face amigo (1) Face a face amiga (2) Chat homem (3) Chat mulher (4) 2,99 (0,90) 3,15 (0,81) 3,14 (0,81) 3,09 (0,86) 2,64 (1,34) 2,43 (1,27) 2,64 (1,36) 2,60 (1,12) 1? 2 2,27 (1,04) 2,47 (1,23) 2,45 (0,98) 2,40 (1,27) 1,41 (1,20) 1,31 (1,39) 1,43 (1,23) 1,38 (1,40) -- 1,93 (1,01) 2,16 (1,03) 2,27 (0,98) 2,13 (1,11) 1,19 (1,13) 1,36 (1,12) 1,24 (1,16) 1,55 (1,14) 1? 2 2,04 (0,90) 2,24 (0,83) 2,33 (0,83) 2,37 (0,83) 1,26 (0,87) 1,23 (0,94) 1,28** (0,88) 1,66** (0,92) 1? 2 2,01** (1,02) 2,47** (0,84) 2,17 (0,93) 2,30 (0,98) 1,18 (1,02) 1,39 (1,08) 1,21 (1,03) 1,42 (1,04) 1? 2 2,60** (0,91) 2,95** (0,82) 2,73 (0,86) 2,86 (0,86) 2,03 (1,15) 2,13 (1,23) 2,05 (1,12) 2,25 (1,15) 1? 2 Dif. entre situações* -- -- -- 3? 4 -- -- Nota: as médias podem variar de 0 a 4. * em todas as áreas e para ambos os sexos foram obervadas diferenças significativas (p<0,01) entre as situações 1 e 3, 1 e 4, 2 e 3, 2 e 4, além das diferenças indicadas na tabela. ** diferença estatisticamente significativa (p<0,01) entre os sexos na área de revelação. 28 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 A Tabela 1 exibe as médias e os desvios-padrão observados para cada uma das áreas de revelação de si adotadas no estudo, conforme o sexo e a situação de comunicação. Note-se, desde já, que em todas as áreas observou-se uma diferença no nível de revelação de si quando se comparou as situações face a face com a as situações de chat, tanto entre homens quanto entre mulheres. Para ambos os sexos, a revelação na situação face a face foi superior à da situação de chat, não importando se o interlocutor da revelação fosse homem ou mulher (estas diferenças são indicadas como nota nas Tabela 1, para facilitar a visualização de outras diferenças). As mulheres apresentaram (Tabela 1) uma maior intenção de revelação de si no que diz respeito a “gostos e interesses” para amigas do que para amigos nas situações face a face. Já em relação ao assunto “trabalho” as únicas diferenças observadas foram as já referidas anteriormente entre as situações face a face e de chat. Para o tema “corpo”, os dados da tabela indicam que as mulheres apresentaram uma maior intenção de revelação de si para amigas do que para amigos nas situações face a face. Observando-se a Tabela 1, percebe-se que, no que se refere ao assunto “personalidade”, as mulheres apresentaram uma maior intenção de revelação de si para amigas do que para amigos nas situações face a face. Por sua vez, os homens mostraram uma disposição a revelar mais da sua personalidade em chats para mulheres do que para outros homens. Além disso, nas situações de chat, os homens apresentaram maior nível de intenção de revelação de aspectos da personalidade do que as mulheres quando o interlocutor (alvo) era uma mulher. Note-se que, para interlocutores do sexo masculino, a disposição para revelação de homens e mulheres em chats foi igual. Em relação ao tema “dinheiro”, as mulheres apresentaram uma maior intenção de revelação de si para amigas do que para amigos nas situações face a face. Quando comparados às mulheres, no entanto, os homens declararam disposição de revelar mais de si mesmos para amigos em situações face a face (no que se refere a dinheiro). Por fim, quanto ao assunto “opiniões”, verificou-se que as mulheres declararam uma disposição a revelar mais suas opiniões para amigas do que para amigos nas situações face a face. Já os homens pontuaram mais alto na intenção de revelação de opiniões para amigos (em situação face a face) do que as mulheres. Discussão Um dos objetivos desta pesquisa foi verificar se jovens universitários perceberiam o contexto virtual (chats) como mais propício à revelação de si do que o contexto presencial (ou o contrário). Nesse sentido, houve uma convergência nos resultados: para todas as áreas de revelação e para ambos os sexos os participantes mostraram maior intenção de revelação de si no contexto presencial. Tal constatação indica que os jovens universitários preferem os contatos face a face aos virtuais para exporem aspectos de sua intimidade aos outros. Portanto, embora alguns autores considerem que o ambiente virtual facilitaria a auto-revelação (Merkle & Richardson, 2000; Schnarch, 1997; Suller, 1999), os resultados desta pesquisa sugerem o contrário, ou seja, os jovens não se mostraram mais dispostos à revelação no ambiente virtual do que no presencial. Deve-se considerar, é claro, que neste estudo foi investigada a intenção de revelação de si, e não a freqüência ou Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 29 intensidade real de comportamentos auto-revelatórios. Além disso, a maioria dos participantes deste estudo não eram usuários costumazes de chats. Em função disso, sua reticência em relação à revelação nas salas de bate-papo pode ser um reflexo da falta de familiaridade dos participantes com esse ambiente. É possível que, com o uso dos chats, as pessoas passem a se sentir mais à vontade para revelar aspectos de si mesmas na rede, à medida em que vão explorando essa nova maneira de se relacionar com os outros e, possivelmente, experimentando conseqüências pessoais positivas desses encontros (por exemplo, perceber que chamam a atenção de alguém, que são capazes de manter uma conversa interessante com desconhecidos, que podem conhecer novas pessoas e criar amizades etc). Contudo, o fato de os participantes terem demonstrado preferência pelo ambiente presencial para a revelação de si é um resultado que enseja reflexão. Por um lado, como mencionado anteriormente, ele pode indicar que existe uma atitude de temor frente aos riscos que os contatos via Internet representam, e tal atitude precavida pode fazer com que muitas pessoas, ainda que justificadamente, acabem não explorando as potencialidades dessa modalidade de contato interpessoal. Existe, de fato, um discurso presente na mídia que patologiza e alerta para os perigos do uso da Internet, ao ponto em que até mesmo usuários que possuem uma experiência positiva com o uso da rede adotam estratégias de distanciamento, relativização e desqualificação bem-humorada para lidar com a discrepância percebida entre as suas práticas e esse discurso (Nicolacida-Costa, 2002). Por outro lado, porém, a preferência pelo ambiente presencial como contexto para a auto-revelação também pode estar mostrando que a revelação de si, se for entendida como um processo psicológico que visa o estabelecimento de intimidade e a criação de um elo afetivo, só adquire um significado pessoal mais relevante quando o interlocutor é reconhecido como alguém importante para aquele que está se revelando. Assim, pode-se questionar a idéia de que o anonimato possibilitado pela Internet seria um fator facilitador da revelação de si e que ajudaria no estabelecimento de relacionamentos mais autênticos ou maduros. Os chats, com certeza, possibilitam um aumento na quantidade de contatos que os indivíduos conseguem estabelecer. No entanto, a qualidade destes contatos, no que diz respeito à revelação de si, talvez seja baixa quando comparada à qualidade dos contatos presenciais; neste estudo, pelo menos, os participantes não pareceram dispostos a revelar-se mais nos contatos virtuais com pessoas desconhecidas do que com pessoas conhecidas em contextos face a face. De fato, muitas pessoas talvez vejam as salas de bate-papo da Internet essencialmente como um espaço lúdico e de exploração, e não como um ambiente no qual poderão se auto-revelar e assim estabelecer relacionamentos interpessoais significativos. Nesse sentido, a Internet funcionaria como uma espécie de laboratório social no qual as pessoas podem explorar e experimentar diferentes versões de si mesmas, graças ao relativo anonimato dos usuários e aos seus diversos recursos comunicacionais (Bargh, Mckenna & Fitzsimons, 2002), mas não seria um espaço de construção de intimidade. Conclusões similares foram obtidas por Dias (2003) em um estudo com adolescentes, no qual observou que os jovens na rede buscavam principalmente 30 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 lazer e diversão, e não o estabelecimento de relações significativas, nas quais informações verdadeiras acerca do eu são fundamentais. Além de investigar diferenças entre os ambientes virtual e real no que diz respeito à auto-revelação, este estudo também procurou verificar se tais diferenças dependeriam do assunto revelado e do sexo do interlocutor, bem como possíveis diferenças relacionadas ao gênero. Nesse sentido, as mulheres mostraram-se mais dispostas à revelação de si em contextos face a face com amigas do que com amigos, em cinco das seis áreas de revelação. Já os homens mostraram igual disposição de revelação para amigos homens e amigas mulheres, quando em contextos presenciais. Tal resultado é coerente com as expectativas sociais de que as mulheres compartilhem mais seus sentimentos, falem mais de si e que ouçam mais os outros, expectativas estas verificadas em alguns estudos que tratam da auto-revelação em ambientes presenciais e virtuais (por exemplo, Foubert & Sholley, 1998; Radmacher & Azmitia, 2006; Whitty, 2002). Assim, é compreensível que mulheres tenham indicado preferir conversar mais (ou estimem conversar mais) com outras mulheres do que com homens, ainda que amigos. Por sua vez, os homens não parecem ter uma preferência de gênero na revelação de si presencial. Talvez se pudesse esperar que os homens apresentassem uma maior disposição de revelação aos amigos em contextos face a face, dado que o círculo de amizades dos homens tende a ser composto também por homens em sua maioria. Porém, em contraste com o resultado observado entre as mulheres, a ausência de diferenças em função do alvo da revelação sugere que os homens talvez confiem mais no sexo oposto para falarem de si do que as mulheres, possivelmente por perceberem nestas uma maior receptividade à sua revelação. Esta última hipótese parece ser válida também para explicar o fato de os homens terem exibido uma maior intenção de revelação de aspectos da personalidade para mulheres do que para outros homens, nos chats. Além disso, observou-se uma diferença de gênero na intenção de revelação quando o alvo da revelação era uma mulher no chat, com os homens demonstrando maior disposição à auto-revelação do que as próprias mulheres. Estes são resultados interessantes, pois sugerem que as salas de bate-papo podem estar sendo vistas pelos homens como uma oportunidade de revelarse de um modo mais autêntico com alguém do sexo oposto do que as mulheres (embora o contato face a face seja preferido). Deve-se notar que a dimensão de auto-revelação chamada “personalidade” trata de conteúdos que dizem respeito mais diretamente aos sentimentos e à identidade pessoal, temas que muitos homens talvez sintam dificuldade em expressar para outras pessoas, em virtude dos estereótipos culturais. O fato de os homens se mostrarem mais dispostos a falar de sua personalidade em chats para mulheres desconhecidas faz pensar que no ambiente virtual os homens podem se sentir menos preocupados em causar uma boa impressão baseada na imagem pessoal, e assim revelam aspectos do seu eu que não se sentiriam à vontade para revelar em um contexto presencial. Uma vez que se trata de um tema que não é considerado popularmente “conversa de homem”, compreende-se o interesse dos homens em poder falar sobre estes aspectos de si mesmos com mulheres, supostamente mais receptivas a estes assuntos. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 31 Não se pode esquecer, no entanto, que os resultados desta pesquisa mostraram que a intenção de revelação no contexto presencial foi maior do que no virtual. Assim, embora os chats tenham sido percebidos como um ambiente diferenciado de revelação de aspectos da personalidade em homens (uma vez que neste ambiente houve a preferência por um interlocutor do sexo oposto), tal tipo de revelação anônima não parece substituir ou ser mais importante do que a revelação face a face. É possível, também, que a forma ou mesmo a profundidade ou grau de sinceridade acerca daquilo que é revelado sobre a personalidade seja diferente nos contextos presencial e virtual. Esta é uma questão que merece ser melhor investigada em estudos futuros. Outras diferenças entre homens e mulheres também foram observadas nas áreas dinheiro e opiniões, mas apenas na situação de revelação para amigos em contextos face a face. Em ambos os casos os homens mostraram uma intenção de revelação nessas áreas maior do que as mulheres. Isso sugere que esses temas são mais salientes para os homens em seus encontros presenciais com outros homens, indicando uma certa “superficialidade” de conteúdo na auto-revelação masculina face a face, ao menos quando comparada à auto-revelação feminina. De fato, algumas pesquisas mostram que os homens, na auto-revelação, focalizam mais os aspectos externos ou visíveis das suas identidades (como atividades realizadas), enquanto mulheres descrevem a si mesmas privilegiando mais os aspectos íntimos do si mesmo (Hogdson & Fischer, 1979; Radmacher & Azmitia, 2006). Cabe ressaltar, contudo, que para ambos os sexos e nos dois contextos de revelação (presencial e virtual) os temas com escores mais altos de intenção de revelação foram “gostos e interesses” e “opiniões”, o que mostra que tanto homens quanto mulheres tendem a revelar mais de si mesmos em assuntos menos íntimos, como seria de se esperar, uma vez que é necessário o estabelecimento de uma certa intimidade entre os interlocutores para que ocorra a auto-revelação de assuntos mais pessoais (Whitty, 2002). Em síntese, os resultados desta pesquisa sugerem que a Internet não é percebida por muitos jovens como um espaço privilegiado de auto-revelação (ao menos nos chats), quando comparada às possibilidades de revelação presenciais. Esse resultado instiga o desenvolvimento de novas pesquisas que investiguem qual o lugar que a comunicação via rede possui na vida das pessoas, pois ele contrasta com os resultados de outras pesquisas que sugerem uma maior auto-revelação dos sujeitos na Internet (Bargh, Mckenna & Fitzsimons, 2002; Mckenna, Green & Gleason, 2002; Suller, 1999). Como comentado antes, talvez a discrepância observada deva-se ao fato de que os participantes deste estudo não estavam habituados ao uso da rede. Caso fossem usuários costumazes de chats é possível que o padrão de resultados fosse outro. No entanto, fica em aberto a questão: por quê algumas pessoas mostram-se mais dispostas a se revelar na rede e outras não? É razoável supor que indivíduos que declaram baixa disposição para revelação de si na Internet em comparação aos contextos presenciais, como se observou neste estudo, provavelmente não buscarão ativamente os chats com o intuito de estabelecerem relações de intimidade que impliquem auto-revelação. Então, o que faz com que alguns procurem esse tipo de 32 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 relação? Existem características pessoais prévias ao uso dos chats que explicam esse comportamento? Algumas pesquisas têm sugerido que indivíduos ansiosos e solitários valorizam algumas características da comunicação mediada por computador, como a controlabilidade e a reciprocidade (Morathan-Martin, 1999; Morathan-Martin & Schumacher, 2003; Kraut e cols., 1998; Peter & Valkenburg, 2006). Outras variáveis pessoais, como traços de personalidade, podem ser incluídas em pesquisas futuras a fim de enriquecer a compreensão acerca dos fatores que afetam a auto-revelação na Internet. Além disso, nesta pesquisa focalizou-se especificamente as salas de bate-papo como ambiente de encontro e relações interpessoais. Todavia, existem outras formas de comunicação via rede (correio eletrônico, instant messaging etc) que possuem características diferentes dos chats, cujos efeitos na auto-revelação também merecem ser estudados. Da mesma forma, merecem aprofundamento as questões de gênero implicadas na revelação de si no ambiente virtual. Este estudo mostrou que os homens, mais do que as mulheres, parecem que podem se beneficiar do anonimato da rede, especialmente quando se trata de revelar aspectos de suas personalidades para mulheres. Contudo, esta suposição de algum benefício é especulativa, pois as razões que levaram os sujeitos a relatar uma maior disposição à revelação não foram investigadas nesta pesquisa. Assim, são necessários novos estudos, inclusive qualitativos, que focalizem as crenças que homens e mulheres têm sobre a comunicação através de chats, bem como as motivações que levam os indivíduos a procurar (ou não procurar) esse tipo de comunicação interpessoal. Referências Bargh, J. A., McKenna, K. Y. A., & Fitzsimons, G. M. (2002). Can you see the Real Me? Activation and expression of the “True Self” on the Internet. Journal of Social Issues, 58, 33-48. Cozby, P. C. (1973). Self-disclosure: A literature review. Psychological Bulletin, 79, 73-91. Dias, A. C. G. (2003). A revelação de si na Internet: um estudo com adolescentes. Tese de Doutorado não publicada. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Foubert, J. D., & Sholley, B. K. (1996). Effects of gender, gender role, and individualized trust on self-disclosure. Journal of Social Behaviour and Personality, 11, 277-288. Grayson, P. A., & Schwartz, V. (2000). 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Essa tendência tem encontrado aceitação sobretudo no estudo da memória autobiográfica. Neste trabalho são revisadas soluções metodológicas adotadas no estudo de correlatos neurais desses processos. São apresentados dois modelos explicativos dos fenômenos da memória autobiográfica: o modelo de monitoramento de fonte e o modelo de processos componentes. No monitoramento de fonte, qualidades do estado de recordação determinam os julgamentos concernentes ao evento e à lembrança. Em contraste, o modelo de processos componentes não requer uma ordem serial para esse processamento, a percepção das qualidades e os julgamentos podendo ocorrer paralelamente. Argumenta-se que os dois modelos convergem por enfatizar os processos conscientes característicos da recordação. No contexto desses estudos constitui-se uma fenomenologia experimental, definida como o estudo empírico e sistemático de dados da experiência fenomenal, tomados como correlatos de processos cognitivos subjacentes. Palavras-chave: memória autobiográfica, recordação, fenomenologia, neurociências. Autobiographical recollection: Reconsidering phenomenological data and neural correlates Abstract: Recent inquiries on human memory have recovered the relevance of phenomenal data in understanding recollection. This trend has been consistent especially in autobiographical memory research. This study reviews some recent methodological approaches to the relationship between those processes and their neural correlates. Additionally, we review two frameworks for investigating autobiographical memory: source monitoring and component processes. In source monitoring, qualities of recollection determine judgments concerning the event and the memory itself. In contrast, the component process framework imposes no serial order for those processes, accepting that perception of qualities and judgments may occur in parallel. We argue that both models converge in stressing the implicit processes of recollection. Finally, both frameworks are ascribed to a common approach to the phenomenal qualities of experience. In that sense, they constitute an experimental phenomenology, understood as systematic empirical inquiry into conscious experience, with phenomenal data as correlates of implicit cognitive processes. Key words: Autobiographical memory; recollection; phenomenology; neuroscience. Introdução A investigação dos fenômenos de recordação de eventos pessoais baseia-se grandemente em relatos da experiência consciente. Tais relatos se caracterizam por articular um conjunto de qualidades, entre as quais: a revivência da experiência passada original; a imaginação em múltiplas modalidades; a recuperação de pensamentos e 36 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 afeto da experiência original; a atribuição de lugar e tempo específicos; e a crença de que o evento original foi efetivamente experimentado (Greenberg & Rubin, 2003). A crença de que o evento original realmente ocorreu é baseada em atributos e conteúdos da memória, e em marcadores fenomenais de passado. Especialmente no caso das memórias pessoais, a descrição dos aspectos fenomenais que acompanham uma determinada tarefa cognitiva pode colaborar com a explicação das habilidades investigadas da mesma forma que a identificação das regiões cerebrais ativadas durante as tarefas tem ajudado a explicar os respectivos sistemas cognitivos (Brewer, 1995). Dados de qualidades fenomenais da experiência de lembrar clarificam o papel das características de memórias na identificação da sua origem, no julgamento da sua realidade, e na influência seletiva do tempo e do ensaio sobre a manutenção de memórias de eventos pessoais (Johnson, 1988). Entende-se por memória autobiográfica a recuperação de eventos específicos na história de vida de uma pessoa (Rubin, 1998). Esse processo vem sempre acompanhado de um estado subjetivo denominado de recordação consciente, característico da memória autobiográfica em contraste com outros processos de memória (Greenberg & Rubin, 2003). As experiências pessoais relevantes constituiriam um repertório de eventos com significados pessoais, considerando que nem todos os eventos que aconteceram e acontecem com um indivíduo fazem parte da autobiografia dele. A história de vida em que consiste a autobiografia é composta por alguns eventos pessoais – aspecto episódico da memória – mas apenas por alguns deles, selecionados por terem significado pessoal – aspecto semântico da memória (Dall´Ora, Della Sala & Spinnler, 1989). O fato de a memória autobiográfica ser definida pela presença de um estado consciente específico coloca desafios metodológicos importantes, sobretudo para o seu mapeamento em modelos neurocognitivos. Existem pelo menos três níveis de evidência relevantes à modelagem de processos cognitivos: o comportamental, o anatomofisiológico, e o fenomenal/experiencial. A evidência comportamental é amplamente reconhecida nas práticas da pesquisa experimental em psicologia cognitiva. Trata-se de evidência diretamente observável e quantificável, aferida na forma de medidas de desempenho na tarefa - tradicionalmente tempo de reação e proporção de acertos. A aceitação do segundo nível, da evidência neural, tem conhecido um grande crescimento em virtude dos avanços tecnológicos em técnicas de neuroimagem funcional. São indicadores diretos de processos biológicos claramente observáveis durante o desempenho em tarefas cognitivas. Eles são passíveis de observação direta e quantificação, e apresentam a vantagem de uma representação gráfica de forte apelo. Assim, as áreas do Sistema Nervoso Central (SNC) são identificadas como correlatos neurais dos processos cognitivos engajados quando da realização de tarefas de conhecimento, por exemplo codificação, armazenamento e recuperação de informação na memória. Por sua vez, os dados fenomenais, aqueles relatados pelo indivíduo sobre sua experiência com uma tarefa, durante ou após a execução da mesma, são vistos com reservas por muitos pesquisadores. Pesquisadores refratários ao uso de evidência fenomenal argumentam que esses dados, coletados através de técnicas de introspecção, não atendem a critérios metodológicos de quantificação e fidedignidade (Jack & Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 37 Roepstorff, 2002). Tem-se então a tradicional rejeição, em várias tradições de pesquisa psicológica, da experiência de primeira pessoa. As justificativas são conhecidas: a experiência em primeira pessoa é mediada pela linguagem sofrendo os sobressaltos das nuanças semânticas e sendo ainda influenciada por intenções e expectativas do pesquisador e do participante, comprometendo a interpretação do dado (Jack & Roepstorff). Até aqui nenhuma novidade para aqueles que reconhecem a importância dos dados fenomenais e já se acostumaram com o descaso para essa classe de evidência em estudos psicológicos. A grande novidade é que a situação começa a mudar, não por influência dos pesquisadores da fenomenologia qualitativa, mas pelo reconhecimento, por psicólogos experimentais, das limitações dos níveis comportamentais e anatomofisiológico para a compreensão e explicação da memória autobiográfica. As qualidades fenomenais têm sido ressaltadas em estudos experimentais dos processos cognitivos associados à memória autobiográfica (Brewer, 1995; Johnson, 1988; Johnson, Hashtroudi & Lindsay, 1993; Rubin, 1998; Rubin, Schrauf & Greenberg, 2003; Tulving, 1983; Wheeler, Stuss & Tulving, 1997) e aos fenômenos de recordação (Berntsen, Willert & Rubin, 2003; Rubin, Feldman & Beckham, 2004). O objetivo do presente estudo é apresentar uma nova modalidade de fenomenologia experimental que vem articulando com sucesso a introspecção e a quantificação das qualidades fenomenais. Tal movimento, inicialmente postulado por Johnson (1988), atualiza-se em iniciativas como a da neurofenomenologia, que mais recentemente procura soluções de articulação entre dados comportamentais e fenomenais com evidência anatomo-fisiológica na modelagem de processos cognitivos (Lutz & Thompson, 2003). A presente exposição está organizada em quatro partes. A primeira analisa quatro estudos recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais. A segunda traz dois modelos para o estudo experimental de qualidades fenomenais da experiência de recordação: 1) monitoramento de fonte (Johnson e cols., 1993) e 2) processos componentes (Rubin, 1998). A terceira analisa as convergências e divergências dos dois modelos apresentados, destacando as contribuições e limites para o desenvolvimento da fenomenologia experimental. Por fim, a quarta parte define e justifica o uso do termo fenomenologia experimental para estudos de memória que articulam os níveis comportamentais, anatomo-fisiológicos e fenomenais. Articulações de evidências comportamentais, neurais e fenomenais A consciência autonoética é a principal propriedade definidora da memória autobiográfica (Greenberg & Rubin, 2003). O termo noética foi usado no passado para se referir ao estudo das leis fundamentais do pensamento, entre as quais se destacam a identidade e a contradição. Por proximidade, cabe lembrar que o termo noético refere-se à atividade intelectual e tem sido usado por autores de tradição fenomenológica como relativo à noese. A fenomenologia de Husserl recorreu aos termos noese e noema para diferenciar o ato do objetivo visado pelo pensamento: a experiência é composta não apenas pela consciência do seu conteúdo – aspecto noemático – mas também pelo conhecimento tácito, da própria consciência como processo em andamento – aspecto noético (Ferrater-Mora, 1979; Lutz & Thompson, 2003). Essa distinção, embora não seja peculiar aos estudos experimentais da memória, ajuda a contextualizar a presente revisão 38 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 e a especificar o uso do termo fenomenal. Em resumo, pode se dizer então que a consciência autonoética é o senso de estar revivendo o evento, incluindo a crença de que ele realmente aconteceu da forma como está sendo lembrado, e a capacidade de contextualizá-lo no tempo e no espaço (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997). A demarcação da consciência autonoética, que é um dado fenomenal referente a uma experiência em primeira pessoa, tem sido operacionalizada nos termos de um julgamento sobre o caráter do conhecimento da memória que está sendo recuperada, conhecido como “lembrar versus saber”. Se efetivamente “lembramos” do evento, temos um estado autonoético, e trata-se de uma memória autobiográfica. Por outro lado, se apenas “sabemos” que o evento aconteceu, o estado é considerado noético, e a informação recuperada é de caráter semântico (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997). Ainda que uma informação semântica recuperada possa ser referente a um evento pessoal, é somente na presença da consciência autonoética se pode afirmar que há recuperação de uma memória autobiográfica. O ponto de partida da presente exposição é o modo como tal problema metodológico vem sendo encaminhado em estudos experimentais da memória autobiográfica. Passaremos então à análise de quatro estudos recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais. O primeiro exemplo é o estudo de Greenberg e cols. (2005), que identificou a coativação da amídala, hipocampo e giro frontal inferior durante a recordação autobiográfica. A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira etapa, solicitavase aos participantes que recuperassem 50 memórias autobiográficas e indicassem pistas para que cada uma delas pudesse ser evocada posteriormente. Como pistas, podiam ser usadas algumas palavras ou mesmo uma sentença descritiva do evento. Cada memória recuperada era avaliada pelo participante, usando para tanto o Questionário de Memória Autobiográfica (QMA). O QMA contemplava uma série de aspectos fenomenais da experiência de recordação, como veremos adiante neste artigo. Na segunda etapa, os participantes eram submetidos aos procedimentos de escaneamento de Ressonância Magnética Funcional (RMF), quando eram apresentadas a eles as pistas por eles geradas sobre suas próprias memórias, as quais deveriam reconhecer como eventos pessoais (conhecimento episódico). Essas pistas autobiográficas eram entremeadas por descrições conceituais, às quais deveriam responder citando exemplos das categorias (conhecimento semântico). Os resultados que diferenciaram as duas situações apontaram para ativações, predominantamente lateralizadas no hemisfério esquerdo (HE), de amídala, hipocampo e giro frontal inferior. Os autores ressaltam que a validação dos dados de ativações neurais em conjunto com a análise da tarefa como efetiva recordação autobiográfica é possível somente mediante os dados de propriedades fenomenais aferidos através do questionário. O segundo exemplo é o estudo de Cabeza e cols. (2004) sobre a atividade cerebral durante evocação episódica de eventos autobiográficos. Nesse experimento, os participantes utilizaram câmeras digitais para fotografar pontos específicos do campus universitário. A seguir, os pesquisadores recolhiam as fotografias de todos os participantes. As fotografias eram então embaralhadas e a reapresentadas aos participantes para reconhecer que fotos foram tiradas por eles ou por outros. Procediase à tarefa de reconhecimento no scanner do RMF. Foi possível então comparar Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 39 reconhecimentos verdadeiros e falsos de itens “autobiográficos” – expostos no contexto natural – e itens-controle, apresentados na situação de laboratório. Os resultados mostraram uma ativação mais intensa em regiões associadas a processamento-autoreferente (córtex pré-frontal medial), memória visual/espacial (regiões corticais parahipocampais e visuais), e recordação episódica (hipocampo). É interessante notar neste experimento como a situação foi manipulada para poder alcançar os dados fenomenais. Em primeiro lugar, criou-se uma situação em que a recordação de eventos pessoalmente vivenciados pudesse ser comparada, em termos de acuidade da recuperação e controle de variáveis durante a codificação e recordação de outros itens. Note-se que no caso deste estudo não houve uma produção de dados de introspecção propriamente ditos. Contudo, a evidência fenomenal foi operacionalizada em termos do desemepnho na prova de reconhecimento: o reconhecimento correto da fotografia “autobiográfica” foi a medida da existência do processo de consciência autonoética. O terceiro exemplo é o estudo de Kahn, Davachi e Wagner (2004) sobre os correlatos funcionais-neuroanatômicos da recordação. Este paradigma procurou controlar, na situação de reconhecimento, a presença do estado de recordação (episódica) e ausência do mesmo (fonológica). Participantes estudaram uma lista de adjetivos em duas condições de processamento. Em metade dos itens, a ordem da tarefa foi “episódica”: criar uma imagem mental de uma cena relacionada ao adjetivo. Na outra metade, a ordem foi “fonológica”: recitar a palavra de trás para diante. No scanner de RMF, os participantes responderam se os itens apresentados estavam na lista ou não, e se foram estudados na condição fonológica ou episódica. Na tarefa de decidir pela condição de estudo, independente da condição original em si, os resultados apontaram para múltiplas regiões do córtex pré-frontal (CPF) esquerdo, convencionalmente ligadas a processos de controle de recuperação. Por outro lado, ativações diferenciadas foram encontradas entre reconhecimento com recordação (regiões parahipocampais, bilateralmente) e conhecimento sem recordação (regiões pré-motoras posteriores ventrolaterais no HE), o que foi identificado pelos autores como um efeito de recapitulação. Por fim, o estudo de Piolino e cols. (2004), utilizando Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP), procurou identificar regiões cerebrais envolvidas na recuperação de memórias autobiográficas recentes (menos de um ano desde o evento) e remotas (cinco a dez anos). Esperava-se mudanças na experiência fenomenal de recordação de eventos pessoais com o aumento do intervalo de armazenamento, traduzida em dois julgamentos: mudança no ponto-de-vista de campo (perspectiva de primeira pessoa na cena) para observador (perspectiva de terceira pessoa), e mudança no julgamento de “lembrar” do evento (experimentando um estado de recordação consciente) para “saber” do evento (conhecimento da informação do evento sem recordação consciente). No scanner, os participantes foram instruídos a mentalmente reviver episódios pessoais e posteriormente relatá-los em voz alta. Os resultados indicaram ativação em comum – tanto memórias remotas quanto recentes – em uma rede lateralizada no HE, extensa porém com grande concentração de estruturas do CPF. Quanto aos aspectos fenomenais das recordações, eventos recentes apresentaram-se com imagens mentais 40 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 mais vívidas em detalhes, e acompanhados de um senso de consciência autonoética mais acentuado do que eventos remotos. A apreciação deste conjunto de estudos demonstra um esforço em identificar os correlatos neurais dos processos de recordação autobiográfica. Dois aspectos principais podem ser ressaltados nesta análise. Primeiro, uma relativa concordância em torno das estruturas e circuitos cerebrais correlacionados com as tarefas de recordação. Segundo, a recentidade desta linha de investigação. Esta recentidade, embora possa ser provocada por um desleixo histórico pelo fator experiencial na explicação de processos cognitivos e psicológicos em geral (Jack & Roepstorff, 2002; Tulving, 1983), demonstra que o interesse e o reconhecimento da importância deste tipo de dado vêm crescendo a ponto de instigar a comunidade de pesquisadores a desenvolver paradigmas especificamente voltados a possibilitar a correlação entre dados neurais, comportamentais, e fenomenais. No sentido desses desenvolvimentos, Jack e Roepstorff (2002) advogam pela atenção à evidência fenomenal aferida através de protocolos e relatos de introspecção na explicação de processos cognitivos. Os dados diretamente observáveis e aceitos como fonte de evidência na pesquisa cognitiva – comportamental e anatomofisiológico – têm sido cruciais para a formulação de modelos cognitivos de processos psicológicos. Os autores argumentam que a correlação entre dados neurais e comportamentais, embora tradicionalmente aceita desde os avanços nas técnicas de neuroimagem, baseiase num procedimento que acaba demonstrando-se sujeito a julgamento relativamente subjetivo, a análise de tarefa (task analysis). É por meio da análise de tarefa que um pesquisador definirá qual processo cognitivo está em funcionamento quando se observa uma determinada resposta comportamental, concomitantemente à ativação de determinadas regiões cerebrais. Essa definição, que estabelece que uma área do SNC é a “sede” de um processo cognitivo, baseia-se em uma premissa que não é plenamente consensual no âmbito das neurociências. A premissa é de que um padrão de ativação de estruturas cerebrais depende de qual módulo cognitivo está ativo naquele momento, ou seja, a correlação é direta e causal entre ativação do substrato neural e processamento cognitivo. O problema é que a correlação entre os processos cognitivos envolvidos e a ativação cerebral depende do modelo de processamento cognitivo de que se trata, se paralelo ou serial. A idéia de processamento serial é tradicionalmente aceita em psicologia cognitiva, em virtude do modelo computacional corrente em que representações são transmitidas e transformadas de um módulo para outro de forma sequencial. Por exemplo, a divisão clássica de Atkinson e Schiffrin da memória em três armazenamentos – sensorial, curto e longo prazo – prevê um fluxo de informação serial, de uma estrutura para a outra, e de volta. Por outro lado, alguns autores têm apontado para a existência de processos em paralelo, conformando um modelo de processos componentes (Roediger, Buckner & McDermott, 1999; Rubin, 1998). Como exemplo de papel crítico que os dados de relatos fenomenais podem exercer nesse contexto, os autores citam o problema das funções do córtex pré-frontal. Com base apenas na lógica de análise de tarefa, diversos estudos identificaram inúmeras funções para essas regiões, chegando-se a ponto de se considerar ser impossível distinguir quais as suas funções específicas (Jack & Roepstorff, 2002). Na realidade, o Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 41 que acontece é que qualquer tarefa que visa a avaliar desempenho cognitivo ativa, em certa medida, áreas do córtex pré-frontal, simplesmente porque a execução delas envolve planejamento e controle cognitivo e comportamento direcionado a metas, em outras palavras, funções executivas. Uma solução para este problema é o método subtrativo. As áreas somente podem ser identificadas como efetivos correlatos dos processos de interesse na medida em que, das ativações durante a tarefa que caracteriza o processo, forem subtraídas as ativações de uma tarefa de comparação, muito próxima daquela, porém diferenciada num aspecto crítico que caracterize o processo de interesse. Por exemplo, no estudo de Cabeza e cols. (2004), a diferença crucial entre as respostas possíveis era o acerto no processamento auto-referente quando do reconhecimento da fotografia tirada por si mesmo, visto que, de resto os estímulos visuais, bem como os processos de recuperação episódica eram rigorosamente equivalentes. Daí a importância de uma atenta operacionalização da evidência fenomenal que define o processo de memória autobiográfica, como se verificou nesse e nos outros estudos de neuroimagem que analisamos. As características do funcionamento do córtex pré-frontal estão entre os correlatos neurais cujo estudo mais pode se beneficiar da análise de dados fenomenais. Como exemplos de funções mais bem compreendidas com a análise de dados fenomenais provenientes de roteiros e relatos, podem ser lembrados o uso de metas e estratégias metacognitivas em comportamento executivo, memória de trabalho e resolução de problemas; o pensamento com recurso a representações na forma de imagens mentais; processos temporais e relação figura/fundo em tarefa atencionais; além das próprias capacidades de memória autobiográfica, e seus processos componentes, desde a codificação, retenção e recuperação, até o senso fenomenal de recordação consciente que caracteriza este em contraste com outros tipos de memória. Por fim, Jack e Roepstorff (2002) ressaltaram a importância do uso de evidência introspectiva, sistematicamente aferida na forma de relatos em que os participantes categorizam ou avaliam aspectos específicos da sua experiência. Tais evidências prestam-se à análise estatística e a procedimentos de controle fundamentais ao mapeamento por neuroimagem, tornandose muito úteis para a explicação das funções cognitivas mais complexas. Modelos utilizados na pesquisa de qualidades fenomenais da experiência de recordação Paralelamente ao avanço dos estudos de neuroimagem, dois modelos vêm se destacando no campo da pesquisa de qualidades fenomenais de recordação com base em dados comportamentais e introspectivos: monitoramento de fonte e processos compomentes. O modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a função das características fenomenais (contextuais e perceptuais) de memórias na realização de julgamentos cognitivos sobre a realidade do evento e sobre a fonte da lembrança (Johnson & cols., 1993). Em contrapartida, o modelo de processos componentes tem enfatizado a relação entre características fenomenais da consciência autonoética e diversos processos cognitivos relacionados a memórias de diferentes tipos de eventos pessoais, especialmente memórias vívidas (Rubin, 1998). Esses 42 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 modelos não são radicalmente discordantes, mas mantêm peculiaridades quanto à classificação de processos fenomenais, quanto à precedência causal da explicação, e quanto à caracterização de um estado distinto de consciência autonoética. A seguir, passa-se ao exame dos respectivos modelos. Modelo de Monitoramento de Fonte (MMF) O modelo de monitoramento de fonte, proposto por Johnson e colaboradores, procura dar conta dos processos envolvidos na realização de julgamentos sobre a origem de memórias, conhecimento e crenças (Johnson, 1988; Johnson, Foley, Suengas & Raye, 1988; Johnson & cols., 1993). Em termos de eventos específicos, o termo “fonte” se refere às condições em que a memória foi adquirida. Essas condições incluem os contextos espacial, temporal e social do evento; e o meio e a modalidade através dos quais o indivíduo recebeu a informação. Características qualitativas, ou fenomenais, que configuram a fonte de uma determinada memória incluem informação perceptual, contextual e afetiva, detalhamento semântico, e operações cognitivas – por exemplo, registros de elaboração e recuperação prévia daquela memória. Esse conjunto de características que memórias autobiográficas apresentam são a base a partir da qual sujeitos fazem discriminações sobre a efetiva realidade dos eventos, como no caso de discernir memórias de pensamentos e imagens das memórias de eventos efetivamente percebidos; e sobre a fonte da informação, diferenciando entre várias possíveis fontes sensoriais e racionais, internas e externas. Em resumo, entendese que a classificação que fazemos de eventos como reais ou imaginários, internos ou externos, resulta de processos de atribuição ou julgamento baseados em qualidades fenomenais e subjetivas da experiência (Johnson). Dessa forma, o modelo enfatiza a utilidade de se examinar características fenomenais de memórias de eventos complexos a fim de compreender a natureza do processo de recordação (Johnson e cols., 1988). O modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a função das características fenomenais de memórias na realização de julgamentos cognitivos sobre a realidade do evento e sobre a fonte da lembrança (Johnson e cols., 1993). Estudos nessa linha têm levantado evidências relevantes para o entendimento das relações entre memória e emoção (D’Argembeau & cols., 2003; Schaefer & Philippot, 2005), e entre a presença de informações perceptuais/contextuais e o discernimento entre eventos reais (percebidos) e imaginados (Destun & Kuiper, 1999; Johnson & cols., 1988; Kealy & Arbuthnott, 2003). A emoção é definida como a força afetiva que agrega significado a um determinado evento na forma de marcador somático (Damasio, 2003; McGaugh, 2003). Para uma revisão recente sobre a abordagem de memória e emoções em neurociência cognitiva, recomenda-se o trabalho de LaBar e Cabeza (2006). O instrumento utilizado em estudos de monitoramento de fonte é o MCQ – Memory Characteristics Questionnaire, desenvolvido por Johnson e cols. (1988). O MCQ consiste em 39 questões respondidas em relação a um evento produzido em algum tipo de tarefa de recordação ou imaginação. Estudos na linha do Modelo de Monitoramento de Fonte verificaram que eventos reais (percebidos) recentes relacionaram-se a maior quantidade de informação espacial, detalhes perceptuais, e respostas emocionais Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 43 (Johnson e cols., 1988). Eventos imaginados, por sua vez, estiveram mais relacionados a raciocínio do que a vivacidade de imagens. Em outro estudo, Destun e Kuiper (1999) encontraram eventos prazerosos, tanto reais quanto imaginários, com escores mais altos no MCQ do que eventos estressantes. D’Argembeau e cols. (2003) compararam eventos positivos, neutros e negativos, concluindo pela relação entre a emocionalidade dos eventos e vivacidade do conteúdo perceptual das memórias. As memórias positivas foram recordadas com maior riqueza de detalhes – mais informação sensorial e contextual – que as negativas. Eventos positivos também foram mais elaborados, ensaiados e acessados com maior facilidade. Kealy e Arbuthnott (2003) compararam eventos percebidos, eventos imaginados livremente, e eventos imaginados de forma guiada pelos pesquisadores. Eventos percebidos tiveram maiores escores em praticamente todas as medidas do MCQ. Modelo de Processos Componentes (MPC) O Modelo de Processos Componentes (MPC) foi proposto por Rubin e colaboradores (Greenberg & Rubin, 2003; Rubin & cols., 2003; Rubin & Siegler, 2004; Talarico & Rubin, 2003) para o estudo da recuperação da memória autobiográfica, entendida como recordação consciente. O modelo toma as habilidades de memória autobiográfica como produtos da interação de três grupos de processos componentes: recordação e crença, processos cognitivos componentes, e propriedades atribuídas a eventos e memórias. Essas dimensões correspondem a aspectos fundamentais presentes nas principais definições de memória autobiográfica, memória episódica, e experiência de recordação, e estão embasadas em dados comportamentais e neuropsicológicos (Greenberg & Rubin, 2003). Uma série de sistemas neurocognitivos têm sido identificados como processos componentes da lembrança autobiográfica, incluindo os processos centrais de codificação e recuperação: lembrança episódica; imaginação visual, auditiva e espacialmultimodal; emoção; linguagem; e narrativa (Greenberg & Rubin, 2003). Dados comportamentais indicam que esses componentes formam o conjunto fundamental de processos necessários para recordar memórias autobiográficas. Também nesse sentido, evidências de estudos neuropsicológicos apontam que problemas nesses processos, que têm seus próprios correlatos neurais, causam prejuízos específicos nas habilidades de memória autobiográfica. A recordação de eventos passados implica em um estado de consciência específico que difere dos estados correspondentes à manifestação de outras habilidades cognitivas e perceptuais. Tal estado, reconhecido como crucial à memória autobiográfica e que constitui a dimensão de recordação e crença no modelo de Processos Componentes, corresponde às descrições de Tulving e seus colaboradores sobre a recordação episódica e a consciência autonoética (Tulving, 1983; Wheeler & cols., 1997). A dimensão de recordação e crença corresponde ainda de certa forma aos julgamentos heurísticos referidos no modelo de monitoramento de fonte (Johnson e cols., 1993). Essa característica permite a um indivíduo distinguir memórias de percepções, sonhos e fantasias, e assim comportar-se adequadamente à sua realidade ambiental. Para o modelo, a dimensão de recordação e crença dá conta de qualidades 44 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 desse estado subjetivo que caracteriza a recordação de eventos únicos do passado: senso de revivência e de viajar de volta ao tempo do evento original, crença de que o evento de fato aconteceu como ele é lembrado (dito de outra forma, crença na acuidade da memória), e senso de lembrar do evento ao invés de apenas saber que ele aconteceu (julgamento lembrar vs. saber). A habilidade de recordar, experienciar e relatar eventos autobiográficos implica em vários processos cognitivos, além da recuperação de informação de vários sistemas de memória (sobretudo episódica e semântica). Os principais processos componentes envolvidos na manifestação de memória autobiográfica são aqueles relacionados à imaginação em diferentes modalidades sensoriais. A recordação autobiográfica também envolve habilidades de linguagem, pois eventos podem ser lembrados em palavras, em imagens e em narrativas, desde que eventos podem ser lembrados como histórias coerentes ou fragmentos desorganizados dos acontecimentos. Ademais, a recordação autobiográfica inclui muitas vezes a revivência das emoções que o sujeito experimentou quando do evento original. O sujeito que recorda pode atribuir aos eventos autobiográficos e às memórias que a eles se referem, ou que os representam, certas propriedades por meio de julgamentos meta-cognitivos (Rubin & Siegler, 2004). As propriedades atribuídas a eventos ou memórias resultam de julgamentos que o sujeito faz com base em informação referente à memória. Por exemplo, a alta vivacidade das imagens que constituem uma lembrança pode levar ao julgamento de que o evento é recente, e a coerência da narrativa dos acontecimentos pode estar relacionada ao fato de se haver ensaiado a história freqüentemente. Incluem-se entre as propriedades atribuídas: 1) importância pessoal que o sujeito atribui ao evento, 2) freqüência com que o evento foi ensaiado (tanto em pensamento quanto em conversação interpessoal), 3) especificidade do evento (se ele foi único no espaço e tempo, estendido por um período mais longo, ou se trata-se de uma mescla ou resumo de eventos parecidos) (Rubin e cols, 2003); e 4) a idade do evento (a estimação pelo sujeito da data em que o evento ocorreu). Os três processos componentes envolvidos na recordação correspondem aos três grupos de questões do Autobiographical Memory Questionnaire (AMQ). O AMQ consiste em um conjunto variável de itens na forma de afirmativas e é usado em estudos que abordaram aspectos da fenomenalidade da experiência de recordação. Por exemplo, Talarico e Rubin (2004) exploraram a vivacidade das memórias que indivíduos tinham da notícia dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 após diferentes intervalos de tempo, constatando que a característica principal dessas memórias que se preservava a longo prazo era a confiança na acuidade da memória em relação ao evento. Uma das características dos estudos que utilizam o modelo de processos componentes é o interesse por memórias vívidas ou em lampejo. Essas memórias duradouras estão associadas a eventos como recebimento de uma notícia importante ou ao testemunho de um evento de grande impacto (McGaugh, 2003). A importância emprestada pelo sujeito a esses eventos pode estar relacionada a sua relevância coletiva e nacional (Brown & Kulik, 1977/2000), ou ao seu significado pessoal (Rubin & Kozin, 1984). Tais fenômenos foram operacionalizados por Kirkegaard-Thomsen e Berntsen Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 45 (2003) num conjunto de cinco características, a saber: 1) vivacidade da memória; 2) presença de detalhes dos aconteciementos originais; 3) importância pessoal atribuída ao evento; 4) caráter incomum do evento; 5) intensidade emocional do evento; 6) conseqüências para a sua própria vida atribuídas ao evento pelo sujeito; e 7) freqüência de ensaio daquela memória em pensamento e conversação. Com base nos resultados de Rubin e Kozin (1984) e no resumo de dados de diversos estudos apresentado por McGaugh (2003), consideramos esta operacionalização como uma relevante adição ao entendimento das características fundamentais de memórias de eventos marcantes. Argumentamos ainda que as qualidades de memórias vividas, entendidas na perspectiva dos processos componentes, fazem parte da classe de propriedades atribuídas ao evento. Trata-se de um tipo de julgamento assemelhado, porém distinto dos julgamentos heurísticos referidos pelo monitoramento de fonte, constituindo possivelmente um tipo de julgamento sistemático sobre relevância pessoal de eventos (Johnson & cols., 1993). Esses julgamentos, de acordo com o modelo, também devem relacionar-se nas qualidades da recordação, porém tal relação pode ser distinta daquela encontrada por Johnson e colaboradores. Convergências e divergências entre os modelos O que há em comum entre as abordagens do monitoramento de fonte e dos processos componentes é a ênfase na fenomenalidade da experiência consciente desde a definição dos processos de memória autobiográfica e da descrição dos estados próprios. Em ambos os modelos, o auto-relato, e a afirmação ou avaliação que o sujeito faz do seu estado de reviver o evento e acreditar que ele realmente aconteceu, bem como de expressar se ele vem com imagens, e os julgamentos sobre o evento são a evidência primária e o parâmetro último de validade (Rubin & cols., 2003). Nesta abordagem, o auto-relato enquanto evidência é instrumentalizado pelos questionários, cujos itens refletem os vários aspectos de formulações que resultam da articulação dos modelos teóricos e dados empíricos experimentais. Afinal, os modelos de processos componentes e de monitoramento de fonte não são incompatíveis. As diferenças indicadas são basicamente quanto à precedência das qualidades fenomenais sobre os julgamentos no monitoramento de fonte, enquanto que em processos componentes essa ordem não é necessária do ponto de vista teórico. De resto, ambos os modelos concordam sobre a importância da evidência da natureza fenomenal da experiência de recordação e contribuem para tanto através ao operacionalizar essas qualidades. Os questionários são concebidos como dispositivos de mediação que possibilitam a transposição de uma percepção subjetiva de estados conscientes para indicadores partilhados, em consonância com uma hipótese fenomênica da possibilidade de conhecimento de estados conscientes. Nesse sentido, aceita-se a hipótese fenomênica pela qual a introspecção refere-se a um fenômeno que ocorre na consciência imediata, mas implica em indicadores superficiais de consciência (por exemplo, relatos verbais ou gráficos) (Engelmann, 1997). Através dos indicadores de consciência, que podem ser conhecidos por muitas pessoas, a consciência mediata do observador assemelha-se a outros indicadores que servem de evidência em qualquer outra ciência empírica. 46 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Fenomenologia experimental, introspecção e quantificação das qualidades Segundo Johnson (1988), estudos de monitoramento de fonte e outros que se debruçam sobre as qualidades fenomenais da experiência caracterizam um tipo de fenomenologia experimental. O termo fenomenologia é usado no sentido de estudo sistemático das características qualitativas da experiência mental, no caso, da experiência de recordação autobiográfica. Talvez o termo mais próprio para essa afirmação seja fenomenalidade ao invés de fenomenologia (Engelmann, 2001), no entanto o termo fenomenologia da recordação é de uso corrente no contexto da literatura em psicologia cognitiva. O conhecimento empírico das qualidades fenomenais da experiência (consciência), será então mediado, posto que a expressão pública pela qual alguém expressa algo sobre a sua própria experiência repousa sobre a possibilidade da mediação dos símbolos da comunicação. Extrapolando essa definição, é lícito assumir que, quando a consciência conhece reflexivamente os próprios estados internos do organismo, tais como as qualidades fenomenais da experiência de recordar um evento específico, o processo é um tipo de introspecção. Nesse sentido, os questionários direcionam o sujeito para as qualidades fenomenais do estado interno durante a recordação. Mais que isso, a resposta numérica às escalas oferece indicadores de consciência (Engelmann, 1997) que tornam possível compartilhar características do estado de consciência. De outra maneira, essas qualidades estariam restritas à privacidade do pensamento do sujeito. Os dados fenomenais são hoje considerados fundamentais na explicação dos processos cognitivos. Embora se reconheça as dificuldades metodológicas, entendese que novas propostas que abordem essa evidência de forma sistemática devem ser consideradas. A sistematização desses procedimentos colaborará para o manejo da fidedignidade de relatos, de forma que esses dados possam enriquecer o entendimento dos processsos cognitivos em apreço. Dessa forma, a modelagem neurocognitiva de uma capacidade como a memória autobiográfica postula desafios metodológicos importantes que têm sido atacados apenas recentemente. Considerações finais Para Brewer (1995), os dados fenomenais devem ser considerados sob a mesma lógica pela qual se procuram estruturas anatomo-fisiológicas ligadas aos processos cognitivos em geral. O argumento dá conta de que diferentes processos cognitivos e formas de atividade mental têm diferentes correlatos fenomenais. A relevância de se considerar a evidência fenomenal justifica-se pela tentativa de superar o que Roy e cols. (1999) chamaram de hiato explicativo. Segundo os autores, as relações entre mente e cérebro estão sendo exploradas na correlação entre modelos de processos cognitivos e padrões de ativação neural. O desenvolvimento das técnicas de neuroimagem popularizou a investigação destas relações. No entanto, a relação entre os aspectos computacionais e experienciais dos processos cognitivos tem sido negligenciada por razões de baixa credibilidade das soluções metodológicas disponíveis. Uma vez desenvolvidos métodos rigorosos e específicos para lidar com a evidência Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 47 fenomenal, tais como aqueles apreciados neste artigo, entende-se que será possível uma abordagem de mútua demarcação (Lutz & Thompson, 2003). Por um lado, dados fenomenais impõem limites à análise e interpretação das evidências de processos fisiológicos, e dados referentes a estes últimos demarcariam o trabalho conceitual de maneira mais complexa que a simples análise da tarefa. Concordamos com Lutz e Thompson (2003), sobre que o desafio a enfrentar é o de integrar 3 conjuntos de evidências na formalização de modelos explicativos dos processos pelos quais conhecemos o mundo: dados fenomenais de primeira pessoa sistematicamente aferidos através de métodos rigorosos; modelos formais de processos cognitivos derivados da análise de tarefas; e dados neurofisiológicos de processos cerebrais coletados por técnicas de neuroimagem. Visto que as técnicas de investigação dos dados neurais conhecem grande desenvolvimento e aceitação, e que o paradigma explicativo do nível cognitivo encontra-se relativamente estabelecido, cabe fomentar a evolução das abordagens da evidência fenomenal. Conquanto não haja notícias sobre estudos brasileiros que tenham articulado evidências comportamentais, neurais e fenomenais no estudo da memória autobiográfica, espera-se que as informações e reflexões veiculadas neste trabalho possam subsidiar um debate epistemológico sobre as peculiaridades de se lidar com tais níveis de evidência em futuros trabalhos nas áreas de neurociência e psicologia cognitiva. Referências Berntsen, D., Willert, M., & Rubin, D. C. (2003). Splintered memories or vivid landmarks? Qualities and organization of traumatic memories with and without PTSD. Applied Cognitive Psychology, 17, 675-693. Brewer, W. F. (1995). What is recollective memory? Em: D. C. Rubin (Org.), Remembering our past: Studies in autobiographical memory (pp.19-66). Cambridge: Cambridge University Press. Brown, R., & Kulik, J. (2000). Flashbulb memories. Em: U. Neisser & I. E. Hyman (Orgs.), Memory observed: Remembering in natural contexts (pp. 50-65). New York: Worth Publishers. 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Endereço para correspondência: [email protected] 50 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.51-64, jan./jun. 2008 Fenomenologia da queixa depressiva em adolescentes: um estudo crítico-cultural Anna Karynne da Silva Melo Virginia Moreira Resumo: Esta pesquisa teve como objetivos compreender o fenômeno da queixa depressiva da clientela adolescente do SPA/NAMI, a Clínica Escola da Universidade de Fortaleza, e a relação entre a queixa depressiva e o mundo cultural dos adolescentes que buscam tratamento nesta instituição. Utilizando uma metodologia fenomenológica analisamos vinte prontuários de adolescentes atendidos ou em atendimento com queixa de depressão. Os resultados mostram que a condição sócioeconômica, a relação familiar, a experiência da religião, o relacionamento afetivo, a percepção de si, a experiência com as drogas, a busca do findar o sofrimento e a dificuldade de interação social são aspectos constitutivos da experiência vivida da depressão destes adolescentes. Palavras-chaves: depressão; adolescência; fenomenologia. Phenomenology of the depressive complaint in adolescents: a critical cultural study Abstract: This research had as objective to understand the phenomenon of the depressive complaint of the adolescent clientele of the SPA/NAMI, the Clinical School of the University of Fortaleza, and the relation between the depressive complaint and the cultural world of the adolescents who search treatment in this institution. Using a phenomenologycal methodology we analyze twenty handbooks of taken care of adolescents or in attendance with depression complaint. The results show that the partner-economic condition, the familiar relation, the experience of the religion, the affective relationship, the perception of itself, the experience with the drugs, the search of finishing the suffering, and the difficulty of social interaction are constituent aspects of the lived experience of the depression of these adolescents. Keywords: depression; adolescence; phenomenology. Introdução A depressão, como síndrome psicopatológica, está, atualmente, muito presente na adolescência tal como assinalam estudos recentes sobre esta sintomatologia específica nesta fase (Braconnier,1989; Harrington, 2005; Moj & Sartorius, 2005). Tendo em vista que estes estudos foram realizados em outros contextos socioculturais, nos interessou pesquisar como a depressão é vivida por adolescentes atendidos no SPA/ NAMI - Serviço de Psicologia Aplicada, em Fortaleza, Ceará, com suas características socioculturais específicas, ou seja, de uma população de um bairro da periferia da cidade de Fortaleza. Esta pesquisa consiste em um prolongamento do projeto de pesquisa “Critical Phenomenology of depression: a cross cultural study in Brazil, Chile, and the United States” (Moreira, No prelo). Segundo conclusões do referido estudo, há uma mútua Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 51 constituição entre depressão e cultura, significando que a constituição da psicopatologia é formada de “múltiplos contornos”: a depressão e a cultura estão entrelaçadas. Pretendendo ampliar aquela investigação a respeito da mútua constituição entre depressão e a cultura, focalizamos, aqui, especificamente, a clientela adolescente do SPA/NAMI em Fortaleza. CE. As hipóteses levantadas foram de que a experiência de depressão do adolescente cearense se constitui mutuamente com o mundo sociocultural em que ele vive; de que a sintomatologia da depressão é diferente na adolescência daquela da vida adulta e de que a depressão está relacionada com o modo de vida do adolescente. A partir da análise fenomenológica (Moreira, 2004) da queixa inicial de adolescentes que buscam atendimento no SPA/NAMI, nossa investigação se voltou às diversas formas, através das quais as queixas depressivas dos adolescentes informam sobre a sua existência, buscando compreender como aspectos sócio-culturais fazem parte dos sintomas que expressam esta vivência na adolescência. Esta pesquisa teve como objetivos compreender o fenômeno da queixa depressiva da clientela adolescente do SPA/NAM, descrevendo a sintomatologia depressiva como queixa dos adolescentes do SPA/NAMI e compreender a relação entre a queixa depressiva e o mundo cultural dos adolescentes. Adolescência, mundo atual e depressão A adolescência é um período com características próprias, no qual o sujeito necessita de delimitações para exercitar a busca de si mesmo, responder para si a questão: quem eu sou? Nesta, é produzida uma angústia inerente ao processo da adolescência, dado que, ao longo deste, ocorrem mudanças físicas, tais como o crescimento dos seios e do pênis, por exemplo, e psíquicas, como a capacidade do pensamento abstrato e sentimento de perdas, que são sensações bastante específicas desta fase, com situações e peculiaridades próprias experienciadas por qualquer adolescente. Na adolescência, surgem novas experiências e desmoronam velhas certezas (Erikson, 1993; Jeammet, 1994; Rappaport & cols., 1993; Rassial,1997). Nos dias atuais a adolescência é considerada um processo cada vez mais longo, pois não se trata mais de pensá-la como faixa etária e sim como forma de lidar com os acontecimentos subjetivos de sua existência. As experiências da infância praticamente estão desaparecendo com as imposições da mídia, do consumo e da publicidade, que fazem as crianças cada vez mais próximas do mundo adolescente e adulto. Essa proximidade faz com que o adolescente contemporâneo viva uma adolescência prolongada. O que está ocorrendo para que aconteçam estas mudanças? O que vivemos agora é a expressão da pluralidade e da diversidade dos modos de vida que provocam, no adolescente, um sentimento de insegurança e de incerteza quanto às suas necessidades e à possibilidade de realizá-las na relação com o mundo. Isto suscita um mal-estar que, em alguns casos, gera novas síndromes psicopatológicas, caracterizadas como stress, fobia, bulimia, alterações do sono e depressão. É interessante pensar sobre o diagnóstico dessas novas síndromes a partir da idéia de Bergeret (1988), que indica a existência da dificuldade do clínico em classificar os fenômenos psicopatológicos na adolescência, por se tratar de um período de 52 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 potencial estrutural, ou seja, não se tem a definição estrutural do sujeito para que se possa realizar uma definição válida da psicopatologia. Essa dificuldade torna-se ainda mais complicada, quando se traz à tona a discussão de normalidade e anormalidade. Para este autor, esses conceitos não podem ser entendidos por aquilo que é da ordem do coletivo, do ideal ou do que é comum a todos, estatisticamente apontado. Normal e patológico está em relação ao modo como o sujeito supera ou não supera os seus conflitos, “... um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais como tantas outras pessoas...” (p.21). Assim, normal ou sadio é a flexibilidade das capacidades pessoais e defensivas ou adaptativas, compreendendo que patológico, é a fixação dessas capacidades. Bergeret (1988) compreende que a qualquer momento o que é ‘normal’ pode passar a ser uma patologia mental. Esses conceitos são definidos independentes da noção de estrutura, como nos indica: “A noção de ‘normalidade’ estaria, assim, reservada a um estado de adequação funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, seja esta neurótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do equilíbrio dentro de uma mesma linhagem estrutural” (p.29). Numa mesma perspectiva, Widlöcher (2001) assinala que o diagnóstico de um fenômeno psicopatológico na adolescência, principalmente, o da depressão, deve levar em consideração aspectos subjetivos e objetivos. O diagnóstico da depressão deve buscar reconhecer em que ela se diferencia de outros sinais como a simples tristeza. Os sujeitos descrevem sua angústia, seu sentimento de fracasso e de desespero, sua sensação de fadiga e sua dificuldade de concentração como sendo os sintomas experienciados na depressão. Aparece ainda, na descrição dos adolescentes depressivos, o comportamento abatido, linguagem lenta e movimento corporal mais paralisado. Widlöcher (2001) afirma que para caracterizar efetivamente a depressão é necessário aparecer dois sintomas centrais: a tristeza e a lentificação psicomotora. Apesar do sentido de universalidade dos sintomas, deve-se pensar nas diferenças culturais na descrição e no sentido do vivido da experiência depressiva do adolescente. Kleinman e Good (1985), Desjarlais, Eisenberg, Good e Kleinman (1997) também indicam a estreita relação entre cultura e depressão. Segundo estes autores, os estudos antropológicos demonstram diferenças entre as culturas tanto no sentido da depressão como em seus nos sintomas. Assim, diferentes culturas apontam diferentes sinais da depressão. Entendemos que na realidade brasileira há sinais e descrições diferentes da depressão quando consideramos que muitos dos jovens no Brasil encontram-se na rua. Muitas crianças e adolescentes não conseguem permanecer na escola, pois logo cedo precisam se inserir no mercado de trabalho informal para complementar a renda familiar. Alguns dos jovens entram na prostituição e no roubo. Esta realidade faz com que tenham relações sexuais precocemente, consumam drogas e contraiam doenças, ainda muito novos. Tendo todas essas questões atravessando a adolescência, Harrington (2005) compreende que cada vez mais a depressão acontece nos sujeitos adolescentes. A turbulência na adolescência que antes era considerada como inerente ao processo, tem passado a ser entendida como algo não tão ‘banal ‘ ou ‘comum’, mas como um fenômeno que traz um grande conflito nesse período. Devido a isso, tem-se uma enorme Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 53 dificuldade em diagnosticar a depressão na adolescência. Assim o melhor indicador dessa patologia na adolescência seria a duração do problema. Numa conceituação validada dos sinais que possibilitam diagnosticar a depressão, temos a Classificação de Transtornos Mentais e Comportamentos do CID-10 (OMS, 1993), que indica a depressão como pertencendo ao grupo dos transtornos afetivos do humor, apresentando como principais sintomas, a perda de interesse e de prazer e a energia reduzida, levando à fatiga aumentada e à atividade diminuída. Outros sintomas também podem estar presentes tais como concentração, atenção, auto-estima e autoconfiança reduzidas; idéias de culpa e de inutilidade; visões desoladas e pessimistas do futuro; idéias ou atos autolesivos ou de suicídio; sono perturbado, e apetite diminuído. Pode apresentar também aspectos como irritabilidade, consumo excessivo de álcool, comportamentos histriônicos ou exacerbação de sintomas fóbicos ou obsessivos. Conforme o CID-10 (OMS, 1993) alguns dos sintomas da depressão são precipitados pela vida estressante em muitas culturas, mas não define o que considera estressante e nem mesmo aponta as diferenças culturais. Na verdade, estas são diretrizes diagnósticas consideradas universais, ou seja, norteiam a descrição e a leitura do diagnóstico de todo profissional que trabalha com as psicopatologias. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [DSM IV], (2002) apresenta a depressão na seção relativa aos transtornos de humor. O Transtorno Depressivo é classificado em: Transtorno Depressivo Maior, caracterizado por um ou mais episódio depressivo maior (presença dos sintomas de perda de interesse ou prazer por quase todas as atividades pelo menos por duas semanas); Transtorno Distímico, a presença dos sintomas por pelo menos dois anos e na maior parte do tempo; e Transtorno Depressivo Sem outra especificação, são os transtornos com os sintomas depressivos, mas que não seguem totalmente os critérios dos outros transtornos citados acima. Na adolescência, segundo esta classificação, os sintomas de tristeza e ausência de interesse são substituídos, algumas vezes, pelo da irritabilidade. Compreendemos a importância da leitura diagnóstica a partir da CID-10 (OMS, 1993) e do DSM IV (2002), pois nos aponta indicativos de um delineamento do quadro depressivo, mas reconhecemos também a limitação desta forma de diagnosticar. Assim, partimos da idéia de que a depressão é uma das possibilidades de existir do sujeito na sua relação com o mundo, já que entendemos que os fenômenos psicopatológicos têm uma etiologia tanto biológica, quanto situacional e cultural (Moreira, 2001). A lente da psicopatologia crítica, utilizada no presente estudo, nos leva a buscar compreender a multiplicidade dos contornos na composição da depressão. Trata-se de pensar o sujeito cultural, numa perspectiva na qual a cultura é compreendida como constituinte dos quadros psicopatológicos, buscando compreender as desordens psicopatológicas como manifestações de processos socioculturais, trabalhando tanto no nível comunitário quanto no interpessoal, para além do individual (Fox & Prilleltensky, 1997; Moreira, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2003c, 2005a, 2005b; Moreira & Freire, 2003; Sam, & Moreira, 2002; Sloan,1996). Com a modernização da sociedade brasileira, as pessoas migraram intensamente do interior para as zonas urbanas. Isto provocou um aumento da busca de emprego, habitação, educação e saúde. Com este novo cenário, as relações afetivas foram sendo 54 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 deterioradas, pois a luta pela sobrevivência tornou-se questão central para o sujeito, não havendo mais espaço para ritos, como sentar nas calçadas para a conversa de fim de tarde com os vizinhos, que, antes, existiam e que eram importantes para a subjetivação (Barreto, 1993). Segundo Scliar (2003), atualmente o homem se perde na ampliação dos espaços urbanos; com a hegemonia do capitalismo ocorreu a destruição da antiga forma de viver para surgir uma nova maneira, ou seja, antes o cotidiano não era tão atravessado pela tecnologia e pela rapidez do tempo como agora em que as relações são virtuais e efêmeras. O autor sustenta que a destruição nunca acontece sem a culpa, e com a culpa vem a depressão. Assim, a depressão passou a ser uma nova maneira de estar no mundo. Entretanto, esta maneira de viver é considerada, na modernidade, como uma doença, embora, para Scliar (2003), não exista doença sem hospedeiro. Ou seja, há uma suscetibilidade do homem moderno à depressão, devido a este novo modo de viver, isto é, existe uma relação entre depressão psíquica com a depressão econômica e social. Este autor ilustra a discussão com o exemplo de um outro momento histórico, a grande depressão norte-americana, quando os trabalhadores viveram um período de grande temor, de falta de emprego e de fome. Depressão era, então, sinônimo de pobreza, no sentido econômico. Scliar (2003) destaca que estas duas concepções de depressão, a psíquica e a econômica, referem-se a uma carência e a um sentimento de perda e de inadequação para alcançar objetivos. Para ele, no sistema econômico capitalista, pregase um modo de vida maníaco, que seria supostamente menos doloroso e mais rentável. A mania tem uma imagem melhor do que a depressão, pois se refere à agilidade, à produtividade e à aceleração necessárias para este novo modo de viver. Como se inserem estas questões na adolescência? Há uma exigência cada vez maior e mais veloz do “mundo pós-moderno” quanto ao desempenho e à eficácia com relação à informação e à tecnologia. Estas exigências se manifestam cada vez mais cedo para os adolescentes. O início das exigências ocorre desde a infância, quando as crianças assumem responsabilidades como cuidar de casa, dos irmãos mais velhos, de reconhecer o certo e o errado, nas classes sociais pobres, ou são cobradas por atividades complexas e diversificadas como o uso do computador e da internet, nas classes mais favorecidas economicamente. Nem todos os adolescentes estão preparados para enfrentar as exigências “pós-modernas”, principalmente aquela que se refere à escolha definitiva da profissão, pois eles têm dificuldade de lidar com a necessidade de se adaptar a esta nova proposta de vida, no qual os acontecimentos são rápidos e eficientes. Muitas vezes o sujeito vive, ainda, numa infância que não elaborou, pois o mundo impôs a necessidade dele ser adolescente; vive ainda uma vida de criança, e mesmo com algumas exigências, o tempo não tem a mesma pressa. O que é praticamente imposto aos adolescentes é a necessidade de estar constantemente reciclando as informações, pois o que lhes é transmitido é que quanto mais o sujeito for atualizado e informado, melhor administrará a si mesmo e tanto maior será a sua capacidade de lidar com as adversidades do mundo. Descrever a experiência vivida na adolescência muitas vezes se confunde com a descrição do que caracteriza a depressão. Tristeza, raiva, apatia e sentimento de Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 55 inutilidade são fenômenos comuns tanto à adolescência quanto à depressão. Por isso mesmo diferenciar adolescência de depressão é, frequentemente, uma questão difícil; é necessário ficar-se atento não apenas ao sujeito adolescente, como também à sua relação com o mundo e a seu modo de viver. Ou seja, só a compreensão do mundo vivido (lebenswelt) do adolescente, tornará possível uma maior clareza com relação a esta questão, não confundindo características próprias da adolescência com sintomas de depressão. Local do estudo: o Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade de Fortaleza – SPA/NAMI O SPA/NAMI é uma instituição que tem como objetivo prestar serviços à comunidade de baixa renda de Fortaleza e proporcionar aos estudantes de psicologia atividades de estágio. Trata-se da Clínica Escola da Universidade de Fortaleza, que oferece vários serviços nas áreas de psicologia clínica, escolar e organizacional. Atualmente, esta instituição atende a todas as comunidades da cidade de Fortaleza, mas, mais especificamente, a do Dendê. Esta se encontra no bairro Edson Queiroz e sofre de uma enorme carência econômica, más condições básicas de saneamento, índices altos de prostituição e de adolescentes com problemas com drogas. Como o SPA/NAMI está situado neste bairro, dá prioridade de atendimento às pessoas que residem no Dendê. Os primeiros atendimentos eram realizados especificamente para a clientela desta comunidade, mas o crescimento da demanda por atendimento tanto da população do Dendê quanto de outras, ocorreu a ampliação dos serviços e dos bairros que poderiam receber atendimentos na instituição, que se tornou, hoje, uma referência em psicologia. As pessoas buscam os serviços prestados pelo SPA/NAMI fazendo inscrição através de uma ficha. Esta contém os dados gerais do futuro paciente. Após o preenchimento desta ficha, ocorre o processo de triagem ou as entrevistas iniciais feitas pelos estudantes do Curso de Psicologia nos últimos semestres. Nesse processo de entrevistas iniciais é investigado o motivo da procura pelos serviços do SPA/ NAMI, ou seja, a queixa que levou à busca de ajuda psicológica. Ao término das entrevistas iniciais ou de triagem, o paciente é encaminhado a algum serviço de psicologia como psicoterapia, psicodiagnóstico, psicoterapia breve, grupo operativo, dentre outros, ou para demais serviços oferecidos no NAMI como terapia ocupacional, nutrição, atendimento médico, fisioterapia, dentre outros. Foi a partir destas fichas que descrevem a queixa inicial que realizamos a coleta dos dados da queixa de pressão nos adolescentes atendidos ou em atendimento nos diversos serviços de psicologia do SPA/NAMI. Método Esta pesquisa trabalhou com o método fenomenológico baseado no pensamento de Merleau-Ponty, entendendo que a experiência de depressão do 56 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 adolescente cearense se constitui mutuamente com o mundo sociocultural em que ele vive (Moreira, 2004). O método fenomenológico busca a descrição do fenômeno com o intuito de construir um conhecimento do mundo. Utilizando este método, propusemo-nos à descrição do que significa ser adolescente atualmente, na realidade sócio-cultural especifica dos pacientes atendidos no SPA/NAMI, e de como a depressão é vivida pelo sujeito adolescente, buscando compreender os elementos do seu mundo relacionados à depressão. Forghieri, (1993) e Amatuzzi (1994, 1995, 1996) indicam que este método elabora a construção de um conhecimento a partir dos dados e do material colhido. É através da objetivação do vivido que se pode construir um saber que dê conta daquilo que está acontecendo e da experiência da qual o pesquisador colheu os dados para articulá-los em uma perspectiva teórica. Trata-se de descrever uma estrutura para chegar a um conhecimento dela. O pesquisador é quem constrói os próprios passos na pesquisa. Isto significa que, a partir do que é colhido, este faz uma análise daquilo que o sujeito quis dizer: é a intenção significativa do vivido, ou ainda, a análise da intenção de dizer. Neste estudo foram analisados fenomenologicamente 20 prontuários de adolescentes atendidos no SPA/NAMI nos diversos tipos de atendimento oferecidos pela instituição. O material utilizado para a análise foi transcrições contidas nos prontuários, que descrevem e aponta, na maioria das vezes, a queixa depressiva. Para tanto, foram lidas as primeiras entrevistas que se referiam ao processo de triagem. Primeiro, fizemos uma seleção dos prontuários optamos por trabalhar com a delimitação de adolescência por faixa etária, como critério inicial, por entendermos que isto melhor delinearia a população que poderíamos pesquisar. Foram selecionados os prontuários dentre os pacientes em atendimento, os desligados e os de processo interrompido no período de 2000 a 2003 com faixa etária de 13 a 18 anos. Um outro critério utilizado foi a sintomatologia adotada numa perspectiva nosográfica da depressão (Braconnier, 1989; Cid-10/DSM IV, [OMS], 1993). Nos prontuários pesquisados, inicialmente identificamos a queixa depressiva em adolescentes cuja idade variou dos 15 aos 18 anos, de ambos os sexos, sendo que, dos 20 prontuários analisados, 7 eram do sexo masculino e 13 do sexo feminino. A escolaridade média dos pacientes cujos prontuários foram estudados era o ensino médio e a maioria pertencia às classes sociais de baixa renda. O passo seguinte diz respeito ao delineamento da pesquisa fenomenológica em seu momento inicial, a descrição. Este se deu com a leitura dos prontuários, identificando aqueles, que na sua transcrição, apresentavam a sintomatologia da depressão, fosse pela fala textual do paciente, fosse por enumerações de sintomas referentes à depressão. Salientamos que a transcrição dos prontuários foi feita por alunos que cursavam a disciplina de estágio na área de psicologia clínica, buscando identificar as falas do adolescente sobre sua depressão. Não utilizamos as interpretações elaboradas pelos estagiários e transcritas nos prontuários, pois compreendemos que apenas nas falas dos próprios adolescentes encontraríamos a descrição da queixa de depressão, buscando uma maior aproximação com o fenômeno vivido. Em seguida passamos para as demais fases da pesquisa fenomenológica: a de redução e de compreensão da vivência da depressão pelos adolescentes, conforme Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 57 modelo empregado por Moreira (2001, 2004). Seguindo este modelo, dividimos o texto da transcrição dos prontuários em: a) Texto nativo/transcrição literal do prontuário; b) Análise descritiva ou articulação de sentido do que emerge da descrição. Trata-se de uma síntese da transcrição buscando o significado ou o sentido da experiência de depressão vivida pelos adolescentes; c) A busca das categorias que emergem das falas dos pacientes, no caso desta pesquisa, as falas se referem à descrição da queixa depressiva, a adolescência e ao mundo dos sujeitos e sua cultura. Resultados Na descrição da queixa depressiva dos pacientes adolescentes atendidos no SPA/NAMI, tal como registrada nos prontuários, emergiram os seguintes temas a serem descritos a seguir e ilustrados pelas falas dos adolescentes com nomes fictícios. A depressão na adolescência é vivida como uma experiência do contexto familiar. “Quando eu tinha treze anos, bem no auge dos conflitos entre meus pais, minha cabeça já não agüentava mais, conheci uma turma e, um dia, na casa de um amigo, cheirei cocaína.” (Maria, 16 anos) “Têm várias coisas, mas a mais importante era que eu conseguisse ser eu mesma, sem que os outros dissessem o que eu deveria fazer. Eles nunca me deixam fazer nada que eu queira, como sempre fui a queridinha do papai, eles nunca me deixaram “quebrar a cara”, descobrir as coisas. A única coisa que descobri foi o pó e foi uma péssima descoberta.” (Maria,16 anos) “Meu pai diz: são as piores filhas do mundo”, que o cão a leve! Quando penso que minha irmã morreu e que o meu pai disse isso, fico arrasada. Como é que um pai deseja uma coisa dessas a uma filha?”(Joana,16 anos) A descrição da depressão por parte dos adolescentes refere-se à experiência com a religião, principalmente no que se refere à vivência da dualidade entre o bem e o mal e aos valores impostos aos adolescentes. “Minha religião pede que eu fale com outras pessoas sobre Deus, mas não consigo. Uma vez, tentei e fiquei passando mal, com as mãos geladas; a voz quase não saía e fiquei tonta.” (Vitória,13 anos) “... É o lugar mais horrível do mundo e tem dedo dele (o adolescente refere-se ao Diabo), e podia ser que estivesse no caminho do mal.” (João, 15 anos) Os adolescentes experienciam o relacionamento afetivo com grande intensidade e, na maioria das vezes, a queixa depressiva se refere à experiência amorosa. “Eu fico doida, “pirada”. Sou doente por ele.” (Mariana, 18 anos) “Quando chego perto dele, fico com dor de barriga, tremo as pernas. Penso 24 horas nele. Não entendo o que se passa comigo.” (Mariana, 18 anos). 58 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 A descrição a depressão por parte dos adolescentes refere-se constantemente à idéia e às tentativas de suicídio como possibilidade de findar o sofrimento e a perda de sentido da vida. “Já tentei me jogar em frente de um carro por ciúmes dele.” (Mariana, 18 anos). “Minha mãe diz que meu sofrimento é também o sofrimento dela e é por isso que ainda não fiz besteira, não me joguei de uma ponte: primeiro, pela minha mãe, e, depois, porque iria queimar, pretinho, no inferno.” (Rafael, 15 anos). A experiência da percepção de si mesmo emerge das descrições da vivência da depressão. “Acho que sou muito agressiva. Não gosto de falar de mim. Quando não gosto de algo, basta um olhar meu. Também tenho mania de perfeição: sou meio paranóica; para mim, tudo tem que ser perfeito; já desisti de muita coisa por achar que não atingia a perfeição que eu queria. Sou muito isolada: chego da aula e me tranco no meu quarto; não tenho amigos. Acho que é por isso que minha mãe quis que eu viesse, mas acho que não preciso de psicóloga.” (Maria,16 anos) “Não sei. Talvez não me aceite. Sei lá! Eu sempre fui medroso”. (Pedro, 15 anos). “É, mais ou menos. Não sei como gostaria de viver porque não sei o que um adolescente faz, o que ele gosta de fazer, o que ele pensa...” (Pedro, 15 anos). “Me sinto como um inseto: ninguém liga e ninguém quer saber. Às vezes até atrapalha”. (Leonardo, 16 anos) Os adolescentes descrevem a sua experiência com a droga como um modo de vivenciar o mundo. “Uma vez, não sei nem como cheguei em casa! Eles nunca notaram: minha mãe, eu posso fumar do lado dela que ela não sente e não sabe o que é. Se, um dia, ela notar, dou qualquer desculpas e pronto.” (Maria,16 anos) “Uma vez, tentei contar a ele, mas ele achou que era brincadeira minha. A única pessoa que contei foi minha amiga e ela tentou me ajudar. Há alguns meses, cheirei, tomei comprimidos e bebi: cheguei em casa, dopada; estava muito mal; ninguém me viu. No meio da noite, comecei a passar mal, vomitava e desmaiei. Meus pais me levaram para o hospital. Não sei o que disseram para minha mãe, mas mandaram ela procurar um psicólogo pra mim.” (Maria,16 anos) A importância da formação de pares é tema constante na descrição da experiência da depressão dos adolescentes: por um lado, como suporte para lidar com a depressão e, por outro, como suscitador do sofrimento deles. “Achei que ia morrer. Estou tentando me afastar desta turma, pois estava “descendo” cada vez mais.” (Maria, 16 anos) “Devido ao meu pai estar sempre bêbado, não levo ninguém para casa, pois tenho vergonha e, com isto, não tenho amigos e estou me sentindo muito sozinha. Não agüento mais esta situação.” (Luciana, 18 anos) Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 59 A descrição do que compõe a queixa depressiva refere-se ao modo como o adolescente lida com a experiência da adolescência. “ Não tenho vontade de estudar nem de fazer nada.” (Luciana,18 anos) “Não tenho amigos, e estou me sentindo muito sozinha.” (Luciana, 18 anos) “Vou acumulando as coisas que as pessoas falam fora de casa, pois não consigo revidar na hora, e, quando chego em casa, basta alguém falar uma coisinha de nada que explodo e sou muito grosseira com pessoas que não têm nada a ver.” (Lia, 16 anos) O adolescente descreve o mundo que o circunda como uma experiência de despotencialização e de injustiça social “Ninguém pode ficar parado, só vendo as coisas acontecerem, sem tomar nenhuma atitude diante disso. Detesto as desigualdades sociais, o consumismo, o capitalismo e o sistema de massificação”. (Aparecida, 17 anos) “É mais assim como alguém que conheço, com quem converso sobre muitas coisas que acontecem no mundo: falamos sobre dinheiro - que ele pensa muito nisso - e que a sociedade é muito consumista etc. Não há demonstração de carinho e amor”. (Aparecida, 17 anos) Os resultados demonstram que a sintomatologia da queixa depressiva é experienciada de modo similar pelos vários adolescentes, cujos sintomas, conforme a literatura descritiva desta patologia são: agressividade, timidez, choro fácil, insegurança, desânimo e tristeza profunda, dentre outros descritos pelos adolescentes. Discussão A fenomenologia da depressão está relacionada com o contexto social dos adolescentes. A depressão na adolescência, na cultura ocidental, tem aumentado devido ao conflito entre a sua necessidade de laços afetivos e a multiplicidade de situações de separação e de ruptura. As exigências da sociedade e a valorização da independência e da autonomia também contribuem para o aumento dos índices de depressão na adolescência. Deste modo, faz-se necessário à compreensão da relação entre: ideologia x homem x patologia x cultura. Visto que esta relação se constitui mutuamente, não tem sentido pensar esses fenômenos isoladamente. A psicopatologia tem tanto características universais quanto culturais (Schumaker, 2001). Pesquisas transculturais buscam compreender a depressão como um fenômeno mundano (Moreira, 2002, 2003c e no prelo; Moreira & Freire, 2003; Moreira & Coelho, 2003) que se constitui mutuamente com cada cultura específica. Entendemos que estas diferentes formas de expressão da depressão estão relacionadas, também, com as mudanças históricas próprias culturais de cada cultura. Com o advento da modernidade, as tradicionais formas culturais de proteção contra os efeitos nocivos da depressão no Brasil e especificamente no Nordeste brasileiro, que é tradicionalmente uma cultura onde as pessoas se aconchegam, se tocam, convivem em família, os estreitos laços afetivos interpessoais, estão sendo 60 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 destruídas e tornando-se insuficientes para proteger os indivíduos de uma situação de perdas reais importantes (Moreira, 2002). Barreto (1993) lembra que no Nordeste têm sido abandonados os rituais que possibilitavam suporte para o sujeito lidar com as suas perdas, como se vestir de preto, passar um período de luto. Para este autor, neste novo contexto, o sujeito substituiu o ritual pela concretização da perda. Perder algo significa morrer. Os rituais possibilitavam uma demarcação clara da espacialidade e da temporalidade ao sujeito em seu se tornar adolescente, significa dizer, que o adolescente, antes, tinha uma noção bem delineada do tempo e do lugar de experienciar a adolescência. Para o sujeito moderno, restou o processo da adolescência como possibilidade de lidar com o que se apresenta de novo para ele. Este processo aparece como substituto dos rituais como os bailes de debutantes, a inserção na universidade, as tarefas a serem cumpridas que denotavam coragem e autonomia, dentre outros. Neste experienciar das perdas e mudanças na adolescência, restou para o sujeito a depressão como possibilidade de organizar-se num mundo em que o “ter” é o “ser”, ou seja, o valor atribuído ao que o sujeito tem, como aquilo que ele possui é bem mais alto do que a preocupação com o ser do adolescente. Numa cultura do consumo e da intolerância à dor, o adolescente busca saídas para esta nova configuração existencial. É o que Perls (1997) denomina de autoregulação. Nesta auto–regulação o adolescente tenta lidar com o que se configura na cultura contemporânea, o consumismo. A depressão é considerada como uma forma de alcançar o equilíbrio no processo de auto-regulação. Como podemos perceber na fala de uma adolescente: “Ninguém presta atenção em mim, ninguém quer saber como estou me sentindo ou como foi o meu dia” (Ana, 16 anos), a depressão é o modo como o adolescente consegue lidar com o seu sofrimento e com suas inquietudes da sua existência numa tentativa de manutenção do equilíbrio, da auto-regulação. A todas as especificidades da adolescência e de sua relação com a cultura, somam-se, ainda, problemas familiares e socioeconômicos, tais como: crises de separação dos pais, violência doméstica, doenças orgânicas, alcoolismo, drogas, morte e pobreza, o que aponta algumas das possíveis causas do grande número de adolescentes deprimidos que nossa sociedade produz. Também tensões da vida cotidiana, os fracassos e a discriminação, a pressão para realizar inúmeras tarefas e o luto patológico pela morte de um ente querido, pela perda de um amigo ou pelo rompimento de uma relação amorosa são fatores que contribuem para o desencadeamento da depressão nos adolescentes. Muitos adolescentes têm dificuldades para lidar com essas perdas e com as expectativas que o mundo tem de sua adaptação na cotidianidade (Ballone, 2001). Compreendemos que pensar estas dificuldades para lidar com as experiências de ser adolescente através das descrições da queixa depressiva aponta para a confirmação da nossa hipótese de que a experiência da depressão entre eles é constituída mutuamente com a cultura, sendo composta por contornos culturais, sociais e econômicos nos quais vivem os adolescentes. As descrições da queixa depressiva trazem as experiências que constituem o modo como eles lidam com o que se apresenta para eles. Nas falas dos adolescentes, questões como família, condição social, corpo, drogas surgem como Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 61 temáticas que delineiam esses contornos culturais, sociais e econômicos e que expõem o adolescente num confrontar-se com as possibilidades e limites da sua existência. Compreendemos, finalmente, que esta pesquisa tomou um caminho para investigar a depressão na adolescência, embora sabendo que outros podem existir para desvendar as experiências do sujeito adolescente. Pensamos que esta exploração da queixa depressiva pôde nos levar a compreender melhor a experiência de ser adolescente neste contexto sócio-cultural específico, contribuindo para uma maior fundamentação do atendimento psicológico de adolescentes nesta região. Referências Amatuzzi, M. M. (1994). A investigação do humano: um debate. Estudos de Psicologia, 11(3), 73-77. Amatuzzi, M. M. (1995). Descrevendo processos pessoais. Estudos de Psicologia, 12(1), 65-79. Amatuzzi, M. M. (1996, outubro). 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Endereço para correspondência: [email protected] Nota: Os autores agradecem as bolsistas de iniciação científica Sarah Fichera (Pibic/CNPq), Daniela Furlani, Desirée Abreu, Marcela Ranier e Shimênia Oliveira (bolsistas voluntárias) por sua colaboração nesta pesquisa. 64 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.65-80, jan./jun. 2008 Projeto do futuro e identidade: um estudo com estudantes formandos Larissa Hery Ito Dulce Helena Penna Soares Resumo: Este artigo apresenta revisão teórica e estudo exploratório buscando compreender como os jovens universitários se relacionam com o futuro a partir da elaboração de seu projeto da vida e escolha profissional; estudando a relação deste processo com a construção da identidade. Especificamente o recorte deste estudo inclui os estudantes ao final do curso de graduação haja vista a relevância atribuída ao nível superior como uma possível trajetória de vida para a sociedade em geral. Na pesquisa teórica sistemática sobre o tema evidenciaram-se diferentes abordagens sobre o conceito de identidade e escassez de estudos sobre projeto de futuro na produção nacional. No estudo exploratório foram realizadas redações com o tema “Eu e meu futuro” com os estudantes a fim verificar quais aspectos eram relevantes para o entendimento de seu projeto de futuro. A análise inicial dos resultados aponta alguns eixos temáticos como: estabilidade financeira, realização profissional, família e temporalidade (curto e longo prazo). Palavras-chave: projeto de futuro, escolha profissional, identidade, formandos. Project of future and identity: a study with senior college students Abstract: This article presents theoretical revision and exploratory study that aim at to contribute about the agreement of how college students relates with the future from the elaboration of its project of life and professional choice; studying the relation of this process with the construction of the identity. Specifically the clipping of this study encloses senior college students, have seen the relevance attributed to higher education as possible form of trajectory of life for the society in general. From the systematic theoretical research on the subject, have been detected contradictory conceptions about identity and a scarcity of studies on the notion of project of future in the national production. In the exploratory study, writings with the subject had been carried through “My future and I” with the students in question in order to verify which aspects the research could be excellent for the agreement to which if it considers, their project of future. The first analyses of the gotten results point some thematic axles as financial stability, professional accomplishment, family and temporality (short and long stated period). KeyWords: Project of future, professional choice, identity, senior college students. Introdução Várias pesquisas sobre a relação do homem com seu futuro vêm sendo desenvolvidas para tentar cobrir uma lacuna teórica já apontada por Bohoslavsky (1998) sobre o tema. Segundo o autor a relação com o futuro destaca-se como fundamental na Psicologia de Orientação Profissional, pois “um jovem que busca a orientação vocacional demonstra estar preocupado com sua pessoa, em relação ao seu futuro” (p.23). Entretanto, o autor evidencia a predominância de posições teóricas que cristalizam os homens como “objetos”, e fazem da Psicologia de Orientação Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 65 Profissional uma atividade visando o ajustamento social, pressupondo uma natureza humana pré-determinada, que objetiva colocar “o homem certo no lugar certo”. Esta posição “constitui uma colocação psicologista, e, portanto, parcial e falaz, na análise dos ajustamentos e desajustamentos sociais” (p.21). Como coloca o autor, “os psicólogos estão acostumados a ver o que o adolescente é. O adolescente se preocupa mais com o que ele pode chegar a ser” (p.23). No Brasil existe uma carência de estudos sobre o conceito de “projeto”, em especial, junto a estudantes de nível superior, em fase de escolhas profissionais e de futuro. Atento a isso, o LIOP1 - Laboratório de Informação e Orientação Profissional vem construindo desde 1997 um trabalho conjunto entre diferentes instâncias de pesquisa, a saber: o laboratório (LIOP), o PPPG – Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSC, o apoio do CNPq através de Bolsa Produtividade e PIBIC (bolsistas IC) e outras formas de financiamento da pesquisa (CNPq e FAPESC, com a finalidade de estudar a escolha profissional de jovens em busca de um curso superior, seus projetos de vida e profissionais, os fatores que interferem em suas escolhas, a influência da família, das instituições e do mercado de trabalho nestas escolhas. O presente estudo busca aprofundar a questão do processo de elaboração do “projeto de futuro” nos indivíduos a partir de uma amostra definida: estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina no final do curso de graduação. No amplo universo de possibilidades de sujeitos de pesquisa, a escolha pelo recorte universitário diz respeito ao status que a formação universitária representa para diversas classes sociais, como um “modelo padrão ou ideal” a ser seguido na elaboração de um projeto de vida. Esta idéia traz consigo de modo subjacente o caráter norteador do trabalho na vida dos sujeitos, corroborando com diversos estudos já desenvolvidos sobre trabalho e identidade (Ciampa, 1987; Jacques, 1996; Coutinho, Krawulski & Soares, 2007). Ao pesquisar a produção científica sobre a noção de “projeto” no campo da psicologia, procedeu-se a um levantamento no Banco de Teses2 mantido pela CAPES, bem como na biblioteca eletrônica SciELO3 , teses e dissertações completas na área da Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina entre o ano de 1991 a 2005; e ferramenta de busca Google Acadêmico (Disponível no portal da CAPES), com resultados de teses/dissertações de outras universidades brasileiras. Foram avaliadas obras citadas com freqüência, principalmente livros, no material encontrado. Operacionalmente, na busca foram utilizados os seguintes descritores (palavras-chave): identidade, profissão, trabalho, projeto, futuro, formandos e jovens, em suas múltiplas combinações. As informações obtidas através deste levantamento focalizaram-se em quatro temas principais: A) Conceito de identidade profissional e identidade de forma mais ampla, onde encontramos um número grande de artigos, demonstrando o interesse perene sobre a questão da constituição do ser; 1 Este laboratório faz parte do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. A CAPES só disponibiliza on-line em versão integral as teses e dissertações na área da História. 3 A sociologia demonstrou um maior número de publicações sobre a questão do significado de tempo em relação à psicologia. 2 66 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 B) A questão da escolha profissional e suas possibilidades: observamos artigos na área da orientação profissional/vocacional se apresentado atualmente de forma mais crítica, enfraquecendo o enfoque vocacional de abordagem psicométrica; C) Considerações acerca da idéia de projeto de vida, de ser, ou de futuro: percebemos escassez na literatura nacional, mas autores franceses apresentam com uma produção mais consistente. Freqüentemente a palavra “projeto” é utilizada sem maiores explicações sobre a concepção que a fundamenta e predominantemente é associada à questão profissional: projeto profissional e de carreira; D) Caracterização do público-alvo, os formandos: encontramos poucas publicações em psicologia sobre este momento de transição, conclusão do curso superior e ingresso no mundo do trabalho. A palavra identidade surgiu relacionada com palavras como: clínica, conflitual, cultural, de gênero, de grandes grupos, de lugar, docente, negra, nacional, e diversas outras. Por este motivo “identidade” num segundo momento, durante as buscas, foi associada à palavra trabalho e profissão (para se aproximar mais do objetivo da pesquisa). Os descritores “identidade” e “profissão” totalizaram 2064 registros no banco de resumos de teses e dissertações da CAPES, a partir de 1992. Nestes resumos, nos poucos casos em que a identidade foi associada à palavra projeto em nenhum deles foi esclarecido o conceito utilizado para o entendimento deste termo. Outra linha de pesquisa encontrada trata da identidade como um componente que liga os iguais, razão pela qual alguns têm os mesmos objetivos e preferências, em geral tratando da identidade coletiva de profissionais de uma determinada área (Barros, 2001; Camargo, 2003; Conti, 2003; Daher, 1995; D´Azevedo, 1997; Dias, 2003; Gusmão, 2002; Lima, 2002; Louro, 2004; Maciel, 2001; Méis, 1996; Moreno, 1996; Nascimento, 2000; Oliveira, 2002; Vieira, 2003; Teixeira, 2004). Nesta mesma direção, no indexador Scielo, com os mesmos descritores, foram encontrados cinco artigos completos, onde todos tratam da identidade no seu sentido classista, identidade de uma determinada profissão (Bock, 1999; Faria, 2006; Lüdke & Boing, 2004: Moreira, 1999a; Moreira, 1999b). De modo geral, a identidade é difundida entre o senso comum como um traço que define o ser, uma característica estática do psiquismo do indivíduo e nesse sentido traz a idéia de que o ser humano pode reconhecer-se e descobrir uma essência que caracteriza o seu verdadeiro eu. Este viés é trazido por teorias subjetivistas como a Psicanálise, por exemplo, exemplificada na definição de identidade de Erikson (1987) como um senso interior de igualdade e continuidade, ou seja, uma representação de si mesmo que persiste ao longo do tempo e dá ao sujeito a certeza de saber quem ele é e para onde vai. Escolhemos adotar neste estudo a categoria identidade sem cair na abstração de considerá-la como uma entidade, um produto que caracteriza indivíduo, mas ao contrário, como uma constituição concreta, histórica e processual. É de Ciampa (1987) a concepção da identidade como metamorfose, tanto síntese de múltiplas e distintas 4 Somente foram citados e referenciados os resumos que apresentaram alguma relação com o tema desta pesquisa. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 67 determinações, como também, determinada pelas condições históricas, sociais, materiais dadas, aí incluídas as condições do próprio indivíduo. Dessa maneira, a concretude da identidade é sua temporalidade: passado, presente, futuro; e conhecer a identidade como mesmice, como sempre igual a si mesma, exclui a temporalidade e a diferença, deixando de ser a articulação da diferença e da igualdade. Sobre a identidade profissional, Bohoslavsky (1983), importante teórico da orientação profissional, faz uma análise minuciosa, separando-a em dois aspectos: identidade profissional/ocupacional e identidade vocacional. Segundo ele a identidade profissional é um produto da ação do contexto sócio - cultural no qual vivemos. Nela estão atuantes as variáveis do contexto, que são de ordem objetiva: o quando, onde, com quê, como desempenhar um papel produtivo na sociedade. Esta identidade está determinada por fatores sócio-econômicos e tem relação direta com o significado das ocupações, o valor social que lhe é atribuída, ou seja, o papel social das diferentes profissões. Já a identidade vocacional segundo o autor, diz respeito às variáveis de tipo afetivo e motivacional e tem ligação com a história real da pessoa, com as relações com os objetos primários, como a família, por exemplo. Em tese de doutorado Krawulski (2004) estudou a formação da identidade profissional dos psicólogos e aponta a profissão representando muito mais do que um conjunto de aptidões e funções; constitui também uma forma de vida a ser assumida, pois a relação entre o trabalhador e a sua profissão é caracterizada pelo envolvimento, pelo sentimento de identidade e de adesão aos seus objetivos e valores. Segundo a autora, é na trajetória profissional de trabalho, quotidianamente, onde se pode localizar a efetiva expressão dessa identidade, pois é no contexto do trabalho que se darão os contornos e a medida entre aquilo que se queria ser e aquilo que efetivamente se consegue ser enquanto ser humano trabalhador. Nessa perspectiva, é inviável entender a identidade profissional a priori, como pré-requisito para se escolher acertadamente uma profissão ou emprego. Ela é construída e reconstruída seguindo a mesma lógica da identidade como metamorfose, sempre em ação. O foco de interesse então vai de encontro aos desejos e expectativas de futuro que representam a porção subjetiva da identidade dos indivíduos. Já as escolhas se localizam dentro da concretude na qual estes se encontram, caracterizando o início da objetivação da identidade. Sobre a temática “projeto de futuro”, na busca por artigos com esta forma de expressão foram encontradas 0 (zero) ocorrências5 , e com a combinação “Projeto e futuro/ projeto e vida”, quatro ocorrências (Delory-Momberger, 2006; Guerreiro & Abrantes, 2005; Josso, 1999; Leccardi, 2005), demonstrando a escassez de trabalhos sobre o tema. Além destes utilizamos as contribuições de Catão (2001), Boutinet (1990), Soares (1997) e a perspectiva existencialista discutida por Schneider (2002), Ehrlich (2002), Maheirie e França (2007), que trazem consistentes considerações sobre o tema em questão. Guerreiro e Abrantes (2005) realizam análise de projetos/trajetos de vida, propondo sete padrões diferenciados de transição para a vida adulta na sociedade portuguesa 5 Os casos em que o termo foi utilizado apenas de forma superficial ou citado foram desconsiderados. 68 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 atual (transições: profissional, lúdica, experimental, progressiva, precoce, precária e desestruturante), a partir da realização de entrevistas individuais e de grupo. Para os autores no modelo de Transições profissionais os jovens caracterizam-se por um investimento quase exclusivo no trabalho, nos primeiros anos, relegando os projetos familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos longínquo. Nas Transições lúdicas os jovens caracterizam-se por um longo período pós-adolescente destinado a viver longos trajetos de escolaridade e inserções precárias e/ou temporárias no mercado de trabalho, que não implicam grandes compromissos e responsabilidades. As Transições experimentais caracterizam-se por uma sucessão de configurações de vida temporárias e imprevisíveis, como opção de vida ou como período de experimentação antes de “assentar” , casar e ter filhos. As Transições progressivas são formas de transição relativamente lineares e programadas, na qual o percurso de escolaridade antecede a progressiva integração profissional e a esta sucede a constituição de família. As Transições precoces correspondem à passagem rápida e numa idade precoce de um estatuto de dependência da casa dos pais, ao estatuto de trabalhador, em vida conjugal, muitas vezes com filhos e desejavelmente (mas nem sempre) em casa própria. Nas Transições precárias os jovens fazem parte da massa de “trabalhadores descartáveis”, que se encontram hoje na área cinzenta entre a inserção efetiva no mercado de trabalho e de inserção de longo prazo. O modelo de Transições desestruturantes é caracterizado pela incapacidade para a construção de uma transição para a vida adulta e independente, mergulhando em espirais de exclusão social, com a quebra de uma série de vínculos sociais e, potencialmente, sentimentos de depressão aguda e/ou experiências de marginalidade social. Leccardi (2005), a partir de pesquisa recente realizada na Itália, aponta para uma nova percepção de tempo sendo constituída pelos jovens em resposta às condições adversas de futuro profissional. Segundo a autora, em uma época na qual o futuro a médio e longo prazo não pode ser discutido sem suscitar preocupações e, com freqüência, um sentimento de verdadeiro temor, a maior parte dos jovens, moços e moças, encontra refúgio, sobretudo em projetos de curto ou curtíssimo prazo, e assume o “presente estendido” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” com projetos que se expressam sobre arcos temporais mínimos e, por isso mesmo, parecem extremamente maleáveis. Em geral, conforme Leccardi, os jovens se ligam á conclusão positiva de atividades já iniciadas capazes de responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em um ambiente veloz e incerto, como à pressão social por resultados em curto prazo. Delory-Momberger (2006) e Josso (1999) convergem na idéia de que através da técnica da narrativa das histórias de vida os sujeitos poderiam melhor construir seus projetos profissionais e de vida de forma mais ampla. A técnica do ateliê biográfico, proposta pelas autoras, é um procedimento que inscreve a história de vida em uma dinâmica prospectiva ligando o passado, o presente e o futuro do sujeito. Visa fazer emergir seu projeto pessoal, considerando a dimensão do relato como construção da experiência do sujeito e da história de vida como espaço de mudança aberto ao projeto de si. Além destes, ainda na produção nacional, destaque para Catão (2001) que discute o projeto a partir de três dimensões, subdivididas em oito classes de operadores: (1) Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 69 Dimensão espaço-temporal: possibilidade de realização de projetos em função dos antecedentes sócio-ocupacionais; da mudança de vida; e das práticas institucionais (inserções presentes possibilitadoras de inserções no tempo futuro); (2) Dimensão sócio-afetiva: possibilidade de construção das bases psicossociais para operacionalização do projeto de vida em função da exclusão/ inclusão social; da tríade trabalho-educação-família; da relação com o outro e consigo; e da relação de agressão/ destruição com este projeto; (3) Dimensão sócio-cognitiva: possibilidade de elaboração e crítica constante do projeto de vida em função do pensamento/reflexão (diálogo consigo mesmo sobre si e sobre o mundo em relação). Cada dimensão descrita age como fator possibilitante ou impossibilitante de um determinado comportamento do indivíduo, no nosso caso, a escolha, o ingresso e a conclusão de um curso superior. Boutinet (1990), autor francês, ressalta o projeto como o momento no qual se integra asubjetividade e a objetividade, e também o momento no qual funde num mesmo todo, o futuro previsto e o passado recordado. Através do projeto, se constrói para si um futuro desejado, esperado. Na perspectiva operatória de Boutinet (1990), o projeto não pode ser para um futuro longínquo nem também se limitar a ser muito imediato. Seu caráter parcialmente determinado faz com que ele não seja jamais totalmente realizado, sempre passível de modificações. Mais do que um plano ou um objetivo, o projeto com sua conotação de globalidade, é destinado a ser integrado numa história, contribuindo para modelizar o passado que é presente nele e prever o futuro. Todo projeto, através da identificação de um futuro desejado e dos meios próprios para fazê-lo realidade, se dá num certo horizonte temporal, no interior do qual ele evolui. Mas o projeto não se termina no ambiente onde sua evolução é previsível. Ele diz respeito primeiramente ao autor, que se dá uma perspectiva de um futuro esperado. A perspectiva existencialista em direção semelhante aponta as contribuições de Sartre para o entendimento da noção de projeto e futuro. Segundo Schneider (2002), o homem é presença que se lança em direção ao seu projeto, aquilo que ainda não é e busca ser, às suas possibilidades, que nada mais são do que seu futuro. O devir é aquilo que se persegue, se projeta, mas não se pode alcançar, pode-se desviar seu rumo, posto que ele ainda não é. O futuro é o que ainda não se é, na busca de ser. No entanto, a autora ressalta que ocorre uma decepção ontológica cada vez que a realidade humana desemboca no futuro, pois ele não se deixa alcançar; quando nele chegamos já é passado e isto quer dizer que o homem não se totaliza, não se completa, ele é sempre uma totalização em curso, uma busca incessante de realização, um vir-a-ser. Isto mostra que o ser do homem é uma infinidade de possibilidades. Esta autora destaca que o homem é seu passado (que é o que é) e seu futuro (que não é ainda) enquanto presença no mundo; e essa dinâmica temporal desenvolve-se como processo de totalização incessante da experiência nessas três dimensões. Ehlich (2002) com objetivo de analisar, em que medida, o “Projeto de Ser”, incrustado na psicologia de Sartre, vem a contribuir para a superação da lacuna teórica apontada por Bohoslavsky com respeito à relação do homem com o futuro, aponta alguns elementos importantes a serem considerados: a “relação com o futuro” a partir das relações com os outros, com o passado, com o contexto social, com a condição 70 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 material real em que a pessoa se encontra; a problemática filosófica do “projeto pessoal”; “articulação entre o individual e o social”, da possibilidade da escolha e suas restrições, esclarecendo o homem como sujeito de suas escolhas. Neste sentido Maheirie e França (2007) acrescentam que o projeto de ser contempla as condições dadas e o campo dos possíveis que orienta a ação para um destino ou para outro, o sujeito pertence a um determinado contexto sócio-econômico, o que lhe viabiliza alguns caminhos em detrimento de outros; e mesmo aqueles caminhos que lhe são vedados, aparecem a ele na qualidade de ausência, de empobrecimento. Numa concepção sócio-histórica, Bock e Liebesny (2003) trazem a idéia de que compreender o projeto de futuro dos jovens significa conhecer a sociedade brasileira em seus valores e formas de educar a juventude, e, portanto, a sociedade também está implicada neste estudo. Para as autoras apesar da importância de se conhecer os projetos de vida dos jovens, poucos estudos têm sido realizados nesta direção, em decorrência da adolescência ser pensada enquanto uma fase de incompletude e imaturidade, e isso faz com que a sociedade adulta desvalorize seus projetos por considerá-los frutos de um período de transição. Estas reflexões nos levam a delinear o projeto em perfis mais consistentes, considerando sua característica temporal, dialética e social. Finalmente, o projeto e a escolha profissional se articulam, como afirma Coutinho (1993), pois a escolha é o momento no qual o sujeito reflete e articula seu projeto profissional, buscando assim determinar a trajetória de sua futura relação produtiva com o mundo. Soares (2002) ressalta a condição “multi determinada” da escolha, sendo esta influenciada por fatores políticos, econômicos, sociais, educacionais, familiares, psicológicos. Assim a escolha profissional não se trata de um processo linear, por envolver uma gama de escolhas subjacentes à escolha principal, por exemplo: o retorno financeiro, status social decorrentes do tipo de valor atribuído à atividade exercida, aspectos como preconceitos e expectativas em relação ao gênero na profissão, tempo de dedicação que a profissão/emprego vai demandar (o que pode ir inclusive confrontar com outros desejos do indivíduo), as possibilidades de inserção profissional, entre outros. Dentre as obras encontradas e categorizadas, foram analisadas e serviram de subsídio de discussão com os resultados deste estudo as vertentes que compreendem a concepção de identidade e processo de construção do projeto profissional à luz das relações sociais concretas que o indivíduo estabelece em sua história de vida. Algumas perspectivas já foram superadas, como aponta Mayorga (2006) em artigo no qual realiza um apanhado teórico sobre as concepções psicológicas acerca da identidade e também da adolescência (perspectiva biologicista, internalista, fenomenológica e narrativa) trazendo uma noção de sujeito separado do mundo, com características universais e que através do método científico, pode alcançar as verdadeiras leis da natureza. Estas concepções, segundo a autora, compõem o quadro do paradigma dito dominante, devendo ser superado por estudos e pesquisas que abarquem o sujeito como ser inserido num contexto social concreto e de relações. A fim de estudar como os estudantes formandos de uma universidade pública articulam seu projeto de futuro com a construção de sua identidade pessoal e profissional realizamos um estudo qualitativo, apresentado a seguir. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 71 Método Participantes Selecionamos os participantes do estudo empírico com base no critério “ser estudante em final de curso de graduação”. Incluiu-se nessa amostra pessoas regularmente matriculadas na disciplina optativa “Orientação e Planejamento de Carreira”, não necessariamente no último período, mas indicando alguma preocupação com a carreira futura. Esta disciplina é oferecida pelo Departamento de Psicologia, e atende a todos os cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Catarina visando estimular os alunos à reflexão na busca pelo autoconhecimento, direções e motivações envolvidas nas suas escolhas profissionais, perspectivas de projeto de futuro pessoal e profissional através de um planejamento de carreira. Participaram dessa pesquisa 11 pessoas, nomeados como “formandos”, com idade entre 23 e 37 anos. Consideramos que os estudantes em fim de curso universitário se encontram no início da fase adulta, denominada aqui, adultez jovem. Segundo Teixeira6 (2002) este período, é marcado pela consolidação das opções e valores pessoais, integrados agora em um projeto de vida e profissional mais elaborado e realista do que aquele esboçado na adolescência: (...) É o momento de transitar da identidade de estudante para a de trabalhador, não porque para a maioria das pessoas é vital a remuneração que o trabalho proporciona, mas também porque o trabalho é uma forma de inserir-se na sociedade, de estar em relação com o outro e de ser reconhecido socialmente (...). A transição da universidade para o mercado de trabalho segundo Teixeira e Gomes (2004, 2005) pode ser caracterizada como um período no qual o jovem investiga as possibilidades existentes em sua profissão e procura experimentar-se em diferentes papéis; além de implicar em uma reavaliação das escolhas realizadas, das experiências vividas até o momento e, também, uma antecipação do que está por vir, tanto em termos profissionais, como não profissionais. Procedimento Com o objetivo de recolhermos a produção subjetiva dos participantes que permitisse uma compreensão sobre o projeto de futuro, foi solicitado a cada um dos estudantes que escrevesse uma redação com o tema “Eu e meu futuro”. As redações foram escritas em uma folha padronizada com um cabeçalho de identificação pessoal. Um termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue juntamente com explicação verbal sobre os objetivos da pesquisa. A aplicação da redação foi feita de forma coletiva no mesmo local da Universidade onde as aulas eram ministradas e durante um período de aula previamente cedido pelo professor da disciplina. Antes da aplicação, os participantes receberam explicações 6 A adultez jovem pode ser entendida como um novo status (psicológico e social) ao qual o indivíduo ascende à medida que vai cumprindo ao menos algumas das tarefas culturalmente esperada dele. 72 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 sobre os objetivos e considerações éticas do estudo, ressaltando que se tomou o cuidado de não mencionar palavras, termos ou expressões que pudessem influenciar no conteúdo das redações (como projeto, identidade, futuro). No que se refere ao tema da redação, este foi proposto de forma ampla a fim de permitir recolher os significados sobre a escolha e projetos de futuro profissional dos formandos, livre de idéias preconcebidas e de hipóteses preestabelecidas. Para a análise das redações produzidas aplicamos a análise do conteúdo, método proposto por Bardin (1977), considerando o texto como um meio de expressão construído no processo de pesquisa. De acordo com Bardin (1977, p. 31), a análise de conteúdo interpretativa se caracteriza como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações”. As narrativas foram analisadas utilizando-se um procedimento inspirado na análise de conteúdo, seguida de uma análise temática, desenvolvida na pesquisa de doutorado de Soares (1997): inicialmente retiram-se do texto os temas mais significativos, depois se realiza a sua organização, a ligação entre eles, o encadeamento dos temas no interior de uma redação, aqueles que vêm espontaneamente, como aparecem, ligados a quais situações e como se articulam dentro do texto, os diferentes temas. Resultados e discussão O perfil dos alunos da amostra é predominantemente do gênero feminino; faixa etária entre 22 a 27 anos, com um caso de 37 anos. Outros dados obtidos através do cabeçalho de identificação da redação demonstram que quatro estudantes são alunos de Economia, dois de Engenharia Química, um de Engenharia Mecânica, um de Engenharia de Produção Mecânica, um de Letras, de Serviço Social. As profissões dos pais relatadas foram: Engenheiro Químico, Engenheiro Agrônomo, Autônomo, Economista, do lar (três ocorrências), Caminhoneiro, Funcionário público, Doméstica, Costureira, Motorista de ônibus, Recepcionista, Representante de vendas, Professor, Aposentado (03 ocorrências) e ainda uma ocorrência de pai falecido e uma de pai desconhecido. Os dados supracitados demonstram uma heterogeneidade na amostra quanto ao curso de graduação e também em relação a profissões dos pais, já que somente alguns exercem atividades de ensino superior. Em relação à idade, a amostra é relativamente homogênea e no que diz respeito à fase do curso, se encontram, predominantemente entre oitavo e décimo semestre. Entre os estudantes oito relataram exercer atividade remunerada entre monitoria acadêmica, auxiliar administrativo e atendente bancário. Nas redações propriamente ditas percebemos dois núcleos que se articulam na produção da identidade e projeto profissional ou de futuro da amostra, cada qual com subnúcleos: dimensão subjetiva (desejos e percepção temporal) e dimensão objetiva (Escolha/estratégias e atitudes em relação ao futuro e aspectos contextuais/de relacionamento). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 73 Eixo temático Projeto de futuro/de vida Atitudes e estratégias em relação ao futuro Realização profissional Bem-estar Recursos Financeiros Família Formandos Palavras/expressões Modesto, desejos, expectativas, presente, longo prazo, realização, preparação. Especialização, mestrado, escolhas são cruciais, medo de falhar, sorte, insegurança/incerteza. Prazer, bom emprego, gostar de trabalhar, ganhar bem, estabilidade, mérito, desafios, competência técnica, valorização, recompensa. Paz, qualidade de vida, harmonia. Estabilidade, ganhar bem, casa própria, carro, padrão de vida suficiente para viver. Casar, ter uma mulher, filhos, demanda gastos. Quadro 1 – Palavras e expressões por eixos temáticos com maior ocorrência para o grupo de estudantes pesquisados A seguir a ilustração em alguns dos trechos coletados: - “Minha perspectiva para o futuro profissional é conseguir um emprego onde eu possa ter estabilidade, enfrentar desafios e mostrar minha competência técnica”. (Dig, 27 anos, formando, Engenharia Mecânica). -“O futuro que busco é estar em harmonia: corpo, mente e com as pessoas. Onde a preparação profissional consiga um trabalho que me realize, valorizandome pelo trabalho exercido e recompensada a altura”. (S@1, 23 anos formando Economia) -“Hoje, estou quase terminando o curso, e após ter conquistado, principalmente, conhecimento e capacidade técnica para exercer minha profissão, vou buscar atingir meu objetivo maior. Só que agora com idéias um pouco mais elaboradas”. (Bia, 22 anos, formanda Engenharia Química). A partir desses relatos percebe-se que as dimensões subjetiva e objetiva aparecem nos relatos de forma dinâmica e sem contornos que as delimitem. Aspectos como valorização, harmonia se entrelaçam com enfrentamento de desafios, estabilidade e exercício da profissão. Em comum a evidência de que, num futuro por vir, o exercício da profissão escolhida surge como possibilidade de realizações pessoais e profissionais. Com isso, percebe-se a ação como foco central para nos reconhecermos no mundo, e ela se dá e é reconhecida principalmente através do trabalho, que representa a parte objetiva da construção da identidade. Conforme aponta Ciampa (1987) se o desenvolvimento da identidade dependesse apenas da subjetividade, representada pelos desejos, ficaria menos difícil reconhecê-la, mas depende também da objetividade. Por isso o homem é desejo, é trabalho. “O desejo o nega, enquanto dado; o trabalho é o dar-se do homem, que assim transforma suas condições de existência, ao mesmo tempo em que o desejo é transformado” (Ciampa, 1987, p.201). Sobre a questão do projeto de vida e de futuro os resultados apontam que os formandos privilegiam os frutos do trabalho, a longo prazo, como objetivo e, manifestam desejos e expectativas positivas sobre isso (realização, tranqüilidade). Paradoxalmente 74 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 o tempo futuro aparece como algo imprevisível, duvidoso, o presente e o futuro desconexos, sem relação temporal causal estabelecida. Uma possível hipótese sobre essa contradição foi apontada por Leccardi (2005) em sua pesquisa, onde aponta o fato de que a realidade objetiva está causando aversão e medo, podendo ocasionar nos formandos a construção de projetos de futuro em curto prazo. - “Atualmente meu futuro é incerto, estou inseguro. Não tenho claramente os meus objetivos, mas tenho certeza que no fim dará tudo certo, pois foi assim a minha vida inteira. Quase tudo que faço no presente, faço pensando a longo prazo (no futuro)”.(Kmz, 23 anos, formando em Engenharia de Produção Mecânica) Sobre a questão de remuneração os recursos financeiros são descritos como importantes na medida em que oferecem estabilidade, todavia o prazer de trabalhar foi dito como mais importante do que ganhar dinheiro, e sobre isso, os formandos descrevem em relação à constituição da sua própria família (casar, ter filhos, demanda gastos) o quesito “condições financeiras” como sine qua non para isso. - “Os meus planos são após me formar voltar para a Alemanha e lá fazer o mestrado de especialização e estabelecer contatos para futuros empregos. E quando voltar poder trabalhar e ter estabilidade financeira para então ter a minha família” (Tat, 22 anos, Engenharia Química) A análise das redações apontou também que os formandos mencionam a intenção de realizar especialização (mestrado, doutorado, MBA) e se referem as “escolhas certas” como cruciais. Apresentam elementos como insegurança e sorte como importantes para suas vidas futuras. Sobre isso Teixeira e Gomes (2005) destacam que os formandos puderam vivenciar a identidade profissional através de estágios e experiências, por exemplo, e tem em seu campo de possibilidades dados que os situam na realidade objetiva referente à profissão. O sentimento dos indivíduos prestes a se lançarem no mercado de trabalho esta contextualizado num país no qual se observa, segundo Druck (2001), certa epidemia da qualificação. “O debate acerca da necessidade de qualificar a força de trabalho em nosso país tomou conta de todos os setores da sociedade – instituições governamentais/oficiais, ONG´s, sindicatos, empresas, universidades – enfim a qualificação tem sido colocada como a grande solução para os problemas de desemprego e subemprego no Brasil” (p.82). Segundo a autora, é importante perceber de forma subjacente que o mito da qualificação e da competência trata de responsabilizar os indivíduos que trabalham para desenvolver aptidões e habilidades requeridas pelas mudanças tecnológicas e organizacionais que criam novas situações de trabalho a fim de garantir produtividade e competitividade às empresas. Segundo Coutinho, Krawulski e Soares (2007) na contemporaneidade estão presentes as dimensões da mudança e da continuidade, requerendo dos sujeitos que se identifiquem, a cada momento, com algo novo, e reconheçam em suas trajetórias uma dimensão temporal, integrando passado, presente e futuro, no mundo laboral. De um lado, os trabalhadores ainda precisam vender sua força de trabalho sob condições que lhes são determinadas pelo capital. De outro, as mudanças nas formas de emprego e o desemprego estrutural, entre outras, trazem exigências de novas competências, habilidades e talentos para se manter empregado. Todas estas situações levam o sujeito Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 75 a ter que enfrentar cotidianamente o novo e reescrever sua trajetória de vida e sua identidade. Os formandos, ainda não ingressaram no mundo do trabalho, mas já demonstram a preocupação em relação às dificuldades deste ingresso, uma vez que cada vez mais lhes é exigido qualificação, enquanto o mercado se oferece fragmentado e com altos níveis de desemprego. Além disso, não é somente a escolha do caminho profissional que se impõe a estes jovens, já que as escolhas são alem de mutideterminadas, multideterminantes: ou seja, a escolha de uma profissão, especialização ou constituição familiar se apresentam imbricadas e com reflexo uma nas outras. Desta forma as angústias desse grupo se localizam justamente no conflito entre os desejos e a realidade objetiva na qual se encontram. Considerações finais O grupo de formandos apresentou relatos com ênfase na insegurança em relação ao futuro profissional, como se preparar para conseguir emprego, em qual área trabalhar, como preocupações a curto e médio prazo. A estabilidade financeira foi mencionada como pré-requisito para a constituição familiar mais a longo prazo, e ainda, o prazer no trabalho foi considerado mais importante do que alta remuneração. Podemos relacionar esses dados com a idéia de Ehrlich (2002) e Schneider (2002), numa perspectiva existencialista, apontando o futuro como realidade para se chegar à plenitude ontológica, e aparece como o que falta para ser. Assim, o futuro é o que nos faz agir, é o que possibilita cada um de nossos atos, e aparece justamente na relação concreta com o mundo. Isso equivale a dizer, segundo as autoras, que toda a ação remete à totalidade do ser que projetamos ser. Sobre os sete padrões diferenciados de transição (profissional, lúdica, experimental, progressiva, precoce, precária e desestruturante) propostos por Guerreiro e Abrantes (2005), pode-se perceber que os formandos aproximam-se do padrão de transições profissionais, pois concentram seus objetivos no prolongamento dos estudos, relegando os projetos familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos longínquo. Este estudo, de caráter exploratório, aponta diversos aspectos do projeto de futuro, identidade e escolha profissional. Um deles é o contexto atual das relações de trabalho que reforça o desejo da classe trabalhadora de superar sua condição de exploração ao mencionarem o desejo de se especializarem, demonstrarem competência técnica e adquirir estabilidade financeira. Há o interesse pelo ensino superior como forma de realizar os desejos oprimidos pela condição social e a constatação ao final de que a universidade é um espaço importante para adquirir conhecimento, por vezes, inerte, mas não oferece as almejadas oportunidades, restando assim um prolongamento do aperfeiçoamento profissional, dos estudos. Os projetos de futuro aparecem carregados de idealização e de sentimentos de insegurança e ansiedade por parte dos formandos. Eles buscam estabilidade financeira, diante de um mercado de trabalho flexibilizado e de mudanças rápidas e também querem paz e qualidade de vida. 76 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Como próximo passo no estudo do tema propõe-se uma pesquisa em maior escala em relação ao número de sujeitos, e também um estudo mais aprofundado sobre possíveis especificidades de alunos de diferentes cursos de graduação, histórico escolar e classe social a fim de obter dados mais precisos sobre a relação das trajetórias sócio profissionais com a elaboração de um projeto de futuro. Referências Bardin, L. (1977) L’analyse de contenu, (2° édition corrigé, 1993) Paris: P.U.F. Barros, A. C. (2001). Profissionais de enfermagem em oncologia: identidade social, enfrentamento e bem-estar bio-psico-social {Resumo}. Disponível: <http:// servicos.capes.gov.br/capesdw/> Acessado: 01/09/2006. Bock, A. M. B. (1999). A Psicologia a caminho do novo século: identidade profissional e compromisso social. 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A feminização do magistério de séries iniciais da rede pública do distrito federal {Resumo} Disponível: <http://servicos.capes.gov.br/capesdw/> Acessado: 07/11/2006 Recebido em agosto de 2007 Aceito em fevereiro de 2008 Larissa Hery Ito: graduando em Psicologia (UFSC); bolsista de Iniciação Científica PIBIC-UFSC/CNPq, período de 2006-2007. Dulce Helena Penna Soares: doutora em Psicologia Clínica (Universidade Louis Pasteur, França); professora Adjunta IV de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Endereço para correspondência: [email protected] 80 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.81-97, jan./jun. 2008 Um estudo prospectivo sobre o estresse cotidiano na 1ª série Edna Maria Marturano Elaine Cristina Gardinal Resumo: Com base em uma concepção da 1ª série do ensino fundamental como transição de vida, foram investigadas associações entre indicadores de desempenho / comportamento, na educação infantil e na 1ª série, e o estresse cotidiano da 1ª série, tal como percebido pelas crianças nos domínios de desempenho, relação família-escola, relacionamentos com os pares e demandas não-acadêmicas. Participaram 110 crianças e seus professores, nos dois níveis de ensino. Os instrumentos utilizados foram: Inventário de Estressores Escolares,Teste de Desempenho Escolar, uma sondagem de leitura e questionários para avaliação do desempenho e do comportamento pelo professor. Nos resultados, o melhor desempenho na educação infantil ou na 1ª série foi associado a menos estresse nos domínios do desempenho e da relação famíliaescola. Crianças com nível alto de problemas de comportamento na 1ª série relataram estresse mais elevado em todos os domínios do cotidiano escolar, quando comparadas a crianças com nível baixo de problemas. Palavras-chave: estresse cotidiano, transição escolar, desempenho. A prospective study on daily hassles in first grade Abstract: Based on a life-transition view of first grade, this study explored associations between achievement and behavior, measured in kindergarten and first grade, and children’s perceptions of first grade daily hassles in four domains: achievement, family-school relation, relationships with peers, and nonacademic demands. One hundred and ten children participated, as well as their kindergarten and first grade teachers. The instruments used were the School Hassles Inventory, the School Achievement Test, a reading task, the Teacher Report Form items for the assessment of children’s achievement, and a questionnaire for the assessment of children’s behavior. Higher achievement scores in kindergarten or first grade related to lower stress in first grade, in the domains of achievement and family-school relation. Children with high levels of behavior problems in first grade reported higher stress in all domains of their school daily life, when compared with children with low levels of behavior problems. Key words: daily hassles, school transition, school achievement. Introdução Experiências de vida estressantes constituem uma ameaça potencial ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Eventos traumáticos agudos, adversidade crônica, acúmulo de eventos de vida adversos e tensões cotidianas têm sido associados, em diversos graus, a sintomas de psicopatologia (Grant, Compas, Stuhlmacher, Turm, McMahon & Halpert, 2003). Este artigo trata de tensões cotidianas, conhecidas na literatura científica como “daily hassles” e definidas como “exigências ou demandas irritantes, frustrantes, perturbadoras, que em certo grau caracterizam as Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 81 transações diárias com o ambiente” (Kanner, Coyne, Schaefer & Lazarus, 1981, p. 3). Para muitas crianças, as principais fontes de estresse se encontram em situações recorrentes do dia a dia, como brigas entre os pais, práticas educativas inconsistentes, gozações de colegas, cobranças na escola (Elkind, 2004; Vilela, 1996). A escola é vista pelas crianças como uma importante fonte de estresse cotidiano, decorrente seja de pressão por desempenho acadêmico, seja de dificuldades nos relacionamentos, tais como rejeição e agressão pelos colegas (Barrett & Heubeck, 2000; Dell’Aglio & Hutz, 2002; Kraag & cols., 2006). Em diferentes sistemas de ensino, as transições escolares parecem ser momentos em que as crianças estão mais vulneráveis ao estresse (Elias, 1989; Lipp, Arantes, Buriti & Witzig, 2002), porque essas transições envolvem, em si mesmas, diversos componentes de experiências com alto potencial estressante, como mudanças (por exemplo, de escola), perdas (por exemplo, por afastamento dos amigos da escola anterior), pressão (por exemplo, por desempenho) e imprevisibilidade (por exemplo, pela quebra na rotina) (Elkind, 2004). Este artigo trata do estresse cotidiano na transição da 1ª série. As experiências na 1ª série têm sido apontadas como decisivas na trajetória escolar das crianças, podendo afetar seu desempenho e comportamento nas séries subseqüentes (Entwisle & Alexander, 1998). Tais experiências podem se tornar fontes de estresse. Lipp e colaboradores (2002) encontraram mais sintomas de estresse nos alunos da 1ª série, em comparação com os colegas de séries mais avançadas. Rende e Plomin (1992) verificaram que as situações apontadas pelas crianças como as mais estressantes na 1ª série estavam ligadas aos relacionamentos com os colegas (ser alvo de agressão, provocação ou gozação) e com o professor (não se dar bem com o professor, ser repreendido pelo professor). Ladd, Birch e Buhs (1999), em pesquisa com alunos do jardim de infância, verificaram que aspectos estressantes do relacionamento com os colegas (por exemplo, rejeição) e com o professor (por exemplo, conflito), eram preditores potentes de adaptação à escola, prejudicando o desempenho e a participação da criança nas atividades de sala de aula. Estudos longitudinais sugerem efeitos persistentes do modo como se resolvem essas dificuldades, não apenas nos domínios do relacionamento com os pares (Ladd & Troop-Gordon, 2003) e com o professor (Hamre & Pianta, 2001; Hughes & Kwok, 2006, 2007; Silver, Measelle, Armstrong & Essex, 2005), mas também no domínio do desempenho (Kwok, Hughes & Luo, 2007). Apesar de se reconhecer a 1ª série escolar como um momento de maior vulnerabilidade ao estresse, raros estudos investigaram a percepção das próprias crianças sobre o estresse associado a essa transição; aqueles que o fizeram consideraram ”estresse escolar” como um conceito unitário (por exemplo, Rende & Plomin, 1992; Trivellato-Ferreira, 2005). No presente estudo, o estresse da 1ª série é focalizado segundo uma perspectiva que considera a visão da criança sobre o estresse cotidiano em diferentes domínios de sua vida escolar. O modelo é inspirado na perspectiva de Elias (1989) sobre transições escolares como transições de vida. Modificando a perspectiva original no sentido de atender à especificidade da transição para o ensino fundamental, propomos que as demandas da 1ª série requerem um trabalho de adaptação com pelo menos quatro tarefas: (a) ajustar-se às mudanças nas definições de papéis e comportamentos esperados; (b) situar-se na rede social 82 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 ampliada; (c) adequar-se às normas e regras, explícitas e implícitas, do novo contexto; (d) lidar com o estresse associado à imprevisibilidade e às incertezas inerentes à situação como um todo. O processo de adaptação é visto em uma perspectiva dinâmica e transacional: a criança traz para a escola um repertório prévio para lidar com os desafios da transição, e esse repertório se reconstrói dia a dia no novo contexto, mediante as interações entre a criança em desenvolvimento e as propriedades mutantes do ambiente. As três tarefas adaptativas específicas (a, b e c) são associadas a domínios do cotidiano escolar, conforme seu potencial gerador de estresse, possibilitando a formulação de hipóteses quanto a fatores influentes no estresse em cada domínio. As associações que propomos entre tarefas e domínios decorrem de nossa reflexão sobre a natureza de cada tarefa. Assim, a tarefa de ajustar-se às mudanças nas definições de papéis seria vinculada aos domínios do desempenho e da relação família-escola, que envolvem situações mais diretamente implicadas na definição do papel de aluno do ensino fundamental, com suas demandas e responsabilidades. À tarefa de situar-se na rede social ampliada corresponde, predominantemente, o domínio do relacionamento com os companheiros, que apresenta os principais desafios dessa tarefa. A tarefa de adequar-se às normas e regras do novo contexto tem relação com um domínio de demandas não acadêmicas, envolvendo questões relacionadas a horários, rotinas, disciplina, limites e segurança. A previsão básica é que a criança experimentará maior estresse em domínios da vida escolar cujas demandas específicas excedem seus recursos de enfrentamento, ou seja, diante de um evento potencialmente estressante, ela estará mais ou menos vulnerável ao estresse, de acordo com seus recursos pessoais, suporte social disponível, etc. Supõe-se que estão mais protegidas contra o estresse da transição crianças que: (a) passaram pela educação infantil (Entwisle & Alexander, 1998); (b) contam com suporte da família para lidar com a transição (Hughes & Kwok, 2007); (c) iniciam a primeira série com recursos cognitivos, interpessoais, de auto-regulação e de realização de tarefas escolares compatíveis com as demandas do novo contexto (Hughes & Kwok, 2006; Hughes, Zhang & Hill, 2006; Ladd & cols., 1999). Em pesquisa anterior, investigou-se a hipótese (a), obtendo-se a confirmação de que as crianças que passaram pela educação infantil tendem a estar menos vulneráveis a eventos potencialmente estressantes na 1ª série (Trivellato-Ferreira & Marturano, no prelo). No presente estudo o foco são os recursos da criança mencionados na hipótese (c). São exploradas associações entre o estresse da 1ª série e características da criança apontadas como relevantes para a adaptação da criança à escola. Em relação a precursores de estresse, as seguintes previsões são exploradas: (a) as crianças com habilidades cognitivas específicas mais desenvolvidas, comportamento mais adaptativo e hábitos de trabalho mais eficientes ao ingressarem na 1ª série estão mais protegidas do estresse nos domínios do desempenho e da relação família-escola; (b) as crianças com dificuldades prévias nos relacionamentos estão mais vulneráveis ao estresse no domínio das relações com os pares; (c) crianças com auto-regulação pobre, expressa em dificuldades comportamentais, estão mais vulneráveis ao estresse no domínio das demandas não acadêmicas. Em relação às associações entre estresse e outras variáveis da 1ª série, foram feitas previsões de correspondência entre: (a) dificuldades acadêmicas e estresse Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 83 nos domínios do desempenho e da relação família-escola; (b) dificuldades nas relações com os colegas e estresse no domínio dos relacionamentos com os colegas. A investigação tem dois objetivos: (a) identificar precursores de estresse escolar, relacionados aos recursos da criança no final da educação infantil; (b) investigar associações entre estresse em diferentes domínios do cotidiano da 1ª série e indicadores de desempenho e comportamento da criança no final da série. Método Contexto e participantes A investigação foi realizada em uma cidade do interior de São Paulo com aproximadamente 23.000 habitantes. A cidade tem seis escolas públicas para ensino de base, compreendendo educação infantil – EI – e fundamental – EF. São duas escolas de EI, uma com EI e EF e três com EF apenas. Participaram do estudo 110 alunos que freqüentavam uma das três escolas de EI no início da pesquisa, sendo 58 meninos e 52 meninas, com idades entre 5 e 7 anos. Foram incluídas no estudo somente crianças que estavam no seu primeiro ano de experiência em EI. Com exceção de nove crianças, que permaneceram na mesma escola, todas as demais mudaram para uma das três escolas de EF quando ingressaram na 1ª série. Também participaram da coleta 20 professores (oito na EI e 12 na 1ª série). Instrumentos Estresse cotidiano na 1ª série. Foi empregado o Inventário de Estressores Escolares – IEE, derivado da entrevista proposta por Rende (1994), que investiga a ocorrência de situações da vida escolar, bem como a intensidade de seus efeitos. Os itens são apresentados oralmente e abrangem situações cotidianas em quatro domínios: desempenho acadêmico (7 itens), relação família-escola (5), relacionamento com os companheiros (5) e adaptação a demandas não acadêmicas do contexto escolar (13). Exemplos de itens em cada domínio são: Não consegui terminar as lições na sala de aula (desempenho acadêmico); A professora mandou bilhete quando eu não estava aprendendo (relação família-escola); As crianças mais velhas me gozaram (relacionamento com os companheiros); Eu me machuquei na escola (demandas não acadêmicas) A criança informa se o item aconteceu com ela durante o ano e, caso tenha acontecido, indica o quanto aquela situação a perturbou (nada, só um pouco, mais ou menos, muito). Na avaliação das respostas, atribui-se valor zero ao item, quando este não ocorreu, e um para resposta que indica ocorrência. A cada item ocorrido acrescentase um, dois ou três, de acordo com o grau do efeito relatado (um = perturbou um pouco; três = perturbou muito). O escore total é a soma dos escores dos itens. Em estudo prévio em escolas públicas de outro município, em que o IEE foi aplicado nos meses de outubro a dezembro, a 70 alunos ingressantes na 1ª série (Trivellato-Ferreira, 2005), verificou-se que (a) as crianças compreenderam as instruções, dando respostas coerentes com as de suas mães (correlação significativa entre 0,48 e 0,55); (b) o escore total no IEE foi associado a sintomas de estresse. 84 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Desempenho na EI. Foi avaliado por meio de dois instrumentos. O primeiro foi a Sondagem de Leitura proposta por Escolano (2004), feita por meio da exploração de um livro de história infantil ilustrado. O segundo instrumento foi a Avaliação do Desempenho pelo Professor – TRF-D, que faz parte da avaliação de competência social do TRF (Teacher Report Form) de Achenbach (Silvares, 1998). É formada por duas escalas de cinco pontos, onde a professora informa o nível do desempenho atual do aluno em Português e Matemática (nível bastante baixo, nível um pouco baixo, nível médio, nível um pouco acima da média, nível bastante acima da média). Desempenho na 1ª série. Foi avaliado por meio de dois instrumentos: a Avaliação do Desempenho pelo Professor – TRF-D e o Teste de Desempenho Escolar – TDE (Stein, 1994), que fornece normas para classificação do desempenho acadêmico por meio de três sub-testes: leitura, escrita e aritmética. Comportamento na EI e na 1ª série. Foi avaliado com o QCDCC – Questionário para Caracterização do Desempenho e do Comportamento da Criança no Ambiente Escolar (Machado, Figueiredo & Selegato, 1989), preenchido pelo professor. O QCDCC compreende itens de adjetivos bipolares que qualificam o comportamento da criança em sala de aula (por exemplo, explosivo – controlado). Cada item é composto por uma escala de sete pontos, variando de +3 (maior ocorrência do comportamento problema) a –3 (maior ocorrência do comportamento não-problema). O professor deve assinalar um dos valores, conforme avalia o comportamento do aluno. Os itens são agrupados em três conjuntos, focalizando, respectivamente, o modo como o aluno se comporta em relação ao professor (10 itens), aos colegas (8 itens) e à tarefa escolar (14 itens). Nenhum dos instrumentos utilizados tem validação para amostra representativa da população brasileira. Com exceção do TDE e do TRF-D, foram construídos para fins de pesquisa. Procedimento de coleta de dados Como parte de um estudo longitudinal cujo objetivo geral era investigar, na EI, precursores de adaptação à 1ª série, foram feitas duas coletas de dados, no segundo semestre da EI e no segundo semestre da 1ª série. Ambas as coletas ocorreram entre os meses de setembro e novembro. Os pais assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a participação das crianças na pesquisa. A coleta foi conduzida pela segunda autora. Na EI, os professores responderam ao QCDCC; as crianças foram avaliadas individualmente com a Sondagem de Leitura, em sala cedida pela escola. Na 1ª série o TDE e o IEE foram aplicados em sessão individual com cada criança e os professores responderam ao QDCC. Procedimento para análise dos dados Os dados obtidos por meio do TDE e do TRF foram processados de acordo com as respectivas instruções. Em relação ao IEE, foi computada a intensidade do efeito atribuído pelas crianças a cada item; os escores dos itens foram somados, obtendo-se escores de intensidade do estresse nos domínios de desempenho, relacionamento com os colegas, relação família-escola e adaptação às demandas não acadêmicas do contexto escolar, bem como na escala geral. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 85 Na Sondagem de Leitura, a análise foi efetivada com base na classificação em quatro níveis, proposta por Escolano (2004): a) a criança não reconhecia nenhuma letra; b) reconhecia pelo menos uma letra, mas não a nomeava; c) reconhecia e nomeava alguma letra; d) lia pelo menos uma palavra corretamente; e) lia pelo menos uma frase corretamente. As cinco categorias correspondiam a uma pontuação de zero a quatro em uma escala ordinal. Para análise dos dados do QCDCC, os escores dos itens foram transformados da seguinte forma: ao pólo +3, indicativo de comportamento problema, foi atribuído o valor 7; ao pólo –3 foi atribuído o valor 1. Os escores dos itens que compõem cada uma das três escalas foram somados, obtendo-se escores de problemas de comportamento em relação ao professor, aos colegas e à tarefa. Resultados Inicialmente, foi verificada a consistência interna das medidas para as quais não havia essa informação na literatura. As análises foram processadas por meio do coeficiente alfa de Cronbach. Para as escalas do IEE foram obtidos os seguintes valores de alfa: domínio do desempenho acadêmico = 0,60; domínio da relação família-escola = 0,57; domínio do relacionamento com os companheiros = 0,73; domínio das demandas não acadêmicas = 0,68; escala geral = 0,84. No QCDCC, o coeficiente alfa variou entre 0,91 (escala de comportamentos em relação ao professor) e 0,94 (escala de comportamentos em relação à tarefa). Também foi verificado se o fato de a coleta de dados ter-se estendido por três meses afetou os resultados no IEE, já que nesse inventário a criança informa sobre acontecimentos ocorridos cumulativamente durante o ano. A análise de variância de Kruskal-Wallis não detectou diferença nos escores do IEE entre as crianças avaliadas em setembro, outubro e novembro. Como a distribuição dos dados de todas as variáveis se afastava da normalidade (teste de Komogorv-Smirnov), foram utilizados testes não paramétricos na análise estatística. As distribuições dos escores médios nos quatro domínios foram comparadas, duas a duas, por meio do Teste de Wilcoxon para amostras dependentes. Cinco dentre as seis comparações indicaram diferenças significativas. O domínio do desempenho (M = 1,79) se mostra menos estressante que todos os demais, ao passo que o das relações com os companheiros (M = 3,25) é mais estressante que os outros. O domínio das demandas não acadêmicas (M = 2,9) e o da relação família-escola (M = 2,75) não diferem entre si. Os valores de Z foram significativos para p < 0,001 em todas as diferenças detectadas. Para investigar associações entre o estresse da 1ª série e demais variáveis, foram calculadas correlações com o coeficiente rho de Spearman. A Tabela 1 apresenta as correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na EI e as medidas de estresse na 1ª série. Das 25 correlações indicadas na Tabela 1, dez são significativas, com valores modestos. 86 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Tabela 1 – Correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na educação infanti e estresse na 1ª série Estresse na 1ª série Variáveis da educação infantil Domínios DA FE Total C NA Desempenho sondagem leitura -0,20* -0,08 -0,20* -0,12 -0,19* Desempenho TRF-D -0,29** -0,26** -0,29** -0,24* -0,34** Probl. comportamento QCDCC: – Em relação à tarefa -0,10 0,16 0,25** 0,10 0,18† – Em relação ao professor -0,06 -0,02 -0,02 -0,01 -0,04 – Em relação aos colegas 0,10 0,22* 0,17† 0,05 0,14 Nota: domínios de estresse: DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas * p < 0,05; ** p < 0,01; † p < 0,10 Os precursores de desempenho na EI se correlacionam com a percepção de estresse cotidiano na 1ª série. A avaliação de desempenho obtida na EI por meio do julgamento do professor se correlaciona com a percepção de estresse em todos os domínios do cotidiano escolar. A avaliação direta do desempenho na EI por meio da sondagem de leitura e escrita também apresenta correlações com indicadores de estresse no ano escolar subseqüente. Todas as correlações são negativas, indicando que, quanto melhor o desempenho da criança na EI, menor a intensidade do estresse relatado por ela posteriormente na 1ª série, particularmente no domínio acadêmico e no domínio dos relacionamentos com os companheiros. Há apenas duas correlações, ambas positivas, envolvendo problemas de comportamento na EI e a percepção de estresse na 1ª série: problemas na relação com os colegas se correlacionam com a percepção de estresse no domínio da relação famíliaescola, e problemas na relação com a tarefa se correlacionam com a percepção de estresse no domínio dos relacionamentos com os companheiros. As correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na 1ª série e as medidas de estresse nesta série são apresentadas na Tabela 2. Dezesseis dentre as 25 correlações indicadas na tabela são significativas, com valores modestos. Tabela 2 – Correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na 1ª série e estresse na 1ª série Nota: domínios de estresse: DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas * p < 0,05; ** p < 0,01 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 87 As avaliações de desempenho e de problemas de comportamento em relação à tarefa se correlacionam com indicadores de estresse nos domínios do desempenho e da relação família-escola; problemas de comportamento em relação ao professor e aos colegas se correlacionam com indicadores de estresse nos domínios da relação famíliaescola e das demandas não acadêmicas. As associações entre variáveis da 1ª série foram exploradas também por meio de comparações de grupo. Para cada medida de desempenho e comportamento, foram contrastados os resultados de estresse de dois grupos, constituídos, respectivamente, pelas crianças com escores situados no quartil 1 e no quartil 4 da medida em questão. Antes das comparações, checou-se a distribuição dos alunos das diferentes escolas nos quartis, por meio do teste X2. Não foram encontradas tendências em relação à EI; na 1ª série, duas escolas mostraram concentração maior de alunos, em relação às demais, no Quartil 1 do TDE e no Quartil 4 das escalas de comportamento do QCDCC em relação ao professor e à tarefa. As comparações foram processadas com o teste U de Mann-Whitney. As tabelas 3 e 4 mostram os itens específicos, em cada domínio, que diferenciam os grupos situados nos quartis 1 e 4 das medidas de desempenho e comportamento na 1ª série. Por economia de espaço, apenas os itens com resultados significativos são apresentados nas tabelas. Tabela 3 – Escores médios de estresse indicado pelas crianças situadas nos quartis 1 e 4 de desempenho e comportamento em relação à tarefa, na 1ª série Indicador de desempenho / situação estressora Dom Q1 Q4 Z Precisava de ajuda para as atividades escolares DA 1,30 0,59 3,085** Tirei notas baixas DA 1,70 0,85 2,840** Meus pais foram conversar com a professora FE 0,89 0,38 2,237* Meus colegas de classe bateram em mim C 1,39 0,44 2,632** Alguns colegas me provocaram ... C 1,76 0,97 2,049* Meus colegas não me convidaram para brincar C 1,30 0,56 2,198* A professora me deu bronca NA 1,52 0,74 2,186* A professora era muito brava, gritava e... NA 1,91 0,85 2,882** Precisava de ajuda para as atividades escolares DA 1,31 0,50 2,842** Tirei notas baixas DA 1,67 0,96 2,195* A professora falou que eu tenho que melhorar DA 1,38 1,14 2,746** Desempenho TDE Desempenho TRF-D Meus pais foram conversar com a professora FE 0,87 0,14 2,983** A professora me deu bronca NA 1,54 0,71 1,986* Precisava de ajuda para as atividades escolares DA 0,48 1,26 2,709** Tirei notas baixas DA 0,89 1,63 2,175* Não consegui terminar as lições na sala de aula DA 0,44 1,07 2,009* Probl. comportamento em relação à tarefa QCDCC Prof. mandou bilhete ...não estava aprendendo FE 0,26 0,78 1,967* A professora me deu bronca NA 0,56 1,44 2,083* Nota: teste U de Mann-Whitney. Q = quartil; Dom = domínio; DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas * p < 0,05; ** p < 0,01 88 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Tabela 4 – Escores médios de estresse indicado pelas crianças situadas nos quartis 1 e 4 de problemas de relacionamento, na 1ª série Indicador de comportamento / situação estressora Dom Q1 Q4 Z Precisava de ajuda para as atividades escolares DA 0,59 1,07 2,058* Tirei notas baixas DA 0,62 1,61 2,809** Meus colegas não me convidaram para brincar C 0,48 1,21 2,024* Fiquei chateado por ficar longe da minha mãe NA 0,90 2,11 2,741** A professora me deu bronca NA 0,62 1,54 2,338* A professora era muito brava, gritava e... NA 0,90 2,18 2,842** Precisava de ajuda para as atividades escolares DA 0,50 1,11 2,349* Tirei notas baixas DA 0,54 1,67 3,188** Probl.comportamento relação professor QCDCC Probl. comportamento relação colegas QCDCC Prof. mandou bilhete ...não estava aprendendo FE 0,11 0,74 2,094* Meus pais foram conversar com a professora FE 0,36 1,04 2,367* 3,366** Meus colegas de classe bateram em mim C 0,21 1,56 Alguns colegas me provocaram ... C 0,82 1,78 2,094* Fiquei chateado por ficar longe da minha mãe NA 0,82 2,07 2,779** A professora era muito brava, gritava e... NA 1,04 2,11 2,449* Nota: teste U de Mann-Whitney. Q = quartil; Dom = domínio; DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas * p < 0,05; ** p < 0,01 O exame das tabelas permite identificar as situações específicas, em cada domínio do cotidiano escolar, indicadas como mais estressantes pelas crianças que estão apresentando maiores dificuldades na 1ª série. Dos 30 itens do IEE, apenas 12 diferenciam os grupos. Alguns itens discriminam os grupos em todas ou em quase todas as comparações efetuadas: Precisava de ajuda para as atividades escolares, Tirei notas baixas, A professora me deu bronca, Meus colegas de classe bateram em mim. As crianças com maior dificuldade relacionada ao desempenho relatam, além das situações específicas do domínio acadêmico, estressores interpessoais como ser agredido, ser provocado, ser excluído das brincadeiras e levar bronca do professor. As crianças com mais problemas de comportamento em relação aos companheiros relatam experiências generalizadas de estresse, incluindo, no domínio das demandas não acadêmicas, dificuldades no relacionamento com o professor. A relação com o professor também aparece como fonte de estresse quando o critério para composição dos grupos é a presença de problemas de comportamento em relação ao professor. Os resultados das comparações referentes aos escores totais nos domínios, não apresentados nas tabelas, confirmam as correlações apresentadas na Tabela 2, com uma associação a mais: os grupos formados com base nos problemas de comportamento em relação aos colegas diferem nos níveis de estresse em todos os domínios, inclusive o da relação com os companheiros. As crianças avaliadas pelo professor com mais problemas nas relações com os pares (quartil 4) relatam maior estresse em todos os domínios da sua vida escolar. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 89 Discussão Este estudo sobre o estresse da 1ª série teve como objetivos identificar precursores do estresse escolar relacionados a recursos da criança, assim como explorar associações entre percepção de estresse em diferentes domínios e indicadores de desempenho e comportamento na 1ª série. A pesquisa foi guiada por uma concepção da 1ª série como uma transição de vida, apresentando para a criança tarefas adaptativas que podem gerar estresse em domínios do cotidiano escolar cujas demandas específicas excedem seus recursos de enfrentamento. Previsões foram feitas em relação a três dentre as quatro tarefas propostas no modelo teórico. Os resultados são discutidos com referência a essas previsões. De acordo com o modelo conceitual, o estresse no domínio acadêmico e no domínio da relação família-escola reflete dificuldade na tarefa de adaptar-se às mudanças nas definições de papéis e comportamentos esperados. Os resultados apontaram esses dois domínios como menos estressantes que os demais, sugerindo que a tarefa relacionada aos papéis esperados é percebida como a menos exigente. Rende e Plomin (1992) encontraram resultados semelhantes na 1ª série, ao passo que em séries mais avançadas as crianças relatam o domínio do desempenho como um dos mais estressantes (Kraag & cols., 2006). Essa aparente discrepância pode estar relacionada a mudanças desenvolvimentais, constituindo um tema de pesquisa a ser explorado. Foi previsto que as crianças mais protegidas do estresse nos domínios do desempenho e da relação família-escola são aquelas que apresentam, ao ingressarem na 1ª série, um repertório de habilidades específicas e hábitos de trabalho eficientes. As previsões foram confirmadas em relação às habilidades prévias, mas não em relação aos hábitos de trabalho. Crianças com melhor avaliação acadêmica na educação infantil relataram menos estresse nesses domínios durante a 1ª série. Porém hábitos de trabalho na educação infantil, avaliados por meio da escala de comportamentos em relação à tarefa, do QCDCC, não foram associados à percepção de estresse nos domínios previstos, durante a 1ª série. O sentido deste e de outros resultados não congruentes com as previsões é discutido adiante. A tarefa de situar-se na rede social ampliada, que foi conceitualmente associada ao estresse no domínio das relações com os companheiros, parece ser a que mais sobrecarrega as crianças, já que o domínio das situações cotidianas que lhe correspondem foi avaliado como o mais estressante de todos os domínios investigados. A média encontrada para o domínio dos relacionamentos com os companheiros indicou uma intensidade de estresse entre moderada e alta, confirmando a importância das relações com os pares como fonte de estresse, apontada em estudos feitos seja na 1ª série (Rende & Plomin, 1992) ou em outros níveis escolares (Ladd & cols., 1999; Lisboa & cols., 2002; Raimundo & Pinto, 2006). Em relação a este domínio, não foi plenamente confirmada a previsão de que as crianças com dificuldades prévias nos relacionamentos estariam mais vulneráveis; obteve-se uma correlação apenas marginalmente significativa entre problemas em relação aos colegas, avaliados na educação infantil, e estresse no domínio das relações com companheiros, avaliado na 1ª série. Por outro lado, correlações não previstas 90 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 foram encontradas entre o estresse com os companheiros, na 1ª série, e indicadores de desempenho e de problemas de comportamento em relação à tarefa, na EI. As correlações entre medidas de desempenho e de problemas de comportamento em relação à tarefa, obtidas na EI, e a posterior percepção de estresse com os companheiros estão de acordo com achados de que as crianças que entram na escola com menos recursos de letramento e habilidades de trabalho menos desenvolvidas estão mais expostas a estressores interpessoais (Hughes & Kwok, 2006; Hughes, Zhang &. Hill, 2006; Ladd & cols., 1999). O domínio das demandas não acadêmicas, relacionado teoricamente à tarefa de adequar-se às normas e regras do novo contexto, foi o segundo mais estressante na avaliação das crianças. Porém não foi associado a dificuldades prévias de comportamento, como previsto no modelo. Esses resultados sugerem que o estresse derivado da necessidade de adequar-se às normas do novo contexto talvez dependa mais da mudança de ambiente em si, pela exposição generalizada das crianças a situações que elas não conseguem prever e sobre as quais não têm controle (Kraag & cols., 2006). Dentre as previsões de correspondência entre estresse e outras variáveis da 1ª série, confirmou-se a associação entre dificuldades acadêmicas e estresse nos domínios do desempenho e da relação família-escola. Essa associação foi consistente, repetindose com as duas medidas de desempenho e a medida de problemas de comportamento em relação à tarefa escolar. Já a dificuldade nas relações com os pares não se correlacionou com estresse no domínio correspondente; apenas na comparação entre grupos situados nos quartis inferior e superior de problemas nas relações com os pares é que foram detectadas diferenças nos níveis de estresse no domínio dos companheiros. Este é um resultado interessante, em face de alguns dados da literatura. Embora não haja estudos prévios sobre a associação entre problemas relacionais e percepção de estresse cotidiano na 1ª série, pesquisas em outras áreas mostram que nos anos iniciais do ensino fundamental as crianças socialmente competentes estão menos expostas à rejeição e vitimização pelos pares, enquanto as agressivas e as retraídas estão em maior risco de se tornarem alvo de maus tratos (Buhs, Ladd & Herald, 2006; Garner & Lemerise, 2007). Segundo Ladd e Troop-Gordon (2003), a rota entre a agressividade precoce e os problemas adaptativos posteriores passa pela experiência com estressores relacionais, como rejeição e vitimização, nas séries iniciais do ensino básico. A presente investigação identificou um grupo de risco para a exposição ao estresse, constituído pelas crianças com níveis extremos de problemas nas relações interpessoais. Essas crianças relatam maior estresse em todos os domínios do cotidiano escolar. A análise exploratória feita neste estudo deu algum suporte à visão da 1ª série como uma transição de vida (Elias, 1989), em que os desafios decorrentes das tarefas adaptativas da transição são fontes de estresse cotidiano. Medidas de desempenho e comportamento, fornecidas pelo professor, mostraram associação com o nível de estresse atribuído pela criança a situações do seu cotidiano escolar, de acordo com as previsões feitas. Por outro lado, os resultados não se ajustaram perfeitamente ao modelo, apontando para a necessidade de reformulação, principalmente no que se Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 91 refere à previsão de especificidade de associação entre o grau de sucesso em determinada tarefa adaptativa e o nível de estresse relatado pela criança no domínio correspondente de experiências cotidianas. Os resultados mostraram associações específicas, mas também relações cruzadas entre tarefas e domínios de estresse. Por exemplo, crianças com desempenho pobre relataram situações de estresse no domínio das relações com os companheiros, ao passo que crianças com problemas de comportamento em relação aos colegas relataram situações de estresse no domínio do desempenho. A conexão entre os domínios do desempenho e dos relacionamentos parece estar refletindo o fato de que esses domínios da experiência escolar são interdependentes. Com efeito, Welsh, Parke, Widaman e O’Neil (2001), em seu estudo longitudinal sobre competência social e acadêmica em alunos da 1ª à 3ª série, demonstraram influências transacionais entre os dois domínios. O ajuste não perfeito entre os resultados e o modelo teórico decorre não só do surgimento de novas associações, mas também da não confirmação de associações previstas. Dado que todas as previsões não confirmadas, com exceção de uma, envolvem comportamentos avaliados pelo QCDCC, pode-se pensar em um possível limite do instrumento. Parece, entretanto, que a explicação é mais complexa, visto que diversas medidas obtidas com o QCDCC na 1ª série se correlacionaram com estresse na direção prevista, ao passo que nenhuma correlação significativa foi encontrada com medidas obtidas na EI. Nessa divergência entre resultados envolvendo variáveis da EI e da 1ª série tanto podem estar implicados limites do instrumento (por exemplo, baixa estabilidade), como vieses dos professores (por exemplo, diferença no nível de exigência para “bom” comportamento na EI e na 1ª série). Associar à avaliação do professor o julgamento de observadores independentes poderá ajudar a esclarecer o problema em pesquisas futuras. Um aspecto não contemplado na formulação teórica e que se mostrou relevante para a compreensão da relação entre estresse e dificuldades adaptativas na 1ª série foi o da relação professor-aluno, apontada na literatura como fonte de experiências aversivas percebidas pelas crianças como incontroláveis (Lisboa & cols., 2002). A importância desse aspecto só se revelou na análise das situações estressoras específicas, visto que, no instrumento de avaliação do estresse, os itens representativos da relação professor-aluno estão incluídos no domínio das demandas não acadêmicas. As comparações de grupo apontam para a relação professor-aluno como um desafio à parte para as crianças, com potencial para gerar estresse em situações específicas de desempenho e relações com os pares. Nessa direção, pesquisas realizadas no contexto da educação infantil e do ensino fundamental indicam que os alunos cujas relações com os professores são conflituosas estão mais sujeitos a dificuldades acadêmicas persistentes e rejeição por parte dos companheiros (Hamre & Pianta, 2001; Ladd & cols., 1999; Silver, Measelle, Armstrong & Essex, 2005). Essas considerações justificam a inclusão de um domínio à parte no modelo, representando o estresse da relação professor-aluno. A investigação do estresse em tal domínio poderá ser feita por meio de instrumento semelhante ao IEE, ou com o próprio IEE, ampliado e reorganizado para incluir itens representativos de eventos potencialmente estressantes na relação professor-aluno, 92 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 de modo a garantir a representatividade dos itens. Pesquisas realizadas no ensino fundamental indicam como fontes de estresse para os alunos as agressões verbais do professor em forma de insultos, humilhação, críticas e ironias, assim como certos comportamentos em resposta a condutas dos alunos, tais como ameaças, bilhetes para os pais e repreensões orais em sala de aula (Lisboa & cols., 2002; Piekarska, 2000). Os resultados devem ser interpretados no contexto das limitações da pesquisa, algumas das quais, relativas a instrumentos, já foram comentadas. A não inclusão de um domínio de estresse na relação professor-aluno obstou a análise em separado desse aspecto relevante da transição. As análises ficaram restritas a testes não paramétricos de correlação e comparação de grupos, devido à característica não normal da distribuição dos dados, quando idealmente as previsões deveriam ser testadas por meio de análises multivariadas, verificando-se o peso relativo de cada variável na predição dos resultados de estresse. A distribuição das crianças nos quartis de desempenho e comportamento não foi aleatória em relação à escola de origem no ensino fundamental, o que pode ter afetado os resultados das comparações de grupo; no entanto, os resultados de tais comparações foram, em geral, coerentes com a literatura. De todo modo, pesquisas futuras que contornem as limitações apontadas são necessárias para confirmar ou refutar os resultados obtidos. Apesar das limitações, a pesquisa trouxe contribuição teórico-metodológica e prática. Do ponto de vista teórico-metodológico, é importante assinalar que este é o primeiro estudo prospectivo na literatura a focalizar a transição da 1ª série sob a perspectiva do estresse cotidiano; portanto, constituem uma contribuição original ao campo do conhecimento os seus resultados, mesmo aqueles aparentemente óbvios pelo fato de convergirem com a evidência empírica produzida em outras áreas de investigação. São resultados robustos, por se apoiarem no cruzamento de informações fornecidas por fontes independentes: a própria criança, o professor e avaliações objetivas. O estudo também contribui com novas pistas a respeito do estresse vivenciado pelas crianças na transição da 1ª série, que podem guiar pesquisas futuras, como, por exemplo: (a) crianças vistas pelo professor da EI como academicamente mais competentes foram mais protegidas contra o estresse em todos os domínios do seu cotidiano na 1ª série e, aparentemente, a avaliação acadêmica do professor anterior contou mais que a do professor atual; (b) na transição da 1ª série, o domínio do desempenho foi o menos estressante e um dos mais associados a dificuldades atuais, ao passo que o domínio da relação com os pares foi o mais estressante e o que apresentou mais associações com dificuldades anteriores, manifestadas na EI; (c) o domínio das demandas não acadêmicas tem componentes situacionais potentes de geração de estresse, aparentemente com pouca influência do repertório de entrada da criança. Do ponto de vista prático, a pesquisa contribuiu com informações sobre a vivência das crianças na transição da 1ª série. Em relação ao seu papel de estudante, que deve responder a expectativas de bom desempenho, observa-se que nesse momento inicial as crianças não se sentem particularmente mobilizadas frente à dificuldade de aprendizagem em si. No entanto, seu desempenho está associado a situações perturbadoras envolvendo a família e o professor, o que provavelmente vai contribuir, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 93 ao longo do tempo, para que elas identifiquem o domínio do desempenho como uma importante fonte de estresse, como tem sido observado em alunos de séries mais avançadas (Kraag & cols., 2006). Embora o estudo não investigue a temática dos relacionamentos agressivos entre diferentes atores presentes no contexto escolar, a pesquisa também levantou informações relacionadas ao problema da agressão nas escolas. Incidentes de agressão física e verbal são cada vez mais comuns nas escolas de ensino fundamental (Woods & Wolke, 2004). Pelo relato das crianças do presente estudo, eles fazem parte do cotidiano escolar desde muito cedo e constituem uma potente fonte de estresse. As crianças com problemas de comportamento são as mais expostas a esse gênero de experiência, o que denota reciprocidade, e as interações aversivas não se circunscrevem ao relacionamento com os colegas, ocorrendo também na relação com o professor, tal como foi constatado por Lisboa e colaboradores (2002). As informações de interesse prático ressaltam a importância de intervenções para o manejo de situações geradoras de estresse no ambiente escolar. Sendo o domínio dos relacionamentos com os colegas a principal fonte de estresse, a convivência entre as crianças pode ser melhorada por meio de procedimentos com foco no dia a dia da 1ª série. Por exemplo, conflitos entre as crianças podem ser reduzidos e relações de amizade podem ser fomentadas e fortalecidas se o horário do recreio for aproveitado com a oferta de atividades lúdicas acompanhadas por um adulto (Emmel, 1996). É possível ensinar as crianças a lidarem com o estresse dos relacionamentos por meio de técnicas de relaxamento, habilidades de solução de problemas interpessoais e aprendizado da auto-regulação emocional (Del Prette & Del Prette, 2005; Kraag & cols., 2006; Shure, 2006). Dada a interdependência entre domínios, demonstrada no presente estudo, pode-se esperar que intervenções incidindo sobre os relacionamentos contribuam para a atenuação do estresse em outros domínios, por meio de mecanismos que envolvem , entre outros, aumento da participação em atividades escolares e redução dos problemas de comportamento (Ladd & cols., 1999). O domínio das demandas não acadêmicas, o segundo mais estressante para as crianças, parece ser o mais representativo do estresse da mudança de escola e/ou de nível. Estratégias para suavizar a transição podem ser implementadas, tais como visitas dos alunos da educação infantil à sua futura escola, informações aos pais sobre o funcionamento da 1ª série, um programa de acolhimento nas primeiras semanas de aula e a comunicação freqüente e amigável com a família ao longo do ano (Kagan & Neuman, 1998). Atenção individualizada deve ser dada às crianças vulneráveis, como as que já na educação infantil apresentaram problemas de comportamento e aprendizagem. De acordo com os princípios de promoção/prevenção do desenvolvimento infantil, há que analisar os recursos pessoais da criança, a rede de apoio social disponível, entre outros, de modo a subsidiar, em cada caso, um planejamento específico de intervenção psicológica e/ou psicossocial. Três comentários devem ser adicionados a esta discussão. Em primeiro lugar, há necessidade de apoio e supervisão ao professor, muitas vezes também estressado, de modo a ajudá-lo a estabelecer e manter com seus alunos uma convivência respeitosa. Segundo, há medidas práticas que dependem de capacitação. Por fim, deve ficar claro 94 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 que, se o professor pode implementar, por sua iniciativa, estratégias como as listadas nos parágrafos precedentes, a manutenção delas ao longo do tempo depende do compromisso institucional da escola e de políticas públicas direcionadas para melhorar a qualidade de vida das crianças no espaço escolar. Referências Barrett, S. & Heubeck, B. G. (2000). Relationships between school hassles and uplifts and anxiety and conduct problems in grades 3 and 4. Journal of Applied Developmental Psychology, 21, 537-554. Buhs, S., Ladd, G. W., & Herald, S. H. (2006). 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Elaine Cristina Gardinal: mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; psicóloga do Departamento de Educação da Prefeitura Municipal de Dois Córregos. Endereço para correspondência: [email protected] Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 97 Aletheia 27(1), p.98-110, jan./jun. 2008 Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família Ivanilza Etelvina dos Santos Cristina Maria de Souza Brito Dias Resumo: A presente pesquisa teve como objetivo geral investigar a vivência de papéis desempenhados por idosos durante o Ciclo de Vida Familiar. Participaram 12 homens, sendo que seis pertenciam ao Grupo Reviver, da Universidade Aberta à terceira idade, de uma faculdade situada em Paulo Afonso; e seis não participavam do referido projeto. Todos os participantes são da camada média e moradores da área urbana. Eles foram entrevistados individualmente, tendo sido as entrevistas analisadas a partir dos seguintes temas: fase de aquisição, criação e desenvolvimento dos filhos, saída dos filhos de casa, fase última, percepção do tratamento dispensado ao idoso ao longo do tempo e o que gostaria de mudar em sua vida. Pode-se concluir que os idosos que fazem parte do Grupo Reviver mostraram-se mais otimistas, com planos para o futuro e vida social ativa, o que não ocorreu com o outro grupo. Espera-se que este trabalho possa contribuir para os profissionais que lidam com as questões da velhice e da família. Palavras-chave: idoso, família, Teoria do Ciclo Vital da Família. Elderly man: experiencing of roles played during family vital cycle Abstract: The present research had as main objective to investigate the experiencing of roles played by elderly man during family vital cycle. Twelve men participated in the research, six of those were participants of the Reviver Group, from the Open University for Third Age, in a Paulo Afonso´s college, and six were not in that project. They were individually interviewed and after the analysis of interviews content six predominant themes were focused: acquisition phase, raising and development of children, departure of children from home, last phase, perception of elderly-directed treatment through time and what would they like to change in their lives. It can be concluded that the elderly who participate in the Reviver group showed themselves to be more optimistic, with plans for the future and active social life, what did not occur with the other elderly. It is expected that this work can contribute to those interested in oldness and family issues. Key words: Elderly, family, Family Vital Cycle Theory. Introdução O século passado foi caracterizado por profundas transformações históricoculturais e, entre elas, algumas ocorreram nos âmbitos da família e da velhice. Hoje não podemos falar na família como um único modelo, como também a velhice se apresenta de forma multifacetada. Mudou a família, que se caracteriza mais do que nunca pela diversidade de arranjos, constituindo “famílias”; por sua vez, podemos falar de “velhices”, uma vez que esta fase da vida é vivida de forma bastante peculiar, de acordo com as características pessoais, familiares e culturais que influenciam o idoso. 98 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Nos últimos anos, as etapas da vida relacionadas à infância, adolescência e juventude tornaram-se supervalorizadas. O desafio atual é permanecer jovem o maior tempo possível, nem que para isso tenhamos que viver em busca de cirurgias, cosméticos, estilos de vida e roupas que nos tornem “juvenis”. Chega-se até a infantilizar o adulto como uma maneira de não aceitar seu envelhecimento. Por outro lado, verificase que os idosos têm dado uma importante contribuição social, pois muitos continuam sendo os chefes e provedores de sua família e tomam conta das gerações mais jovens. Constata-se, atualmente, que uma parcela expressiva de filhos, netos e bisnetos estão morando junto com seus pais e avós, fenômeno denominado “co-residência” (Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999). Os referidos autores apontam que este é um fenômeno mundial e os fatores que têm levado a esse tipo de organização familiar são: o prolongamento da permanência dos filhos em casa devido à necessidade de investimento em sua formação para enfrentar um mercado de trabalho bastante competitivo, a instabilidade deste e a inconsistência das relações afetivas, que ocasiona o retorno dos filhos à família de origem, por ocasião de uma separação. Acrescente-se que nos países onde a prevalência do HIV/Aids é elevada, os idosos têm tido um papel preponderante no cuidado dos doentes e dos netos. Camarano e El Ghouri (2003) estabeleceram uma distinção entre as famílias de idosos, onde o idoso é chefe ou cônjuge, e as famílias com idosos, onde o idoso mora na condição de parente do chefe. Para as referidas autoras, as primeiras se caracterizam por serem formadas por idosos mais jovens e seus filhos, serem mais freqüentes (86% dos lares onde residem idosos são chefiadas pelos idosos), possuindo residência própria e uma renda mais elevada do que as segundas. Portanto, há idosos que cuidam e os que são cuidados. Ao mesmo tempo em que esses arranjos podem acarretar apoio recíproco, propiciam também conflitos e dificuldades. Entre os ganhos desse tipo de família estão a maior escolarização dos filhos e netos, a redução do trabalho infantil e a ajuda que os avós dão na criação dos netos. Porém, os conflitos podem surgir devido ao referencial diferente de padrões sociais e culturais entre as gerações, interferências dos avós na criação dada pelos filhos, confusão acerca de quem detém a autoridade por parte dos netos (Camarano & El Ghaouri, 2003; Falcão, Dias, Bucher-Maluschke & Salomão, 2006). Assim, além de contribuírem no aspecto financeiro, cada vez mais, os idosos estão cuidando das gerações mais novas, como os filhos, os netos e até mesmo os bisnetos, devido às dificuldades pelas quais as famílias vêm passando: mães que trabalham fora e deixam os filhos com os avós, pais que se separam, filhos com dificuldades de inserção no mercado de trabalho ou necessitando se preparar melhor para enfrentá-lo, entre outros. Sua contribuição é evidente, especialmente junto às crianças, para as quais transmitem a história da família e do país, valores e afeto. Quem poderia dimensionar suaimportância? Segundo Dias e Silva (1999), em geral, os avós são o porto seguro nos momentos de crise; os transmissores da história familiar, firmando a identidade do grupo; os mediadores e fontes de apoio emocional nas relações interpessoais intempestivas vividas pelos filhos, e, para os netos, representam o equilíbrio necessário nos momentos de desânimo e depreciação de si mesmos. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 99 De acordo com Moragas (1997), já existem estudos enfocando a velhice, tanto no âmbito físico, como social e psicológico; no entanto, existe uma carência de pesquisas que a relacionem com a família. Para o referido autor, isso é necessário, pois em épocas anteriores não houve um contato tão longo e intenso entre as várias gerações de uma mesma família como na atualidade. Não há como negar que a velhice apresenta uma forte componente de gênero, atingindo especialmente as mulheres, embora isto não seja universal (Camarano, 2004). Por isto nosso foco se voltou para o homem. O objetivo geral deste estudo, portanto, foi investigar a vivência que o homem idoso, ou seja, com idade acima de 60 anos, tem dos papéis desempenhados ao longo do ciclo de vida familiar. Especificamente, buscamos averiguar ainda a percepção que ele tem do tratamento dispensado aos idosos, através dos tempos, e suas perspectivas de mudanças. É nossa expectativa que o estudo das relações estabelecidas pelo idoso com a família possa contribuir para os profissionais que lidam com eles, bem como para favorecer estratégias de enfrentamento a tais questões. Para subsidiar teoricamente a pesquisa buscamos respaldo na Teoria do Ciclo Vital da Família. Família e ciclo vital Para Cerveny (1997), ciclo vital familiar é um conjunto de etapas ou fases definidas segundo alguns critérios (idade dos pais, dos filhos, tempo de união de um casal, entre outros) pelos quais as famílias passam, desde o início da sua constituição em uma geração, até a morte de um dos indivíduos que a iniciaram. Cerveny e Berthoud (1997) propõem uma nova caracterização de ciclo vital diferente da disponível até o momento, proposta esta decorrente de pesquisa desenvolvida nos anos 1996 e 1997, com 1105 famílias da classe média paulistana. Essa caracterização coloca a família, ao longo do seu ciclo vital, em quatro etapas, porém as autoras chamam a atenção para a não rigidez das fases: 1. Família na Fase de Aquisição: engloba a escolha do(a) parceiro(a), o nascimento da família pela união formal ou informal do casal; a preocupação em adquirir bens; a chegada dos filhos e a vida com filhos pequenos. É uma fase que se caracteriza pela aquisição em todos os sentidos: material, emocional, psicológico (Berthoud & Bergami, 1997). 2. Família na Fase Adolescente: caracteriza-se pelo momento específico em que os filhos experimentam a adolescência em direção à idade adulta. Ela mobiliza bastante os pais, que se encontram na faixa dos quarenta aos cinqüenta anos, porque eles passam a rever sua própria adolescência e os aspectos que podem ser resgatados de uma juventude ainda presente diante de si. É uma fase que pode propiciar muitos conflitos e questionamentos, tanto por parte dos filhos, como dos pais (Luisi & Cangelli Filho, 1997). 3. Família na Fase Madura: nela estão inseridos os filhos adultos jovens e pais em plena maturidade, cuja idade estende-se dos cinqüenta a meados dos sessenta. As características dessa família envolvem mudanças como: saída de casa e/ou casamento dos filhos; inclusão da terceira geração e parentes por afinidades; cuidados com a geração mais velha, entre outras. É considerada uma fase difícil, porque o casal se 100 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 depara com duas gerações precisando de amparo: a dos filhos que estão se preparando para ter sua própria família, e os pais em processo de envelhecimento (Carbone & Coelho, 1997). 4. Família na Fase Última: depende muito de como foram vividas as fases anteriores. É uma etapa que tem se estendido bastante, dada a maior longevidade humana. Ela é marcada pela reestruturação de papéis, com a saída física de alguns membros do núcleo familiar e a inserção de novos membros (noras, genros e netos). O luto pela perda de amigos e parentes trará forçosamente à tona a velhice como a fase que se aproxima da finitude pessoal e da idéia inevitável da viuvez. Nessa fase, há um fechamento de ciclo (Silva, Alves & Coelho, 1997). Como o presente estudo enfoca o idoso, nos deteremos na última fase do ciclo vital. Segundo Silva e cols. (1997), a família na fase última se caracteriza ainda pela aposentadoria de um ou de ambos os cônjuges, a perda de autonomia e a fragilidade física. O casal volta a ficar sozinho, depois da saída dos filhos, e, dependendo do relacionamento estabelecido, isso pode ser uma oportunidade de encontro ou de solidão compartilhada sob o mesmo teto. A aposentadoria significa a parada de desempenho de uma atividade formal que foi realizada durante 30 anos ou mais e que pode gerar uma crise. Em alguns casos, mesmo com os filhos criados, surge uma nova demanda: os filhos que, por dificuldade financeira ou por estarem descasados, retornam com seus filhos e mulheres/maridos (noras ou genros). Cerveny e Berthoud (1997) denominaram este movimento de “pais estendidos”, significando cuidar dos filhos e dos netos. Nessa direção, Peixoto (2004) afirmou: Muitos filhos divorciados retornam à casa dos pais solicitando um apoio – financeiro ou moral – para educar seus filhos. Esta é uma prática comum no Brasil, pois, como dissemos, as políticas familiares são restritas e o sistema público escolar é ineficaz. São poucas as creches e as escolas maternais da rede pública, e as escolas do ensino fundamental funcionam somente meio período, obrigando os pais que trabalham a lançar mão de sistemas informais de guarda das crianças, como as babás e as empregadas domésticas ou, ainda, seus pais aposentados. (p. 77) Quando sós, ou por separações ou por falecimento dos cônjuges, os idosos passam a residir sozinhos ou com os filhos, tendo que se incorporar a outro ritmo de vida. Essa situação é mais complicada para o homem idoso, tendo em vista vir de uma cultura em que sua preocupação principal era a de provedor, não tendo se acostumado com os afazeres domésticos (Nolasco, 1995). Somam-se a essas dificuldades, a saúde precária e o ter que se cuidar sozinho tendo, muitas vezes, que administrar várias medicações, com dosagens e horários diferentes, e o fato de depender dos outros o leva a perder sua autonomia. Sobre esse aspecto, Warner (1998) ressalta: “As decisões a respeito das pessoas idosas, muitas vezes, não são tomadas por elas, mas por outros que decidem por elas. Então elas se acomodam, renunciam ao direito de decidir sua própria vida, pois acham que não têm capacidade e, assim, passam a viver em estado de não-participação, viver um sentimento de impotência” (p. 53). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 101 Diante dessas reflexões, podemos perceber as transformações que a família passa ao longo do tempo como também o papel do idoso no contexto familiar. Vimos uma nova relação inter e transgeracional que se afigura a partir da longevidade humana e do contexto sócio-econômico. Além de sua importância natural, com as aposentadorias e pensões que recebem, muitos idosos resgataram seu poder como provedores diante das situações financeiras difíceis vividas por seus filhos e netos, além de serem pessoas disponíveis nos momentos de crises vividos pelas famílias. Devido ao fato da primeira autora coordenar um grupo de idosos pertencente a uma faculdade na qual trabalha, houve o interesse em pesquisar como homens idosos, participando ou não de um grupo de terceira idade, vivenciaram os papéis que desempenharam ao longo de suas vidas. Igualmente, houve o interesse em verificar a adequação da Teoria do Ciclo Vital aos referidos grupos. Método Foram entrevistados doze homens, sendo que seis freqüentavam o Grupo Reviver (Universidade Aberta à Terceira Idade), de uma faculdade localizada em Paulo Afonso, e seis não o freqüentavam. Eles se encontravam na faixa etária compreendida entre 61 a 80 anos e, em geral, gozavam de boa saúde. A maioria era casada, havendo dois viúvos. Apenas um destes morava sozinho, sendo assistido pela filha que residia perto. Todos chegaram de cidades vizinhas para trabalhar como operários na Companhia Hidroelétrica do São Francisco. A escolaridade predominante correspondia ao antigo curso primário, havendo um que possui curso superior de Engenharia. A religião católica foi prevalente nos dois grupos. Todos são aposentados e possuem uma renda média equivalente a dois salários e meio. Todos referiram possuir: casa própria (saneada com água e luz), tv, som, geladeira e ventiladores. Alguns possuem ainda: automóvel (6), máquina de lavar (5), computador (4), ar condicionado (2), máquina de costura (1), pequeno comércio (1), propriedades na terra natal (1). Suas esposas, por sua vez, desempenharam as seguintes profissões: costureira (3), comerciante (1), funcionária da CHESF (1) e professora (1). Assim, face à comunidade na qual estão inseridos, podem ser considerados como pertencendo à classe média. Para Oliveira (2004), entre a burguesia e o proletariado encontram-se outros grupos que se movem entre as duas camadas fundamentais. Alguns desses grupos são chamados genericamente de classes médias, ou pequena burguesia. “A pequena burguesia constitui um setor muito numeroso, que abrange desde o dono de um pequeno armazém até os pequenos e médios proprietários de terra, passando por todos os assalariados que trabalham em escritórios, funcionários públicos e profissionais liberais” (p. 126). Quanto ao critério de escolha dos participantes, utilizamos a amostragem proposital, que também é denominada intencional ou deliberada. Por esse critério, o pesquisador escolhe deliberadamente os participantes que comporão o estudo, de acordo com os objetivos do trabalho, desde que possam fornecer as informações referentes ao mesmo (Turato, 2003). Eles responderam a uma entrevista composta de questões relacionadas aos seguintes temas: fase inicial do casamento; chegada dos filhos; criação e desenvolvimento dos filhos; saída dos filhos; vivência da fase atual; 102 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 tratamento dispensado aos idosos pela família e sociedade; mudanças que gostaria de fazer. Além disso, foram preenchidos os dados sócio demográficos. Eles foram entrevistados individualmente, em uma sala apropriada (em suas casas ou na associação de idosos). As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Vale ressaltar que eles assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo sido a pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, e que foram dados nomes fictícios aos participantes para preservar sua identidade. As entrevistas foram submetidas a uma Análise de Conteúdo, especificamente à Análise Temática, a qual “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado” (Minayo, 2004, p. 209). Análise e discussão dos resultados Seis temas principais nortearam a análise dos dados obtidos através das entrevistas: 1. Fase de aquisição A fase inicial do casamento se caracterizou pela preocupação do casal em adquirir bens e se estruturar financeiramente para a chegada dos filhos. Todos os participantes se viram como responsáveis pelo sustento da casa, mesmo que tivessem de trabalhar em outra cidade, em turnos desgastantes ou até em atividades insalubres, se foi somente este tipo de trabalho que apareceu. O papel do homem continuou sendo para os nossos entrevistados, o de provedor e dono de casa. A mulher, em geral, ficou responsável pelos cuidados domésticos e criação dos filhos. Observamos, nos dois grupos pesquisados, o seguimento das normas sociais e o cumprimento dos papéis ditados socialmente, ao casarem, de acordo com o estabelecido. Os casais procuraram viver juntos e criar seus filhos. Referiram-se aos próprios pais como muito tradicionais, autoritários e representantes máximos da família, não permitindo espaço para o diálogo. Notamos a reprodução desse lugar nas famílias por eles constituídas, mesmo quando questionaram seus pais. No início enfrentaram dificuldades financeiras e, em alguns casos, foi necessário passar um tempo nas casas de parentes e amigos até adquirirem uma estrutura mais estável. Eles se preocuparam em conseguir casa, móveis e estabilidade econômica, principalmente quando surgiram os filhos. Tudo isso confirma as tarefas da fase de aquisição, conforme a Teoria do Ciclo Vital (Berthoud & Bergami, 1997). Os recortes que seguem testemunham bem a fase inicial do casamento e a nova demanda para criar os filhos, tornando visíveis os papéis de ambos os cônjuges: (...) “com a vinda dos filhos pesou mais. Tive que sair da cidade para poder criar eles. Meus filhos quem criou mais foi minha esposa. Eu não tinha tempo para eles”. (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver). “Quando os filhos chegaram foi meio difícil. Pagava aluguel e na época eu ganhava pouco. A vida era dura no início. Ainda hoje eu lembro quando casei. Nem televisão tinha. Depois a gente saiu do sufoco. Eu fiz de tudo e comprei Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 103 uma. Hoje não, está tudo mais fácil, mas há vinte tantos anos atrás... E também a cidade tava iniciando, era tudo mais difícil naquela época.” (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade). 2. Criação e desenvolvimento dos filhos Constatamos, durante a educação dos filhos, uma reprodução da postura de seus antepassados. Alguns chegaram a bater nos filhos, mesmo quando admitiram não ter dado certo. Outros só aconselhavam, até porque não concordavam com a educação dos próprios pais, que era de bater. Houve, ainda, os que deixaram para as mulheres essa tarefa, inclusive passando a autoridade para a professora na escola. A aproximação com os filhos se dava, principalmente, quando brincavam ou iam buscálos na escola, quando podiam. “Quando fazia coisa errada eu sentava e conversava com eles. Nunca bati, isso era com a mãe” (Sr. Euclides, 73 anos, Grupo Reviver). “Dava um castigozinho, mas era mais conselho. Apesar de que filho hoje não é essa grande coisa não. É diferente do outro tempo. No outro tempo bastava o pai olhar e eles já mudavam de sentido, mas hoje eles já querem reagir. Mas a maioria é errado e não se conforma” (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade). Alguns desses idosos não praticaram o diálogo e o relacionamento distante dificultou um maior contato com os filhos, a ponto de alguns entrevistados mostrarem uma insatisfação, atualmente, em relação a eles. Daí questionarmos: como poderiam exercer um relacionamento aberto, amoroso e afetuoso se não tiveram um referencial? Vieram de uma época em que o pai adotava uma postura distante e “bastava um olhar” para intimidar a criança. Desse modo, não houve espaço para o diálogo nas suas vivências na família de origem e eles continuaram reproduzindo esse modelo. 3. Saída dos filhos de casa Com o crescimento dos filhos, outras preocupações surgiram: a escolaridade, o casamento e a inserção deles no mercado de trabalho. Constatamos os sentimentos de solidão, de saudade e muita luta para ajudar os filhos a se profissionalizarem. Um deles chegou a sacrificar seu bem-estar e até parar a construção da casa, para priorizar o sustento do filho fora de casa, até que este conseguisse se firmar como profissional. “Quando ele saiu de casa era muita saudade, né? E um pouco de despesa também, porque nessa época a gente tava construindo aqui também. Aí eu não ia deixar ele passar fome fora, né? Paramos a construção da casa pra ele terminar os estudos. A gente morava em Jatobá, aí começamos a deixar ele morando sozinho na casa” (Sr. José, 64 anos, Grupo Reviver). “Quando ela (filha) saiu de casa foi um horror. Porque eu fiquei só, né? (Sr. Valdemar, 75 anos, Idoso da Comunidade). Um fato importante que pode ocorrer é a perda da companheira. Motta (2004) comentou que estudar a velhice é se deparar constantemente com a viuvez, que é uma 104 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 condição social peculiar, já que é inesperada, não planejada e modificadora imediata da vida das pessoas. A viuvez representa também um rompimento inesperado do equilíbrio nas relações familiares e a urgência do estabelecimento de novos arranjos no grupo. A elaboração desse acontecimento, em geral, é muito difícil. “Não mudou muito, só comecei a fazer as coisas em casa. E gostei porque pude cuidar da saúde de minha esposa, apesar de ter sido em vão, pois ela veio a falecer e fiquei muito triste e só. Foram 53 anos de muito amor e sem discussão” (Sr. Anchieta, 80 anos, Idoso da Comunidade). Notamos, em alguns casos, como a proximidade geográfica com os filhos atenua os sentimentos de tristeza e de isolamento do idoso. “Com a saída dos filhos não senti muito porque moram perto. Tem um filho que mora tão perto de mim que eu faço o café e levo pra ele e a mulher” (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver). 4. Fase última Nessa fase, com os filhos criados, pode surgir uma nova situação que diz respeito aos filhos separados, os quais voltam ao lar paterno com seus próprios filhos. Cerveny e Berthoud (1997) denominaram esse movimento de “pais estendidos”, como já foi referido. Às vezes, devido também à dificuldade financeira, há um regresso dos filhos, com seus filhos e mulheres/maridos (noras ou genros), à família de origem, confirmando a existência da “co-residência” (Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999) ou “ninho recheio” (Peixoto, 2004; Warner, 1998). “Moro com a esposa e minha filha que voltou. Não deu certo seu casamento. Uma neta, dois netos e uma bisneta” (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade). “Moro com esposa, filha e um filho que casou, separou-se e voltou para casa” (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver). “Ela (filha) vivia com a gente em casa e saiu. A gente não achou bom. Mas depois voltou” (Sr. Josias, 65 anos, Idoso da Comunidade). Constatamos que vários participantes da pesquisa constituem a denominada família de idosos. Essa configuração talvez não seja interessante para nenhuma das partes envolvidas, já que vários adultos jovens gostariam de ter sua independência e a geração mais velha deseja, nessa fase de vida, paz, sossego e usufruir dos seus rendimentos em benefício próprio. Concordamos com Camarano e El Ghaouri (2003) ao concluírem que a co-residência traz mais benefícios para as gerações mais novas do que para os idosos. Para estes ela parece refletir mais uma ausência de opção. A saída dos filhos geralmente coincide com a aposentadoria e as conseqüências advindas do processo de envelhecimento. O sentimento reinante é de falta e vazio. Eles sentem saudades e expressaram um “vazio existencial” em que, apesar do sentido do dever cumprido, não resta muito a fazer nessa fase de vida. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 105 Para Zimerman (2000), nossa sociedade limita a pessoa com a aposentadoria, o que pode causar transtornos que levam ao surgimento de doenças, exclusão, isolamento e depressão. Ela ocasiona o afastamento dos colegas, a perda da identidade como trabalhador e a rotina diária, além de acarretar um rebaixamento nos rendimentos do idoso. Porém não podemos esquecer que outros a esperam como um evento desejado, que vai lhes propiciar realizações. Desse modo, “a aposentadoria é um determinante da diferenciação dos papéis adotados na velhice” (Tavares, Néri & Cupertino, 2004, p. 105). “Com a aposentadoria a gente fica impaciente. Parado. Só em casa, mas aí a gente falta a paciência, aí eu vou procurar andar, né? Aí, eu ficar em casa só parado, não é boa coisa” (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade). “Com a aposentadoria mudou o dinheiro, que ficou pouco e a saúde que está fraca” (Sr. Geraldo, 72 anos, Grupo Reviver). Os aposentados sentem falta dos amigos e dos papéis desempenhados no trabalho. Procuram se ocupar em casa, ajudando nas tarefas domésticas e a convivência com a família pode gerar conflitos. E quando estão sentindo muita falta dos contatos sociais, “dão uma volta”. Os idosos que participam do Grupo Reviver preenchem seu tempo com atividades socializantes, o que contribui para reativar amizades e interesses. “Fiquei muito em casa acomodado. Já tive até depressão, depois que me aposentei. Mas agora eu participo do Projeto Reviver e estou bem. Quero continuar ativo” (Sr. Ivanildo, 63 anos, Grupo Reviver). A referida fala nos remete à Teoria da Continuidade, que mostra a importância da manutenção dos papéis e dos laços afetivos e afirma que aqueles idosos que não buscarem formas de se manter ativos, tendem ao isolamento e à depressão (Neri, 2002). Também a relacionamos com a questão de gênero, pois se constata que as mulheres participam mais de atividades extradomésticas, de organizações e movimentos sociais, fazem mais cursos, viagens e trabalhos temporários do que os homens (Camarano, 2004). Apesar de tudo, verificamos em alguns o orgulho por terem sobrevivido, possuir casa própria, ter sua aposentadoria e conseguir criar os filhos. O sentimento é de dever cumprido e sentem-se vitoriosos por ter chegado aonde chegaram. “Está bom. Saúde piorou e os amigos eram mais. Antes o dinheiro rendia mais. Hoje é tudo muito caro. Mas deu pra criar os filhos e tenho minha casa.” (Sr. Lucas, 62 anos, idoso da Comunidade). “Eu nunca pensei em minha vida chegar no ponto que eu estou hoje. Ter minha casa própria, ajudar meus filhos e netos. E nunca deixei de ajudar minha mãe“ (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver). A última fala revela o que fora colocado por Carbone e Coelho (1997), no sentido de que a geração do meio, além de cuidar dos próprios filhos e netos, também presta assistência aos pais em processo de envelhecimento. 106 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 5. Percepção do tratamento dispensado aos idosos, ao longo do tempo Nas entrevistas ficou evidenciado como o idoso era tratado antigamente, ou seja, com respeito e consideração, mesmo quando os participantes admitiram a inexistência de uma rede de proteção e assistência social. Hoje, quando “as coisas” estão melhores nos aspectos de saúde e de previdência social, a família e a sociedade não respeitam nem consideram seus idosos, como fica evidente nas falas: “Família respeitava o idoso, Naquele tempo, médico era difícil. Assistência Social, não tinha. Hoje está melhor”. (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver). “A família tratava o idoso melhor. Tinha mais respeito. Hoje não. Os pais criam os filhos e quando os pais ficam de idade eles não querem cuidar mais. Joga para o asilo. Na minha época não tinha filho que fizesse isso não. Hoje o idoso não pode nem sair pra receber seu dinheiro. Os cabras vão e toma, não tem nem respeito. Hoje tá fraco. Na época que eu era criança, o idoso sofria muito. Não tinha benefício nenhum. Depois veio essa aposentadoria do Funrural, aí melhorou cem por cento para o idoso. Hoje tá melhor. Os idosos no meu tempo sofriam muito na roça”. (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade). Quando nos referimos à forma como os idosos eram tratados antigamente, todos foram unânimes em afirmar o respeito, a consideração por parte dos filhos e dos familiares para com os idosos, mesmo quando não tinham conforto e os serviços de saúde/ assistência social eram precários. Atualmente, afirmam que alguns filhos não têm respeito pelos seus idosos e alguns até querem se livrar deles. Referiram-se também à violência que caracteriza nossa época e que os deixa inseguros. 6. O que gostariam de mudar em suas vidas Mesmo com os filhos criados e tendo saído de casa, os idosos participantes desta pesquisa se sentiam responsáveis e se preocupavam com eles. A preocupação maior era que os filhos estivessem com saúde, empregados e vivendo bem com seus cônjuges. Percebemos, por parte de alguns, insatisfação com os filhos, no que diz respeito ao relacionamento familiar não ser tão harmonioso, como eles gostariam, havendo queixas quanto ao alcoolismo de alguns deles. “Não sei o que mudaria. Tem coisas que não tem como falar, pois o meu desejo não será realizado” (Sr. João, 65 anos, idoso da Comunidade). “Pra meus filhos não beberem muito, principalmente o mais novo” (Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver). Os idosos, especialmente os do projeto, ao responderem a essa questão, mostraram que continuam preocupados com os filhos e a família. Sonhavam em conseguir emprego para todos, em uni-los, em resolver algum problema existente. Tiraram o foco de si mesmos e sempre falavam da família. Viveram tanto em função dos outros que esqueceram seus projetos pessoais. Pode ser que alguns estejam reproduzindo e aceitando os estereótipos culturais de que o idoso não tem projetos nem sonhos Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 107 pessoais (Warner, 1998). Por outro lado, pode ocorrer que as demandas provenientes dos filhos e dos netos não lhes possibilitem dedicar-se aos interesses pessoais. Considerações finais Constatamos que todos os entrevistados chegaram há muito tempo na cidade de Paulo Afonso. Vieram de outras cidades, na época da implantação da CHESF, inclusive de estados diversos – Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. A maioria possuía baixa escolaridade, ao contrário da maioria de seus filhos, que tiveram acesso à universidade. Provavelmente a baixa escolaridade se deve ao fato de terem chegado jovens, na época da fundação da cidade, em busca de emprego. Quando conseguiram, não tiveram motivação, nem infra-estrutura adequada para continuar a estudar. Seu objetivo maior foi obtido com o emprego e a possibilidade de constituir família. Com esta pesquisa pudemos constatar que os idosos têm importância fundamental na família, seja através da transmissão de valores e de seu papel como conciliador e agregador, como também do suporte financeiro. Entre todos, o papel como provedor foi o mais enfatizado. Assim, reproduziram o modelo adquirido de suas famílias de origem e também o que prevalecia na época. Ao mesmo tempo em que questionaram o papel dos próprios pais, não souberam exercê-lo de forma diferente do aprendido. Quando os filhos cresceram, a percepção que os idosos tiveram foi do “dever cumprido”, mesmo quando os filhos apresentaram dificuldades e retornaram ao lar, devido à falta de emprego ou por separações. Esse retorno ao lar foi facilitado pela disponibilidade dos idosos em acolhê-los, não só afetiva como economicamente, já que têm a aposentadoria, uma renda certa para manter a todos, ainda que precariamente. A vivência dos entrevistados, quanto ao bem-estar subjetivo, fundamentou-se nos seguintes fatos: terem onde morar, os filhos estarem criados, terem o que comer, estarem relativamente saudáveis (não acamados), terem sobrevivido às adversidades da vida e chegado ao estágio atual. Todos demonstraram satisfação com a chegada dos filhos, mesmo quando admitiram a dificuldade para conseguir o sustento e terem que se deslocar para outras cidades, a fim de conseguir mantê-los bem. O objetivo de tê-los criado apareceu em todos os entrevistados. A dificuldade enfrentada pelos jovens para ingressar no mercado de trabalho que proporcione independência e o fato de o idoso ter sua aposentadoria ou benefício são fatores que explicam a incidência de co-residência para uma boa parte dos entrevistados. A partir dessas afirmativas, podemos dizer que o idoso passou a ser revalorizado dentro da família, possibilitando uma troca de cuidados entre as gerações, embora a co-residência também possa ser fonte de conflitos. Foram enfatizados, por todos, a preocupação com os filhos e os netos, e o investimento nos estudos objetivando oportunizar uma melhor qualificação profissional e facilidade no ingresso ao mercado de trabalho. Os entrevistados também se referiram ao tratamento dispensado aos idosos, antigamente, como de muito respeito, mas reconheceram que, nessa época, eles não eram assistidos pelos serviços de saúde, assistência social nem pela Previdência. Segundo a maioria, antigamente o idoso era valorizado na família e na comunidade. Mas, atualmente, acham que eles não detêm o mesmo respeito nesses âmbitos. Todavia, 108 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 admitiram a evolução nas políticas sociais e previdenciárias, que vieram dar um melhor suporte ao idoso enfatizando a aposentadoria como uma conquista alcançada. Quando comparamos os dois grupos pesquisados, notamos algumas diferenças. Os idosos que estão participando do Grupo Reviver mantinham-se mais ativos, dinâmicos, desenvolviam atividades, criavam laços, tinham projetos. Os idosos não participantes, que se aposentaram e permaneceram em casa, sentiam-se ociosos e apresentavam mais queixas somáticas. Isto pode ser devido a se restringirem ao ambiente doméstico e, assim, reduzirem os espaços de discussão, informação e conscientização de seus direitos e conquistas. A nosso ver, esses idosos estão se familiarizando com as transformações sociais, familiares, econômicas e nas relações estabelecidas entre as gerações. Ressentem-se de alguns aspectos do passado que não permaneceram, ao mesmo tempo em que querem conquistas novas, próprias do momento atual. Gostariam do “respeito antigo”, porém, com as facilidades e alguma estabilidade financeira de que desfrutam atualmente. Estão disponíveis para ajudar seus filhos, mas não querem abrir mão do seu papel de “chefe de família” e norteador do comportamento familiar. No entanto, apesar desses conflitos, vislumbramos flexibilidade ao aceitarem os novos arranjos e configurações familiares de seus filhos e estarem disponíveis nos momentos de crises, tanto econômicas quanto conjugais. Vale a pena notar que se trata de uma parcela da população nordestina, com valores e cultura próprios, diferentes, portanto, de outras regiões do Brasil. Nesse sentido, sugerimos que diferentes investigações, em contextos distintos, podem trazer mais conhecimentos sobre o tema. É fundamental que os profissionais da área divulguem e realizem projetos que levem a sociedade a refletir, informando-a sobre esse novo contexto, até para o próprio idoso se conscientizar de sua importância social e familiar. Referências Berthoud, C. M. E., & Bergami, N. B. B. (1997). Família em fase de aquisição. Em: C. M. de O. Cerveny & C. M. E. Berthoud (Orgs.), Família e Ciclo Vital nossa realidade em pesquisa (pp. 55-73). São Paulo: Casa do Psicólogo. Camarano, A. A., & El Ghaouri, S. K. (2003). Famílias com idosos: ninhos vazios? Texto para discussão, 950, 1-20. Camarano, A. A. (2004). Jovens e idosos nordestinos; exemplos de trocas intergeracionais? Texto para discussão, 1031, 1-24. Carbone, A., & Coelho, M. R. M. (1997). A família em fase madura. Em: C. M. O. Cerveny & C. M. E. Berthoud (Orgs.), Família e Ciclo Vital nossa realidade em pesquisa (pp. 101-120). São Paulo: Casa do Psicólogo. Cerveny, C. M. de O. (1997). Ciclo vital. Em: C. M. de O. Cerveny & C. M. E. Berthoud (Orgs.), Família e ciclo vital, nossa realidade em pesquisa (pp. 21-30). São Paulo: Casa do Psicólogo. Dias, C. M. S. B., & Silva, D. V. (1999). Os avós: uma revisão da literatura nas três últimas décadas. Em: T. Féres-Carneiro (Org.), Casal e família, entre a tradição e a transformação (pp. 118-149). Rio de Janeiro: Nau. Falcão, D. V. S., Dias, C. M. S. B., Bucher-Maluschke, J. S. N. F., & Salomão, N. M. R. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 109 (2006). As relações familiares entre as gerações: possibilidades e desafios. Em: D. V. S. Falcão & C. M. S. B. Dias (Orgs.), Maturidade e velhice: pesquisas e intervenções psicológicas (pp. 59-80). Volume I. São Paulo: Casa do Psicólogo. Luisi, L. V. V. & Cangelli Filho, R. (1997). A família em fase adolescente. Em: C. M. O. Cerveny & C. M. E., Berthoud (Orgs.), Família e Ciclo Vital nossa realidade em pesquisa (pp. 75-99). São Paulo: Casa do Psicólogo. Minayo, M. (2004). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (8ª edição). São Paulo: Hucitec. Moragas, R. (1997). Gerontologia social: envelhecimento e qualidade de vida. São Paulo: Paulinas. Motta, A B. (2004). Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional. Em: C. E. Peixoto (Org.), Família e envelhecimento (pp. 109-114). Rio de Janeiro: FGV Editora. Neri, A. L. (2002). Teorias psicológicas do envelhecimento. Em: E.V. Freitas, L. Py, A. L, Neri, F. A. X, Gonçalo, M. L Gorzoni & S. M. Rocha (Orgs.), Tratado de geriatria e gerontologia (pp. 32-46). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A. Nolasco, S. (1995). O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco. Oliveira, P. S. (2004). Introdução à sociologia. Série Brasil. (25ª edição). São Paulo: Editora Ática. Pebley, A R., & Rudkin, L. L. (1999). Grandparents caring grandchildren. What do we know? Journal of Family Issues, 25(98), 1026-1049. Peixoto, C. E. (2004). Aposentadoria: retorno ao trabalho e solidariedade familiar. Em: C. 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Recebido em agosto de 2007 Aceito em janeiro de 2008 Ivanilza Etelvina dos Santos: psicóloga; mestre em Psicologia Clínica (UCP); professora da Faculdade Sete de Setembro de Paulo Afonso. Cristina Maria de Souza Brito Dias: psicóloga; mestre e doutora em Psicologia (UnB); professora e pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco. Endereço para correspondência: [email protected] *Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada “Homem idoso: vivência de papéis durante o ciclo vital da família”, elaborada pela primeira autora, sob orientação da segunda. 110 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.111-125, jan./jun. 2008 Imagem corporal em crianças institucionalizadas e em crianças não institucionalizadas Lorena Emilia Zortéa Carla Meira Kreutz Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann Resumo: O presente estudo investigou, por meio de desenhos da figura humana e de entrevistas, a imagem corporal e as idéias sobre si mesmas de crianças institucionalizadas e não institucionalizadas, de ambos os sexos e com idade entre cinco e sete anos. A produção gráfica investigou a imagem corporal e foi avaliada pela Escala de Indicadores Emocionais de Koppitz (1966). As entrevistas visaram examinar as idéias que as crianças tinham sobre si mesmas e foram analisadas através da análise de conteúdo de Bardin (1977). Os resultados do Estudo I apresentaram um número de indicadores emocionais muito semelhantes entre os dois grupos, possivelmente devido a qualidade do atendimento oferecido às crianças institucionalizadas e a pouca atenção e tipo de cuidados oferecidos às crianças não institucionalizadas. Os resultados do Estudo II sugerem que as crianças de ambos os grupos mostram semelhanças em seus relatos. Uma particularidade do grupo das crianças institucionalizadas é uma insegurança quanto às suas qualidades. Palavras-chave: imagem corporal, autoconceito, institucionalização. Physical image in institutionalized children and non institututionalized children Abstract: The study in question investigated, through human figure drawings and interviews, the body image and self-concept in institutionalized and non institutionalized children, of both genders and age between five and seven years old. The graphic production aimed to investigate the physical image and it was evaluated by the emotional indicators scale, of Koppitz (1966). The interviews targeted to examine the self-concept and were analyzed by content analysis, of Bardin (1977). The results of the study 1 show a few significant differences between the two groups, proving that non institutionalized children, the ones living with their parents, show a number of emotional indicators that are very similar to the institutionalized children, probably because they are receiving quality attention at the institution. The results of the study II suggest that children in both groups show similarities in their accounts. A peculiarity of the institutionalized children group is insecurity when it comes to their qualities. Key words: Physical image, self-concept, institutionalization. Introdução Uma das formas de se analisar o desenvolvimento emocional tem sido o estudo da imagem corporal do indivíduo. Num sentido amplo, a imagem corporal refere-se à experiência psicológica relacionada ao corpo, portanto está interligada a sentimentos e atitudes do indivíduo (Pasian & Jacquemin, 1999). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 111 A imagem corporal é constituída a partir da integração entre ego e id, num interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais. Para Capisiano (1992) a estrutura do modelo de corpo é resultante da reunião de representações de várias procedências, o que resume as diferenças em um só conhecimento: o corpo. Diz ainda o autor que a imagem do corpo não é estática, e sim, passível de tranformações vinculadas à modificação contínua do psiquismo. Uma das formas de conhecer a imagem corporal do indivíduo é através do desenho da figura humana, onde ele projeta o conceito de si mesmo (Vankolck, 1984). As crianças fazem os desenhos de figuras humanas refletindo a imagem mental que possuem de seu corpo. Dessa forma, projetam formas isoladas e desconexas, de acordo com sua capacidade criativa, motora, intelectual e da própria visão de si, incluindo em sua formação desde contribuições anatômicas, fisiológicas, neurológicas até aspectos sociológicos (Capisiano, 1992). Em torno de 5 a 7 anos, uma criança é capaz de dar uma descrição bastante completa de si mesma em uma série de dimensões (Bee, 1997). Através de seu relato verbal, “a criança expressa produtos de percepções, sua representatividade psíquica em sua forma, distúrbios, funções e seu próprio desenvolvimento” (Capisiano, 1992, p.182). Assim, utilizando o desenho da figura humana e entrevistas, o presente estudo visa identificar o papel dos pais na construção da imagem corporal e idéias sobre si mesmas em crianças de cinco a sete anos, comparando crianças institucionalizadas e não institucionalizadas. Foram investigadas eventuais diferenças e similaridades na imagem corporal entre crianças que convivem com os pais desde o nascimento e crianças que vivem em instituição durante parte de sua vida, visando identificar similaridades e eventuais particularidades quanto às idéias de si mesmo, ou seja, o autoconceito, entre os dois grupos pesquisados. O desenvolvimento da imagem corporal Segundo Schilder (1999), a imagem corporal é uma experiência básica na vida de qualquer um, uma experiência vital, lábil e mutável. O autor diz tratar-se de uma reconstrução constante daquilo que o indivíduo percebe de si e das determinações inconscientes que ele traz de seu diálogo com o mundo. Todas as experiências vivenciadas estão marcadas no corpo/história do homem, e elas estão presentes e sendo desveladas nas inter-relações estabelecidas com os outros e com o meio (Kleinubing & Kleinubing, 2002). Inúmeras condições sociais e psicológicas influenciam positiva ou negativamente o desenvolvimento de uma criança. Ela necessita que os pais supram suas necessidades básicas, tais como alimentação, calor, abrigo e proteção, e, em segundo, que proporcionem um ambiente no qual possa desenvolver ao máximo suas capacidades físicas, mentais e sociais. Para Bowlby (1988), uma atmosfera de afeição e segurança na vida inicial do indivíduo por parte das figuras parentais é fundamental. É esse clima de segurança que vai possibilitar a formação de um apego seguro. Moretti (1992) assinala que para o bebê ter uma imagem saudável de seu corpo, deve passar por estímulos sensoriais sob a forma de afagos, toques, embalos, massagens e brincadeiras na água. No princípio, a criança não conhece seu corpo, tem sensações físicas de 112 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 conforto, desconforto, raiva, dor, tem uma dependência da figura materna, só conseguindo por volta de um ano de vida diferenciar a sua imagem corporal do corpo da mãe e dos outros (Blaesing & Brockhaus, citados por Moretti,1992). De acordo com Blaesing e Brockhaus (citado por Moretti, 1992), a criança, no decorrer do crescimento e do desenvolvimento interpessoal, cria um conceito de seu próprio corpo como resultado das suas experiências sensoriais e afetivas, da maneira como vê o mundo e seu domínio do mesmo. Por ter uma imagem corporal plástica, o indivíduo organiza e adapta seus limites corporais de acordo com sua interação com o meio ambiente, podendo ser identificada nos seus valores e sentimentos a respeito de si mesma, do seu grau de organização, da personalidade e força do ego. Nesse sentido, Mahler (1993) destaca que os três primeiros anos de vida são determinados por dois fatores. O primeiro deles, a dotação genética, que o impulsiona para o vínculo com o meio ambiente, permite perceber e aceitar os cuidados proporcionados pela mãe. O segundo fator é a maternagem, ou seja, a presença de uma mãe que proporcione verdadeiramente estes cuidados. Bowlby (1984) refere que crianças seguramente apegadas, aos seis anos, são aquelas que tratam seus pais de uma forma relaxada e amigável, que estabelecem uma intimidade de forma mais fácil e sutil. Em idade escolar, segundo Bee (1997), a autopercepção de uma criança também está ligada às características visíveis, como sua aparência, o quê ou com quem joga, onde mora, o que sabe fazer bem ou não, ao invés das qualidades mais internas, constantes como traços de personalidade. Crianças institucionalizadas Segundo Loos, Ferreira e Vasconcellos (2002), a violência dentro das famílias e as situações de risco são apontadas como causas principais que promovem a institucionalização infantil. Subtraídos do lar, há um rompimento brusco com seus vínculos anteriores que, mesmo perturbados, serviam de referencial para a criança. Para os autores, crianças com seqüelas sociais e emocionais apresentam características de atitudes defensivas contra ambientes ameaçadores, desconfiança básica, agressividade, sentimentos de culpa, baixa auto-estima. Silveira (2002) refere que, no processo de institucionalização, meninos chegam com pertences individuais e outros objetos significativos, buscando, de alguma forma, preservar relíquias particulares para não perder pedaços de sua história e subjetividade. Para a autora, o sistema institucional, ao mesmo tempo em que ampara e protege, desrespeita o eu digno da criança, pois o convívio em coletividade delimita a identidade individual. Os vínculos são um referencial primordial na elaboração da concepção de si e do mundo. Laços afetivos conturbados trazem conseqüências futuras para o repertório comportamental dos indivíduos, inclusive para sua auto-estima, que pode definir sua forma de relacionamento com o outro e com o mundo em geral (Weber & Kossobudzki, 1996). A impossibilidade de manter e formar vínculo numa instituição de internamento é determinada por vários fatores, tais como: o elevado número de crianças, o tratamento massificado e despersonalizante, a rotatividade de funcionários, as transferências dos Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 113 internos para outras instituições e o desligamento da criança de sua família e comunidade, dentre outros (Weber, 1999). Lewis e Wolkmar (1993) comentam que bebês criados em instituições apresentam, com maior freqüência, o hábito de agarrar-se a alguém e/ou o comportamento de seguir uma pessoa, mostrando-se menos capazes de manter relações duradouras, profundas e menos vinculadas do que as crianças de quatro anos de idade criadas em família. Para Costa (1993), crianças institucionalizadas são crianças tristes, deprimidas, angustiadas, de futuro incerto, sempre à procura de migalhas de amor e ternura. Muitas crianças vão a óbito, não só por deficiência de cuidados, mas, sobretudo pela baixa resistência imunológica, provocada pela carência afetiva das crianças abrigadas na instituição. Método Participantes Participaram do estudo 24 crianças na faixa etária de 5 a 7 anos. O grupo não institucionalizado foi composto por 13 crianças, com escolaridade contínua de 3 anos na educação infantil de uma escola estadual de ensino fundamental da capital do estado, que atende uma população em situação econômica desfavorável. Moravam com a família nuclear, freqüentavam um turno na escola e desenvolviam atividades preestabelecidas para a faixa etária, ligadas ao desenvolvimento das áreas socioafetivas, linguagem, psicomotora, participando também de passeios, gincanas e festas. O grupo institucionalizado foi composto por 11 crianças, com escolaridade entre 1 e 3 anos na escola infantil, internas em fundação não-governamental de abrigo de menores. Os pais perderam o poder familiar em função de maus tratos físicos, psicológicos, negligências com a saúde, alimentação, educação, envolvimento com drogas, abuso sexual, não tendo nenhum contato com as crianças. O atendimento da instituição era feito em duas unidades. Uma na capital do estado, onde as crianças eram abrigadas em apartamentos, divididos por sexo, compreendendo um total de 20 crianças de diferentes idades. Na outra unidade, localizada em uma cidade próxima da capital, as crianças eram agrupadas em casas, possibilitando que irmãos permanecessem juntos, totalizando 22 crianças, onde havia a organização de agendas pessoais. Freqüentavam escolas públicas e seguiam uma rotina de atividades ligadas à faixa etária, tais como passeios pela quadra e praças públicas. Havia crianças em atendimento psicológico, fonoaudiólogo e dentário. Instrumentos Foram utilizados os seguintes instrumentos e materiais: Termo de Consentimento Informado entregue e assinado pelos pais e pela responsável técnica da instituição. Na escola foi feito uma reunião, com a presença da direção e do SOE, visando clarificar os objetivos da pesquisa e sigilo. Também foram utilizados o desenho da figura humana, folhas de papel branco, lápis preto e borracha, bem como uma entrevista semiestruturada composta por sete questões, na qual utilizamos gravador e fita cassete. 114 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Procedimentos Foi utilizado o delineamento de grupos contrastantes (Nachmias & Nachmias, 1996). Os participantes foram contatados somente quando confirmados os critérios de inclusão para participar da pesquisa. Foram marcadas as entrevistas com a coordenação das instituições e escola, onde foram coletados dados relativos à população atendida, serviços e atividades oferecidas. Em uma nova visita, após breve interação com as crianças, foram realizadas as entrevistas e o desenho da figura humana, individualmente com cada criança, em uma sala reservada especialmente para a coleta de dados da pesquisa. O desenho da figura humana foi avaliado quanto à freqüência dos 30 indicadores emocionais de Braile (1973), cuja autora realizou uma adaptação dos indicadores emocionais de Koppitz (1966) para a América do Sul. As entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente. Realizou-se a análise de conteúdo desse material, buscando investigar as idéias sobre si mesmas das crianças entrevistadas (Bardin, 1977). Estudo I A imagem corporal – Produção gráfica Apresentação e discussão dos resultados – desenho da figura humana O grupo de crianças institucionalizadas, que não vivem com os pais, está identificado com a sigla “CI”, e o grupo de crianças que vivem com suas famílias está identificado como “CF”. A tabela abaixo descreve o número de componentes de cada grupo de amostra “CI” e “CF”, indicando também o número de meninas e meninos que participaram. Tabela 1 – Distribuição dos participantes dos grupos Sexo Masculino Feminino Total Grupo (nº de crianças) CI 8 3 11 CF 5 8 13 Geral 13 11 24 A média de idade das crianças institucionalizadas é de 6,3 anos (DP=0,83) e das crianças não institucionalizadas é de 6,5 anos (DP=0,32). A tabela seguinte indica a freqüência das classes dos indicadores emocionais de Koppitz nos desenhos das crianças institucionalizadas (n=11) e crianças que vivem com suas famílias (n=13). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 115 Tabela 2 – Freqüência das classes dos indicadores emocionais Indicadores emocionais Grupo CI N % 16 48,5 13 39,4 4 12,1 33 100,0 Qualidade Psicopatologia Omissão Total CF n 11 27 3 41 % 26,8 65,9 7,3 100,0 A freqüência das crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que vivem com suas famílias (n=13), em função de total de indicadores emocionais de Koppitz, detectados em seus desenhos da figura humana é demonstrada na tabela 3. Tabela 3 – Total de indicadores emocionais Total de indicadores emocionais Grupo (nº de crianças) CI 0 0 6 1 2 2 0 Zero Um Dois Três Quatro Cinco Seis CF 2 0 3 1 4 2 1 A tabela 4 aponta o número médio de indicadores emocionais detectados nos desenhos de figura humana das crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que vivem com suas famílias (n=13). Tabela 4 – Número médio de indicadores emocionais por grupo Índice Média dos Indicadores Emocionais (por grupo) CI Esc. Ind. Emocionais Qualidade Psicopatologia Omissão M 3,00 1,45 1,18 0,36 p CF DP 1,26 0,93 0,98 0,67 M 3,15 0,85 2,08 0,23 DP 1,86 0,99 1,26 0,44 0,819 0,137 0,068 0,567 Nota: p = nível mínimo de significância do teste t Através do teste t, ao nível de significância de 5%, verificou-se não haver diferença significativa do número médio de sinais da escala de indicadores emocionais e de suas subescalas em relação à variável Grupo. Assim, para a escala de indicadores emocionais e para a dimensão Psicopatologia, o grupo institucionalizado apresentou um número médio de sinais menor do que o grupo não institucionalizado. Para as dimensões Qualidade e Omissão, o grupo institucionalizado apresentou um número médio de 116 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 sinais maior do que o grupo não institucionalizado, porém, estas diferenças não foram significativas através do teste t ao nível de significância de 5%. Os indicadores emocionais discutidos a seguir estão definidos como aqueles que refletem ansiedades e preocupações não esperados para o desenvolvimento típico. Segundo Koppitz (1968), para que estes sinais realmente se configurem como indicadores de problema emocional é preciso que obedeçam a alguns critérios, dentre os quais está a exigência de que o item não seja usual, isto é, deve ocorrer com freqüência reduzida (inferior a 16%) em crianças com desenvolvimento típico. Não apareceram os itens emocionais 4 (sombreamento das mãos e/ou pescoço), 8 (figura grande), 20 (monstro ou figura grotesca), 21 (desenho de três ou mais figuras), 24 (omissão dos olhos), 26 (omissão do corpo), 27 (omissão dos braços) e 30 (omissão do pescoço) como sinalizadores de dificuldades afetivas nas crianças dos dois grupos. A tabela aponta a distribuição de freqüência simples dos sinais de transtorno emocional (indicadores emocionais de Koppitz) nos desenhos da figura humana das crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que vivem com suas famílias (n=13). Tabela 5 – Detalhamento dos indicadores emocionais Freqüência dos Indicadores Emocionais (por grupo) Indicadores Emocionais Qualidade: 1 a 9 Psicopatologia: 10 a 22 Omissão: 23 a 30 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 Base Integração pobre de partes da figura Sombreamento do Rosto Sombreamento do corpo e/ ou membros Sombreamento mãos e/ou pescoço Assimetria grosseira de Membros Figura inclinada Figura pequena Figura grande Transparências Cabeça pequena/grande Olhos vesgos Dentes Braços curtos Braços compridos Braços agarrados ao corpo Mãos grandes Mãos omitidas Pernas juntas Genitais Monstro ou figura grotesca Desenho de três ou mais figuras Nuvens Omissão do nariz Omissão olhos Omissão da boca Omissão do corpo Omissão dos braços Omissão das pernas Omissão dos pés Omissão do pescoço CI CF 2 2 1 0 5 0 2 0 4 4 0 0 1 1 1 0 2 2 2 0 0 0 1 0 2 0 0 0 1 0 11 0 3 1 0 0 2 2 0 3 0 2 3 4 3 1 6 1 1 1 0 0 5 2 0 0 0 0 1 0 0 13 Geral p 2 5 2 0 5 2 4 0 7 4 2 3 5 4 2 6 3 3 3 0 0 5 3 0 2 0 0 1 1 0 24 0,199 0,585 0,717 0,011 0,283 0,637 0,395 0,031 0,283 0,141 0,215 0,363 0,717 0,013 0,435 0,435 0,357 0,030 0,565 0,199 0,542 0,458 - Nota: p = nível mínimo de significância do teste Exato de Fisher Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 117 Através do Teste Exato de Fisher, ao nível de significância de 5%, verificou-se, em geral, não haver associação significativa entre a presença dos indicadores e a variável grupo com exceção dos indicadores “Assimetria grosseira de membros” e “Cabeça pequena/grande”, em que a presença destes indicadores está associada ao grupo institucionalizado e da presença dos indicadores “Mãos grandes” e “Nuvens” estar associada ao grupo não institucionalizado. O indicador emocional 1 (integração das partes de figura), apareceu em 02 crianças institucionalizadas, sugerindo sérias perturbações emocionais, personalidade pobremente integrada, dificuldade de coordenação ou impulsividade. Porém, de modo geral, pode-se dizer que não houve diferenças significativas entre os grupos deste estudo quanto a sua imagem corporal. Em ambos os grupos, apareceram dois indicadores emocionais que sugerem dificuldades socioafetivas. O primeiro, assimetria grosseira de membros (indicador emocional 5), revela dificuldades de coordenação e impulsividade, indícios de disfunção neurológica, falta de coordenação, controle muscular fino, sentimentos de desequilíbrio com lateralidade e inadequação física encontrado em 5 crianças do grupo institucionalizado. Um segundo indicador emocional que apareceu foi o de número 10 (cabeça pequena/grande), o qual tem sido associado ao esforço intelectual/imaturidade, agressão, retardo mental e preocupação com o rendimento escolar, encontrado em 4 crianças do grupo institucionalizado. Já o indicador emocional 9 (transparências) pode sugerir, em função de sua freqüência, uma imaturidade, agressividade, impulsividade e conduta atuadora. Detectase através desse indicador uma angústia, conflito, medo muito intenso com respeito a aspectos sexuais do nascimento ou mutilação corporal, estando presente no grupo institucionalizado (04 crianças) e não institucionalizado (03 crianças). O indicador emocional 12 (dentes) sugere agressividade manifesta e foi encontrado somente no grupo de crianças que vivem com os pais (03 crianças). Por outro lado, o indicador 13 (braços curtos) apareceu fortemente no grupo das crianças não institucionalizadas (04 crianças), o que poderia indicar dificuldades de relacionamento com o meio ambiente e com outras pessoas, tendências ao retraimento, timidez, falta de agressividade e inibição dos impulsos. O indicador emocional 16 (mãos grandes) foi detectado somente em crianças não institucionalizadas e está associado à conduta agressiva e atuadora. Outro indicador emocional que foi encontrado no grupo de crianças não institucionalizadas é o 22 (nuvens, chuva ou neve), que revela dificuldade de adaptação e ansiedade por doenças psicossomáticas. Há um sentimento de ameaça pelo mundo adulto, especialmente pelas figuras parentais. Conduta tímida e retraída, ausência de agressividade manifesta, pouco interesse social, pouca capacidade de progredir e avançar com segurança, tendência ao retraimento por timidez, às vezes, culpa por masturbação são sentimentos que podem ser encontrados no item 23 (omissão do nariz) e foi encontrado em 2 crianças do grupo de não institucionalizados, número superior ao grupo de institucionalizados. Este estudo evidencia, portanto, que, mesmo em crianças possuidoras de uma família, com pai e mãe vivendo juntos e com escolaridade média de três anos, 118 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 podem existir dificuldades em suas relações socioafetivas e na construção de sua imagem corporal. A influência dos diferentes contextos sobre o processo de desenvolvimento infantil merece destaque e importância. Piaget (1993) refere que as influências do meio e da hereditariedade são recíprocas. Vicente (1998) reforça qu a criança, nos primeiros anos de vida, depende de ligações afetivas para crescer, carece de cuidados com o corpo, com a alimentação e com a aprendizagem, mas nada disso é suficiente para um desenvolvimento saudável se ela não encontrar um ambiente de acolhimento e afeto. A realidade atual descrita por Silveira (2002) sobre as famílias originais, na qual muitos pais privam-se de convivência e passam distantes dos filhos buscando o sustento, pode estar evidenciando uma inversão de papéis. Dessa maneira, muitas vezes, os cuidados da casa e dos filhos, antes feitos pela mãe, hoje são delegados a outros cuidadores, fragilizando as relações entre os membros da família. Essa poderia ser uma explicação possível para justificar a presença de tantos indicadores emocionais nas crianças que vivem com suas famílias. A família é o centro natural da afeição, conforto, cuidado e segurança de que a criança necessita para que possa crescer e se desenvolver integralmente. Pode-se pensar que, mais do que a presença dos pais, é importante o tipo de atenção e cuidados oferecidos. Este é outro fator que poderia explicar a ausência de diferenças significativas no presente estudo, onde parece que a qualidade dos serviços da instituição contribuiram no sentido de diminuir os possíveis efeitos negativos do ambiente inicial dessas crianças. Estudo II As idéias sobre si mesmas através das falas de crianças Apresentação e discussão dos resultados – entrevistas sobre idéias a respeito de si mesmas. Utilizou-se a análise de conteúdo (Bardin, 1977) a fim de examinar as respostas obtidas das crianças. Foram geradas três categorias, apresentadas a seguir. As crianças institucionalizadas, que não vivem com os pais, estão identificadas com a sigla “CI”, e as crianças que vivem com sua família estão identificadas como “CF”. Após a caracterização de cada tema, as respostas das crianças institucionalizadas e não institucionalizadas são comparadas, examinando-se eventuais semelhanças e particularidades. 1- Percepção de si mesmo – características emocionais e físicas Esta categoria refere-se as características emocionais e físicas relatadas pelos participantes da pesquisa, que mostraram através de seus relatos como se percebiam. Apareceram relatos desde uma percepção positiva de si e de acordo com seu próprio corpo até uma percepção ambivalente sobre si, com dúvidas sobre o quanto o seu jeito e o seu corpo agradam ao outro. Abaixo seguem alguns exemplos das falas das crianças sobre esta temática. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 119 “Eu sou bonito, sou magro.”(CI4) “Eu se vejo bem. Às vezes eu me olho no espelho, tem gente que me acha feia, mas eu não e daí eu chamo a tia e pergunto: eu sou bonita? Às vezes ela me fala que sim.” (CI12) “Bem legal, bonita, amiga e gostosa.” (CF21) “Essa daí é difícil... Eu me acho bastante magro, meus pais também, alto e isso e só.” (CF15) Os relatos apontam que várias crianças dos dois grupos pesquisados se percebem de forma positiva e saudável, descrevendo-se como pessoas legais, charmosas e bonitas, evidenciando assim uma satisfação consigo mesmas. Ambos grupos definiramse apontando mais características físicas concretas do que características emocionais, o que já era esperado para esta faixa etária. No entanto, algumas crianças institucionalizadas referiram um sentimento de insegurança sobre as suas qualidades, não sabendo se os outros gostam de seu corpo ou de seu jeito (CI4), ou necessitando perguntar para a professora se é realmente bonita (CI12), ou ainda utilizando formas comparativas (CF15), em que o participante usa o elemento de comparação para a construção de sua imagem corporal e idéia sobre si mesmo. É possível que a ausência parental no dia-a-dia da criança seja um fator que influencie na sua valorização, insegurança e potencialidade. O fato das crianças descreverem suas impressões sobre si mesmas baseadas nas características de seu próprio corpo corroboram a literatura, no que diz respeito à importância do corpo no desenvolvimento da imagem corporal e idéias de si (Vankolck, 1984; Moretti, 1992). Somente algumas crianças deste estudo apresentaram idéias negativas sobre si, podendo retirar-se do ambiente, o que se poderia esperar, uma vez que tiveram experiências familiares negativas anteriormente. Loos, Ferreira e Vasconcellos (2002) referem que crianças institucionalizadas, ou vivendo em ambientes ameaçadores, apresentam características defensivas, tais como desconfiança básica, agressividade, baixa auto-estima e sentimento de culpa. Costa (1993) refere que crianças institucionalizadas são tristes, deprimidas e angustiadas, que estão sempre à procura de afeto e ternura. Estes aspectos referidos pelos autores acima citados também foram identificados de maneira pouco intensa nos participantes desse estudo. A busca de afeto e ternura apareceu na fala de algumas crianças institucionalizadas quando essas pareciam necessitar uma confirmação das suas qualidades, buscando possivelmente saber, assim, se são valorizadas e amadas. No entanto, essa característica não está ausente nas crianças não institucionalizadas. Moretti (1992) realiza uma revisão bibliográfica na qual conclui que a imagem corporal está calcada nas experiências e atitudes positivas dos pais ou dos cuidadores, os quais devem proporcionar um sentimento de segurança e confiança fundamentais para passar pelas outras fases e aprender a enfrentar os desafios do ambiente. Parece que a semelhança entre os grupos de crianças não institucionalizadas e as crianças institucionalizadas pode ser devido ao cuidado adequado que os cuidadores lhes prestam. É possível que, apesar de algumas crianças institucionalizadas mostrarem insegurança quanto a suas qualidades, elas tenham apresentado uma percepção positiva de si mesmas por terem essa assistência adequada das instituições. 120 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Os resultados apresentados sugerem que a instituição, através do seu trabalho, parece estar conseguindo minimizar os efeitos negativos da ausência dos pais, auxiliando de forma positiva no desenvolvimento dessas crianças, oferecendo a possibilidade de desenvolver modelos internos mais satisfatórios de funcionamento. Dentro do contexto observado, uma possível explicação para os resultados obtidos no estudo diz respeito às condições da instituição, pois esta se caracteriza por um padrão elevado de atendimento, diferenciando-se de muitas outras. O novo ambiente proporcionado pela instituição caracteriza-se por amplos espaços, boa alimentação, melhor qualidade das relações sociais, presença de cuidadores, atendimento médico, odontológico e psicológico, entre outros, parecendo agir no sentido de diminuir os possíveis efeitos do ambiente em que viviam anteriormente. Para Vicente (2000), a família é a primeira e mais importante rede de apoio social, a qual pode apoiar a criança através de seus cuidados e compreensão. Porém, Neder e Kaloustian (2000) referem que o atual quadro das famílias enfrentando dificuldades econômicas, pais buscando trabalho num mercado capitalista competitivo, bem como a inserção/exclusão das mulheres neste contexto, produzem efeitos sobre a estrutura familiar e prejudicam a manutenção dos vínculos. Esta realidade pode ser agravada pela pouca disponibilidade, pela qualidade das interações familiares, pela falta de diálogo, autoritarismo e instabilidade vivida pelos pais. Isto também pode explicar as semelhanças encontradas nos relatos das crianças institucionalizadas e das crianças que vivem com as famílias, uma vez que as famílias podem estar deixando a desejar nas relações interpessoais com os filhos. Por outro lado, o principal continente complementar é a escola, onde o vínculo pode ser estabelecido com outras pessoas que se ocupam das necessidades básicas da criança, sendo o espaço escolar uma importante oportunidade de resgate e superação das inúmeras carências do contexto familiar (Vicente, 2000). 2- Percepção de si mesmo – habilidades sociais Esta categoria refere-se às habilidades sociais das crianças que se mostram através de suas brincadeiras, jogos e atividades de grupo de forma geral. As crianças entrevistadas relataram sentimentos positivos em relação a suas habilidades sociais, a seus relacionamentos, suas trocas de experiências, mesmo diante de condição institucional imposta, interagindo e evidenciando satisfações pessoais, ora aparecendo sentimentos ambivalentes. Aparecem relatos de uma integração sadia, feliz, alegre, bem como uma percepção ambivalente sobre si, com manifestações de insegurança e agressividade frente a pequenos conflitos. Abaixo, alguns relatos dos participantes. “Eu brinco com eles... de pega-pega, de não atirei o pau no gato, de viuvinha, canto musiquinhas com eles, brinco com eles de balanço, de pega-pega, de comidinha.” (CI1) “Eu brinco de quem dá em mim eu dô.” (CI4) “Bem,ah! eu não bato muito neles. Quando eles me batem, eu conto prá profe. Eu gosto muito de brincar com eles e só!.” (CF15) Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 121 “Sim, eu sou capaz de virar estrelinha, dar cambalhota. Ah! brincar de olhar para o céu, olhar para o chão.Aã... chutar a bola e mais nada.” (CF20) Os relatos acima exemplificam as habilidades sociais, a forma de brincar e interagir com os colegas presentes na rotina dos participantes deste estudo. Diante da realidade tão diversa vivenciada pelos dois grupos, encontram-se semelhanças nos relatos das crianças (CI1 e CF20), podendo-se pensar em uma interação sadia e satisfatória com o meio. No grupo de crianças institucionalizadas, aparece uma particularidade em especial, apontada através do relato de CI4. Através de sua fala, apresenta manifestações agressivas ao interagir com seu grupo, que pode estar demonstrando dificuldades oriundas da vivência de abandono familiar, uma vez que as crianças podem ter necessitado de brincadeiras mais agressivas para se defenderem das ameaças do mundo de maneira solitária. Segundo Benjamin (1984), ao brincar, as crianças recriam e repensam os acontecimentos que lhes deram origem. Sabendo que estão brincando, seus conhecimentos provêm da imitação de alguém ou de algo conhecido, da experiência vivida na família ou em outros ambientes, relatos de colegas ou cenas assistidas na televisão. É no ato de brincar que a criança estabelece os diferentes vínculos entre as características do papel assumido, suas competências e as relações que possuem com os outros papéis. De modo geral, as crianças institucionalizadas demonstraram uma interação positiva com seus colegas. Neste sentido, o trabalho desenvolvido na instituição parece favorecer um ambiente físico e social, onde as crianças se sentem protegidas e acolhidas e, ao mesmo tempo, sentem-se seguras para arriscar e vencer desafios. 3- Percepção de si mesmo – organização e autonomia Esta categoria refere-se às características de organização e autonomia relatada pelos participantes da pesquisa que mostram, através de suas falas, como se percebem em sua organização e responsabilidade. Abaixo, seguem alguns exemplos das falas das crianças sobre a temática. “... o que as tias mandam fazê eu faço. De noite arrumo prateleira, arrumo o bidê dos meus calçados, arrumo as camas de manhã, varro as casas às vezes.” (CI8) “Eu sei ir no banheiro, eu sei ir pro quarto, eu sei lavar a louça, sei varrer a casa, eu sei limpar as mesas, eu sei arrumar a casa e limpar o pátio, só.” (CI 12) “A eu limpo muito meus dentes ,eu lavo o meu rosto sempre na hora quando acordo de manha, depois vou tomar café. E ... eu sou muito legal.” (CF16) Percebe-se, nestes relatos, a capacidades de organização e cumprimento das tarefas que são solicitadas às crianças de ambos os grupos, não tendo sido encontradas particularidades quanto à forma de organização e autonomia para com as tarefas dessas crianças. No grupo de crianças institucionalizadas, apareceu a possibilidade de organização e de autonomia. Portanto, os dados do presente estudo contradizem a literatura (Wagner, 2002), que aponta a institucionalização como produzindo historicamente crianças sem perspectiva de vida autônoma. Os dados sugerem que uma experiência de 122 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 institucionalização, na qual a criança pode vivenciar relações mais positivas do que aquelas que vinham tendo dentro de seu ambiente familiar desfavorável, pode não trazer prejuízos tão severos ao desenvolvimento. Dessa forma, uma instituição com um atendimento adequado, no qual a criança dispõe de figuras cuidadoras que podem prover pelo menos algumas experiências gratificantes, apesar de distintas e não tão intensas como em um ambiente familiar continente, pode contribuir com o desenvolvimento da criança que antes estava em situação adversa, apesar de estar com sua família. Considerações finais O presente estudo aponta para a importância do trabalho realizado pelas escolas, com o objetivo de auxiliar pais e professores. O trabalho desenvolvido pelos cuidadores na instituição é fundamental para favorecer o desenvolvimento da imagem corporal e de aspectos socioafetivos. As idéias sobre si também podem ser mais positivas, ou seja, as crianças podem se enxergar hábeis, autônomas e com possibilidades de uma adequada interação social quando os cuidadores, ainda que em uma instituição, mostram-se disponíveis. Portanto, o trabalho de uma instituição que esteja atenta aos diversos aspectos do desenvolvimento infantil contribuirá para minimizar efeitos negativos de situações adversas relacionadas à falta parental. Além disso, o estudo contribui para que haja um questionamento sobre a forma como as famílias têm se colocado disponíveis para seus filhos. O presente estudo aponta para a necessidade de intervenções nas escolas que visem aproximar as famílias dos seus filhos, uma vez que as semelhanças entre os grupos apontados por este estudo podem estar indicando não somente o fato de as instituições de acolhida serem adequadas, mas também o fato de as famílias estarem pouco ocupadas com seus filhos. Limitações podem ser apontadas. O pequeno número de entrevistas e de participantes, além do fato de se ter comparado somente duas instituições, impedem que se possam realizar afirmações mais conclusivas. Os instrumentos utilizados podem não ter sido suficientemente sensíveis às dificuldades que se esperava encontrar nas crianças institucionalizadas. Também não foi realizada avaliação do funcionamento familiar das crianças não institucionalizadas. Estudos que envolvam diferentes instituições com menos recursos do que a incluída nessa pesquisa poderiam contribuir para explicar os achados. Referências Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. 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Petrópolis: Vozes. 124 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Weber, L. N. D., & Kossobudzki, L.H.M. (1996). Filhos de Solidão: institucionalização, abandono e adoção. Curitiba: Governo do estado do Paraná. Weber, L. N. D. (1999). A Ficção e a Realidade de Crianças Institucionalizadas: uma proposta de intervenção. Revista Texto & Contexto, 8 (2), 427-430. Recebido em julho de 2006 Aceito em outubro de 2007 Lorena Emilia Zortéa: psicóloga graduada pelo Curso de Psicologia da ULBRA/Gravataí. Carla Meira Kreutz: psicóloga; doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); professora do curso de Psicologia da ULBRA/Gravataí e do Pós-Graduação em Transtornos do Desenvolvimento (UFRGS). Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann: psicóloga; doutora em Psicologia (PUCRS); professora do curso de Psicologia da ULBRA/Gravataí. Endereço para correspondência: [email protected] Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 125 Aletheia 27(1), p.126-138, jan./jun. 2008 Habilidades Sociais Educativas Parentais e problemas de comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares Alessandra Turini Bolsoni-Silva Edna Maria Marturano Resumo: Práticas educativas parentais podem contribuir para a instalação de problemas de comportamento em crianças. O objetivo deste estudo foi comparar Habilidades Sociais Educativas Parentais (HSE-P) entre pais de pré-escolares com problemas de comportamento e pais de pré-escolares com comportamentos socialmente habilidosos. Adicionalmente, compararam-se as HSP-E de pais e mães. Participaram 48 casais, dos quais 24 tinham um(a) filho(a) com comportamentos socialmente habilidosos segundo o professor (Grupo CSA) e 24, um filho com problemas de comportamento (Grupo PC). Pais e mães responderam a um roteiro de entrevista que avalia HSE-P. Verificou-se no Grupo CSA uma tendência a avaliar mais positivamente suas HSP-E: demonstrar carinho, concordar com cônjuge, cumprir promessas. As mães se consideraram mais habilidosas que os pais. As HSP-E que mais diferenciaram os grupos foram aquelas relacionadas a consistência e afeto positivo. Palavras-chave: habilidades sociais, práticas parentais, avaliação de comportamentos sociais. Parental Social Educational Skills and behavior problem: comparing fathers and mothers of preschoolers Abstract: Parental bringing-up practices can give rise to behavior problems in children. The aim of this study was to compare Parental Social Educational Skills (PSES) between two groups of parents: parents of preschoolers with behavior problems and parents of preschoolers with socially adequate behaviors. Mothers and fathers were also compared as to their PSES. Fortyeight couples participated. Twenty-four had a child with behavior problems at school (BP Group), and 24 had a child with good behavior (GB Group). Fathers and mothers answered an interview route assessing PSES. Parents of GB children tended to evaluate their own PSES more positively than parents of BP children: physical affection, agreement with the other parent, dependability. The mothers evaluated themselves as more skilled than the fathers did. The PSES which best discriminated the two groups were those related to consistency and positive affection. Key words: Social skills, parental practices, assessment of social behaviors. Introdução As habilidades dos pais, ao interagirem e educarem seus filhos parecem ser cruciais à promoção de habilidades sociais e sua falta pode contribuir para problemas de comportamento. Analisando a literatura sobre problemas de comportamento podese dizer que: a) problemas de comportamento são tidos prioritariamente como comportamentos externalizantes, que teriam a função de contra-controlar, isto é, são efetivos para reduzir comportamentos aversivos de familiares (Patterson, Reid & 126 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Dishion, 2002); b) são comportamentos multideterminados, à medida que variáveis como história de vida familiar (Patterson & cols., 2002), práticas parentais (Patterson, DeBaryshe & Ramsey, 1989; Patterson & cols. 2002; Webster-Stratton, 1997), condição sócio-ecônomica (Patterson & cols. 2002), eventos extressantes (Patterson & cols. 2002; Webster-Stratton, 1997), conflitos conjugais (Patterson & cols., 2002; Pawlak & Klein, 1997), hereditariedade dos pais e da criança (Gomide, 2001; Patterson & cols., 2002), patologia parental (Bugental & Johnston, 2000; Hoffman & Youngblade, 1998; Patterson & cols., 2002), características da criança (Gomide, 2001; Patterson & cols., 2002) e da escola (Patterson & cols., 2002; Webster-Stratton, 1997), podem influenciar o surgimento e/ou manutenção de tais comportamentos, sendo que a operacionalização destas variáveis constitui desafio para pesquisadores e profissionais da área; c) parece que problemas de comportamento ocorrem com mais freqüência e intensidade quanto mais fatores de risco estiverem combinados e/ou acumulados (Kinard, 1995; Patterson & cols., 2002). Desta forma, percebe-se que o relacionamento entre pais e filhos envolvido nas práticas parentais é uma das variáveis preditivas de problemas de comportamento. Para diversos pesquisadores (Del Prette & Del Prette, 1999; Kaplan, Sadock & Grebb, 1997; Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccinini & Hutz, 2005; Patterson & cols., 1989; Sidman, 1995; Webster-Stratton, 1997), haveria uma ligação entre práticas parentais e problemas de comportamento dos filhos, no sentido de que as famílias estimulariam tais repertórios por meio de disciplina inconsistente, pouca interação positiva, pouco monitoramento e supervisão insuficiente das atividades da criança. Os pais tenderiam a ser não contingentes no uso de reforçamento positivo para comportamentos prósociais (ignorando-os ou respondendo de forma inapropriada), bem como no uso de punições efetivas para comportamentos problema. Diante destas considerações, é possível supor que comportamentos coercitivos sejam diretamente reforçados pelos membros da família, levando a criança a utilizá-los, possivelmente, para sobreviver neste sistema social aversivo. Além disso, os filhos expostos à violência por longos períodos, freqüentemente comportam-se de forma agressiva (Sidman, 1995, Skinner, 1953/1993); quando são criados em condições negligentes tornam-se pouco tolerantes à frustração, relativamente imunes ao remorso e com pouca motivação para seguirem normas sociais (Pacheco, Teixeira & Gomes, 1999). Patterson e cols. (2002) afirmam encontrar que práticas parentais positivas podem evitar o surgimento e/ou a manutenção de problemas de comportamento e, por outro lado, as negativas podem aumentar a probabilidade de sua ocorrência. Gomide (2006) as define: As chamadas práticas educativas positivas são a monitoria positiva, que envolve o uso adequado da atenção e a distribuição de privilégios, o adequado estabelecimento de regras, a distribuição contínua e segura do afeto, o acompanhamento e a supervisão das atividades escolares e de lazer; e o comportamento moral [...]. As práticas educativas negativas envolvem negligência, ausência de atenção e de afeto; o abuso físico e psicológico, caracterizado pela disciplina através de práticas corporais negativas, ameaça Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 127 e chantagem de abandono e de humilhação do filho; [...]; e a monitoria negativa, caracterizada pelo excesso de instruções independente de seu cumprimento e, conseqüentemente, pela geração de um ambiente de convivência hostil” (p.8) Interações sociais positivas estabelecidas entre pais e filhos, são em primeiro lugar relacionamentos interpessoais que podem ser qualificados como positivos ou negativos. O Campo teórico-prático do Treinamento em Habilidades Sociais (THS) pode auxiliar no entendimento destas interações no que diz respeito a identificar quais habilidades sociais podem estar envolvidas nas práticas parentais. Del Prette e Del Prette (2001) descrevem que as Habilidades Sociais Educativas (HSE) são aquelas intencionalmente voltadas para a promoção do desenvolvimento e da aprendizagem do outro, em situação formal ou informal. Silva (2000) descreve o termo Habilidades Sociais Educativas Parentais (HSE-P) como sendo o conjunto de habilidades sociais dos pais, aplicáveis à prática parental e exemplifica que a Habilidade Social Educativa de estabelecer limites e/ou regras pode envolver outras habilidades sociais, tais como dizer não e solicitar mudança de comportamento, as quais poderiam ser consideradas práticas parentais positivas. Tais relações já foram investigadas por outros pesquisadores: Silva (2000); Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) e Bolsoni-Silva, Del Prette e Oishi (2003). De forma geral, estas pesquisas confirmaram a hipótese de que pais socialmente mais competentes conseguiam resolver problemas encontrados na prática educativa dos filhos, de forma mais efetiva e positiva. Em relação às habilidades sociais educativas parentais foi possível verificar que os filhos com habilidades sociais viviam em famílias melhor estruturadas (família nuclear e trabalho) e com maior consistência em sua educação, havendo maior entendimento do casal e maior participação do progenitor masculino na divisão de tarefas e educação do filho. No entanto, tais resultados foram obtidos a partir de amostras pequenas, o que limita conclusões e generalizações. Silva (2000) descobriu que, segundo relatos de homens e de mulheres, as mães foram consideradas mais participativas na educação dos filhos que os pais, e conforme os achados de Costa, Teixeira e Gomes (2000) elas parecem emitir mais comportamentos que funcionalmente parecem prevenir o surgimento de problemas de comportamento, isto é, exigência e responsividade. Adicionalmente, Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) encontraram que mães conversam mais com os filhos, bem como expressam mais sentimentos e opiniões, além de estabelecer limites e elogiar comportamentos adequados. Esses achados são concordantes com estudos prévios nos quais se verificou que as mães conversam mais e qualitativamente melhor que os pais (Bellinger & Gleason, 1982; Malone & Guy, 1982; Reese & Eivush, 1993). Em estudo transcultural (Estados Unidos, Coréia, Rússia, Estônia e Kênia) Tudge e cols. (2000) afirmam que: a) pais estavam ativamente envolvidos com seus filhos, mas menos freqüentemente que as mães, isto porque eles ficavam pouco tempo com as crianças; b) os pais brincavam mais com seus filhos que as mães; c) as mães ficavam mais tempo com seus filhos; d) na presença das mães, os filhos envolviam-se em outras atividades, tais como lição, conversação e trabalho. Novamente, os resultados apontam para a maior participação materna na educação dos filhos, especialmente em 128 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 atividades que envolvem monitoramento, com tarefas escolares, por exemplo, as quais são consideradas por Gomide (2006) como práticas positivas. Com base no exposto, a presente investigação retomou o tema das relações entre HSE-P e problemas de comportamento em pré-escolares, focalizando duas questões que têm norteado a pesquisa nesse campo: a) as HSE-P de genitores que têm filhos com problemas de comportamento são diferentes das HSE-P de genitores cujos filhos mostram comportamentos socialmente habilidosos? b) as habilidades sociais educativas (HSE-P) de pais são semelhantes ou diferentes das HSE-P de mães? Com vistas a um maior entendimento das relações estabelecidas entre pais e filhos, o objetivo principal da investigação foi comparar as HSE-P de pais (mãe/ pai) de filhos com indicativos escolares de problemas de comportamento x pais (mãe/pai) de filhos com indicativos escolares de comportamentos socialmente habilidosos. Adicionalmente, compararam-se as HSE-P de pais e mães dentro de cada grupo. Método Participantes Participaram do estudo 96 pais biológicos de crianças com idade entre cinco e sete anos, matriculadas em 13 Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIS), distribuídas geograficamente por uma cidade do interior de São Paulo, organizados em dois grupos: (a) 48 pais (24 mães e 24 pais) de crianças com indicação escolar de problemas de comportamento (PC); (b) 48 pais (24 mães e 24 pais) de crianças com indicação escolar de comportamentos socialmente adequados (CSA). No grupo PC havia oito meninas e 16 meninos; a idade média das crianças era de cinco anos e nove meses. No grupo CSA, havia 17 meninas e sete meninos, com idade média de cinco anos e 11 meses. A distribuição por gênero apresentou diferença estatisticamente significativa entre os grupos (÷2 = 6,76; p < 0,01). Os grupos eram equivalentes quanto à escolaridade dos pais (PC, média 9,35anos; CSA, média 9,42 anos), à renda familiar (PC, média R$ 870,00; CSA, média R$ 1.292,00), ao status ocupacional e à jornada de trabalho. Instrumentos Para composição dos grupos, com base nas indicações das professoras, foram utilizados dois instrumentos: O Questionário de Respostas Socialmente Habilidosas, versão para professores (QRSH-P), baseado em Silva (2000) e a Escala Comportamental Infantil para professores (ECI-B, Rutter, 1967; Santos, 2002). O QRSH-P é composto por uma lista de 24 itens, com respostas socialmente habilidosas apresentados por crianças, no qual as professoras devem responder se um item se aplica (escore 2), se aplica em parte (escore 1) ou não se aplica (escore 0). Os escores são somados, permitindo o escore total da criança avaliada. O instrumento apresentou elevada consistência interna (alfa = 0,92) na amostra deste estudo. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 129 A ECI-B é composta por 26 itens que apresentam descrições de respostas indicativas de problema. Cada item tem três alternativas de resposta: aplica-se (escore 2), aplica-se em parte (escore 1) ou não se aplica (escore 0) à criança. A escala tem ponto de corte para o escore total (igual ou superior a nove), acima do qual se considera que a criança tem problemas de comportamento. O índice de consistência interna obtido para a ECI-B foi igual a 0,83 (coeficiente alfa de Cronbach). Para investigar as Habilidades Sociais Educativas Parentais (HSE-P) foi utilizado o Roteiro de Entrevista de Habilidades Sociais Educativas Parentais (RE-HSE-P), apresentado oralmente aos pais. Esse instrumento foi construído para a presente investigação e focaliza as seguintes HSE-P: manter conversação; fazer perguntas; perguntar sobre sexualidade; expressar sentimentos positivos e negativos; demonstrar carinho; brincar com o filho; expressar opiniões; estabelecer limites; cumprir promessas; concordar com cônjuge; auto-avaliar-se quanto a “erros” na forma de educar; discriminar e conseqüenciar comportamentos adequados dos filhos. Cada tópico é introduzido com uma questão aberta. Para cada opção de resposta à questão aberta são solicitadas informações adicionais, como a freqüência com que aparece o comportamento mencionado (freqüentemente; às vezes; nunca/quase nunca) e reações dos filhos. Neste trabalho são apresentadas as análises referentes à freqüência com que os participantes relataram emitir as HSE-P investigadas. Na cotação das respostas ao RE-HSE-P, atribuiu-se o escore 0 (zero) para a resposta “nunca/quase nunca”, o escore 1 (um), para a resposta “algumas vezes” e o escore 2 (dois) para a resposta “freqüentemente”. Para verificar a fidedignidade do RE-HSE-P foram coletados dados com 12 pais e 12 mães, cujas medidas foram obtidas com um mês de distanciamento. A fidedignidade teste-reteste foi avaliada por meio do coeficiente de correlação de Spearman, obtendose as seguintes correlações significativas: a) RE-HSE-P mães – correlação igual a 0,76 (p < 0,05); b) RE-HSE-P pais – correlação igual a 0,89 (p < 0,01). Embora com índices de fidedignidade satisfatórios nas análises feitas sobre os dados do presente estudo, os instrumentos não têm, evidências de validade estabelecidas para o Brasil. Procedimentos Seleção dos participantes Para compor a amostra foram visitadas 13 EMEIS, após a permissão concedida pela Secretaria Municipal de Educação Infantil. Em seguida, foi solicitada à direção das EMEIS permissão para que suas professoras participassem da pesquisa. A cada professora, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, solicitou-se que indicasse, entre seus alunos, os três que apresentavam mais problemas de comportamento e os três com maiores indicativos de comportamentos socialmente habilidosos. Em seguida, a professora respondia, para cada criança indicada, a ECI-B e o QRSH-P. Foram critérios de inclusão na pesquisa: (a) a criança morar com ambos os pais biológicos, o que foi verificado por meio de consultas à escola ou aos próprios pais; (b) as crianças PC, apenas e necessariamente, atingirem a pontuação da ECI-B para problemas de comportamento; ( b) incluir o mesmo número de crianças PC e CSA para 130 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 cada professor, o que implicava que se uma criança indicada não preenchesse os critérios, excluía automaticamente o seu par correspondente. Coleta de dados Os passos de coleta de dados junto aos pais / mães foram: a) contato, por telefone ou pessoalmente para verificar o interesse em participar da pesquisa e adequação quanto aos critérios para entrar na amostra e para agendar a aplicação do instrumento, nas residências dos participantes; b) visitas às residências, onde foram explicitados novamente os objetivos do trabalho, solicitando-se o consentimento e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; c) aplicação do RE-HSE-P. O instrumento era aplicado pela primeira autora ou por alunos de iniciação científica previamente treinados. As perguntas eram formuladas oralmente e as respostas anotadas pelo entrevistador no protocolo do REHSE-P. As entrevistas tiveram duração média de 46 minutos para os pais PC, de 47 minutos para as mães PC, de 47 minutos para os pais CSA e de 50 minutos para as mães CSA. Resultados Esta seção apresenta os resultados de cada uma das habilidades sociais educativas parentais avaliadas na comparação entre os grupos, bem como, dentro de cada grupo, entre mães e pais. Os dados foram tratados estatisticamente (SPSS, versão 12.0) a fim de verificar diferenças entre os Grupos PC e CSA (Teste t ), entre os relatos de pais e mães em cada grupo (Teste de Wilcoxon) e entre pais / mães dos dois grupos (Teste U de MannWhitney). A Tabela 1 mostra resultados das comparações entre os grupos PC e CSA. Tabela 1 – Habilidades sociais educativas parentais: Comparações entre os Grupos PC e CSA. Habilidades sociais educativas parentais PC CSA média dp média dp t Manter conversação 1,71 0,50 1,85 0,36 1,64 Fazer perguntar 1,52 0,62 1,56 0,58 0,34 Ouvir perguntas sobre sexualidade 0,56 0,71 0,65 0,67 0,59 Expressar sentimentos positivos 1,58 0,68 1,58 0,71 0 Expressar sentimentos negativos 0,71 0,77 0,60 0,68 0,70 Demonstrar carinho 1,77 0,42 1,98 0,14 3,22** Brincar com o filho 1,48 0,54 1,48 0,50 0 Expressar opiniões 1,31 0,72 1,42 0,77 0,69 Estabelecer limites 1,75 0,43 1,79 0,46 0,45 Cumprir promessas 1,68 0,56 1,94 0,25 2,88** 1,84 Dificuldade em cumprir promessas 0,79 0,72 0,53 0,62 Concordar com cônjuge 1,33 0,66 1,69 0,55 2,84** Auto-avaliar-se quanto a “erros” na forma de educar 0,77 0,51 0,88 0,49 1,02 Discriminar comportamentos adequados dos filhos 1,56 0,50 1,81 0,39 2,71** Total 18,60 3,02 19,71 2,47 1,96* Nota: n = 48 em cada grupo. Valores expressos em médias. * p = 0,053 **p < 0,01 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 131 Diferenças estatísticas foram encontradas em quatro das quatorze habilidades investigadas: “demonstrar carinho”, “cumprir promessas”, “concordar com cônjuge” e “discriminar comportamentos adequados”. Em todas as comparações com diferença significativa, o Grupo CSA apresentou médias maiores. Também no escore total se observou a mesma tendência (p = 0,053). Nota-se que as diferenças se referem a habilidades que envolvem consistência (“cumprir promessas”, “concordar com cônjuge”) e afetividade (“demonstrar carinho”, “discriminar comportamentos adequados”). Destaca-se que os demais itens, sem diferença estatística, contribuíram para obter a diferença na comparação dos escores totais. Os resultados da comparação entre pais e mães dentro de cada grupo encontram-se na Tabela 2. Tabela 2 – Habilidades sociais educativas parentais: Comparações entre Mães e Pais PC e entre Mães e Pais CSA. Habilidades sociais educativas parentais CSA PC mães pais p Mães pais p Manter conversação 1,79 1,62 - 1,96 1,75 Fazer perguntar 1,67 1,38 - 1,71 1,42 0,025 - Ouvir perguntas sobre sexualidade 0,75 0,38 0,048 0,83 0,46 0,048 Expressar sentimentos positivos 1,75 1,42 0,046 1,75 1,42 - Expressar sentimentos negativos 0,88 0,54 - 0,83 0,38 0,022 Demonstrar carinho 1,87 1,67 - 2,00 1,96 - Brincar com o filho 1,38 1,58 - 1,42 1,54 - Expressar opiniões 1,54 1,08 0,016 1,54 1,29 - Estabelecer limites 1,83 1,67 - 1,67 1,92 - Cumprir promessas 1,75 1,61 - 1,96 1,91 - Dificuldade em cumprir promessas 0,83 0,74 - 0,58 0,48 - Concordar com cônjuge 1,17 1,50 - 1,62 1,75 - - 0,96 0,79 - - 1,79 1,83 - 0,002 20,63 18,79 0,011 Auto-avaliar-se quanto a “erros” na forma de educar 0,83 0,71 Discriminar comportamentos adequados dos filhos 1,71 1,42 Total 20,00 17,21 Nota: N = 24 em cada grupo. Valores expressos em médias. Teste de Wilcoxon. Pela Tabela 2 observa-se que para a maioria das habilidades não há diferenças entre os relatos de pais e de mães do Grupo PC, entretanto, o escore total de HSE-P e as categorias “ouvir perguntas sobre sexualidade”, “expressar sentimentos positivos” e “expressar opiniões” apresentaram diferenças significativas nas comparações entre pais e mães. As médias sinalizam que as mães relatam emitir um número maior de habilidades sociais que os pais, uma tendência confirmada pela diferença significativa no escore total de HSE-P. Nas comparações entre mães e pais do Grupo CSA, ocorreram diferenças nas habilidades “manter conversação”, “ouvir perguntas sobre sexualidade”, “expressar sentimentos negativos” e no escore total. Em todas as comparações, o relato das mães indica maior freqüência de HSE-P. 132 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 A partir dos dados da Tabela 2, foram feitas comparações entre mães PC e mães CSA, bem como entre pais PC e pais CSA (Teste U de Mann-Whitney). As comparações entre mães PC e CSA indicaram diferenças nas categorias “demonstrar carinho” e “concordar com cônjuge” nas quais as mães CSA obtiveram médias maiores. Entre os pais, foram encontradas diferenças em três categorias, todas com médias maiores no Grupo CSA: “estabelecer limites”, “cumprir promessas” e “identificar comportamentos adequados”. Discussão As análises globais apontam diferenças entre os grupos. O Grupo CSA e as mães alcançam escores mais elevados, concordando com outros estudos (Bolsoni-Silva & Del Prette, 2002, Bolsoni-Silva & cols., 2003). Quanto às categorias investigadas, as comparações identificaram ser as mães quem mais relataram habilidades que envolviam comunicação e expressividade, o que é respaldado pela literatura da área (Reese & Eivush, 1993; Silva, 2000). Já as comparações entre os grupos PC e CSA sinalizaram diferenças para quatro dentre as 14 HSE-P investigadas; trata-se de habilidades de consistência (“cumprir promessas”, “concordar com cônjuge”) e afetividade (“demonstrar carinho”, “discriminar comportamentos adequados”), o que também concorda com estudiosos do tema problemas de comportamento, que apontam que a falta de consistência, de punição não contingente e de reforçamento para comportamentos desejados são preditores de problemas (Bugental & Johnston, 2000; Pacheco & cols., 2005; Webster-Stratton, 1997). Com base nesses resultados, pode-se hipotetizar que as mães, especialmente as CSA, utilizam-se de habilidades de comunicação tanto para expressar afeto como para estabelecer limites, oferecendo, assim, mais modelos e modelagem para habilidades sociais e, talvez, sendo mais efetivas na forma de solicitar mudança de comportamento (Bolsoni-Silva & Marturano, 2002). Um aspecto importante dos resultados refere-se às habilidades de “demonstrar carinhos” e “identificar comportamentos positivos”, mais freqüentes para o Grupo CSA; tais respostas podem colaborar, pelo menos em parte, para o atendimento das necessidades da criança, o que pode ser relacionado a um estilo parental denominado de autoritativo por Maccoby e Martin (1983, citado por Pacheco & cols., 1999). Quanto à sexualidade, as crianças procuravam mais freqüentemente pelas mães; o fato de as crianças procurarem mais pelas mães para tratarem de assuntos relativos à sexualidade é um indicativo de aproximação; pode-se supor que as mães se mostram responsivas às necessidades dos filhos. Esta habilidade não discriminou os grupos PC e CSA, um resultado discordante em relação aos de Bolsoni-Silva e Del Prette (2002); estas autoras encontraram que os participantes CSA tinham menos dificuldade em conversar sobre sexualidade quando comparados aos PC. Quanto à HSE-P “expressar opiniões” chama atenção que pais e mães relataram comportarem-se de forma diferente; as mães PC expressariam mais opiniões que os pais. Tais informações sugerem maior participação das mães na prática educativa dos filhos, estabelecendo limites, ensinando regras sociais sobre o certo e o errado, o que Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 133 concorda com a literatura da área (Bolsoni-Silva & Del Prette 2002; Costa & cols., 2000). Entretanto, ainda que Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) tenham encontrado que a expressão de opiniões era mais freqüente em grupos de crianças socialmente habilidosas, o mesmo não pode ser afirmado neste trabalho, em que os grupos PC e CSA não diferiram quanto a esta HSE-P. Ao analisar o “expressar carinhos” observam-se semelhanças entre os padrões materno e paterno, sinalizando consistência. No entanto, os participantes CSA parecem demonstrar carinhos com maior freqüência. Com base nestes resultados é possível hipotetizar que o Grupo CSA deva ser mais afetivo, mais carinhoso com seus filhos. Esta HSE-P é essencial para a promoção de comportamentos socialmente habilidosos nas crianças, pois a demonstração de afeto ajuda a criança a se sentir aceita, amada, contribuindo para maior auto-estima. Os pais, ao serem carinhosos com seus filhos, estão contribuindo para a melhoria do relacionamento e fornecendo modelos de interação social satisfatória. Assim, é possível que os filhos sejam menos resistentes a cooperar com seus pais, além de mais afetivos. Problemas de comportamento podem ser instalados e mantidos por reforço social; portanto, se os pais e as mães são capazes de oferecer esta atenção para outros comportamentos, é possível que se reduza a probabilidade do surgimento de problemas de comportamento. A habilidade de “concordar com cônjuge” também foi mais freqüente entre os participantes CSA; ao concordarem mais com seus cônjuges, fazem com que fique claro para a criança quais comportamentos são permitidos por ambos os pais, evitando o surgimento de comportamentos de birra, por exemplo. A concordância conjugal e a demonstração de carinho parecem ser HSE-P preventivas ao surgimento de problemas de comportamento. Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) encontraram os mesmos resultados quanto à concordância conjugal. Chama atenção que os pais CSA, quando comparados aos PC, discriminam melhor os comportamentos desejados dos filhos (Bugental & Johnston, 2000; Pacheco & cols., 2005; Webster-Stratton, 1997). Os resultados reiteram a hipótese de que observar e também conseqüenciar respostas socialmente habilidosas pode evitar o surgimento de problemas de comportamento. Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) e Bolsoni-Silva e cols. (2003) encontraram que mães CSA eram capazes de identificar e conseqüenciar mais freqüentemente respostas socialmente habilidosas dos filhos. No presente estudo, foram os pais CSA que demonstraram maior habilidade. As comparações entre PC e CSA, considerando pais e mães separadamente, sugerem algumas reflexões. As médias indicam que os pais CSA são mais envolvidos que os PC na educação dos filhos, estabelecendo mais limites e se empenhando mais em cumprir promessas e reforçar comportamentos positivos, o que pode favorecer maior consistência entre as práticas parentais. Esses resultados sugerem maior apoio à esposa nos cuidados com a criança, tarefa que, tradicionalmente e em diferentes culturas, tem sido atribuída às mães (Paquette, 2004). Como as mães CSA, mais que as PC, concordam com o cônjuge na forma de educar os filhos, pode-se supor que esse apoio é efetivo. A partir dos resultados deste estudo, percebe-se que para resolver problemas de comportamento de filhos, em geral birras e agressividades, não bastaria apenas treinar 134 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 manejo de comportamentos, o que geralmente é realizado (Brestan, Jacobs, Rayfield, & Eyberg, 1999; Jouriles, McDonald, Spiller, Norwood, Swank, Stephens, N., Ware & Buzy, 2001; Ruma, Burke, & Thompson, 1996; Sanders, Markie-Dadds, Tully, & Bor, 2000). Um programa para pais de crianças com problemas de comportamento deveria também incluir o treino de habilidades sociais educativas que parecem preventivas de problemas, possivelmente porque com tais habilidades os pais consigam resolver problemas e dar atenção aos filhos, os quais, por sua vez, também poderiam observar modelos e ter seus comportamentos modelados em diversas habilidades sociais (comunicação, expressividade), sem precisarem exibir comportamentos problemáticos para obter reforçadores (Goldiamond, 1974/2002). Conclusão De maneira geral foi possível perceber que o Grupo CSA emite com maior freqüência Habilidades Sociais Educativas Parentais, especialmente as referentes a consistência e afetividade. As mães e os pais apresentam HSE-P distintas e são as mães quem mais parece participar da educação e emitir habilidades que envolvem comunicação e expressividade. Esta pesquisa pôde contribuir para um maior entendimento acerca das relações estabelecidas entre pais / mães e filhos, avançando em relação ao estudo de Silva (2000). Os resultados obtidos são valorizados pelo fato de incluírem respostas de mães e pais, o que é pouco usual, uma vez que geralmente são as mães que participam de pesquisas desta natureza. Outra contribuição refere-se à elaboração de instrumentos de coleta de dados (Questionário de Habilidades Sociais Educativas Parentais e Questionário de Respostas Socialmente Habilidosas), pois na literatura brasileira ainda há uma carência de instrumentos que possam colaborar para a compreensão das habilidades sociais educativas envolvidas nas práticas educativas parentais. Tais instrumentos podem ser utilizados por outros estudos, seja de levantamento, seja de pesquisa-intervenção. Um aspecto do instrumento que o recomenda para uso em estudos de levantamento é seu formato de entrevista com questões abertas e registro das respostas pelo entrevistador, mediante o uso de uma checklist. Esse formato previne a indução de respostas do entrevistado, ao mesmo tempo em que proporciona ao pesquisador um procedimento ágil para registro e posterior cotação dos dados. Uma limitação do estudo é que os dados foram obtidos a partir do relato verbal de pais e de mães e não necessariamente as HSE-P que afirmaram possuir correspondem com o que realmente fazem na prática educativa com os filhos, por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque podem não ter habilidades suficientes para observar o que fazem e o efeito que produzem; segundo, pela possibilidade de seu comportamento ser influenciado, durante a entrevista, por fatores relacionados à chamada desejabilidade social, que pode ser considerada uma variável estranha, possivelmente interferindo nos resultados obtidos; pesquisas que acrescentem metodologia observacional poderiam suprir tal dificuldade. Acrescenta-se que os instrumentos utilizados na coleta de dados (RE-HSE-P e QRSH-P) carecem de estudos que testem todas as suas propriedades psicométricas. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 135 Referências Bellinger, D. C., & Gleason, J. B. (1982). Sex differences in parental directives to young children. 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Endereço para correspondência: [email protected] Nota: este trabalho é parte da Tese de Doutorado da primeira autora, sob a orientação da segunda, cujo título é “Habilidades Sociais Educativas, variáveis contextuais e problemas de comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares”, defendida na FFCL da USP-RP. 138 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.139-156, jan./jun. 2008 O movimento de João de Santo Cristo no mundo: a via-crúcis de uma identidade Andresa Jaqueline Toassi Michele Caroline Stolf Maria Chalfin Coutinho Dulce Helena Penna Soares Resumo: O conceito de identidade é polissêmico e paradoxal, contemplando uma série de sentidos e significados. Na Psicologia Social, considera-se o sujeito como sendo ao mesmo tempo singular e plural, ao constituir sua identidade atrelada ao âmbito social, do qual também é constituinte. Assim, o artigo busca contribuir para a análise deste pressuposto, a partir do estudo da trajetória de vida do personagem da música “Faroeste Caboclo”, caracterizada como uma produção cultural, ao estar repleta de significações. Sendo o trabalho categoria fundante do ser humano, o qual por sua capacidade de planejamento elabora projetos, busca-se compreender a identidade humana inserida nesse contexto de produção entre homem e realidade, destacando seus aspectos e seu modo de constituição, através do movimento de um personagem que, apesar de fictício, abrange características comuns à coletividade. Trata-se, assim de um ensaio teórico, no qual é realizada uma análise da trajetória do personagem a luz de três categorias teóricas: projeto, identidade e trabalho. Palavras-chave: identidade, trabalho, projeto. The movement of João de Santo Cristo in the world: the via-crucis of an identity Abstract: The identity concept is polysemyc and paradoxical, contemplating several meanings. In Social Psychology, we consider the person as singular and plural at the same time, constituting himself intensively linked to the social environment, which is also built by the man. Here we try to contribute to analysis of this presupposed, studying the life trajectory of the main character in the song “Faroeste Caboclo”. The song is a cultural production, once it’s full of individual and general meanings. The work is a basic category of the human being, who develops projects and advances the future through his planning capacity. Based on this, we try to understand the human identity inserted in a context of uninterrupted production between men and society, emphasizing its features and the way it constitutes, through the movement of a character, who is imaginary, but contains features that are common to the community group. This way, the article is a theoretical trial to analyze the trajectory of the character under three theoretical categories: project, identity and work. Key words: Identity, work, project. Introdução Uma das principais características do homem é seu caráter relacional, pois se constitui em contextos sociais distintos, nos quais estabelece contatos com o mundo no decorrer de toda sua história. O sujeito não é totalmente determinado pelo meio, pois Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 139 atua sobre a realidade, o que resulta em produções variadas, dialeticamente implicadas sobre suas construções, sua maneira de ser e estar no mundo (Zanella, 2004). O indivíduo necessita do convívio social, repleto de regras e normas culturais, pois o que possui de fisiológico, não lhe basta à sobrevivência. Toda produção cultural é construída pelos sujeitos durante a transformação da natureza para satisfazer suas necessidades primordiais, no processo de trabalho, durante o qual cria a si mesmo, ao agir sobre a realidade existente (Marx, 1982). Deste modo, o homem tem a possibilidade de questionar conceitos e refazê-los, numa dialética constante e ininterrupta entre constituição do sujeito e produção cultural. De acordo com Guareschi (2003), produção cultural caracteriza-se por ações, atos e discursos, não referindo-se apenas ao âmbito material, mas também ao movimento do sujeito no mundo, constituindo-se como formas de vida aliadas a práticas culturais. Conforme Geertz, (1989, p.61) “sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativa, sem cultura não haveria homem”. Hall (2005) afirma que a cultura constitui-se como sendo solo real das representações, das práticas, costumes e línguas de sociedades específicas. Caracterizase também como maneiras contraditórias de senso-comum, as quais encontram-se enraizadas na vida popular, produzindo modos de vida. A música, neste sentido, pode ser compreendida como produção cultural, pois freqüentemente relata vivências do cotidiano das pessoas, conta suas histórias, referindo-se à sua realidade. Além disso, ela constitui-se como uma forma de linguagem e meio de estabelecer comunicação, ao estar prenhe de significados, produzindo sentidos e ultrapassando limites temporais. De acordo com o contexto onde se apresenta, ela pode também concretizar emoções, sentimentos e pensamentos ao ordená-los de forma compreensível aos outros (Maheirie, 2002). O artigo busca então, tecer considerações acerca da vida do personagem quasefictício João de Santo Cristo, da canção “Faroeste Caboclo” composta por Renato Russo, realizando elucubrações teóricas e articulando os conceitos identidade, projeto e trabalho, a partir da análise da trajetória do personagem. O termo quase-fictício é utilizado por Andriani (2002), em uma análise de sujeito feita a partir de um poema, para designar uma personagem que apesar de imaginária, contempla características reais constituintes de uma coletividade. Neste sentido, João de Santo Cristo não possui materialidade, mas sua história, apesar de ter sido composta no ano de 1979, ainda representa a vida de outros sujeitos, que como ele são negros, pobres, moradores do sertão nordestino e migram para os grandes centros urbanos, vivenciando uma realidade de discriminação e exclusão social. O termo via-crúcis, utilizado no título, para o cristianismo refere-se ao percurso de Cristo rumo à sua crucificação. Na música, o autor utiliza essa expressão, para designar a trajetória de vida do personagem, a qual foi marcada, à exemplo da viacrúcis de Jesus, pelo sofrimento, dor, luta e tristeza. Aqui ele é utilizado como uma analogia à constituição da identidade do sujeito, um processo repleto de tropeços, dores e sofrimentos. A proposta é analisar o movimento de Santo Cristo em seu âmbito cultural e histórico e a construção concomitante de sua identidade, com base nos pressupostos 140 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 da Psicologia Social, enfocando seu projeto de vida e suas relações com o âmbito do trabalho, fator constituinte do sujeito em vários aspectos1 . Deste modo, buscar-se-á esboçar uma análise teórico conceitual articulando concepções contemporâneas de projeto, identidade e trabalho com as vivências do personagem, sob um olhar mais atual e em consonância com o contexto vigente. Projeto, identidade e trabalho: um esboço teórico-conceitual Em sua obra Ciampa (1987) problematiza o conceito de identidade, ao defini-la como metamorfose, levando-a a ser compreendida como um movimento contínuo do homem em sua concretude real. De acordo com o autor, cada sujeito contém em si características dos outros indivíduos de seu meio social, assim sua identidade contempla as dos demais e vice-versa. A identidade de cada sujeito é decorrência de seu contexto, porém não é igual a nenhuma outra, pois apesar de conter a genericidade do meio, possui aspectos singulares. Assim, ela configura-se por “uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una” (Ciampa, 1981, p.61). Durante todo o decorrer da vida do indivíduo, esse movimento de constituição identitária vai se consubstanciando nos diversos grupos sociais com o qual convive, através das ações concretas, realizadas principalmente no trabalho. Para Ciampa (1981) o sujeito é aquilo que faz, assim ele se hominiza de modo progressivo e contínuo, ao atuar sobre a natureza buscando a satisfação de suas necessidades básicas. Marx (1982) afirma que isto constitui o processo de trabalho, através do qual o homem diferencia-se dos animais por sua intencionalidade, ao planejar e vislumbrar os resultados de suas ações antes mesmo de iniciá-las. O trabalho é, portanto, essencialmente constituinte do ser humano, pois para existir ele precisa agir, produzindo seu meio social e a si mesmo nesse processo. Coutinho, Krawulski e Soares (2007) afirmam que o trabalho é uma categoria fundamental na sociedade, pois esta depende dos resultados do processo de transformação da natureza pelo homem para sua construção e manutenção. Paralelamente, o indivíduo precisa trabalhar para constituir-se como membro do seu meio social e ter acesso aos produtos necessários à sua sobrevivência. Deste modo, desde os primórdios de sua existência ele é orientado para o trabalho, no qual utiliza a capacidade de planejar e antecipar as conseqüências de seus atos. Esta habilidade é essencial na elaboração de projetos para o futuro, através dos quais o sujeito formula planos de atuação sobre a realidade, visando alcançar objetivos específicos. De acordo com Soares (2002), o projeto constitui-se em uma síntese entre objetividade e subjetividade, pois o sujeito planeja inserido em determinado espaço social e histórico, com base nas relações e situações vivenciadas, que influenciam na construção e manutenção de seus objetivos, os quais são definidos individualmente. 1 A obra de Ciampa (1987) intitulada “A estória do Severino e a história da Severina”, já discutia o conceito de identidade com base no personagem de um poema e na história de vida de uma mulher, mostrando as similaridades entre ficção e realidade. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 141 O projeto compreende assim, o futuro desejado e o passado vivido, sendo modificado ao longo da existência do indivíduo, de acordo com a realidade na qual insere-se no decorrer de sua história. Velho (2003) também traz contribuições a esta temática ao estabelecer ligações entre os conceitos de projeto e metamorfose, enfatizando o movimento contínuo do projeto na vida do sujeito. Com base nestes princípios, procurar-se-á compreender o personagem João de Santo Cristo abordando seu processo de constituição como um ser em constante movimento e contradição, o qual encontra-se inserido numa coletividade, contendo estes aspectos em sua singularidade, produzindo sentidos e significados que são constituintes de sua identidade. Busca-se ainda, enfatizar a construção da identidade deste sujeito a partir da elaboração de seu projeto e de suas relações com o universo do trabalho, procurando articular estes conceitos na análise da trajetória percorrida ao longo de sua vida, bem como de seus modos de ser e agir no mundo. A construção de uma identidade: o movimento de João de Santo Cristo no mundo contemporâneo João de Santo Cristo nasceu em uma fazenda do interior nordestino e desde a infância vivenciou uma realidade de discriminação e exclusão social, em função de sua cor e por pertencer a uma classe economicamente desfavorecida. “Quando criança só pensava em ser bandido ainda mais quando com tiro de soldado o pai morreu”2 . Desta forma, o personagem, que já vinha se construindo em um contexto marcado pela pobreza e violência, inicia a elaboração de um projeto de futuro, realizando uma série de ações visando o alcance daquilo que planejou, pois “ia pra igreja só pra roubar o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar”. Para compreender a construção do projeto do personagem, utiliza-se a concepção de Soares (2002, p.76) “o projeto é (...) o momento que funde, num mesmo todo, o futuro previsto e o passado recordado. Pelo projeto, se constrói para si um futuro desejado, esperado”. Neste sentido, o personagem inicia a construção de sua identidade através de seu projeto, baseando-se nos fatos vivenciados e na realidade apresentada, não percebendo para si outras possibilidades de futuro. É importante destacar que o projeto se constitui na articulação entre fatores individuais e sociais, sob a ação da dinâmica temporal, implicando sobre a forma como o indivíduo se relaciona consigo mesmo e com o mundo. Com base nestas concepções, observa-se o quanto os aspectos pessoais e sociais encontram-se interligados na construção do projeto de João de Santo Cristo. Assim, ao vivenciar um fato individual (a morte de seu pai) aliado a condições sociais excludentes e incompreensíveis para ele, que “não entendia como a vida funcionava, a discriminação por causa da sua classe, sua cor”; elaborou como objetivo de vida aquilo que julgava ser a maneira mais eficaz de lutar contra a situação imposta e ao mesmo tempo “vingar-se” da discriminação e exclusão vivenciadas. 2 Ao longo do texto, os itens formatados em itálico e entre aspas, referem-se a trechos copiados na íntegra da letra da música Faroeste Caboclo. Ver letra completa desta música ao final deste texto. 142 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 De acordo com Soares (2002), a execução de todo projeto apresenta resultados, assim as conseqüências de suas ações criminosas conduziram Santo Cristo ao reformatório com 15 anos de idade, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”. Este fato contribuiu para alterações em seu projeto, levando-o a tentar a vida na cidade grande. Esta decisão reflete aspectos da realidade social que implicam em suas escolhas pessoais e demonstra os múltiplos fatores constituintes da identidade humana (Ciampa, 1998). Segundo Coutinho (1999, p. 32), “a configuração da identidade supõe, contraditória e simultaneamente, igualdade e diferença”. O sujeito elenca, portanto, características que o tornam diferente dos demais indivíduos de seu grupo social e outras que o igualam. Santo Cristo, no início de sua história, constituía-se mais pela diferença, pois “sentia mesmo que era mesmo diferente, sentia que aquilo ali não era seu lugar. Ele queria sair para ver o mar e as coisas que ele via na televisão, juntou dinheiro para poder viajar, de escolha própria escolheu a solidão”. Ele não identificava-se com a realidade na qual vivia, pois seu projeto apontava para outras direções, não contempladas por aquele contexto. Ciampa (1987) aponta que a identidade do sujeito sempre apresenta nuanças dos pólos objetivos e subjetivos, os quais são indissociáveis, uma vez que o subjetivo se constrói nas relações com o objetivo e a objetividade é resultado de ações singulares do ser humano. A este respeito Dubar (1998) destaca que a objetividade compreende a materialidade, o mundo objetivo do sujeito. Já a subjetividade engloba sua esfera mais particular, seus sentidos, sua individualidade. Assim, o sujeito, apesar de encontrar-se envolto por aspectos objetivos variados, por significados construídos no decorrer da história, através dos quais elabora seus projetos e direciona sua vida (Sawaia, 1999), conota sentidos subjetivos às vivências, construindo seu contexto e seu projeto na interface do pessoal com o social. O movimento constante entre subjetividade e objetividade é perceptível na construção da identidade e no decorrer da história do personagem João de Santo Cristo, que, apesar de singular, segue o exemplo de milhares de sertanejos que vão em busca de melhores oportunidades na cidade grande. Este local passa a ser uma fonte de novas relações, pois ao chegar ele afirma: “Meu Deus, mais que cidade linda, no Ano Novo eu começo a trabalhar. Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”. Assim, ele vislumbra outras possibilidades de atuação no mundo, começando a projetar sua vida de forma diferente, através do trabalho como carpinteiro. O sistema capitalista, no qual o personagem encontra-se inserido, caracteriza-se pela exploração da mão-de-obra assalariada e concentração de capital nas mãos de grupos minoritários que possuem poder de decisão sobre o desenvolvimento tecnológico, leis, normas, conceitos, cultura, serviços e mercadorias utilizadas pela sociedade (Marx, 1982). O personagem, ao inserir-se efetivamente neste modo de produção como força de trabalho, vivencia uma realidade de exploração, alienação e pobreza, pois “até a morte trabalhava, mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”. Sobre alienação, Marx (1983) afirma que esta acontece quando o trabalhador produz bens aos quais dificilmente terá acesso. Neste sentido, “o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o enfrenta como uma força estranha, isso só pode acontecer porque pertence a um outro homem que não o trabalhador” (p. 98). Santo Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 143 Cristo, portanto, era alienado do produto resultante de seu trabalho como carpinteiro, uma vez que suas condições financeiras não lhe possibilitavam sequer o acesso à satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência. Nesta relação, cada “homem é alienado por outros homens” (p. 97), o que os torna concorrentes e adversários no processo capitalista de produção. Castells (2000) aponta que a lógica do desenvolvimento capitalista engloba a competição e a ausência de sistemas reguladores e éticos, podendo levar a sociedade tanto ao progresso ilimitado como também ao fracasso total, ao imperar o individualismo, o liberalismo econômico e a valorização de sucessos individuais. O momento contemporâneo, apesar de ser regido pela lógica do capital, encontra-se estruturado e opera de modo diferenciado de épocas anteriores. Desde o final do século passado, a esfera global encontrar-se marcada por intensas transformações, rupturas e quebra de paradigmas, o que conduz a alterações em vários âmbitos da vida humana, bem como no modo de produção vigente. De acordo com Tolfo, Coutinho, Almeida, Baasch e Cugnier (2005), até o final do século XX, houve a predominância hegemônica da forma de ordenação dos processos de trabalho, caracterizada pela verticalidade empresarial e por modelos de produção em série, quando mudanças reestruturativas nos meios e modo de produção, aliadas ao processo de globalização e ao desenvolvimento tecnológico e informacional, começam a tecer alterações nesse cenário. Através das maneiras diferenciadas de organização do processo produtivo, novas configurações de emprego e trabalho vão surgindo, o que conduz ao aparecimento de elementos inéditos nas relações estabelecidas entre os sujeitos e seu ofício, marcadas pela complexidade e diversificação. Os autores citados afirmam ainda, que as formas inéditas de estruturação do capitalismo, com modelos mais flexibilizados, globalizados e informatizados, conduzem ao surgimento de modos de trabalho diversificados. Estas situações, caracterizadas pela pluralidade e efemeridade, levam os trabalhadores a questionamentos e dúvidas, devido à perda de referenciais norteadores e éticos, o que altera suas relações com o universo do trabalho. De acordo com Hall (2005), essas mudanças estruturais vêm transformando as sociedades, o que fragmenta as referências culturais de classe, sexualidade, gênero, nacionalidade e até mesmo de trabalho. Com isso, “estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados” (2005, p. 9). Desta forma, o autor aponta que as identidades estão em constante mudança, podendo ser caracterizadas como “posições” que o sujeito assume de acordo com os contextos e situações que vivencia. Frente a esse cenário, por não conseguir vislumbrar alternativas de melhorias em suas condições econômicas e sociais, o personagem perde a confiança no sistema político do país, pois “ouvia às sete horas o noticiário que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar. Mas ele não queria mais conversa e decidiu que como Pablo ele ia se virar”. Deste modo, ele volta à criminalidade, tornando-se traficante, como seu amigo Pablo e posteriormente, ladrão. Neste momento, ele retorna ao seu projeto inicial, percebendo esta como a única opção de alterar sua situação e ascender economicamente. A escolha do personagem ilustra assim, a afirmação de Soares (2002, p.40) sobre como 144 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 “o homem pode escolher dentro de um leque de opções oferecidas pelo sistema econômico e delimitadas pela classe social a qual pertence”. Para a autora citada toda escolha implica em perda, pois ao escolher é preciso abdicar de algo. Desta forma, a opção do personagem pelo crime trouxe uma série de conseqüências à sua vida, pois “ficou rico e acabou com todos traficantes dali. Fez amigos, freqüentava a Asa Norte, ia pra festa de rock pra se libertar. Mas de repente sob uma má influência dos boyzinhos da cidade começou a roubar. Já no primeiro roubo ele dançou”. Ser preso levou Santo Cristo a uma revolta ainda maior contra o sistema e a sociedade. As situações de violência vivenciadas na cadeia foram uma forte mediação consolidando sua trajetória na vida criminal, implicando sobre sua constituição como “bandido destemido e temido no Distrito Federal”. No decorrer da história de João percebe-se no movimento constante de idas e vindas, pois quando criança ele inicia sua constituição como bandido, modifica esta condição ao tornar-se carpinteiro e posteriormente retorna à criminalidade. Este processo contempla o sentido de identidade como metamorfose, descrito por Ciampa (1998), a qual constitui-se através de mudanças e alterações constantes. O autor afirma que a identidade do sujeito nunca cristaliza-se, mas caracteriza-se por um contínuo “vir-a-ser”, onde aspectos novos e antigos convivem em simultaneidade. O caráter de metamorfose da identidade humana é novamente perceptível na história do personagem, no momento em que ele conheceu Maria Lúcia e “de todos os seus pecados ele se arrependeu”, retornando ao seu antigo ofício de carpinteiro e almejando a constituição de uma família. Aqui observa-se o processo paradoxal existente na constituição do sujeito, caracterizado por um constante “ir e vir”, onde não há linearidade, mas movimentos espirais contínuos. Destaca-se ainda a ambigüidade presente na construção da identidade do personagem, a qual representa a “síntese inacabada de contrários” (Maheirie, 2002, p.41). O relacionamento entre João de Santo Cristo e Maria Lúcia foi constituinte de suas identidades, determinando em diversos momentos as ações executadas pelo personagem. Para Codo, Hitomi e Sampaio (1993) é no horizonte destas relações com os outros, das relações com o corpo, com as coisas e a natureza, com o passado e com o futuro, que o homem se objetiva, que se constitui numa identidade, e é também nestas relações que ele se complica, realiza-se e aliena-se (p.118). Ao receber uma proposta de “um senhor de alta classe com dinheiro na mão” João sente-se revoltado com o tipo de atividade solicitada e nega-se a aceitá-la, afirmando: “não boto bomba em banca de jornal e em colégio de criança, isso eu não faço não!”. Esta resposta resulta em uma grave discussão, na qual “antes de sair com ódio no olhar, o velho disse: Você perdeu a sua vida, meu irmão!”. O personagem, diante dessa afirmação, se apropria do sentido dado às palavras do homem, sentindose ameaçado ao acreditar que “essas palavras vão entrar no coração, eu vou sofrer as conseqüências como um cão”. Em decorrência disso ele fica preocupado e “não foi trabalhar, se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar”. Pinheiro (2000) descreve a linguagem como um instrumento pelo qual as pessoas estabelecem relações com as coisas que as cercam, produzindo sentidos para as Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 145 circunstâncias que vivenciam. Berger e Luckmann (1985) também apontam a importância da linguagem na produção de sentidos, afirmando que “a linguagem usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim” (1985, p. 38). Assim, o personagem deu um sentido ao que ouviu e passou a agir a partir das significações elaboradas. Segundo Spink e Medrado (2000), a produção de sentidos não é intra-individual, nem segue modelos, é um fenômeno sociolingüístico, onde os sentidos são construídos quando duas ou mais vozes se confrontam. A produção de sentidos se processa no contexto da ação social, pois ao desempenhar qualquer função as pessoas produzem sentidos sobre o mundo. Berger e Luckmann (2004) também indicam as experiências vivenciadas como produtoras de sentidos, afirmando que cada fato vivido é relacionado com as outras experiências que estão armazenadas no conhecimento subjetivo ou no acervo social. O homem encontra-se assim, inserido objetivamente em um sistema social repleto de valores, significados, ideologias, o qual possui uma organização econômica e política. Assim, ao trabalhar e lançar-se neste mundo ele é também definido pela sociedade, ao mesmo tempo em que a supera e a constitui através de sua práxis, de seus atos, condições e possibilidades (Codo & cols, 1993). Isto ocorre pela realização de cada projeto, onde o indivíduo movimenta-se de acordo com as condições ofertadas e disponibilizadas pelo meio. Pela condição histórica e lugar que o sujeito ocupa em um determinado contexto social, o modo como ele significa e é significado pelos outros, resulta em ações que são características não apenas de um sujeito, mas contém em si a própria história da humanidade. Santo Cristo estava significando-se através do trabalho e projetava seu futuro neste contexto, mas com a nova condição de desempregado ele começa a procurar alternativas dentro de sua realidade e da posição que passou a ocupar no universo social. Assim, a volta ao tráfico apresentou-se como a opção mais viável naquele momento, pois já possuía conhecimentos acerca desse meio e vislumbrava garantias de retorno financeiro. Então, “falou com Pablo que queria um parceiro e também tinha dinheiro e queria se armar”. Em decorrência do cenário de trabalho contemporâneo altamente competitivo, excludente, seletivo e instável, marcado pela complexidade, diversidade e multiplicidade, muitos trabalhadores, assim como Santo Cristo, não conseguem inserir-se ou manterse ativos no mercado de trabalho, fato que contribui sobremaneira para a realização de atividades informais, precarização das condições trabalhistas e inclusive, ao aumento da criminalidade (Tolfo & cols., 2005). E esta foi a solução encontrada por João ao almejar sua sobrevivência, pois frente ao cenário de trabalho, decidiu ser novamente bandido, optando pela vida no universo do crime em detrimento da busca pela inserção no âmbito do trabalho. Santo Cristo vê o porte de uma arma como possibilidade de atuação no mundo e sobre as condições que ameaçavam sua integridade física e moral. Para ele a arma representava um meio de alterar sua realidade e agir contra as situações impostas socialmente, rompendo com a resignação e impotência. Como até mesmo o universo 146 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 do crime encontra-se permeado pela realidade contemporânea de concorrência e competitividade, o personagem João de Santo Cristo precisa lidar então com a presença do concorrente Jeremias, “traficante de renome” que “apareceu por lá” e “decidiu que com João ele ia acabar”, o que reafirma a sua necessidade de armar-se e prepararse para uma disputa de poder. Ao analisar o papel das relações sociais cotidianas na constituição dos processos identitários, Coutinho (1999) aponta a participação do poder neste processo, pois cada indivíduo possui e apresenta-o, em maior ou menor grau, de acordo com o local assumido na esfera social, utilizando-o “para se impor como diferente na relação com o outro” (Coutinho, 1999, p.33-34). Santo Cristo procurava colocar-se como diferente de seu rival, devido ao papel e às ações que cada um exercia naquele contexto, onde Jeremias era considerado “maconheiro semvergonha” e “desvirginava mocinhas inocentes e dizia que era crente, mas não sabia rezar”. Apesar de viver na criminalidade, João evitava determinados aspectos dessa identidade, uma vez que não almejava tornar-se um assassino, pois mesmo quando “Pablo trouxe uma Winchester 22 e Santo Cristo já sabia atirar”, ele “decidiu usar a arma só depois que Jeremias começasse a brigar”. Neste sentido, cabe observar que, mesmo na criminalidade, João não abria mão de certos valores, usando a arma dentro de critérios, considerados justos por ele. Porém, a arma não perde seu caráter de objeto de poder, sendo que mesmo sem utilizá-la, ela pode representar uma ameaça ou ferramenta de coerção, auxiliando-o na diferenciação e supremacia sobre os demais. O poder, portanto, é considerado uma prática social, construída histórica e culturalmente, pela multiplicidade e variedade, não estando restrito a uma área apenas, mas abrangendo de forma dinâmica e não linear, todos os sujeitos e âmbitos sociais. (Foucault, 1979). Deste modo, ele rompe fronteiras de tempo e espaço, tende a assumir várias faces e integrar grupos variados, intervindo nas relações de modo substancial. O grau de poder que o sujeito apresenta, portanto, encontra-se em consonância com uma série de aspectos, entre eles a função e a posição que o indivíduo ocupa na rede organizacional, bem como o contexto onde encontra-se inserido, o que implica de forma abissal sobre o desenvolvimento de sua identidade. As relações de poder e as implicações da objetividade para a subjetividade e construção da identidade, aparecem novamente e de modo decisivo na história de Santo Cristo quando ele descobre que “com Maria Lúcia Jeremias se casou e um filho nela ele fez”. Em decorrência disso, sua identidade sofre transformações marcantes, que podem ser observadas no momento em que “chegando em casa então ele chorou” e “Santo Cristo era só ódio por dentro”. De acordo com Ciampa (1987), há uma coexistência dialética entre permanência e transformação, mesmice e “vir a ser”, igualdade e diferença, uno e múltiplo, onde estes pólos contrários convivem e compõem um mesmo sujeito de modo contínuo. Os fatores paradoxais constituintes da identidade podem ser percebidos nesta etapa da vida do personagem, pois devido à situação vivenciada ele modifica-se, mas não deixa de contemplar as características construídas ao longo de sua história. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 147 A participação que a coletividade exerce neste processo é acentuada, pois há um significado atribuído socialmente à traição, o qual pressupõe a necessidade de vingança, de “lavar a honra”, o que faz com que Santo Cristo busque uma retaliação, quando “Jeremias pra um duelo ele chamou”. Este fato aponta o aspecto uno e múltiplo da identidade, uma vez que o personagem, em sua singularidade, segue padrões ditados pelo seu contexto. A emoção também exerce papel fundamental nesse processo de constituição identitária, ao fazer parte do ser humano, englobando-o como um todo e implicando sobre o desenvolvimento de suas ações, de acordo com o sentido que atribui aos acontecimentos (Maheirie, 2002). Assim, devido ao significado social da traição aliado ao seu sofrimento pessoal, o personagem age tomado pela raiva e pela tristeza, buscando alterar sua situação através do duelo e não refletindo sobre outras possibilidades de atuação. Este fato modifica seu projeto e altera novamente sua identidade, uma vez que ele precisa lidar com os resultados de suas atitudes. A proposta do duelo, portanto, foi feita em um momento onde a emoção permeava fortemente as decisões de João. Mas ao perceber as possíveis conseqüências desse ato, ele sente-se confuso, pois isso vai contra a identidade construída até então, na qual ele evitava tornar-se um assassino. No momento do duelo, João e Jeremias – “um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo e começou a sorrir” –, exemplificam como os valores e julgamentos sociais encontram-se presentes nas ações desempenhadas pelos sujeitos, que se apropriam de modo singular destas regras, apresentando comportamentos diferentes nas mesmas situações. Assim, ao duelar, Santo Cristo seguiu as normas culturais relacionadas à coragem, honra e honestidade, ao passo que Jeremias desconsiderou estes pressupostos, procurando salvar a si mesmo, sem preocupar-se com opiniões alheias. Um dos aspectos constituintes da identidade é a questão de gênero, a qual atribui socialmente características que os sujeitos de cada sexo devem ser apresentar, de acordo com as diferentes culturas (Lago, 1999). Deste modo, os conceitos de masculino e feminino são definidos a partir de valores, padrões e funções diferenciados. As palavras de Santo Cristo refletem esta concepção, ao afirmar “– Jeremias eu sou homem coisa que você não é e não atiro pelas costas não”. Percebe-se aqui a atribuição de valores morais ao gênero masculino, os quais ditam regras específicas que definem os atributos necessários para ser considerado homem, relacionando-os à coragem, força, honra, honestidade e bravura. O caráter paradoxal da identidade destaca-se na relação de Santo Cristo com as regras impostas socialmente, pois ao entrar na criminalidade, ele vai contra as normas estabelecidas pelo meio, mas concomitantemente procura seguir alguns valores e padrões ditados por este âmbito. Isto é perceptível em vários momentos, na sua postura ao rejeitar a proposta do “senhor de alta classe”, ao procurar exercer uma profissão considerada honesta, querer casar-se e constituir uma família, bem como durante o duelo. A identidade contempla assim, conceitos opostos e iguais, sendo dialeticamente construída no conflito e no consenso. De acordo com Ciampa (1981), a identidade constitui-se por uma miríade de ‘modos de ser’, pois em função do momento, do local e daquilo que o sujeito realiza ao atuar no mundo, ele se posiciona e se identifica de maneiras diferentes. Assim, Santo 148 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Cristo era filho, bandido, carpinteiro, traficante, amigo, presidiário, namorado, pois embora constitua uma totalidade, ele irá manifestar-se de determinada forma tendo em vista os aspectos múltiplos que compõem sua realidade e seu modo de ser e estar no mundo. Desta forma, ora certas nuances da sua identidade são mais perceptíveis, ora outras adquirem ênfase especial. Momentos antes de sua morte, João “se lembrou de quando era uma criança e de tudo que vivera até ali, e decidiu entrar de vez naquela dança. – Se a via-crúcis virou circo estou aqui”. Neste instante ele resgata sua trajetória de vida, os vários ‘modos de ser’ que assumiu neste processo, o sofrimento vivenciado (via-crúcis) e seu movimento no mundo até o presente, no qual sua morte iminente era observada e alardeada como um espetáculo. Ciampa (1987, p.198) afirma que “a concretude da identidade é a sua temporalidade: passado, presente e futuro”. Assim, João concretiza a sua identidade ao contemplar seu passado, tudo que vivenciou até chegar o momento presente, percebendo o havia feito no decorrer de sua vida e o futuro que o aguardava, onde depois de tanta luta, a morte era inevitável. Então decidiu matar Jeremias, constituindo-se finalmente como um assassino, pois não tinha mais nada a perder e nenhum objetivo pelo qual lutar. De acordo com o autor, os sujeitos identificam-se em função dos atos realizados concretamente, deste modo, “Santo Cristo com a Winchester-22 deu cinco tiros no bandido traidor, Maria Lúcia se arrependeu depois e morreu junto com João, seu protetor”. Esse desfecho da história, bem como toda a trajetória do personagem, apesar de fictício, contempla o final de muitas histórias reais, nas quais os sujeitos vivenciam uma situação de exclusão, miséria, sofrimento e morte, não conseguindo atuar sobre as suas condições de existência, desenvolver sua identidade de modo diferenciado e muito menos alcançar os objetivos de seu projeto. Santo Cristo ilustra essa realidade, pois no final da música aparece mais declaradamente seu objetivo não alcançado, o que conduziu sua vinda para a cidade grande, embasado naquilo que vivenciou durante sua trajetória, afinal, “João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente, pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”. Considerações finais A análise introdutória e ensaística do personagem João de Santo Cristo permite uma compreensão mais ampla do tema identidade, abrangendo também os conceitos trabalho e projeto, e sua relação. A discussão desses tópicos, embasada na história de vida do personagem, possibilita uma visualização de como esses pressupostos teóricos concretizam-se na vida cotidiana dos sujeitos, através de atos, vivências e relações, demonstrando o movimento do indivíduo no decorrer de sua história e seus modos de constituição nesse processo. A música Faroeste Caboclo constitui-se como uma produção cultural que apresenta uma trajetória de vida cujas características são similares às vivenciadas cotidianamente no contexto contemporâneo. Deste modo, a relação indissociável entre objetividade e subjetividade no desenvolvimento da identidade humana é claramente perceptível no movimento do personagem, constituindo uma espiral dinâmica, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 149 ininterrupta, construída e reconstruída, unificando a sociedade, a cultura e o sujeito em um processo de mútua edificação. A identidade contempla assim, visões e caráter antagônicos, paradoxais, possuindo duplas dimensões entre unidade/pluralidade, transformação/permanência, igualdade/diferença, sendo que um aspecto não anula o outro, pois não são excludentes, mas complementares e simultâneos. Ela não pode, portanto, ser dicotomizada, pois concomitante ao seu movimento de transformação há a afirmação e manutenção de determinados modos de ser e estar no mundo. A importância e a abrangência do trabalho no desenvolvimento da identidade apresentam-se também de maneira freqüente ao longo da vida de Santo Cristo, pois cada atividade realizada lhe conferia um modo diferente de ser. Assim, ele buscava alterações em sua realidade, movendo-se em direção aos seus projetos de acordo com as possibilidades que percebia, constituindo-se nesse processo de atuação. Pela elaboração do projeto, ele traçava metas para sua vida e praticava ações nesse sentido, contemplando a estreita relação entre sujeito, trabalho e sociedade. Considerando que o sujeito está inserido em uma realidade dialeticamente construída, constituindo-se também desta forma, a identidade passa a ser considerada, como a intersecção entre a objetividade e aspectos subjetivos, resultando assim, em uma síntese inacabada entre estes dois âmbitos (Maheirie, 2002). No decorrer da vida do personagem é possível identificar esse movimento, pois percebe-se o quanto a concretude vivenciada é constituinte de sua singularidade, pois o produto desse processo abrange aquilo que ele é e faz de modo contínuo, ao tornar-se também autor de sua própria existência. O cenário contemporâneo e as condições de vida e trabalho por ele ofertadas, também são desenvolvidas neste processo analítico, tendo em vista a amplitude de suas implicações sobre o projeto do sujeito e sobre a constituição de sua identidade, uma vez que trazem em seu bojo mudanças profundas e significativas, resultantes em adaptações e vivências diferenciadas às novas formas e modos de trabalhar e produzir sua existência. Assim, à luz das teorias que tratam do assunto, buscou-se verificar como Santo Cristo constituía sua identidade inserido neste contexto distinto, marcado pela complexidade, multiplicidade e diversidade. O sentido de identidade como metamorfose descrita por Ciampa (1987) em sua análise anterior sobre o tema, é, portanto, contemplado nesse esboço e em suas considerações, articulando-o com os conceitos de trabalho e projeto, os quais são profundamente constituintes da identidade do sujeito. Destaca-se, porém, que a complexidade existente no conceito de identidade aponta a necessidade de estudos e análises contínuos e abrangentes, visando à compreensão da constituição do sujeito nesse movimento constante, caracterizado pela unidade entre pólos opostos, o que resulta em um eterno paradoxo. Referências Andriani, A.G. (2002). Análise da construção da identidade de uma personagem literária segundo conceitos da psicologia sócio-histórica. Em: E. M. P. Kahhale (Org.), A diversidade da psicologia: uma construção teórica (pp. 289-304). São Paulo: Cortez. 150 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Berger, P. & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade (19ª edição). Petrópolis: Vozes. 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Psicologia em Estudo, 9(1), 127-135. Anexo Letra da Música Faroeste Caboclo Legião Urbana Composição: Renato Russo - Não tinha medo o tal João de Santo Cristo, Era o que todos diziam quando ele se perdeu. Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu. Quando criança só pensava em ser bandido, Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu Era o terror da sercania onde morava E na escola até o professor com ele aprendeu. Ia pra igreja só prá roubar o dinheiro Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar. Sentia mesmo que era mesmo diferente Sentia que aquilo ali não era o seu lugar Ele queria sair para ver o mar E as coisas que ele via na televisão Juntou dinheiro para poder viajar 152 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 E de escolha própria, escolheu a solidão Comia todas as menininhas da cidade De tanto brincar de médico, aos doze era professor. Aos quinze, foi mandado para o reformatório Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror. Não entendia como a vida funcionava – Descriminação por causa da sua classe ou sua cor Ficou cansado de tentar achar resposta E comprou uma passagem, foi direto a Salvador. E lá chegando foi tomar um cafezinho E encontrou um boiadeiro com quem foi falar E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem Mas João foi lhe salvar. Dizia ele: – Estou indo pra Brasília, Neste país lugar melhor não há. Estou precisando visitar a minha filha Então fico aqui e você vai no meu lugar. E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central Ele ficou bestificado com a cidade Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal. - Meu Deus,mas que cidade linda, No ano-novo eu começo a trabalhar. Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro Ganhava cem mil por mês em Taguatinga. Na sexta feira ia pra zona da cidade Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador E conhecia muita gente interessante Até um neto bastardo do seu bisavô: Um peruano que vivia na Bolívia E muitas coisas trazia de lá Seu nome era Pablo e ele dizia Que um negócio ele ia começar. E Santo Cristo até a morte trabalhava Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar E ouvia às sete horas o noticiário Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar Mas ele não queria mais conversa e decidiu que, Como Pablo, ele ia se virar Elaborou mais uma vez seu plano santo Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 153 E, sem ser crucificado, a plantação foi começar. Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade: - Tem bagulho bom ai! E João de Santo Cristo ficou rico E acabou com todos os traficantes dali. Fez amigos, freqüentava a Asa Norte E ia prá festa de rock, prá se libertar Mas de repente Sob uma má influência dos boyzinho da cidade Começou a roubar. Já no primeiro roubo ele dançou E pro inferno ele foi pela primeira vez Violência e estupro do seu corpo - Vocês vão ver, eu vou pegar vocês. Agora Santo Cristo era bandido Destemido e temido no Distrito Federal. Não tinha nenhum medo de polícia Capitão ou traficante, playboy ou general. Foi quando conheceu uma menina E de todos os seus pecados ele se arrependeu. Maria Lúcia era uma menina linda E o coração dele Pra ela o Santo Cristo prometeu Ele dizia que queria se casar E carpinteiro ele voltou a ser - Maria Lúcia pra sempre eu vou te amar E um filho com você eu quero ter. O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com dinheiro na mão E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta. Uma resposta de João: - Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança Isso eu não faço não E não protejo general de dez estrelas, que fica atrás da mesa Com o cú na mão. E é melhor o senhor sair da minha casa Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião. Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse: - Você perdeu a sua vida, meu irmão. Você perdeu a sua vida meu irmão. Você perdeu a sua vida meu irmão Essas palavras vão entrar no coração 154 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 E eu vou sofrer as conseqüências como um cão. Não é que o Santo Cristo estava certo E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar Se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro Trabalhando em seu lugar Falou com Pablo que queria um parceiro E também tinha dinheiro e queria se armar Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina. Mas acontece que um tal de Jeremias, traficante de renome, Apareceu por lá Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo E decidiu que, com João ele ia acabar. Mas Pablo trouxe uma Winchester-22 E Santo Cristo já sabia atirar E decidiu usar a arma só depois Que o Jeremias começasse a brigar. (O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha E fez todo mundo dançar.) Desvirginava mocinhas inocentes E dizia que era crente mas não sabia rezar. E Santo Cristo há muito não ia pra casa E a saudade começou a apertar - Eu vou embora, eu vou ver Maria Lúcia Já está em tempo da gente se casar. Chegando em casa então ele chorou E pro inferno ele foi pela segunda vez Com Maria Lúcia Jeremias se casou E um filho nela ele fez. Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo ele chamou Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou E você pode escolher as suas armas que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor Santo Cristo não sabia o que fazer Quando viu o repórter da televisão Que deu notícia do duelo na TV Dizendo a hora o local e a razão. No sábado então, às duas horas, todo o povo Sem demora foi lá só para assistir Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 155 Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo Começou a sorrir. Sentindo o sangue na garganta, João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e A gente da TV que filmava tudo ali. E se lembrou de quando era uma criança e de tudo o que vivera até ali E decidiu entrar de vez naquela dança - Se a via-crucis virou circo, estou aqui. E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu. Ela trazia a Winchester-22 A arma que seu primo Pablo lhe deu. - Jeremias, eu sou homem. coisa que você não é. E não atiro pelas costas não. Olha pra cá filha-da-puta, sem-vergonha, Dá uma olhada no meu sangue E vem sentir o teu perdão. E Santo Cristo com a Winchester-22 Deu cinco tiros no bandido traidor Maria Lúcia se arrependeu depois E morreu junto com João, seu protetor. E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles viram na TV E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter Ele queria era falar pro presidente, Pra ajudar toda essa gente Que só faz sofrer Recebido em julho de 2007 Aceito em janeiro de 2008 Andresa Jaqueline Toassi: psicóloga; mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Michele Caroline Stolf: psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Maria Chalfin Coutinho: psicóloga; doutora em Ciências Sociais (Unicamp); professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Dulce Helena Penna Soares: doutora em Psicologia Clínica (Universidade Louis Pasteur, França); professora Adjunta IV de graduação e pós- graduação da Universidade Federal de Santa Catarina; coordenadora do Laboratório de Informação Profissional LIOP/UFSC. Endereço para correspondência [email protected] 156 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.157-172, jan./jun. 2008 Vínculos familiares na adolescência: nuances e vicissitudes na clínica psicanalítica com adolescentes Aline Bedin Jordão Resumo: O presente trabalho aborda o processo adolescente e os vínculos familiares a partir do viés psicanalítico, articulando questões teóricas com situações clínicas. A partir de uma revisão de literatura, e apresentação de fragmentos de casos clínicos atendidos em consultório particular, apresentam-se algumas questões referentes a este momento evolutivo, apontadas por vários autores, relacionadas principalmente ao movimento de individuação do adolescente, suas desidentificações, neoidentificações, remodelamentos subjetivos e aspectos narcisistas que transitam na relação do adolescente com seus pais. A construção de seus próprios projetos e seus próprios ideais apresenta-se como uma missão desafiante e dolorosa, porém necessária para a tão desejada e temida autonomia. Discute-se, ainda, o lugar e a posição ocupados pelo analista no tratamento de adolescentes, e a contribuição da psicanálise para estes pacientes e suas famílias. Palavras-chaves: adolescência, vínculos familiares, psicanálise de adolescentes. Family bonds in adolescence: nuance and vicissitude in psychoanalytical clinic with teenagers Abstract: This paper approaches the teenager process from a psychoanalytical view, articulating theoretical matters with clinical situations. Starting from a literature revision and its articulation with clinical cases seen in private psychology’s office, some issues related to this changing moment are shown, pointed out by several authors, related mostly to the teenagers separationindividuation movement, their unidentifications, neoidentifications, subjective readapting and narcissistic aspects that transit in the teenagers’ relationship with their parents. The construction of their own projects and ideals is seen as a challenging and painful “mission”, however necessary to the soul requested and feared autonomy. It has still been argued, the place and the position of the analyst in the teenagers’ treatment, and the psychoanalysis´ contribution for these patients and their families. Key words: Adolescence, family bonds, Adolescent Psychoanalysis. Introdução Aos filhos só podemos dar duas coisas: asas e raízes (Provérbio chinês) Processo adolescente e vínculos familiares: ilustrações de fragmentos clínicos A adolescência constitui-se em uma vivência fundamental na constituição identitária, permeada por mudanças, remodelamentos subjetivos, ressignificações de diversas ordens. O adolescente necessita reeditar sentimentos e vínculos primários em relação às figuras parentais, revisando, assim, seus objetos internos e sua identidade. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 157 Para os pais, trata-se também de um processo angustiante e confuso, já que necessariamente irão se deparar com questões referentes à separação, diferenciação, finitude, alterações de lugares e papéis na dinâmica familiar, além de inevitáveis frustrações decorrentes do crescimento e das escolhas dos filhos. Na adolescência o suposto equilíbrio da latência e a imagem corporal relativamente estabilizada são colocados em questão. Reordenamentos identificatórios, atribuições de novos sentidos às experiências, rompimentos e buscas de ideais, enfim, todo um (re)desenvolvimento da vida subjetiva apresenta-se com confusões e conflitos, mostrando-se na clínica com um espectro bastante vasto. Millonschik (2004), ao tratar do sofrimento psíquico na adolescência, pontua que é como se o adolescente tivesse perdido uma casca e ainda não houvesse reconstruído outra, o que o torna muito vulnerável do ponto de vista emocional. Essa maior suscetibilidade pode ocasionar sentimentos de vazio, desamparo e despersonalização. O relato de uma paciente1 (M., 18 anos) ilustra esta sensação: “Tô muito perdida, numa confusão só... Parece que não sei mais quem eu sou, nem o que quero, nem para onde vou... Que horror isso... Se tu perguntar pra uma criancinha o que ela quer, ela vai te dizer alguma coisa, e eu parece que nem sei o que quero (...)”. Além da difusão de identidade, percebida na fala desta adolescente, outra questão central deste período é a fratura da onisciência atribuída aos pais ao longo da latência, com a conseqüente desilusão. Tal fato acarreta confusões e questionamentos diversos: quem detém o conhecimento? Quem sou? O que sou? (Levy, 1996). Soma-se a isso toda a questão dos ideais projetados pelas figuras parentais, geralmente associados aos narcisismos materno e paterno, bem como com os “sonhos de ouro” não vividos pelos mesmos. A história do adolescente nasce antes do seu nascimento biológico. Existe uma ordem simbólica, ordem lógica que precedeu seu nascimento cronológico. Esta ordem é o lugar que ocupa o filho na fantasmática individual em cada um dos progenitores e no casal, lugar que estará determinado em relação com o sistema narcisista, e que se plasmará em uma representação: será o representante narcisista primário do desejo inconsciente da mãe e do desejo inconsciente do pai, e assim se manterá a homeostase narcisista da situação do meio familiar (...). (Kancyper, 1999, p. 85-86) Kancyper (1999) refere que muitas vezes o adolescente fica aprisionado a esse narcisismo parental, através de uma identificação alienante aos desejos dos pais, anulando as diferenças geracionais. Este submetimento pode decorrer do temor à perda de amor e a falta de reconhecimento por parte dos objetos primários. Ou seja, submete-se como forma de garantir um lugar na dinâmica familiar. Ainda relacionado às questões familiares, Leivi (1995) traz o tema da historização, referindo que a construção da história do sujeito não se dá simplesmente pelo seu 1 Os pacientes utilizados neste trabalho não foram identificados pelos seus nomes reais, sendo omitida qualquer informação que denunciasse sua identidade. 158 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 passado, e sim pela historização deste passado no presente. Trata-se, portanto, de uma construção simbólica. O autor ainda refere que em toda história sempre existirão brechas, não-ditos, situações silenciadas, que possivelmente aparecerão na vida do sujeito através de repetições e sintomas. Ou seja, o sujeito sempre será atravessado pela sua história familiar, com suas sombras e fantasmas silenciosos operando efeitos na subjetivação. Diante disso, destaca-se a importância da agressividade como componente necessário para conseguir desalienar-se, diferenciar-se e elaborar os ideais narcísicos dos pais e conquistar uma maior autonomia. Observa-se, assim, a importância de uma reorganização e reconstrução desta historicidade, revisando permanentemente seu universo simbólico de significações (Leivi, 1995). Neste sentido, Kancyper (1999) refere que o representante narcisista operará como uma referência constante, e que, a partir disso, “o adolescente necessitará efetuar um trabalho diário de reelaboração para conquistar sua condição subjetiva de ser vivo com existência própria” (p.85). A paciente M. aponta estas situações na seguinte fala: Eu sei que o pai quer que eu fique lá na loja, que eu continue o projeto dele, que ele batalhou pra conseguir tudo o que tem... Por mais que eles me deixem livres pra escolher o que quero, é isso que eles dizem ao menos, eles estão o tempo todo me mostrando que é melhor ficar lá, que vou me dar melhor lá... Então é difícil... Porque eu queria descobrir bem o que eu quero e poder ficar bem, e que eles ficassem bem também, que me apoiassem... Queria poder construir as minhas coisas sem “matar” ninguém com isso. A culpa, o ressentimento e o medo são fatores que geralmente contribuem para essa dificuldade do adolescente em assumir seu próprio desejo e construir seu projeto a partir de suas escolhas. Diferenciar-se das expectativas dos pais desperta sentimentos e angústias difíceis de serem elaborados. A perda da dependência infantil traduz-se como ameaça ao adolescente, colocando à prova a estabilidade dos sistemas narcisistas do filho e dos pais (Kancyper, 1999). Isto decorre da necessária separação daquilo que até então se apresentou como um porto seguro para o adolescente, do distanciamento das referências parentais. A construção de seus próprios projetos e seus próprios ideais apresenta-se como uma missão desafiante e dolorosa, porém necessária para a tão desejada e temida autonomia. Diante de tais colocações percebe-se quão imprescindível se faz a revisão dos padrões até então estabelecidos, através de uma atitude questionadora e crítica, afim de que se possam construir idéias, ideais, opiniões, escolhas próprias, auto-imagem, etc. Com efeito, Kancyper (1999) aponta as conseqüências do referido processo: “A morte do infans reanima sentimentos de desamparo pela perda da fantasia que reassegura a ilusão de alcançar, por meio da fusão, o amor eterno e imutável” (p.103). Todavia, não se pode esquecer que para que estas mudanças e reorganizações ocorram de forma saudável e tranqüila faz-se necessário que o desenvolvimento psicológico prévio tenha se dado satisfatoriamente. Pode-se pensar nas situações desenvolvimentais propostas por Mahler (1982), ou seja, na importância do bebê ter experienciado uma boa fase simbiótica com a mãe, e que essencialmente tenha podido Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 159 estabelecer a partir daí uma expectativa confiante, uma segurança básica. Se isso não ocorre, se a criança é precocemente direcionada a ver a mãe como alguém separado, externo a dela. Possivelmente tal vivência tenha reverberações nos relacionamentos futuros, através de muita insegurança e sensação de que as coisas não vão dar certo. A paciente M. coloca esta problemática em sua fala: Não entendo como as pessoas podem gostar de mim... Fico muito mal com isso. Sou muito insegura, muito desconfiada... Não entendo como as pessoas lembram de mim, me chamam pelo nome, mesmo ficando tempos sem me ver... Às vezes tu diz coisas que eu falei aqui e fico pensando como que tu pode lembrar, se às vezes nem eu lembro... Odeio falar e as pessoas não prestarem atenção, não me olharem... Seguido acontece isso com o pai, eu to lá ajudando ele na loja, mexendo nos papéis dele, e ai eu falo com ele e ele ta desligado, ou lendo o jornal, ou se levanta e nem ouviu o que eu falei... Eu fico possuída de braba... Com o namorado também... Eu sempre fui difícil, nunca fui de ligar, de correr atrás, e ele reclama disso, mas tenho medo de ligar e ele não poder me atender ou não falar direito comigo... Porque isso me irrita muito. Analisando a história de vida de M. pode-se entender algumas questões trazidas por ela. Primeiramente a mãe engravidou ainda solteira, com 18 anos, situação que assustou bastante seus pais. A mãe relata ter vivido uma gestação muito boa e que “isso foi a melhor coisa que lhe aconteceu” (sic). Logo após seu nascimento, o pai adoece de uma patologia bastante rara, deslocando para si a atenção materna. Assim, na provável fase simbiótica mãe-bebê, o investimento necessário na filha neste período não pôde ser realizado, e o pai, de certa forma, competiu em relação ao olhar e cuidados da mãe. Depois disso o pai recebe proposta de trabalho em outra cidade, e aí se segue uma fase de muitas mudanças na família – troca de cidades, dificuldade de adaptação nos apartamentos, saída de M. do quarto dos pais e logo a vinda de um outro bebê, situação que M. lidou muito mal, saindo de casa e indo morar um tempo com a avó materna, recusando a mãe e regredindo bastante em seu desenvolvimento, voltando a usar chupeta e fraldas e dormindo na cama dos pais. Os efeitos das referidas experiências apresentam-se nas dificuldades de M: Eu já abri mão de muita coisa por causa do meu pai... Eu tive proposta pra ser modelo... Eles acabaram me convencendo que aquilo não era pra mim. Quando os outros perguntavam se eu gostava disso, de ser modelo, desfilar, posar, se eu ficava meio quieta a mãe já dizia: ‘acho que não gosta né M.?’, aí eu ficava meio assim, e meio que concordava com aquilo... Em relação aos namorados também... Nunca nenhum era pra mim na visão do meu pai... Ninguém serve... A mesma coisa com a escolha do curso pro vestibular... O pai sempre quer me convencer de que o melhor pra mim é a área das exatas pra eu continuar a loja dele (...). Verifica-se, assim, as questões transgeracionais que circulam na relação adolescente - pais. Diante das tentativas de individuação da filha, os pais assumem o lugar de quem direcionam suas escolhas e desejos. Assim, a adolescente sente-se sem 160 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 espaço para poder construir sua própria trajetória. Kancyper (1999) trata do assunto, referindo que muitas vezes não se permite uma confrontação entre as gerações, anulando-se as diferenças e produzindo alienações. Sabe-se que os pais também precisam promover elaborações psíquicas complexas, já que o crescimento dos filhos reativa sua própria história, fazendo-se necessária a ressignificação de sua própria adolescência. O pai de M. revela algumas questões interessantes a esse respeito. Diz ele: Batalhei muito pra ter o que tenho hoje... Vim de uma família muito pobre, sem condições... Então hoje a gente tem um bem muito importante sabe (a loja)... Mas claro que eu não obrigo os filhos a seguirem isso, mas não vou negar que eu me orgulharia muito... O que eu faço é aconselhar, eu digo pra M. que a minha opinião é de que os cursos na área técnica seriam bons pra ela, já que conseguiria trabalho mais rápido, ganharia melhor e ainda poderia aliar a teoria com a prática, na loja no caso, né. Só que se ela não quer... Agora ela trancou a faculdade de administração né.. Não vou negar que fiquei decepcionado, frustrado... Mas tudo bem (...). Na fala pai aparece o aspecto narcisista relacionado ao interesse de que a filha se identifique com o seu projeto, que seja uma extensão dele, negando a possibilidade de diferenciação subjetiva e alimentando o desenvolvimento de um processo alienatório. Isto leva a crer que as mensagens contraditórias e paradoxais dos pais causam dificuldades e confusões significativas para o filho adolescente. M. traz esta sensação de ambivalência dos pais ao dizer que: “eles falam que me soltam. Na verdade soltam a cordinha, mas ficam segurando, até o alcance das vistas deles (...) Pros outros dizem que lá (cidade que moram) não tem futuro nem perspectivas, mas estão sempre mostrando que o meu futuro é lá”. Nesta dinâmica M. não parece ser reconhecida como sujeito e sim como objeto significado e caracterizado pelos pais (Leivi, 1995). Bloss (1988) refere que na adolescência ocorre um segundo momento do processo de separação-individuação. O autor fala da importância da criança ter adquirido a constância objetal e da essencial disponibilidade dos pais para permitir a separação, diferenciação e individuação do filho. O afastamento do adolescente em relação ao discurso, opiniões e ideais dos pais evoca, muitas vezes, sentimentos de ameaça, frustração e de inutilidade nos pais. Todos os envolvidos neste processo precisam elaborar os lutos decorrentes daí, desfazendo-se dos aspectos mais infantis e imaturos. Knobel e Aberastury (1992), assim como Levisky (1998), assinalam que a “adolescência normal” necessariamente implicaria no luto pelo corpo infantil perdido, pelo papel e identidade infantil, pelos pais da infância e pela bissexualidade infantil. Assim, caracteriza-se uma dinâmica de desestruturações e reestruturações no psiquismo, na busca de auto-afirmação e consolidação de uma identidade, tanto por parte dos pais quanto dos filhos. J., um adolescente de 15 anos, traz estas questões em seu tratamento. Certo dia chegou na terapia dizendo que o pai pediu que ele tratasse de dois assuntos, os quais traz anotados em um papel: “Eu em primeiro lugar” e “conceito de família”: Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 161 Eles (pai e madrasta) não entendem que cresci... Que chega de ficarem me protegendo... Eu quero bater a cabeça, quero aprender sozinho... Chega de quererem me preservar, de resolver por mim, o pai sempre dá um jeito quando eu me enrosco com alguma coisa... Eu to sentindo necessidade de assumir sozinho as coisas, sei que as conseqüências vêm, mas é só assim que eu vou crescer eu acho, aprender, mudar... Porque pra mim tá muito cômodo: ganho tudo pronto, faço o que quiser e ele dá um jeitinho... Eles me acham egoísta porque dou mais valor às jantas com minha turma ou à minha namorada do que os programas deles... Mas é óbvio né?. O afastamento da proteção parental e o enfrentamento das situações muitas vezes são recebidos contraditoriamente pela família dos adolescentes. De um lado, estimula-se a independência, a autonomia, o comprometimento maior. De outro, resistese à perda da dependência. As ambivalências são constantes. Situações infantis mesclam-se com posicionamentos e posturas adultas, num processo de progressões e regressões freqüentes. Aparece o desejo de autonomia e liberdade fundidos com os temores e inseguranças decorrentes daí. A paciente M. refere esta problemática: “Parece que eu sou uma bonequinha de porcelana... Se todo mundo tá ai quebrando a cara, lutando pelo que quer, mesmo que tenha que sofrer, cair, porque eu não posso? Eu não sou tão frágil assim como eles pensam” (M. 18 anos). Por outro lado, M. demonstra bastante insegurança e dificuldade de abrir mão do lugar até então ocupado na dinâmica familiar: Falei com o pai sobre o curso que quero fazer... Ele aceitou bem, disse que se é isso mesmo que eu quero então é pra eu ir atrás, batalhar... Ai, mas me deu um medo! Uma confusão na minha cabeça... Sair de casa, ir pra outra cidade, ficar sozinha... Eu comigo mesma... Aiaiai, não sei se consigo... Às vezes dá vontade de desistir. O novo, o desconhecido, os desafios inerentes a essa etapa trazem consigo temores e angústias importantes. Os pais muitas vezes apropriam-se desta insegurança e ambivalência dos filhos para justificar e manter a dependência. O pai de M. aponta esta situação em seu discurso: A verdade não é que eu não deixo ela sair e escolher o que quer. O que eu não aceito é largar ela em outra cidade sem ela nem saber o que quer, falta ter um ideal, um objetivo, aí eu apoiaria. Teve um dia que ela me jogou na cara que não foi modelo e não foi pra São Paulo por causa minha, que eu não permiti, ai eu falei pra ela nunca mais repetir aquilo, porque se não deu certo foi por culpa dela, por ela não ter se mostrado nem um pouco preparada, não ter tido persistência, nem lutado pelo que queria. Era a mãe que tinha que fazer tudo por ela: ligar para as pessoas, falar, se informar, ir pra São Paulo. Ela queria, mas por outro lado mostrava o tempo inteiro um despreparo total e uma falta de convicção. Eu, com 15 anos saí de casa pra estudar... Saí brigado com meu pai, foi um horror. E na minha família já tinha tido outras brigas, o meu pai e meu avô nem se falavam, brigaram feio (...). 162 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Por conhecer a história paterna, M. parece carregar um medo intenso da repetição destas rupturas. Deseja construir seu próprio projeto sem promover conflitos e rompimentos, quer diferenciar-se da história do pai. Torna-se claro, assim, que a emergência do filho questionador, pensante e desejante provoca rupturas nos ideais parentais e, dependendo da forma que for conduzida, pode levar a conseqüências negativas. Os processos de desidentificação comovem e produzem um certo vazio, que é vivido como perigoso (...) Ao desidentificar-se parcialmente dos pais, o ego se vê sem apoio, circunstância que promove novas identificações substitutas, que podem interromper o processo de mudança, dirigi-lo a situações deteriorantes ou destrutivas (como quando se identificam com um líder psicopático ou adicto), ou a um futuro que fortaleça um narcisismo trófico e promova um enriquecimento vital para o sujeito” (Urribari, 2004, p. 46). Nesse contexto, o autor traz como desafios para a dissolução do processo adolescente a reaproximação de seu corpo, a reapropriação de sua história, podendo desgarrar-se do passado, afastar-se do projeto idealizado pelos pais, do narcisismo primário e, assim, assumir a direção da sua própria vida. A mãe de M. refere que “cria os filhos para o mundo” (sic) e que sabe o quanto faria bem para a filha sair de casa, ter seu espaço e poder decidir com tranqüilidade o caminho a seguir. Comenta, ainda, o quanto gostaria que M. fosse mais próxima dela: “Qualquer coisa que a gente pergunta ela se irrita... Ela já te olha e vira as costas sem dizer nada...”. Trata-se de uma situação muito freqüente vivida entre pais e filhos. Os “por quês”, “para quês” parecem perturbar o adolescente, geralmente em função deles próprios não possuírem muitas respostas e certezas neste período. Outra questão relevante no processo adolescente é o “grupo de iguais”, que aparece como uma das vicissitudes do movimento de desidentificações e neoidentificações, já que a homogeneização presente e as características específicas do grupo – tatuagens, jargões, itens de consumo, etc., possibilitam no real, no concreto, a diferenciação, a originalidade, a conquista de um espaço subjetivo próprio e de reconhecimento especular2 . O grupo funcionaria, portanto, como um espaço necessário para o adolescente desfazer-se temporariamente dos modelos identificatórios primários, através de pessoas que funcionem como espelho, permitindo dessa forma que o sujeito possa se reconhecer e perceber quem é (Seewald, 1995). O paciente J., 15 anos, coloca esta situação na seguinte fala: Meus amigos são tão família quanto o meu pai, ou até mais eu diria... Eu sempre me apoiei neles, confio em alguns, são parceria mesmo... Nunca tive família estruturada, é aquela história - quando precisei não tavam lá, agora não quero e ficam me cobrando que ando muito com os guris, que priorizo eles ou a namorada do que a família... Isso me irrita, querem me mimar... A D. 2 Pode-se concluir que a “turma” do adolescente funciona como um “eco-ego”, já que os “outros” permitem a percepção de sua própria dinâmica, suas próprias questões, conflitos e sentimentos, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 163 (madrasta) é medieval, conservadora, quer mimar demais, ‘meu gurizinho pra cá, meu gurizinho pra lá’. Sai fora! Não quero saber disso, quero me virar, não quero que ninguém faça as coisas por mim, não sou uma anta... E com a gurizada a gente se diverte, toma os tragos, toca guitarra, é óbvio que vou preferir ficar com eles. M.,18 anos, também traz o grupo de amigas como um espaço no qual consegue se reconhecer, testar seus limites e funcionar por complementaridade: Eu sou muito impulsiva – já me dei mal por isso – mas tenho uma amiga que é o oposto: pensava demais antes de agir, acabava não vivendo até... A gente se completava: Eu empurrava um pouco ela e ela me travava... Eu ensinei ela a não pensar tanto em algumas situações, e ela me ensinou a pensar mais em outras. Fonagy e Target (2004) referem que muitas vezes os colapsos emocionais advindos na adolescência surgem da consolidação inadequada da capacidade de simbolização dos vazios e lutos inerentes a essa fase. Portanto, faz-se fundamental elaborar e simbolizar a separação dos pais, o corpo infantil e a mudança de representação dos objetos internos. Usualmente os adolescentes utilizam defesas onipotentes e maníacas para lidar com ansiedades depressivas, paranóides ou confusionais. Assim, criam um espaço mental, marcado por fantasias inconscientes idealizadas, muitas vezes dominado pela destrutividade e pelo isolamento (Levy, 1996). As atuações também se apresentam com destaque neste estágio evolutivo, já que é usual o uso da comunicação não-verbal e de expressão dos impulsos e fantasias por via da ação. O paciente J. traz em seu discurso aspectos bastante destrutivos, brutos, idealizando situações perigosas, mostrando-se, muitas vezes, arrogante e onipotente: Eu sou muito forte pra bebida... Tomo um litro de whisky e não me faz nem cócegas... Sou bagual mesmo! (...) Eu adoro as coisas de Gaúcho – facão, palheiro, cachaça... Esses dias tirei o chapéu de ver a forma que um gaúcho encarou uns 5-6 índios em cima dele, só com o facão. (...) Quero fazer várias tatuagens: diabinho “descendo” no peito, um de cada lado, fogo nos braços, caveira tocando guitarra, e na perna uma fumaça com os rostos das pessoas que gosto (...) Quando eu ando de moto eu me possuo... Enlouqueço, faço e aconteço... Me sinto livre (...) Na cidade é foda encontrar alguém que toque guitarra como eu... Nunca fiz aula, mas toco muito melhor que vários famosinhos da cidade aí. A grandiosidade ilustrada nestas colocações pode ser entendida como “refúgios narcísicos” diante das situações que se apresentam neste período evolutivo. As defesas narcisistas ocupam um lugar de destaque na psicodinâmica adolescente, cumprindo a função de negar a consciência de separação do objeto pela dor depressiva e sentimentos de solidão em relação à dependência, buscando alternativas mágicas e onipotentes para lidar com a frustração, o sofrimento e o vazio. 164 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 O self libidinal, em situações de desamparo e fragilidade, pode entregar-se ao self destrutivo, pois este, disfarçando a sua natureza mortífera, apresenta-se como forte e acena com soluções ideais, rápidas e onipotentes. Apresenta-se especialmente protetor contra o sofrimento inerente à boa dependência que levaria ao crescimento. (Levy, 1996, p. 226) A partir de todas as questões discutidas, fica claro o quanto o processo adolescente apresenta-se com conflitivas e angústias específicas do momento, as quais necessitam ser “metabolizadas” pelo adolescente e sua família para que o desenvolvimento rume satisfatoriamente a uma maior estruturação psíquica. Faz-se fundamental, portanto, ressignificar os lugares e papéis até então ocupados, reformularse subjetivamente para que se possa adquirir uma identidade própria, condizente com seu desejo, e não alienada ou subordinada às figuras parentais. As nuances da adolescência na clínica: questões técnicas Os desafios na análise de adolescentes são muitos. Os pais reais ainda estão muito presentes, o que necessariamente implica a inclusão destes no tratamento. Assim como os pais que, ao se defrontarem com a adolescência dos filhos precisam ressignificar a sua passagem por essa etapa e elaborar suas angústias, o analista também precisa estar disposto e aberto à intrusão de aspectos de sua adolescência no percurso do tratamento. Questões transferenciais e contratransferenciais precisam ser trabalhadas de forma a não serem atuadas no tratamento, interferindo negativamente no mesmo. Por meio do trabalho analítico, o analista ressignifica sua própria criança ou adolescente em relação com os pais de sua história pessoal, ao mesmo tempo que a relação vincular no par analítico (filho – analisando com o analista) ressignifica aquelas situações narcisistas e edípicas não-resolvidas da história individual de cada um dos progenitores e do par conjugal, e exerce neles contínuas reestruturações que, por sua vez, incidem nas vicissitudes do processo analítico do filho. (Kancyper, 1999, p. 113) Jack Novick (2004) trabalha a questão da aliança terapêutica como condição necessária para que se estabeleça um tratamento eficaz. Segundo o autor, é responsabilidade do analista criar e manter essa aliança terapêutica –– entre pais e terapeuta, adolescentes e os pais, terapeuta e adolescente, e entre os pais: “A transformação da relação com o self, com os outros e com a realidade externa é, para nós, a maior tarefa do desenvolvimento adolescente” (p. 287). Pode-se pensar no tratamento analítico como uma possibilidade do adolescente reaproximar-se de forma diferente de sua própria história, constituindo pontes entre o passado e o presente, podendo passar da repetição à recordação (Rubinstein, 1998). Neste contexto, a posição do analista seria de auxiliar o adolescente e sua família em seus processos identificatórios e desidentificatórios, acolhendo as angústias e sofrimentos inerentes da condição de surgimento de uma subjetividade autêntica. Kancyper (1999) indica: “É função do analista de crianças e adolescentes liberar os Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 165 pais e analisando do cativeiro narcisista no qual participam e padecem, com a participação do filho ou sem ela – segundo a singularidade de cada caso (...)” (p.116). No discurso da paciente M. e de seu pai aparecem estas questões narcísicas e, principalmente, os aspectos geracionais envolvidos na relação pais-adolescentes. A ambivalência e as flutuações progressivas e regressivas apresentam-se constantemente: Falei com o pai sobre a minha vontade de ir para a outra cidade, fazer cursinho, agora no fim do ano... Me encorajei e fui falar com ele, só que ele fica me enchendo de minhocas na cabeça... Fica me perguntando: “vai trabalhar?” “Como vai pagar o teu aluguel a tua faculdade?” E mais um monte de atucanações... Eu me irritei e disse: “pai, quando tu saiu de casa tu saiu pensando nisso tudo?”. Só que aí ele fica dizendo que é diferente: “Sabe quantos anos eu demorei pra pagar a pensão onde fiquei na cidade?... Demorei três anos depois de ter saído de lá pra pagar tudo”. Ele acha que eu tenho que fazer a mesma coisa parece (...). Às vezes até penso em parar com tudo isso e ficar lá mesmo. Mas sei que não vou ficar bem... Vou só contentar o pai, agradar ele e não seguir o que eu realmente quero e penso que é melhor pra mim. A partir do relato da paciente pode-se perceber a dificuldade do pai de visualizar a diferença de gerações existente entre ele e a filha, e as resistências e temores dela em assumir suas próprias escolhas. O pai apropria-se das inseguranças de M. para alimentar uma maior dependência, não favorecendo a diferenciação. Cabe ressaltar, neste sentido, que o relato de M. e as idéias de seu pai despertam na terapeuta um receio de que o pai, por se mostrar possessivo, controlador e possuir uma atitude autoritária, possa interferir no tratamento, boicotando as melhoras e o crescimento da filha, não permitindo que ela possa sustentar e assumir seu desejo. A paciente já alerta sobre isso, na primeira sessão: “nunca ninguém vai entender a relação que existe entre eu e meu pai”. Em outra sessão, M. demonstra a ambivalência vivenciada tanto por ela quanto pelo seu pai em relação ao processo de separação e diferenciação. Traz o desejo de sair de uma posição mais dependente contraposto com uma total insegurança e dificuldade de encarar a necessária frustração decorrente de sua diferenciação, temendo perder o lugar da “bonequinha de porcelana do papai” e mantendo o vinculo infantil: Pedi pro pai pra ir pra X (cidade do namorado) e ele deixou, bem na boa... Depois eu disse: ‘quero te pedir uma outra coisa agora... Posso ir na quinta ao invés de sexta?’ O pai não respondia, ficava mudo, se fazia de surdo.... Não entendo isso, me irrita... Perguntei pra mãe por que ele não respondia nada... Então que dissesse de uma vez: ‘não vai guria, para de incomodar’, mas não dizia nada... Demorou um dia pra responder e aí disse numa naturalidade: “tá, vai”, E sabe que no fundo eu nem queria ir quinta mesmo (...) Me surpreendi... Na verdade não gostei muito do pai ter deixado assim. Tava preparada pra brigar, discutir, chorar. Todas essas mudanças na dinâmica familiar acarretam receios e angústias importantes. Sobre isso, Marchevskyd (1985) comenta que o adolescente “normal” apresenta conflitos neuróticos e até mesmo momentos psicóticos de forma ocasional, 166 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 passageira. A presença acolhedora de alguém neste período traduz-se como imprescindível para que ocorra uma maior estruturação psíquica. Jack Novick (2004), baseando-se na teoria winnicottiana, aponta que o adolescente precisa desenvolver a “capacidade de estar só”, de valorizar-se a si mesmo e envolver-se em relacionamentos de confiança mútua com os outros: “Atribuindo significado e ordem ao caos, transformando fantasias em objetivos realistas, queixas externas e explicações circunstanciais em significações internas, motivações e conflitos, sentimento de desamparo em competência, desesperança em esperança” (p.287). É inegável que os pais precisam ser acolhidos e trabalhados pela terapia, possibilitando um espaço de escuta e um repensar acerca do processo adolescente do filho. A aliança terapêutica estende-se à família do adolescente, permitindo uma atitude reflexiva e elaborando ressignificações necessárias. Kerry Novick (2004) refere que para que realmente aconteça a psicanálise precisa-se abrir um espaço para os pais, já que “sem os pais internos para nos manter a salvo é muito difícil envelhecer” (p.320). O terapeuta precisa ser continente das histórias de vida dos pais, ajudando-os a permitir a necessária diferenciação e confrontação entre as gerações: Compreender e aceitar que a diferença entre pais e filhos e entre irmãos não é negativa e que, pelo contrário, constitui o fundamento que preserva o sujeito da alienação tanta parental-filial como fraterna, tem uma conotação afirmativa – e incontestável - para plasmar a identidade e poder mantê-la em todas as etapas da vida (Kancyper, 1999, p. 197). A contratransferência do terapeuta em relação aos pais também é uma questão técnica fundamental. Marchevskyd (1985) aponta que não estamos a serviço dos pais para transformar o adolescente no filho ideal que eles almejam. Além disso, é fundamental estarmos cientes de nossas posturas frente aos pacientes, cuidando para não nos identificarmos demasiadamente com eles, podendo chegar ao extremo de criar conluios inconscientes contra os pais. Além disso, pode-se correr o risco de anular a função terapêutica e ocupar um papel de cuidador, provedor, gratificando a necessidade neurótica do paciente, ou ainda criar identificações reativas, tratando o paciente de modo oposto aos objetos originais. Assim, o analista corre o risco de idealizar o adolescente e unir-se à sua crença de onipotência (Bernstein & Glenn, 1991). Daí a importância da auto-análise e das supervisões psicanalíticas para que se compreendam as reações emocionais do terapeuta e preservese a postura analítica no tratamento dos adolescentes e seus pais. Numa sessão conjunta de J. e seu pai, o pai apresentou-se intolerante, radical, mostrando-se indisposto ao diálogo: “A partir de hoje não tem mais acordos, nem flexibilidade, vai ser do meu jeito, vai cortar os cabelos, se sobrar tempo vai namorar, não vai sair final de semana, nem tocar guitarra...”. Diante disto, a terapeuta procurou conduzir para uma possível negociação entre pai e filho, mostrando a importância do diálogo entre ambos e fazendo-os pensar nas conseqüências de tais atitudes inflexíveis e radicais, mas o pai ignora quaisquer colocações e continua: “Eu sou o prefeito e ele o vereador... Ele Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 167 pode tomar as decisões dele desde que não interfiram no meu governo (...) Já que ele criou o mundo dele, eu vou fazer o mesmo, ser tão individualista quanto ele”. Tal postura do pai provocou na terapeuta um certo rechaço e uma identificação e empatia com J. Ao dar-se conta dos sentimentos despertados pela intolerância do pai a tudo que diz respeito ao processo adolescente do filho: roupas, turma de amigos, namorada, estilo próprio, linguagem, etc., pôde-se trabalhar a dificuldade do pai em relação à diferenciação do filho, já que os dois mantiveram por muito tempo uma relação bastante fusionada, indiscriminada (inclusive apresentam o mesmo nome inicial). Diante disso, o pai precisou repensar até onde vai o seu comando, selecionando esferas em que teria este direito e outras em que estava sendo intrusivo demais, inclusive tentando governar o tratamento. A vinheta clínica apresentada sugere o quanto o filho pode ser visto como uma extensão narcísica dos pais. No caso de J., seu pai sente-se no direito de impor a forma de ser, de se vestir, num desejo de transformar o filho no seu modelo ideal, negando as diferenças e as singularidades. Sabe-se que, de fato, o adolescente e seus pais criam mundos diferentes, o que para algumas famílias acaba se tornando fator de conflitos. Na sessão posterior J. estava muito indignado com a postura do pai: “Ele perdeu toda a moral comigo... Logo ele que é todo das negociações e diálogos por ser empresário... Moral de cueca! Fiquei puto da cara”. Apesar das dificuldades no vínculo entre pai e filho, o pai parece ser a figura que representa cuidado, suporte, limites. Isto se explica pelo fato de J. referir que depois da separação dos pais optou por ficar com o pai, já que a experiência que teve morando com a mãe foi desastrosa, sem nenhum limite, traduzindo-se numa sensação de abandono e indiferença: Quando morei com a mãe foi uma época que fiquei vadiozão... Matava aula todo dia, só bebia, fumava, fui muito mal no colégio, quase rodei, fazia de tudo... Ela não tava nem aí mesmo, uma indiferença total... Podia sumir de casa uns dias que ela nem telefonava pra saber o que acontecia... Então óbvio que sei que é importante o limite, não quero que o pai seja como a mãe, que me largue, mas também tem que ter algumas aberturas, senão não dá... Tem coisas que sei que tô errado, em relação aos gastos, volume da guitarra, por exemplo, sei que às vezes excedo. Acho até certo se o pai resolver passar meu celular pra cartão, nesse caso não vou nem ‘chiar’... Mas ele não vai poder me proibir de sair, nem mudar meu cabelo, nem minhas roupas, nem namorar... Se ele se meter nisso vai ter guerra... Não vou mais ficar sempre cedendo, sempre me adaptando ao jeito dele... Ele disse que não podia fazer tatuagem por causa da imagem dele que ia ficar comprometida... Que ridículo! E a minha imagem própria? Quando vou poder ter então? Vou ter que ser sempre a sombra dele? E quando ele vai deixar de olhar só pra opinião e julgamento dos outros e olhar pros dele?. Auxiliar aos adolescentes e seus pais nesse processo de diferenciações é uma das tarefas fundamentais da análise. Oferecer um espaço de escuta e possibilidades de ressignificações torna-se fundamental neste processo. 168 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Em relação à técnica psicanalítica de adolescente não se pode deixar de citar outra questão relevante: a interferência do narcisismo do terapeuta no tratamento. Sabe-se que os aspectos narcisistas do analista podem afetar prejudicialmente o percurso da análise, caso não estejam adequadamente trabalhados. Nesse sentido, Bernstein e Glenn (1991) referem que o analista pode representar o paciente como uma extensão de si, em função da identificação com o adolescente ou a partir de uma transferência estabelecida com os pais do adolescente, os quais acabam sendo equiparados com os pais do analista. Em função disso, ressalta-se a importância das reações emocionais do terapeuta, tanto no sentido de constituírem-se como ferramentas fundamentais para a compreensão psicodinâmica dos pacientes, como no sentido do risco potencial de produzirem pontos cegos perigosos, podendo traduzir-se em comportamentos antiterapêuticos (Bernstein & Glenn,1991). Faimberg (2004) mostra que é através do entendimento e interpretação das situações transferenciais que se tornam possíveis os processos de deslocamento, de repetição e a oportunidade de elaboração e visualização de novas soluções para os conflitos. Leivi (1995) reafirma esta idéia, outorgando ao espaço analítico o lugar por excelência da reconstrução subjetiva, em que o paciente precisa colocar em primeira pessoa a sua história, suas lembranças e a sua identidade. É fato a importância do vínculo estabelecido entre o terapeuta e o paciente como fator primordial para que se possa trabalhar as questões do paciente e o tratamento surtir efeitos positivos. O paciente J., já bastante vinculado ao tratamento, refere: Eu sinto que aqui na terapia eu consigo clarear a cabeça... Discriminar as idéias... Sei que quando fumo, por exemplo, tô tapando o sol com a peneira, sem realmente pensar... Mas quando venho aqui ou quando toco minha guitarra, parece que abre a cabeça. O tratamento de adolescentes também pode auxiliá-los no sentido de percorrer o caminho necessário até a internalização de objetos continentes e cuidadores. Com isso, emerge a possibilidade de enfrentar a dor e as frustrações sem ter que se utilizar soluções mágicas e onipotentes (Levy, 1996). Na medida em que se possibilita a simbolização, ou seja, a representação em palavras das vivências, dos sentimentos e daquilo que foi excluído da “história oficial”, os não-ditos, o silenciado, o desmentido, os acting outs perdem seu lugar de destaque na dinâmica do adolescente (Leivi, 1995). Zimerman (2004) coloca que o papel do terapeuta não é de “conselheiro”, nem de “juiz”, e sim de “conciliador”. Segundo o autor o terapeuta deve “exercer a função de assinalar os transtornos de comunicação, a ocupação dos lugares, o desempenho dos papéis, o respeito pelas diferenças” (p. 362). Percebe-se, portanto, a necessidade do analista de adolescente possuir condições pessoais para lidar com questões primitivas, tais como funcionamentos fusionais, intrusivos, sentimentos de vazio, abandono, angústias persecutórias, etc. Torna-se indispensável, por parte do terapeuta, a capacidade de suportar descargas emocionais intensas e a tomada de consciência dos aspectos contratransferenciais evocados. Ressalta-se, mais uma vez, a importância da análise pessoal e a busca de supervisões, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 169 para que se possa clarear os pontos cegos eventualmente presentes, e conduzir de forma mais eficiente o tratamento. Considerações finais A adolescência apresenta-se como um processo repleto de mudanças, angústias, temores e desafios. Seewald (1995) refere que neste período evolutivo ocorre um movimento constante de “ir” e “vir” entre o mundo infantil e o mundo adulto, caracterizando um estágio transicional: (...) Poderiam ser comparados a pseudópodes que ora assumem a forma de atividades delinqüências, ora perversas, ora esquizóides (...) Ao mesmo tempo tudo pode se interromper como se o psiquismo fosse colocado em ‘off ’, lembrando, legitimamente, o efeito de ‘conchas autísticas’ proposto por Tustin (...) (p. 76) Desta forma, o tratamento efetiva-se a partir de oscilações permanentes entre refúgios e saídas, e objetiva favorecer identificações estruturantes, ou seja, auxiliar o adolescente na construção de uma identidade própria, autêntica, íntegra e não mais existir através de identificações alienantes. Através desta subjetivação genuína, o sujeito tem a possibilidade de romper com a posição de condicionar a vida em função do outro, podendo passar do ego infantil ao ideal de ego adulto. A psicanálise colabora no sentido de oferecer um espaço de escuta para o adolescente e sua família, a fim de que se possa elaborar as vicissitudes relativas a este processo, assumindo suas incompletudes narcísicas, e podendo vivenciar os lutos necessários nesta etapa. Faz-se fundamental que se possa atentar às projeções parentais e aos conseqüentes alienamentos subjetivos, facilitando a individuação e a diferenciação do adolescente. O terapeuta necessita avaliar suas possíveis identificações e contraidentificações, tanto com aspectos dos pais (do adolescente e/ou de seus próprios pais) como com questões de sua própria adolescência. A compreensão dos sentimentos advindos de tais situações permite a preservação do setting terapêutico, evitando atuações. As reações emocionais do terapeuta podem, assim, serem utilizadas como um valioso instrumento no tratamento de adolescentes. Mannoni (1980) refere que “uma consulta psicanalítica somente tem sentido se os pais estiverem prontos para retirar as máscaras, para reconhecer a inadequação do seu pedido e para, de certa maneira, se questionarem” (p.104). Assim, faz-se relevante possibilitar ao adolescente e sua família um trabalho de ressignificação e reorganização simbólica de suas subjetividades e de suas histórias. Nesta linha de pensamento, Leivi (1995) coloca que o desafio do tratamento é tornar o adolescente sujeito de sua própria história. Assim, ressalta-se a importância de perceber as resistências relacionadas ao movimento de crescimento, em função das necessidades simbióticas existentes entre pais e filhos e das ilusões decorrente daí. Trata-se de permitir que o adolescente possa construir seu próprio chão, sua própria base, sem que isso promova rupturas e quebras. 170 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Poder ter o porto seguro na família, como referência e segurança, mas não ter que ficar aprisionado e alienado a este porto – eis o desafio do processo adolescente. Referências Bernstein, I., & Glenn, J. (1991). Las reacciones emocionales del analista de niños y adolescentes ante los pacientes y su padres. Revista Psicoanalisis da Associación Psicoanalítica de Buenos Aires - APdeBA, 13(3), 485-516. Bloss, P. (1988). Adolescência: uma interpretação psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes. Faimberg, H. (2004). O conflito do adolescente no adulto: as identificações alienantes através de três gerações. Em: R. Graña & A. 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Porto Alegre: Artes Médicas. Levy, R. (1996). Refúgios narcisistas na adolescência: entre a busca de proteção e o risco de destruição – dilemas na contratransferência. Revista Brasileira de Psicanálise, 30(1), 223-239. Mahler, M. S. (1982). 0 processo de separação-individuação. (H.M. Souza, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (2002). O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuação. (J. A. Russo, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1975). Mannoni, M. (1980). A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Campos. Marchevskyd, N. (1985). As Entrevistas diagnósticas com o adolescente e sua família. Em: R. Graña (Org.). Técnica psicoterápica na adolescência (pp.15-32). Porto Alegre: Artes Médicas. Millonschik, C. S. (2004). De que ado(l)esce um adolescente? Em: R. Graña & A. Piva (Orgs). A Atualidade da psicanálise de adolescentes: formas do mal-estar na juventude contemporânea (pp.69-74). São Paulo: Casa do Psicólogo. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 171 Novick, J. (2004). A aliança terapêutica no trabalho com adolescentes. Em: R. Graña & A. Piva (Orgs). A Atualidade da psicanálise de adolescentes: formas do mal-estar na juventude contemporânea (pp.285-294). São Paulo: Casa do Psicólogo. Novick, K. K. (2004). O trabalho com os pais no tratamento psicanalítico dos distúrbios adolescentes. Em: R. Graña & A. Piva (Orgs). A atualidade da psicanálise de adolescentes: formas do mal-estar na juventude contemporânea (pp.319-326). São Paulo: Casa do Psicólogo. Rubinstein, G. (1998). Reflexões acerca da prática psicanalítica com pacientes adolescentes. Em: J. Outeiral (Org). Clínica psicanalítica de crianças e adolescentes: desenvolvimento, psicopatologia e tratamento (pp.276-282). Rio de Janeiro. Editora Revinter. Seewald, F. (1995). Transferência e adolescência – Do labirinto das ansiedades confusionais ao impacto das percepções realísticas. 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Endereço para correspondência: [email protected] 172 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.173-187, jan./jun. 2008 Psicoterapia de casal: modelos e perspectivas Terezinha Féres-Carneiro Orestes Diniz Neto Resumo: Discute-se, neste trabalho, o surgimento e a articulação de modelos de psicoterapia de casal, emergentes no final do século XX e início do século XXI. Para tanto foram utilizados artigos de revisão sobre psicoterapia de casal publicados e indexados ao Psiclit, de 1980 até agosto de 2006, sob as palavras-chave: review, marital therapy e couple therapy. São focadas diferentes propostas de articulação de modelos de diversas abordagens, discutindo-se, metodologicamente, questões técnicas e/ou teóricas. Propostas de integração de diferentes áreas com a psicoterapia de casal tais como, psicoterapia breve, terapia sexual, psiquiatria são discutidas. Implicações para novas direções de estudo são indicadas. Palavras chave: terapia de casal, modelos, metodologia. Couple psychotherapy: Models and perspectives Abstract: This paper aims to discuss the origin and articulation between models of couple therapy in the end of the XX century and beginning of the XXI century. For such, revision articles about couple psychotherapy that were published and indexed to the Psiclit, from 1980 to7 august 2006, under the keywords: review, marital therapy and couple therapy were used. The focus is on different proposals for the articulation of models from different approaches, which are discussed methodologically in their technical and/or theoretical contributions. Proposals of integration between different perspectives for couple psychotherapy such as brief psychotherapy, sexual therapy, and psychiatry are discussed. The implications for new directions of study are indicated. Key words: Couple therapy, models, methodology. Introdução O objetivo deste trabalho é realizar uma revisão da construção e da articulação de modelos de psicoterapia de casal do final do século XX início do século XXI. Para tanto foram utilizados artigos de revisão sobre psicoterapia de casal publicados e indexados ao Psiclit, de 1980 até agosto de 2006, sob as palavras-chave: review, marital therapy e couple therapy. Estes artigos apontam convergências na importância dada ao surgimento de modelos e metodologias de diferentes orientações, como respostas a críticas e desenvolvimentos metodológicos. Uma abordagem compreensiva e comparativa é utilizada para delinear a visão predominante desses revisores sobre a psicoterapia de casal em relação ao surgimento de alguns dos principais modelos e suas possíveis articulações. Diversos autores de revisões sobre história da terapia de casal, quando examinados em conjunto, parecem concordar que predominaram, na história conceitual, pelo menos quatro fases metodológicas e conceituais (Gurman & Fraenkel, 2002; Gurman & Jacobson 1995; Johnson & Lebow, 2000). A primeira fase começa com a abordagem Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 173 do aconselhamento matrimonial, que se orientava por teorias psicológicas ecléticas e indiferenciadas durando da década de trinta até aproximadamente a década de sessenta. A segunda fase caracterizou-se pela aplicação do método e de teorias psicanalíticas à terapia de casal, sobrepondo-se parcialmente à primeira fase e influenciando fortemente o pensamento dos teóricos de aconselhamento de casal, da década de quarenta ao final dos anos sessenta. Já a terceira fase foi marcada pela introdução do enfoque sistêmico familiar na década de sessenta e o seu predomínio na abordagem de casais e famílias até a metade da década de oitenta. E na quarta fase, com a diversificação de modelos e abordagens, ocorreu o aparecimento de esforços de articulação entre os diferentes enfoques (Gurman & Fraenkel, 2002). Novos modelos e articulações Muitas das abordagens teóricas que orientaram o campo da psicoterapia demonstraram a eficácia de seus modelos durante a década de 1970 e 1980 (Garsk & Lynn, 1985; Smith, Glass & Miller, 1980a). Assim, diversos autores, de modo mais confiante, procuraram expandir suas propostas para outras situações, para além da terapia individual, gerando novos modelos de tratamento. Alguns, dos mais significativos, de acordo com algumas das principais revisões sobre o desenvolvimento da psicoterapia de casal serão abordados a seguir apenas em suas contribuições e relevância para o campo (Ferés-Carneiro, 1996; Johnson & Lebow, 2000). O enfoque comportamental A terapia conjugal comportamental, mais do que qualquer outra abordagem no campo da terapia de casal, procura fundamentar-se fortemente em pesquisas empíricas. Em uma primeira fase, podemos observar a aplicação quase ingênua, de princípios comportamentais. Duas estratégias terapêuticas marcam esta etapa: a mudança terapêutica do padrão de trocas, e o desenvolvimento de habilidades. Em um primeiro momento foi proposta uma simples mudança na “troca de comportamentos” entre os cônjuges que, como método de intervenção, supostamente alteraria o padrão conjugal. No processo terapêutico, a ênfase estava na identificação de mudanças desejáveis para a interação e, então, em treinar estes comportamentos, em uma altamente estruturada seqüência de reforçamento mútuo (Stuart, 1969). Esse estilo de remanejamento da interação conjugal foi substituído, à medida que seus resultados foram pouco animadores, por uma proposta de um “contrato de boa fé”, no qual os comportamentos não seriam especificados e trocados de forma pareada, de um modo quase comercial, mas deveriam ocorrer de forma unilateral, e, de preferência, simultaneamente (Weiss, Bircher & Vincent, 1974). Uma das razões desta mudança de ênfase reside no fato de que os primeiros terapeutas comportamentais de casal não compreenderam adequadamente o conceito de quid pro quo (Laderer & Jackson, 1966). Interpretaram-no mais como um sistema de trocas ponto a ponto do que como, de uma perspectiva mais ampla, os parceiros definem-se a si-mesmos na relação. Partindo do enfoque de desenvolvimento de habilidades, a terapia comportamental de casais colocou ênfase no ensino de habilidades comunicacionais e na solução de 174 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 problemas dos casais, que supostamente envolveriam padrões saudáveis de casamentos satisfatórios. Estas habilidades seriam ensinadas aos casais em módulos, em uma seqüência pré-estabelecida. Curiosamente, a característica fundamental das abordagens comportamentais em terapia, incluindo a terapia comportamental de casais, a análise funcional parece ter sido desconsiderada. Desta forma, usualmente falhavam em uma importante distinção funcional comportamental; entre um problema de aquisição de uma habilidade e de sua performance, isto é, na diferença entre a aprendizagem e o uso de uma habilidade já adquirida, mas não exercida, suficientemente, em um relacionamento (Gurman & Fraenkel, 2002). Uma segunda fase na terapia comportamental de casais foi marcada pelo desenvolvimento do modelo que Jacobson e Christesen (1996) chamaram de terapia comportamental integrativa de casais, e que foi considerada uma evolução significativa. Essa e outras contribuições indicaram uma mudança na estratégia terapêutica, ou seja, do foco em mudanças comportamentais para a busca do aumento de aceitação mútua entre os cônjuges. Este desdobramento deveu-se a vários fatores, dentre eles a necessidade de desenvolver métodos para lidar com aspectos não abordáveis pelo treinamento de habilidades, e que levavam casais a permanecerem debatendo-se ao redor de questões insolúveis. Um outro fator foi desencadeado pela necessidade de implementar novas formas de terapia, que contornassem a aparente paralisação da evolução do nível de eficácia da terapia comportamental de casais (Jacobson & Adis, 1993). Esta nova fase foi marcada por um aumento na melhora dos resultados terapêuticos e pela descoberta de que “... a nomenclatura de traços psicológicos é útil para compreender nossos clientes, tal como é útil para nos entendermos na vida do dia a dia.” (Hamburg, 1996, p. 56). Tal compreensão revela-se, por exemplo, no trabalho de Jacobson e Christensen (1996) que passou a enfocar e descrever temas recorrentes de dificuldades conjugais, em uma linguagem comportamental, como classes de resposta, ao invés de comportamentos específicos. A fase mais recente da terapia comportamental de casais foca aspectos da auto-regulação, como, por exemplo, o trabalho de Halford (1998), que envolve estratégias de mudança do comportamento do outro cônjuge, a partir de mudanças nos comportamentos conjugais do outro membro do casal. Gurman e Fraenkel (2002) apontam que a aplicação de estratégias de autocontrole para mudança nas relações conjugais trouxe uma importante dimensão ao foco da terapia comportamental de casal, acrescentando múltiplos níveis de comportamento humano relevante. Curiosamente, abordagens comportamentais do autocontrole e de suas implicações para a terapia (Franks, 1969) já estavam disponíveis na década de 1960 quando aparece a primeira fase da terapia comportamental de casal. A aplicação destas novas abordagens na terapia comportamental de casal, bem como a exploração da resposta fisiológica dos cônjuges à interação (Gottman, 1998), colocaram a possibilidade de que importantes resultados no tratamento possam ser alcançados nos próximos anos (Gurman & Fraenkel, 2002). Cabe notar, contudo, que a terapia comportamental de casal tem dado pouca atenção a fatores familiares e intergeracionais no conflito conjugal, o que talvez se constitua em uma importante lacuna no seu desenvolvimento teórico e na prática clínica correspondente. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 175 Abordagens experienciais Outros modelos foram desenvolvidos influenciados pela visão humanística, mas integrando contribuições de outras abordagens. Este é o caso da escola de terapia de casal focada na emoção, que é a primeira grande reaproximação entre a tradição de terapia de família e casal e a abordagem humanística e experiencial, propostas por grandes autores como Carl Rogers (1970), Fritz Pearls (1977), seguindo uma perspectiva inicialmente desenvolvida por Virginia Satir (1964). Trata-se também de uma escola com grande base empírica e de importância histórica (Gurman & Fraenkel, 2002). A premissa fundamental da terapia de casal focada na emoção postula que seres humanos têm uma necessidade inata para contatos emocionais consistentes, seguros e íntimos. Assim, o conflito conjugal é visto como dependente da maneira como a necessidade de ligação afetiva é expressa e satisfeita emocionalmente. Teoricamente, a terapia de casal focada na emoção fundamenta-se nas teorias de relação de objeto, no entanto, seus métodos e técnicas diferem daqueles que prezam a interpretação terapêutica (Johnson, Husley, Greenberg & Schindler, 1999). Contrastando com as abordagens estratégica e comportamental, a terapia de casal focada na emoção vê a emoção como o organizador primário da experiência íntima, influenciando significativamente os padrões interacionais, percepções e atribuições de significado das interações. Assim, os objetivos terapêuticos são dois: explorar a visão que cada parceiro tem sobre si-mesmo e sobre o outro, como organizada pela experiência afetiva imediata; e auxiliar os cônjuges a acessar os sentimentos não reconhecidos em si mesmo e no parceiro, criando meios para sua expressão na sessão terapêutica. A capacidade de solução de problemas é alcançada de modo não intencional, evitando-se o treinamento de métodos específicos, como em outros modelos, como na terapia comportamental de casal. Assim, espera-se que ocorra espontaneamente, a partir do desenvolvimento da capacidade de comunicação emocional, o desenvolvimento de novas formas de se relacionar. Diversas técnicas foram descritas (Johnson & Greenberg, 1995), tais como o “ciclo de desescalação”, no qual o terapeuta cria uma aliança com o casal, delineando núcleos do conflito, mapeando situações problemáticas recorrentes e os padrões de interação insatisfatórios, acessando e facilitando a expressão de sentimentos não reconhecidos, e re-enquadrando os problemas à luz destes sentimentos. Outra técnica proposta refere-se à “mudança de posições interacionais”, na qual os parceiros são convidados a se identificar com as necessidades do outro, encorajando a aceitação da experiência emocional e explicitando, de modo claro, as necessidades emocionais de cada cônjuge. E ainda a técnica de “consolidação e integração”, na qual se desenvolvem novas soluções para velhos problemas, consolidando posições e padrões de ligação afetiva emergentes (Johnson, 1999). O foco central da terapia é a expressão emocional, assim, o terapeuta não se preocupa em explorar o passado, interpretar motivações, desejos ou conflitos inconscientes, ou ensinar habilidades interpessoais e comunicacionais. A terapia de casal focada na emoção tem encontrado bases empíricas para sua prática e, mais do que outras abordagens de terapia de casal, tem apontado o lugar relevante do si – 176 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 mesmo de cada cônjuge, respeitando sua fenomenologia e subjetividade, mantendo ainda uma visão do casal como sistema. Como notam Schwartz e Johnson (2000): “...o campo da terapia de casal está lentamente retomando aquele ‘pega-toca’ visionário de Virginia Satir e se livrando de sua herança não emocional.”( p. 29). Outra contribuição significativa é o trabalho de Snyder (1999), que postulou a terapia de casal orientada para o insight, apresentando estudos e pesquisas sobre o seu desenvolvimento, bem como demonstrando a sua eficácia a longo prazo. Embora as raízes da abordagem da terapia de casal orientada para o insight remontem aos métodos psicodinâmicos da década de 1960, ela é, até o presente, o método com as bases empíricas mais relevantes para a fundamentação deste enfoque e para a reemergência dos procedimentos da abordagem psicodinâmica de casais daquele período. Contudo, a terapia de casal orientada para o insight não é uma abordagem psicanalítica ou mesmo uma abordagem puramente de relações objetais. Ela enfatiza as disposições relacionais do indivíduo e seus núcleos temáticos individuais associados, gerados nas relações íntimas, incluindo a família de origem. Dois núcleos teóricos sustentam este modelo: a teoria dos papéis interpessoais (Anchin & Kiesler, 1982), e a teoria de esquema (Young, 1994) de orientação cognitivista. Porém, a teoria é psicodinâmica coincidindo com aspectos de modelos baseados na teoria de apego (Bolwby, 1985). A terapia de casal orientada para o insight reconhece os processos e conflitos interpessoais e intrapessoais como reais e significativos para a qualidade da relação conjugal. As contradições e incongruências entre indivíduos, sobre suas expectativas e necessidades na relação, marcam a forma como o casal se organizará ao redor do que Snyder (1999) se refere como uma manutenção inadvertida dos parceiros de padrões mal-adaptativos de relacionamento. O terapeuta tem, como técnica central, a interpretação do comportamento, sentimento e cognições dos cônjuges, tanto no contexto atual como na história de vida do casal. Assim, da mesma forma que nas primeiras abordagens de terapia psicanalítica de casal (Gurman & Fraenkel, 2002), a terapia de casal orientada para o insight também reconhece a presença, como clinicamente significativos, de elementos colusivos, ou seja, da identificação projetiva recíproca, que ocorre entre os membros do casal. A terapia de casal orientada para o insight pode ser vista como um quadro de referência para a organização de intervenções e o seqüenciamento do uso de técnicas interpretativas, cognitivas, experiênciais e comportamentais. A busca pelo insight, como meio de compreensão e modificação, é mediada pela interação terapêutica que, na fase de “reconstrução afetiva”, o principal momento da terapia, buscará a compreensão de temas mal-adaptados, tais como sua origem desenvolvimental, as conexões com as primeiras experiências, os medos e dificuldades atuais (Gurman & Fraenkel, 2002). Da mesma forma que a terapia de casal focada na emoção, a terapia de casal orientada para o insight representa a re-introdução de questões relacionadas ao “si-mesmo”, no contexto da terapia de casal. Para estes autores essa é uma importante tendência e, provavelmente, representa a retomada de um tema relevante, que foi, indevidamente, relegado ao segundo plano. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 177 Abordagens psicodinâmicas Gurman e Fraenkel (2002) consideram que o interesse na abordagem psicodinâmica re-emergiu na década de oitenta, facilitado por três importantes eventos. O primeiro ocorreu na medida em que pesquisadores de terapia de casal contribuíram significativamente para o refinamento de técnicas e a construção de manuais de tratamento que orientariam a prática terapêutica. Isto permitiu seu uso em estudos de resultados de eficácia. O segundo deveu-se ao surgimento de um grande número de modelos de terapia integrativos, com elementos psicodinâmicos. E, o terceiro, ocorrido na década de 1980, está relacionado ao grande número de clínicos, que trabalhando independentemente, publicaram estudos nos quais procuram desenvolver e explorar teorias, fundamentadas nas relações objetais, e técnicas para terapia de casal, refinando intervenções e estratégias (Bader & Pearson, 1988; Naldelson, 1978; Sharff & Scharff, 1991; Siegel, 1992, Solomon, 1989; Willi, 1982). Outros autores, como Ruffiot (1981), Eiguer (1984) e Lemaire (1988) desenvolveram, a partir da psicanálise de grupo, modelos psicanalíticos de atendimento a casais. Estes estudos objetivaram facilitar a individuação, modificar as defesas diádicas e individuais, tornando-as mais flexíveis, e aumentar as capacidades dos membros do casal de suportar e apoiar as dificuldades emocionais do parceiro (FéresCarneiro, 1996; Gurman & Fraenkel, 2002). Todos os métodos de terapia psicodinâmica de casal atribuem importância central à comunicação inconsciente e aos processos de manutenção de relações que caracterizam a conjugalidade. Embora muitos destes métodos utilizem diferentes técnicas e intervenções, todos parecem estar em débito com as contribuições de Dicks (1967) sobre as relações objetais na cena conjugal. Entre os conceitos centrais desta abordagem estão: a identificação projetiva, o splitting, a colusão, o holding e a contenção (Cathedrall, 1992). Assim parece que, como colocam Gurman e Fraenkel (2002), “quaisquer que sejam as explicações para o renovado interesse na psicodinâmica do casal, no nascimento deste milênio, parece que este interesse voltou contribuindo para o enriquecimento do campo” (p. 227). Campos de diálogo e articulação O campo da terapia de casal tem assistido, na sua quarta fase, a importantes diálogos e relacionamentos sinérgicos entre diferentes perspectivas, levando à integração e ao enriquecimento de modelos (Gurman & Fraenkel, 2002). Tendências e focos, anteriormente vistos como estanques, passaram a ser explorados conjuntamente, criando espaços interdisciplinares e transdisciplinares. Quatro campos de diálogo parecem mais relevantes, pelo seu potencial e por já possuírem uma história consubstanciada. O primeiro campo refere-se à articulação de diferentes abordagens de terapia de casal, no qual diferentes escolas têm participado. O segundo trata da exploração das contribuições recíprocas entre a abordagem da terapia de casal e as contribuições da terapia breve. E, em terceiro lugar, parecem relevantes as discussões entre o campo da terapia de casal e o da terapia sexual. E, finalmente, têm ocorrido tentativas de articulação com a teoria do apego desenvolvida por Bowlby (1989). 178 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Quanto ao primeiro campo, diversos autores procuram integrar modelos ressaltando as vantagens dos aspectos mais salientes de cada abordagem, desenvolvendo uma visão mais articulada da terapia de casal, combinando diferentes formatos de tratamento e modalidades. Os modelos propostos tendem a se agrupar epistemologicamente em dois grupos, sendo um pólo mais eclético, menos preocupado com a sua fundamentação teórica, enquanto em outro pólo outros modelos refletem uma busca de consistência epistemológica. Quanto ao primeiro pólo, alguns modelos destacam-se como a terapia integrada de múltiplos níveis, desenvolvida por Feldman (1985, 1992), um exemplo característico, que procura focar os aspectos comportamentais, psicodinâmicos, sistêmicos e biológicos do relacionamento conjugal. Feldman (1992) advoga o uso adequado de sessões individuais e conjuntas, em um desenho apropriado para cada caso. Já a terapia integrativa centrada no problema, desenvolvida por Pinsof (1983, 1995), utiliza um enquadre teórico que permite tanto escolher o foco adequado a um certo caso clínico como avaliar a pertinência do uso de um certo modelo, baseado em princípios teóricos diferentes e o uso de intervenções. No modelo de Pinsof (1995), o terapeuta move-se no processo combinando intervenções de diferentes abordagens, de acordo com um plano de tratamento claramente delineado, que toma a forma de uma árvore de decisões. Assim, é possível escolher, com critério e a cada momento, modelos focados no presente, como o cognitivo, o comportamental ou estrutural, até modelos focados na historicidade, como o de relações objetais ou o modelo boweniano. Aspectos biológicos são também considerados nesta abordagem, levando a intervenções biológicas e farmacológicas. A paleta terapêutica é outro método integrativo, desenvolvido por Fraenkel (1997), que procura, de modo similar aos modelos anteriores, oferecer um conjunto de princípios para a escolha de uma teoria em detrimento de outra, em diferentes momentos da psicoterapia. Estes autores parecem seguir as observações de Martim (1976, p.8), que asseverou: “aqueles que preferem ter de escolher entre apenas os aspectos do intrapessoal ou do interpessoal limitam a si-mesmos. Esta separação é artificial e não ocorre na natureza do ser humano”. Esta observação tem levado diferentes autores a enfatizar ambos os aspectos, intrapessoal e interpessoal, combinando diferentes abordagens, como Sager (1981) que, no seu modelo de contrato conjugal, dirigi-se tanto a aspectos verbalizados e conscientes de expectativas do laço conjugal, como a aspectos não verbalizados ou contratos inconscientes, fundamentando-se na teoria psicanalítica, mas ainda assim, fazendo uso seletivo de trocas comportamentais ponto a ponto. Nichols (1988), em seu modelo integrativo, fundamenta-se nas teorias de desenvolvimento e das relações objetais, mas também utiliza intervenções de trocas comportamentais, de treinamento comunicacional e de solução de problemas. A abordagem de sistemas internos de famílias de Schwartz (1995) combina o reconhecimento da experiência intrapsíquica, baseada na história e representação internalizadas de partes do si-mesmo, e os modos como esta influencia e é influenciada pela interação em andamento. No pólo cujos modelos refletem uma preocupação com a consistência teórica e epistemológica, destacam-se várias propostas integrativas que procuram articular os Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 179 aspectos intrapsíquicos e os interpessoais. Uma abordagem deste tipo foi proposta por Bagarozzi e Giddings (1983), que procuraram apresentar uma análise cognitivoatribuicional de como parceiros reforçam e punem, mutuamente, os seus comportamentos, a partir de sua adequação, ou não, aos seus modelos representacionais internos. Deste modo, os cônjuges engajam-se em um padrão de escultura recíproca de seus modelos e comportamentos, mantendo uma conjunção emocional, através do processo projetivo. Para estes autores, tanto as dimensões conscientes como as inconscientes deveriam ser exploradas na terapia de casal. Outra proposta significativa foi o modelo intersistêmico de Berman, Lief e Williams (1981), que combina uma teoria de contrato com a teoria de relações objetas a teoria de sistemas multigeracional, a teoria do desenvolvimento adulto, e a teoria de aprendizagem social. Este modelo foca, simultaneamente, o individual, o interacional em seu aspecto conjugal e o sistema intergeracional, delineando um conjunto de intervenções originárias de diferentes tradições terapêuticas. O modelo de terapia de casal de abordagem combinada psicodinâmicacomportamental de Seagraves (1982) e a terapia de casal breve integrativa de comportamento profundo (Gurman, 2002) buscam modificar os modelos representacionais internos e interpessoais, tanto através de intervenções diretas comportamentais como através de meios interpretativos. Ambos os modelos vêem os diversos aspectos da personalidade dos cônjuges, como delineados e mantidos através de interações significativas. Assim, os autores concordam que intervenções diretivas e comportamentais podem servir como poderosos meios de mudança intrapsíquica. Outras abordagens integrativas têm surgido a partir de modelos bem diversos como a abordagem sistêmica e a psicanalítica, em especial em aplicações a família como advoga Gutal (1983), que propõe uma aproximação entre a abordagem lacaniana e a abordagem sistêmica. Féres-Carneiro (1996) considera tal integração possível e desejável, e propõe a articulação dos enfoques sistêmicos e psicanalíticos, no atendimento a família e casais, a partir de uma tríplice chave de leitura que contempla o intrapsíquico, o interacional, o social, tal como foi também ressaltado por Lemaire (1988). Diferentes modelos, que derivam da aplicação de diferentes abordagens, têm obtido, desde as décadas de 1970 e 1980, resultados comparáveis em termos de eficácia terapêutica. E, neste sentido, a pretensão de superioridade de uma abordagem sobre as demais, ainda está por se estabelecer, sendo considerada, atualmente, como improvável (Cordioli, 2002; Garsk & Lynn, 1985; Miller & cols., 1995; Pinsof & Wynne, 2002; Smith, Glass & Miller, 1980). Por outro lado, diversas perspectivas têm convidado à criação de diferentes intervenções que parecem mais se complementar do que se opor. Porém, estes resultados indicam importantes questões que apontam para problemas epistemológicos básicos do campo da psicoterapia, envolvendo o que pode ser compreendido como uma crise paradigmática, no sentido kuhniano (Diniz-Neto, 1997; Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005a). Estas tentativas de integração e cooperação devem ser entendidas como importantes contribuições para a superação de velhas rixas metodológicas e, um passo na direção de questões paradigmáticas fundamentais do campo da psicoterapia, em geral, e de casal, em particular. 180 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 O segundo campo de diálogo dá-se entre a psicoterapia de casal e a psicoterapia breve. Gurman (2001) observa que, comparativamente a intervenções psicoterapêuticas individuais, os modelos de terapia de casal tendem a ser breves, organizados de 15 a 20 sessões, em média. Tal tendência reflete um posicionamento basicamente orientado por atitudes comuns, tais como: parcimônia clínica, orientação desenvolvimentista centrada na emergência do problema em um momento específico, ênfase nas potencialidades do cliente, importância da indução de mudanças tanto fora como dentro do enquadre da terapia e foco centrado no presente. A essas características, soma-se a presença do cônjuge, estabelecendo uma relação potencialmente de maior influência que a relação terapeuta-cliente, como o enfatizado nas formas mais tradicionais de psicoterapia. Para Gurman (2001), quatro fatores técnicos comuns aos diversos modelos de terapia de casal também estão presentes na terapia breve. Em primeiro lugar, destaca-se o significado e o uso do tempo, como recurso, assim como intervenção, incluindo o engajamento em uma perspectiva desenvolvimentista do aparecimento e da formação do problema, intervenções precoces, e uma flexibilidade na duração do tratamento. Em segundo lugar, a relação terapeuta-cliente (casal), em ambas as formas, exige uma postura mais ativa do terapeuta que deve intervir mais do que, usualmente o faz, em terapias individuais. Em terceiro lugar, as técnicas de tratamento, em terapia de casal e terapia breve, tendem a incluir tanto mudanças dentro do contexto da sessão de terapia como fora. E, em quarto lugar, a abordagem focal no tratamento dos sintomas, a pedra de toque da terapia breve, está presente também na terapia de casal. Assim, Gurman (2001) coloca que a questão da integração, entre terapia de casal e terapia breve, é muito mais de reconhecimento de similitudes e aproximações do que de criar um espaço teórico comum. O terceiro campo de diálogo se estabelece entre a terapia de casal e terapia sexual, e tem sido objeto de controvérsia, praticamente, desde o surgimento quase simultâneo de ambas as abordagens. Esforços têm sido feitos na direção de um diálogo, e a existência do periódico Journal of Sexual e Marital Therapy indica esta tendência. Tal empenho é apoiado por importantes razões clínicas. Socialmente, a relação conjugal continua sendo a única instância, plenamente sancionada, na qual se espera a existência de vínculo e prática sexual. Do ponto de vista clínico, predominam, na prática terapêutica com casais, situações nas quais o casal experiencia dificuldades na esfera sexual, primariamente ou em consonância com outras dificuldades. Quase sempre, todos os casos envolvem pelo menos alguma discussão sobre a dimensão sexual do casal. Contudo, os campos da terapia de casal e terapia sexual são vistos ainda como separados e sem conexão. Esta divergência parece ter origem em uma pressuposição que predominou, no campo de terapia de casal, qual seja, que a disfunção sexual é apenas um sintoma de uma outra dificuldade do casal, como medo de intimidade, jogos de poder, tentativas de desqualificação, dentre outras. Como resultado, o campo da terapia de casal não tem dado suficiente atenção à dimensão da sexualidade e das disfunções sexuais. Outra questão a ser considerada está relacionada ao fato de as técnicas de terapia sexual terem sido desenvolvidas em um foco comportamental, sendo carregadas das implicações desta abordagem. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 181 Por outro lado, grande parte dos terapeutas de casal revela ter uma formação, primariamente, orientada pelas abordagens psicodinâmica e sistêmica, criando uma forte barreira ao diálogo (MacCarthy, 2002). Ao mesmo tempo em que terapeutas de casal defendem a integração e o diálogo mais sistemático de modelos com a terapia sexual, esta parece estar em declínio. Não por razões teóricas e metodológicas ou por ausência de resultados, pois alguns são realmente impressionantes, como os alcançados pelo método de Master e Jonhson (1990), mas por pressão de companhias de seguro, e ausência de reconhecimento da profissão. Como notam Gurman e Fraenkel (2002, p. 240):“Se houver uma substantiva e significativa integração do campo da terapia sexual e terapia de casal, novos líderes devem surgir com capacidade em ambos os domínios clínicos, e com um respeito equilibrado para a complementaridade, e os atributos potencialmente sinérgicos de ambos os domínios.” O quarto campo de diálogo refere-se à tentativa de articulação que vem ocorrendo entre a teoria de casal e a teoria do apego de Bowlby (1989) desenvolvida a partir de questões relacionadas ao estabelecimento dos vínculos iniciais entre a criança e sua mãe, ou quem exercer o seu papel. Sua abordagem partiu de uma visão psicanalítica, mas, ao incorporar métodos e modelos da etologia, da psicologia cognitiva e da teoria comunicacional, diferenciou-se, tornando-se uma contribuição original. A teoria do apego descreve como, a partir do relacionamento com figuras significativas ao longo do desenvolvimento, é construído o modelo de apego, e este pode ser inferido pela maneira como o indivíduo sente-se, comporta-se e interage com pessoas significativas na sua vida atual. Uma importante conclusão a que Bowlby (1989, p. 24) chega é que “podemos seguramente concluir que os bebês humanos, como de outras espécies, são pré-programados para se desenvolverem de uma forma socialmente cooperativa; se isto ocorre ou não, depende do modo como são tratados”. Assim, três modelos básicos podem se desenvolver: o modelo seguro, o ansioso e o evitativo. A teoria do apego considera a propensão para estabelecer laços emocionais íntimos com indivíduos especiais como um componente básico da natureza humana, já presente no neonato em forma germinal, e que continua na vida adulta e na velhice. O modelo de apego não é visto como pronto e acabado, mas em constante processo de elaboração, tanto para melhor quanto para pior, dependendo dos padrões de relação experimentados. Nas últimas décadas, muitos estudos têm buscado identificar os fatores relacionados com a qualidade do relacionamento conjugal. E um dos mais promissores e examinados fatores tem sido o padrão de apego individual (Feeney, 1999). Esses estudos apoiam-se em uma relação de causalidade, na qual o modelo de apego, construído nas relações com figuras de apego significativas, é o antecedente para a formação do vínculo conjugal, emprestando estabilidade ou instabilidade e satisfação ou insatisfação. Contudo, como ressaltam Mikulinger e cols. (2002), as evidências produzidas por estes estudos não permitem a inferência de uma relação causal simples. De fato, as pesquisas envolvendo expectativas e crenças e satisfação conjugal encontraram que sujeitos com modelos seguros de apego tendem a acreditar no amor romântico e que o sentimento de enamoramento inicial pode, em alguns casos, nunca desaparecer (Hazan & Shaver, 1987). São também mais otimistas em relação ao casamento 182 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 e relações amorosas (Carnelley & Janoff-Bulman, 1992). Além disto, sujeitos com modelos de apego seguro tendem a avaliar de modo mais positivo os diversos aspectos das relações conjugais (Feeney & Noller, 1992). Estudos sobre modelos de apego também têm consistemente revelado que pessoas com diferentes estilos de modelos de apegos também diferem igualmente em relação à manutenção de relações conjugais de longo termo e ao grau de vulnerabilidade destas ao rompimento (Kirkipatrick & Davis, 1994). Pessoas seguras tendem a continuar seus relacionamentos e a suportar melhor as dificuldades nos mesmos e, conseqüentemente, exibem menores taxas de divórcio (Hill, Yong & North, 1994). Contudo, estudos que procuram comparar estilos de medidas de apego globais e orientações específicas na conjugalidade encontram uma relação significativa entre relatos de apego seguro e de satisfação conjugal, mas, curiosamente, não demonstram relação entre estilo de apego global e satisfação com o relacionamento atual (Cowan & Cowan, 2001). Parece que o apego seguro em uma relação especifica é mais relevante para a satisfação com esta do que o estilo global de apego dos membros do casal. Esses resultados levaram diversos autores a propor uma articulação entre o modelo sistêmico de relacionamento conjugal, e os aspectos intrapsíquicos do modelo de apego (Milkulinger & cols., 2002). Tal diálogo parece promissor ao fornecer um quadro de referência integrado, no qual aspectos de um modelo sistêmico não só são propostos sobre uma base de evidências empíricas, mas, também, propiciam um nível de articulação entre experiências individuais e interacionais. Articulações entre a teoria de apego e psicoterapia de casal tornam-se, assim, possíveis. Os desdobramentos desta empreitada poderão render importantes resultados nos anos vindouros. Considerações finais Na história do movimento da terapia de casal e de seus desdobramentos recentes, alguns pontos ressaltam-se como significativos. Em primeiro lugar, tem ocorrido a emergência de um renovado interesse do individual-no-casal, com estudos sobre a importância do papel do campo emocional, e do cognitivo, não só no estabelecimento de padrões atribuicionais, mas também na construção de campos de interpretação da interação conjugal. Além disso, tem-se apontado para a importância da capacidade dos cônjuges de influenciar o relacionamento do casal através de sua auto-regulação. Esses pontos têm levado ao equivalente de uma nova introdução do si-mesmo no sistema (Nichols, 1987). Em segundo lugar, relacionado com a percepção da importância do individual no sistema conjugal, tem ocorrido uma reconsideração sobre o impacto dos transtornos psiquiátricos na vida do casal e do indivíduo. Modelos excessivamente simplistas, que colocam, ora na dimensão psíquica individual, ora na dimensão unicamente biológica, a origem e direção da evolução destes transtornos, têm-se revelado limitados. Os modelos com maior sucesso no tratamento de transtornos psiquiátricos têm focado a interação complexa de diversos fatores, tanto de ordem biológica, genética, ontológica, quanto sócio-cultural e econômica. Tais modelos têm incluído, também, fatores e efeitos de injunções sobre o indivíduo, suas relações e possibilidades de resposta, que geram Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 183 sua experiência psíquica única em sua especificidade. Tratamentos multidisciplinares têm, em diversos estudos, alcançado resultados superiores a tratamento unidisciplinares (Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005b; Gurman & Fraenkel, 2002). Em terceiro lugar, as raízes históricas da terapia de casal revelam-se múltiplas, apesar das pretensões de afiliação a uma única abordagem afirmadas por alguns autores como Haley (1984). Assim, para uma avaliação criteriosa do seu desenvolvimento e tendências atuais, é fundamental que se compreenda a multiplicidade de olhares e investigações que moldaram tendências e revelaram potenciais, desde o movimento preventivo, derivado do ingênuo aconselhamento matrimonial, até a contribuição das visões psicanalíticas, humanistas ou derivadas da psicologia social, e não somente de teorias puramente sistêmicas. O diálogo entre essas diferentes perspectivas tem-se revelado fecundo. Podemos concordar com Gurman e Fraenkel (2002) quando afirmam que “ironicamente, apesar de sua longa história de lutas, marginalização e desmobilização profissional, a terapia de casal, no final do milênio, tem emergido como uma das mais vibrantes forças no domínio da terapia de família e psicoterapia em geral.” (p. 248). E, em quarto lugar, o desenvolvimento da terapia de casal e os estudos sobre sua eficácia têm demonstrado que nenhum outro método de intervenção possui um efeito clínico significativo em tantas e diferentes esferas da experiência humana. Assim, torna-se, cada vez mais, necessário o exame crítico dos resultados destes estudos e das diferentes direções que apontam. Referências Anchin, J. C., & Kiesler, D. J. (1982). Handbook of interpersonal psychotherapy. New York: Pergamon Press. Bader, E., Pearson, & P. T. (1988). In quest of the mythical mate. New York: Brunner/Mazel. Bagarozzi, D. A., & Giddings, C. W. (1983). The role of cognitive constructs and attributional processes in family therapy: Integrating intrapersonal, interpersonal, and systems dynamics. Em: L. Wolberg & M. Aronson (Orgs.), Group and family therapy (pp. 207-219). New York: Brunner/Mazel. Berman, B. B., Lief, H., & Williams, A. M. (1981). A model of marital integration. Em: G. P. 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Cognitive therapy for personality disorders: a schema-focused approach. Sarasota FL: Professional Resource Press. Recebido em maio de 2007 Aceito em novembro de 2007 Terezinha Féres-Carneiro: psicóloga; doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP); pós-doutora em Terapia de Casal e Família (Universidade de Paris 5, Sorbonne); professora Titular do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Orestes Diniz Neto: psicólogo; doutor em Psicologia Clínica (PUC-Rio); professor do Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG. Endereço para correspondência: [email protected] Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 187 Aletheia 27(1), p.188-197, jan./jun. 2008 Compreender a gestão a partir do cotidiano de trabalho Leny Sato Fábio de Oliveira Resumo: O artigo tece considerações sobre a relação entre psicologia e gestão, apresentando a contribuição que a leitura sobre o cotidiano oferece para compreender o trabalho, os processos que o organizam e, conseqüentemente, a sua gestão. Ilustra suas considerações com a análise de um episódio ocorrido em uma situação real de trabalho marcada pela assimetria de poder. Sugere que a contribuição da psicologia para a gestão está em favorecer o reconhecimento da complexidade do cotidiano de trabalho e conclui que gerir o trabalho revela-se, não como simples prescrição e obediência, mas como a produção de uma existência negociada entre os diferentes atores envolvidos com a atividade de trabalho. Palavras-chaves: psicologia social, psicologia do trabalho, cotidiano, gestão. Understanding management from everyday work life Abstract: This paper discusses the relation between psychology and management, showing the contribution that the reading of the daily routine offers to understand the work, the organising processes and, consequently its management. It illustrates the considerations made through the analysis of an episode which happened in a real work situation based on assymetry of power. It suggests that psychology’s contribution to people management rests in favouring the acknowledgement of the complexity of everyday work life, and it conclude that managing work reveals not only simple prescription or obedience, but also as the creation of an existence negotiated between the different actors involved in the work activity. Key words: Social psychology, work psychology, everyday life, management. Introdução A relação entre psicologia e gestão pode ser abordada a partir de várias perspectivas: de sua história, de suas práticas, do papel da psicologia para o tema, dentre muitas outras. O objetivo deste ensaio é compreender a gestão a partir do que ocorre no cotidiano de trabalho. Ou seja, ao resgatar as abordagens do trabalho que analisam o que os trabalhadores fazem em seu dia-a-dia, afirmaremos que há um gerenciamento do trabalho por parte daquelas pessoas que, como muitas vezes costuma-se supor, não atuariam como gestoras e tão somente executariam o que foi planejado por outrem. Com isso, busca-se sugerir um outro lugar para a psicologia nessa discussão. Se lembrarmos qual foi a vertente preferencial adotada pela psicologia como ciência, veremos que a leitura positivista foi importante no sentido de operar a separação entre o espaço de construção do conhecimento e o espaço de sua “aplicação”1 . Isso 1 A esse respeito ver: Spink (1996). 188 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 aconteceu em diversas áreas da psicologia e não foi exceção para a área de psicologia do trabalho e das organizações. Essa separação entre espaço de construção de conhecimento e espaço de aplicação forjou a convicção de que não seria a partir dos contextos de trabalho que os conhecimentos deveriam ser construídos, pois lá eles deveriam tão somente ser aplicados após sua verificação e validação em contextos controlados. Isso deixou de lado, por um bom tempo, o que realmente ocorria no dia-a-dia de trabalho no interior das organizações e dificultou o questionamento de práticas e de concepções moldadas por essa tradição dualista. Por esse caminho a psicologia também foi levada a construir diversas tecnologias de gestão, que respondiam sobretudo aos problemas enfrentados pelos gestores no exercício de suas atividades. Esse foi o caso, por exemplo, dos testes de avaliação psicológica, os quais – como afirmou Sigmar Malvezzi (1995) em entrevista concedida há mais de uma década – estão superados há muito tempo como meio para tomar a decisão sobre a seleção de pessoas para o trabalho.2 Em O fator humano, Christophe Dejours afirma que sua motivação para escrever esse livro foi o fato de profissionais de diferentes disciplinas (engenharia, administração, medicina etc.), ao encontrarem-se no papel de gestores de organizações diversas, sentirem-se obrigados a lançar mão de alguma noção sobre o que é o “fator humano” para conseguirem lidar com as pessoas. Afirma Dejours (1997) que, dada essa necessidade, esses profissionais acabam por adotar leituras de uma “psicologia do senso comum” – ou, como afirmou Arakcy Martins Rodrigues (2005), criam uma “psicologia home made”. Efetivamente, o humano não é um “fator” que possa ser tratado a partir de controle de variáveis. Visando ofertar elementos para que os gestores conheçam a complexidade do fenômeno humano, Dejours dedica-se, nesse livro, a explicitar a complexa dinâmica processada no dia-a-dia de trabalho, tomando como ponto de partida as noções de “trabalho prescrito” e de “trabalho real” formuladas pela ergonomia de linha francesa, como em Daniellou, Laville e Teiger (1989). Outro autor que também se tornou bastante conhecido entre nós é Jean-François Chanlat, que aponta para a necessidade de nos voltarmos para as “dimensões esquecidas” da relação indivíduo-organização e, dentre elas, aponta: a dimensão do tempo no trabalho, o poder, o sofrimento, os usos e a interdição da fala no trabalho (Chanlat, 1991). Argumento no mesmo sentido foi apresentado por Ivar Oddone, psicólogo italiano, no final da década de 60. Em seu livro Redécouvrir l’expérience ouvrière – vers um autre psychologie du travail, Oddone e seus colegas Re e Briante (Oddone, Re & Brainte, 1981) apresentam elementos para afirmar a existência de uma “psicologia do trabalho escrita” e uma “psicologia do trabalho não escrita”. A segunda é a que diz respeito ao universo do dia-a-dia de trabalho que toma por base o conhecimento prático construído pelos trabalhadores e que foi ignorado pela psicologia por muito tempo, não merecendo ser “escrita”. 2 Para uma crítica da psicometria, ver Patto (1997). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 189 Antes de Dejours, de Chanlat e de Oddone,3 os teóricos da escola sociotécnica (Trist, 1976; Kelly, 1978,) haviam apresentado críticas às leituras sobre a relação homemtrabalho que eram orientadas pela abordagem tecnicista (taylorismo-fordismo) e pela leitura humanista (escola das relações humanas). Sua análise de situações de trabalho considerou o que, efetivamente, os trabalhadores faziam. E faziam muito mais do que executar prescrições: avaliavam, interpretavam, discutiam e realizavam o trabalho segundo outras regras e lógicas, enfim, os trabalhadores concretamente gerenciavam seu trabalho através dessas ações. Esses são alguns dos argumentos, provenientes de diversos países e motivados por inquietações diferentes, que mostram que a psicologia pode contribuir para o debate e para a reflexão acerca do gerenciamento das pessoas em situações de trabalho. Como diz Spink (1982a, 1982b), a psicologia tem muito a contribuir para o tema, mas não da forma como em boa parte de sua história aconteceu – isto é, oferecendo pretensas tecnologias de avaliação, de controle e tomando decisões –, mas, sim, desvelando o trabalho e os processos que o organizam tal qual se apresentam e se conformam para e pelas pessoas que compõem o “grupo primário”, isto é, as próprias pessoas que realizam as atividades. Psicologia e cotidiano de trabalho Encontremos então os elementos que podem nos ajudar a compreender as entranhas do trabalho. A começar pela definição de seu locus, o cotidiano, assim definido por Tedesco (1999, p.27): “o cotidiano é a esfera das atividades corriqueiras, comezinhas, é constituído de pequenos episódios, dos fatos ‘sem prestígio’. São os pequenos fazeres, as diversas tomadas de decisão, são as interações simbólicas e o locus no qual as representações, os discursos, as práticas são apropriadas e reproduzidas”. Configurar a esfera do cotidiano como âmbito a partir do qual a psicologia pode contribuir para os temas do trabalho e das organizações implica em tomar como ponto de partida: “...o sujeito enquanto ser particular-individual, suas relações próximas, regulares, intensivas, adesivas, fixas e mutáveis. Porém, não significa que os grandes dispositivos sociais, as macroteorias (sistemas, classes organizadas...) não possam se apresentar” (Tedesco, 1999, p. 29). Com essa perspectiva, é a leitura da psicologia social que apresentamos para contribuir para o tema da gestão e não, por exemplo, a psicologia diferencial, que norteou a construção de instrumentos de avaliação psicológica nos primórdios da psicologia industrial. Voltar-se para a esfera do cotidiano é estar disposto a movimentar-se num amplo universo de fenômenos e problemas. Considerando-se essa amplitude, foi necessário, para os fins deste texto, tomar uma questão específica e situá-la em um contexto também específico de trabalho. Assim, optamos por dedicar esta reflexão a contextos 3 E ainda poderia ser citado Le Guillant (Lima, 2006). 190 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 de trabalho nos quais a estrutura fosse hierarquizada em termos da amplitude do poder formalmente definido para as pessoas que ocupam os diversos cargos ou desempenham as diversas funções em uma empresa. Ainda que modelos atuais de gestão do trabalho estejam influenciando mudanças nas concepções sobre a gestão de recursos humanos, é fato que modelos de gestão antigos e já extensamente criticados continuam a ser utilizados, inclusive em ocupações relativamente novas, como é o caso do ramo de teleatendimento (ou telemarketing), que claramente segue velhos preceitos do taylorismo-fordismo (Ramalho, Arruda, Sato & Hamilton, no prelo). Considerando-se situações dessa natureza, uma questão se apresenta: como as pessoas lidam com contextos de trabalho em que a heterogestão é a realidade com a qual devem conviver? Definido assim o tipo de contexto de trabalho que pretendemos tomar como objeto para dar continuidade a esta reflexão, devemos agora recorrer a formulações que nos possibilitem situar o cotidiano de trabalho dentro desta condição específica: a de clara assimetria de poder e de controle na tomada de decisões sobre o trabalho e sobre o fazer das pessoas. É Michel de Certeau (1994) que, em A invenção do cotidiano, oferece-nos elementos que podem ser transpostos para os contextos de trabalho acima caracterizados. Focalizando o consumo de produtos culturais, Certeau (1994) delimita como objeto o que denomina de “politização das práticas”. Reconhecendo a situação de assimetria de poder entre os que produzem os bens culturais e aqueles que os “consomem”, o autor se pergunta: o que ocorre, por exemplo, durante as horas que as pessoas passam defronte a televisão? E nós poderíamos perguntar: o que os trabalhadores fazem com aquilo que lhes é prescrito por aqueles que planejam o seu trabalho? Suas respostas para interrogações como essas consideram tanto a perspectiva estruturalista, oferecida, por exemplo, pela discussão de Michel Foucault (1996) sobre o poder disciplinar, como a perspectiva construtivista, para a qual as pessoas em interação interpretam e fazem usos diferentes do que lhes é ofertado, para isso recorre, por exemplo, a Erving Goffman (1985) e Harold Garfinkel (1994). Certeau (1994) sugere que o consumo de regras definidas de modo heterônomo – e aqui podemos acrescentar aquelas relativas ao trabalho –, dá-se por meio da astúcia, pois, ainda que consumidores sejam dominados, eles não são passivos e, para melhor definir essa relação de consumo, afirma que as pessoas não “consomem”, mas “fazem com”, enfatizando a construção de usos diferentes daqueles que os produtores desses bens poderiam supor. Uma afirmação do autor que possibilita sintetizar essa compreensão é a de que os consumidores “escapam ao poder sem deixá-lo”. A politização das práticas envolve a possibilidade de utilização de táticas e do que Certeau chama de a “arte do fraco”. Na verdade, é justamente essa engenhosidade dos mais fracos para fazerem valer seus interesses que possibilita a politização das práticas. Nas palavras de Certeau (1994), referindo-se às táticas de consumo: “As táticas de consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar em uma politização das práticas cotidianas” (p. 45). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 191 Um episódio envolvendo o discurso da qualidade Os elementos acima apresentados sobre a “politização das práticas” são, a nosso ver, suficientes para compreendermos muitos episódios ocorridos em situações reais de trabalho, incluindo alguns que foram registrados por um dos autores em uma de suas pesquisas (Sato, 1997). A referida pesquisa consistiu de um estudo etnográfico realizado em uma empresa do ramo alimentício, do qual extrairemos um episódio a ser discutido a seguir para ilustrar a discussão precedente. O cenário amplo desse episódio é uma fábrica de sorvetes situada na cidade de São Paulo que produz em grande escala, distribuindo, junto com mais duas outras unidades, os produtos para todo o território nacional. A organização do processo de trabalho é orientada segundo o modelo taylorista-fordista, diversas linhas de produção contam com operadores de máquinas, embaladores e auxiliares de embalagem. O ritmo de trabalho é intenso, as tarefas são repetitivas e monótonas, as lesões por esforços repetitivos atingem número significativo de trabalhadores. De modo geral, os trabalhadores mantêm-se fixos em uma linha de produção e a rotatividade entre postos de trabalho não representa mudanças significativas em termos de aumento da latitude de decisão ou de redução de monotonia e repetitividade. Para interrogar as possibilidades de contribuição da psicologia para a gestão, apresentamos um caso atravessado pelo largamente difundido discurso da qualidade. O cenário específico do episódio analisado é o almoxarifado da fábrica. De lá são despachados diversos tipos de embalagens para a produção (vasilhames, envelopes, tampas, etiquetas etc.). Há uma sala e, de resto, uma ampla área na qual são depositados diversos tipos de embalagens. Por situar-se no subsolo da fábrica, o ambiente é privado de iluminação natural e é abafado no verão, sofre o barulho de motores e, a depender do volume de produção, oferece pouco espaço para o trânsito de pessoas. Essas características representam para Paulo4 , o almoxarife, e para seus colegas (que fazem a preparação e a distribuição das embalagens) condições inadequadas de conforto, higiene e segurança. Queixas sobre o desconforto são referidas pelos trabalhadores em suas conversas de bastidores, mas, como diziam, “pra mudar alguma coisa é difícil”. Comparado com o setor de fabricação propriamente dita, o almoxarifado é bastante diferente. No setor de fabricação, as paredes são brancas, há iluminação natural, é possível ver as árvores plantadas no pátio e de lá saem os produtos com a marca da empresa. É ao setor de fabricação que os visitantes são levados. É ele que, enfim, carrega a imagem da empresa. Como em várias empresas, o discurso da qualidade norteava a implementação de diversas atividades e a padronização de procedimentos. Houve uma ocasião em que a fábrica se preparava para receber uma auditoria de qualidade. Nosso depoente foi chamado a colaborar na implementação de algumas medidas que diziam respeito ao seu setor e viu aí a oportunidade para alcançar o que era “difícil”. Junto ao supervisor de fábrica, Paulo “sugeriu” que mudanças nas condições de conforto, higiene e segurança fossem implementadas e reproduziu no relato de sua história o argumento utilizado na ocasião: 4 Pseudônimo de um dos entrevistados da pesquisa acima referida. 192 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 eu disse pra ele [o supervisor] que ele podia melhorar a qualidade de algumas coisas lá embaixo, que ficaria bom pra ele frente a auditoria de qualidade. Eu achei que podiam pintar essas paredes de branco. Esse cinza aí deixa o lugar mais escuro. Disse que deviam pôr um bebedouro desses que refrigera a água. Esse aqui, no calor, quando a gente vai beber a água parece que tá tomando uma sopa. Pedi pra eles riscarem umas marcas no chão pra definir o lugar pra gente passar. Tem dia aí que tem tanta mercadoria que não dá pra andar. Uns ventiladores dizem que vêm também... Sua tática foi a de empregar o argumento da “qualidade” para alcançar interesses seus e de seus colegas, aproveitando-se da circunstância que se apresentava: a auditoria de qualidade. Paulo, astuciosamente, empregou termos de um discurso que lhe permitia ser ouvido. Não apresentou “reivindicações” de melhoria para os trabalhadores, mas, empregando eufemismos, ofereceu “sugestões” de melhoria, considerando o interesse que, naquele momento, era relevante do ponto de vista gerencial, afinal, o trabalho dos supervisores também era alvo da auditoria. “A gente sabe que aqui na fábrica a gente tem que falar a mesma língua. Eles, agora, não querem que a gente leve problema. Eles querem que a gente apresente solução!”. A pesquisadora perguntou-lhe, posteriormente, se não era possível pedir outras coisas que melhorassem o trabalho. A isso Paulo respondeu que, muito embora estivesse vigorando a política de “portas abertas”, “café com o presidente”, de modo a facilitar a aproximação e a apresentação de idéias e de pontos de vista dos operários para pessoas alocadas em cargos de nível hierárquico superior, ele afirmou: “Eles falam que é pra gente falar, mas eu não falo. Eu não sou louco! Eu sei que a corda só arrebenta do lado mais fraco, no caso, o nosso”. Ao final, o setor de almoxarifado conseguiu algumas melhorias nas condições e aguardavam-se outras. Esse episódio é um exemplo dos processos que podem ser vivenciados no cotidiano e ilustra como os trabalhadores “fazem coisas com” os discursos que recebem, mesmo em relações de assimetria de poder. Eles reconhecem a presença do discurso da qualidade, sabem que ele faz parte de uma política de gestão da produção e dos trabalhadores, sabem que com ele têm que conviver. No entanto, convivem de modo relativamente crítico e, quando as circunstâncias permitem, abrem-se possibilidades para que esse discurso possa ser interpretado para fazer contemplar interesses que poderiam mostrar-se conflitantes com os interesses da empresa. É claro que esses processos são marcados pela ambigüidade (Sato, 1997). A “arte do fraco”, como designa Certeau (1994), evidencia a politização das práticas, quando se aproveitam as oportunidades que as circunstâncias oferecem, dando-se golpes em território alheio, característicos dos movimentos táticos. Considerações finais Ao transformar trabalhadores em recursos – isto é, em “objetos” que podem ser dispostos no espaço físico e na estrutura organizacional ao gosto daqueles que planejam o trabalho –, a ideologia gerencial opera um distanciamento da realidade vivida no trabalho e daquilo que as pessoas são. Os supostos “recursos” humanos, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 193 no entanto, não se comportam como o esperado pela gestão: sentem cansaço, adoecem, sabotam, protestam, fazem greve, resistem às políticas de recursos humanos, enfim, trazem para negociação outros interesses que não apenas os da produção. Já em Taylor (1990) essa inadequação dos recursos humanos ao que deles era esperado constituía-se como fonte de irritação com o que o “pai” da administração científica do trabalho chamava de “preguiça” dos operários. Esses “pontos-cegos”, as variáveis “mal comportadas” que não se encaixam na lógica mecânica da administração e da engenharia, foram todos acomodados na categoria “fator humano”. Dessa incompreensão do fenômeno humano derivam muitos dos problemas dos gestores aos quais a psicologia aplicada tentou responder de modo instrumental e é justamente por essa razão que a idéia de “fator humano” é inconsistente para compreender as atividades humanas no trabalho. Como ilustra situação de trabalho brevemente analisada acima, mesmo em situações de heterogestão, os interesses, os pontos de vista e os limites subjetivos5 buscam espaços de expressão, ainda que de forma tática e astuciosa. Os trabalhadores procuram gerenciar o dia-a-dia de trabalho segundo a interpretação de regras, segundo suas próprias avaliações e buscam resolver os problemas que se apresentam dia após dia. As prescrições, as regras e os discursos são interpretados e não meramente executados ou seguidos mecanicamente. Assim, problemas que habitualmente são atribuídos à comunicação entre setores e pessoas (como a ineficiência da divulgação formal de informações, por exemplo), podem ser lidos de outra forma: não se trataria da não adequação do sistema de informação apenas, mas de diferenças de pontos de vista (modos de interpretação) entre os diferentes atores. Deve-se reconhecer, ainda, que há limites nessas formas astuciosas de lidar com um ambiente sobre o qual se tem pouco poder e pequena margem de controle para interferir. Também são reconhecidos os problemas de saúde dos trabalhadores, dentre eles, o sofrimento, com diversas evidências nesse sentido (Dejours, 1984; Sato, 1993; Seligmann-Silva, 1994; Spink, 1982a, 1982b), bem como a rotatividade e o absenteísmo, outras duas decorrências notáveis dessa conformação da organização do processo de trabalho. A contribuição relevante da psicologia para a gestão é, portanto, não apenas o que tem produzido ao debruçar-se sobre aquilo que é o objeto da gestão, mas o fato tomar a própria gestão como parte do acontecer do trabalho. Essa contribuição implica justamente em mostrar, para além da ideologia gerencial dos “recursos humanos” e do “fator humano”, o fenômeno do trabalho em sua complexidade, não fazendo do trabalho, nas palavras de Spink (1996), uma “fonte de problemas”, mas o encarando como “um fenômeno que precisa ser compreendido e problematizado” (p. 176). Não se trata, portanto, de instrumentalizar o gestor a resolver as situações que se apresentam a ele como problema, mas favorecer o reconhecimento da complexidade do dia-a-dia de trabalho, para justamente reposicionar a discussão sobre a dimensão intersubjetiva do trabalho. 5 Sobre os limites subjetivos ver Sato (1993). 194 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Ao recusar-se a ser uma disciplina aplicada e fornecedora de tecnologias, a psicologia social do trabalho problematiza a própria idéia de gestão, configurando os gestores e os psicólogos das empresas como atores que fazem parte do fenômeno estudado. Tampouco são os gestores os destinatários exclusivos desse conhecimento. Ao contrário, ele interessa também aos trabalhadores, na medida em que busca elucidar a gestão como um processo interativo e simbólico (Sato, 2002a, 2002b, 2002c) e como um dos vários processos que compõem a trama intersubjetiva do trabalho da qual os trabalhadores também são protagonistas. Nesse aspecto, a contribuição da psicologia para a gestão – ao tomar o cotidiano de trabalho como objeto de sua análise, na perspectiva de uma psicologia social crítica – é chamar a atenção para o fato de que a gestão do trabalho não é feita apenas por aqueles que são reconhecidos como gestores (Schwartz, 2004; Spink, 1996) e para a constatação de que há, afinal, várias “gestões” que negociam entre si (Borges, 2004). O que, na situação de trabalho analisada acima, aparece no modo tático como o depoente lança mão dos recursos que tem (a “arte do fraco”) para conseguir mudanças de interesse do grupo de trabalhadores. O que a análise do cotidiano de trabalho revela é que a gestão é em si mesma um processo interativo e não apenas a aplicação de prescrições sobre outros. Na verdade, se considerarmos aquilo que as pesquisas em psicologia social do trabalho têm apontado, gerir o trabalho revela-se, não como simples prescrição e obediência, mas como a produção de uma existência negociada. Ao fazer isso, desmascaram-se as falsas promessas das tecnologias de gestão. Elas podem e continuarão a ser usadas, mas ficam claros aqui os seus limites: as estratégias de controle têm continuamente como contraponto a astúcia daqueles que são seu objeto. Essa “politização das práticas” a que se refere Certeau (1994) esclarecese no exemplo acima protagonizado pelo almoxarife Paulo. Uma psicologia social que se dedica a estudar o trabalho deve, afinal, ser um tanto subversiva: ao estudar a gestão, cabe-lhe revelar os mecanismos do poder; ao estudar os trabalhadores, mostrar seu papel ativo no trabalho e suas formas de resistência. Referências Borges, M. E. S. (2004). Trabalho e gestão de si – para além dos “recursos humanos”. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 7, 41-49. Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes. Chanlat, J.F. (1991). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas (Vol. 1). São Paulo: Atlas. Daniellou, F., Laville, A., & Teiger, C. (1989). Ficção e realidade do trabalho operário. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 17(68), 7-13. Dejours, C. (1984). A loucura do trabalho. São Paulo: Oboré. Dejours, C. (1997). O fator humano. Rio de Janeiro: FGV. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 195 Foucault, M. (1996). Vigiar e punir: nascimento da prisão (14ª edição). Petrópolis: Vozes. Garfinkel, H. (1994). 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Weir (Org.), Job Satisfaction (pp. 81-90). London: Fontana. Recebido em junho de 2007 Aceito em novembro de 2007 Leny Sato: livre docente de Psicologia pela Universidade de São Paulo; docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Fábio de Oliveira: doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; docente do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Psicólogo do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: [email protected] Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 197 Aletheia 27(1), p.198-209, jan./jun. 2008 A seca enquanto um hazard e um desastre: uma revisão teórica Eveline Favero Vivien Diesel Resumo: Pretende-se situar através da revisão da literatura atual o fenômeno seca na discussão mais ampla sobre riscos, hazards e desastres, salientando sua relevância na perspectiva dos teóricos da mudança climática. A partir da classificação do fenômeno como um hazard e um desastre, apresentam-se suas características fundamentais do ponto de vista físico, diferenciando-o de escassez hídrica. A guisa de conclusão, faz-se indicações de possíveis desenvolvimentos teórico-práticos objetivando contribuir com a temática, a qual transpõe os aspectos da descrição física, uma vez se encontra diretamente relacionada ao fator humano. Desse modo, o desastre seca é do interesse também do campo da Psicologia, especialmente na área de atuação em desastres. Palavras-chave: seca, hazards, desastres. The drought while a hazard and a disaster: a theoretical review Abstract: We intend to place through the review of the current literature the drought phenomenon in the wide discussion toward the risks, hazards and disasters, standing out their importance on the perspective of the climate changes theoretical. From the phenomena classification like hazards and disasters, we show their fundamental characteristics on the physical point of view, differentiating them from the water shortage. As a conclusion, there are indications of possible theoretical-practical developments being aimed to contribute to this subject development that leads to aspects of a physical description, being directly related to the human factor. This way, the drought disaster is of the Psychology camp interest too especially in areas where these disasters happen. Key words: drought, hazards, disasters. Introdução Atualmente, tanto no âmbito social quanto científico, há uma crescente preocupação em relação aos impactos negativos dos desastres “naturais”1 e, dentre eles, a seca. Estudos atuais projetam cenários de maior ocorrência de extremos climáticos e de eventos intensos como secas, veranicos, vendavais, tempestades severas, 1 De modo a diferenciar quanto à sua origem, pode-se denominar como desastres naturais aqueles resultantes da ocorrência de hazards, ou seja, eventos físicos perigosos (fenômenos naturais como secas, tornados, furacões, etc.) em áreas de interesse humano. No entanto, nem todos os desastres são naturais. Muitos deles são originados pela ação humana no ambiente, como os desastres tecnológicos, por exemplo, que ao afetar o ecossistema (plantas, animais incluindo os humanos, e demais recursos naturais) são denominados de desastres ambientais. Vale lembrar que, mesmo quando considerados naturais, muitos desastres só chegam à proporção de uma catástrofe devido à intervenção humana inadequada no ambiente, o que torna este mais vulnerável a eventos danosos. 198 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 inundações, etc., para as próximas décadas. De acordo com o documento do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE, 2005), a base destas projeções encontra-se na mudança do clima que tem se manifestado nas últimas décadas por meio de um destacado aquecimento global2 . O mesmo documento refere que os países em desenvolvimento como o Brasil encontram-se mais vulneráveis à mudança do clima, em função de terem historicamente menor capacidade de responder a sua variabilidade natural: O Brasil é, indubitavelmente, um dos países que podem ser duramente atingidos pelos efeitos adversos das mudanças climáticas futuras, já que tem uma economia fortemente dependente de recursos naturais diretamente ligados ao clima na agricultura e na geração de energia hidroelétrica. Também, a variabilidade climática afeta vastos setores das populações de menor renda como os habitantes do semi-árido nordestino ou as populações vivendo em área de risco de deslizamentos em encostas, enxurradas e inundações nos grandes centros urbanos. (NAE, 2005, p. 18) No entanto, é importante salientar as ponderações que constam no Guia de Informações sobre Mudanças Climáticas (Mudanças Climáticas, 2002), ou seja, de que ainda não é possível quantificar com precisão os prováveis impactos futuros da mudança climática sobre qualquer sistema particular em tal e tal lugar. Isso se deve ao fato de que as projeções de mudança do clima em âmbito regional são incertas e o conhecimento dos atuais processos naturais e socioeconômicos são geralmente limitados, além de que muitos sistemas estão sujeitos a diferentes pressões interdependentes. Porém, mesmo diante de um cenário de incertezas, autores como Yamin, Rahman e Huq (2005) referem que algumas conclusões preliminares recomendam um alto nível de atenção política para a mudança climática. Os autores entendem que tal mudança configura-se numa séria ameaça em curso para o bem-estar global e para o desenvolvimento, e que, especialmente, sobrecarrega o fardo daqueles que já são pobres e vulneráveis. Em face dessas considerações, o presente artigo propõe-se, inicialmente, a situar a temática da seca no horizonte amplo de discussão teórica sobre riscos, hazards e desastres. Discute-se, então, a relevância da temática para o campo da Psicologia, uma vez que, a questão dos desastres envolve necessariamente a relação do homem com seu ambiente. Riscos, hazards e desastres A temática dos riscos, na literatura sobre desenvolvimento social, é abordada em diferentes trabalhos do Banco Mundial. Autores como Heitzmann, Canagarajah e Siegel 2 A temperatura média global do planeta elevou-se 0,6 a 0,7 graus Celsius (ºC) nos últimos 100 anos, com acentuada elevação desde a década 1960-70. Há um razoável consenso de que o aquecimento global observado nos últimos 100 anos é provavelmente explicado principalmente pelas emissões antropogênicas dos Gases de Efeito Estufa (GEE) e não por eventual variabilidade natural do clima (Houghton e cols., in NAE, 2005). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 199 (2002), Holzmann, Sherburne-Bens e Tesliuc (2003) e Hoogeveen, Tesliuc e Vakis (2005), por exemplo, em seus trabalhos partem do reconhecimento de que existe uma série de eventos de origem diversa, que podem ameaçar indivíduos, grupos ou até sociedades inteiras. Consideram que tais fatores, denominados riscos, necessitam ser mais bem conhecidos para que medidas apropriadas sejam tomadas, a fim de evitar a sua ocorrência, reduzir ou, ao menos, amenizar seus impactos sociais negativos. Tais autores mencionam a existência de diferentes tipos de riscos: riscos naturais, riscos à saúde, riscos do ciclo-vital, riscos sociais, riscos econômicos, riscos políticos e riscos ambientais, classificando a seca enquanto um risco natural. Para Hoogeveen e cols. (2005), os riscos diferem quanto a sua origem, podendo ser naturais (como inundações) ou resultantes da atividade humana (como os conflitos). Podem afetar indivíduos de maneira isolada ou não, nos âmbitos regional, nacional ou até internacionalmente, além de apresentarem-se com freqüência variável. Diferem ainda por seus impactos no bem-estar, podendo atingir dimensões catastróficas. Além disso, nem sempre é possível identificar qual é o evento de risco principal presente em determinado contexto, pois eles costumam acontecer concomitantemente. O fenômeno seca enquanto risco natural é tradicionalmente estudado pela geografia. No entanto, atualmente vem ganhando a atenção crescente das ciências sociais bem como de outras áreas do conhecimento devido à relevância da temática. De acordo com Marandola e Hogan (2004), para os geógrafos, “risco” refere-se a uma situação que está no futuro e que traz incerteza e insegurança. Assim, há regiões de risco ou regiões em risco. Já, hazard é um evento natural socialmente danoso, o fenômeno em si, que surge do contínuo processo de ajustamento entre o sistema humano e eventos naturais. Então, estar em risco é estar suscetível à ocorrência de um hazard, de um evento com potencial para danos sociais (Marandola & Hogan, 2004). Embora a Teoria dos Hazards, desenvolvida do ponto de vista geográfico, enfatize seus aspectos naturais, o modelo de análise sistêmico derivado da Ecologia Humana, reconhece que os hazards são elementos do ambiente físico, prejudiciais para o homem: “Um hazard constitui uma ameaça para a sociedade. Pode-se dizer que um hazard existe somente porque as atividades humanas se encontram expostas a forças naturais. Portanto, um hazard é composto de uma dimensão natural e uma dimensão social” (Mattedi & Butzke, 2001, p. 09). Para Mattedi e Butzke (2001), os hazards, na perspectiva física e humana, podem ser definidos como uma complexa rede de fatores físicos que interagem com a realidade cultural, política e econômica da sociedade. Eles têm sido classificados e ordenados de acordo com processos desencadeadores: meteorológicos, hidrológicos e geológicos. Porém, mesmo agrupados, possuem pouca similaridade entre si. Por exemplo, seca e inundação são da mesma categoria (hazards hidrológicos), no entanto, suas origens, formas de manifestação e impactos são bastante diferenciados. Os estudos dos hazards nos remetem à temática dos desastres. A Teoria dos Desastres enfatiza especialmente os aspectos sociais, no que diz respeito aos efeitos da ocorrência de um hazard. De acordo com Mattedi e Butzke (2001), por desastre entende-se a realização de um hazard, ou seja, um desastre é o acontecimento de um evento danoso, o qual pode ser súbito, inesperado ou extraordinário. Em termos 200 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 sociológicos, o termo reporta-se a um acontecimento, ou a uma série de acontecimentos, que alteram o modo de funcionamento rotineiro de uma sociedade.3 No que diz respeito aos aspectos teóricos “o estudo dos hazards refere-se à análise dos efeitos potenciais provocados pela interação de fatores físicos e humanos, enquanto a Teoria dos Desastres resulta da análise dos efeitos reais provocados pela eclosão do fenômeno” (Mattedi & Butzke, 2001, p. 15). A importância dos estudos dos desastres não está apenas em sua dimensão natural, mas principalmente por suas conseqüências num contexto social específico, uma vez que, quando um mesmo fenômeno ocorre em contextos sociais diferenciados acaba por ocasionar também diferentes resultados (catastróficos ou não). Assim, “um desastre exprime, invariavelmente, a ‘materialização da vulnerabilidade social’ em desastres, por isso o agente desastre não pode ser considerado como um fator externo ou independente do contexto social” (Pelanda, citado por Mattedi & Butzke, 2001, p. 13). Outros autores também enfatizam este aspecto: O aumento do número de desastres nos últimos anos, face a condições geofísicas relativamente estáveis, indica que o aumento da vulnerabilidade está intimamente conectado com o crescente processo de subdesenvolvimento e de marginalização social: desastre é visto como resultado da interface de uma população marginalizada e um ambiente físico deteriorado. (Susman & cols., citados por Mattedi & Butzke, 2001, p. 14) Vale salientar que, um evento geofísico extremo quando não afeta atividades humanas, não constitui, de acordo com Mattedi e Butzke (2001), um hazard. O que o caracteriza é, especialmente, seu potencial para causar danos no contexto social. Sendo assim, as teorias dos hazards e desastres buscam explicar a relação de interdependência que se estabelece quando um evento físico potencialmente destrutivo (dimensão natural) atinge um contexto social vulnerável (dimensão social). A seca enquanto um hazard e um desastre Primeiramente cabe diferenciar seca e escassez hídrica. Esta última pode ser ocasionada pela seca, no entanto, ao contrário desta, pode ser também artificialmente criada. A escassez é, segundo Pereira, Cordery e Iacovides (2002), um desequilíbrio temporário da oferta de água, que pode ser devido à sobre-exploração de águas profundas e superficiais, à degradação da qualidade da água associada, freqüentemente, com o inadequado uso do solo e com o comprometimento da capacidade de armazenamento de água do ecossistema. A escassez hídrica é comumente definida como uma situação na qual a disponibilidade de água em um país ou em uma região está abaixo de 1000 m3 por pessoa por ano (Pereira & cols., 2002). No entanto, segundo os autores, muitas regiões 3 O desastre como fator de alteração dos ritos de uma sociedade é abordado em trabalho recente de Thornburg, Knottnerus e Webb (2007). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 201 no mundo experimentam escassez muito mais severa, vivendo com menos de 500 m3 por pessoa por ano. Porém, uma disponibilidade de 2000 m3 por pessoa por ano já pode indicar que uma região está com estresse hídrico, desde que sob essas condições as populações enfrentem grandes problemas quando uma seca ocorre (escassez natural) ou quando a escassez é artificialmente produzida (desertificação e problemas de gestão de recursos hídricos). Ainda, a escassez não se refere apenas à quantidade, mas também a indisponibilidade devida à qualidade da água. A seca, por sua vez, é um desequilíbrio temporário na disponibilidade de água. Porém, o desequilíbrio causado pela seca é sempre natural, embora a ação do homem possa intensificá-lo. Conceitualmente, a seca, [...] consiste numa persistente precipitação abaixo da média, com freqüência, duração e severidade incertas, devido à imprevisibilidade ou dificuldade de se prever sua ocorrência, resultando na diminuição da disponibilidade de água e na redução da capacidade de armazenamento do ecossistema. (Pereira & cols., 2002, p. 06) Pereira e cols. (2002) reconhecem que é difícil adotar um conceito que descreva bem o fenômeno seca. Alguns autores preferem adotar uma definição operacional para distinguir entre secas hidrológicas, agrícolas e meteorológicas, o qual focaliza, usualmente, num indicador variável de interesse primário, que pode ser a precipitação (seca meteorológica), umidade do solo (seca agrícola), desempenho do fluxo dos rios ou níveis de água do solo (seca hidrológica e seca da água do solo). Assim, é comum que os agrônomos usem a palavra seca para definir uma condição de estresse hídrico que afeta o crescimento e o rendimento de cultivos agrícolas. Outras características deste hazard são importantes de serem salientadas. Segundo Pereira e cols. (2002), as secas caracterizam-se por seu início lento e são usualmente reconhecidas somente quando estão totalmente estabelecidas. Costumam ser de longa duração e afetar grandes áreas. Tais características geralmente têm implicações importantes, pois dificultam a implantação de estratégias de minimização de seus impactos. A seca é um hazard porque é um evento natural socialmente danoso, de ocorrência imprevisível quanto ao seu início e seu término bem como quanto a sua severidade e de recorrência reconhecida. Ela é considerada um desastre porque corresponde à falência no regime de precipitação, causando perturbação no abastecimento do ecossistema agrícola e natural, bem como em outras atividades humanas (Pereira & cols., 2002). Os impactos sociais da seca podem ser diversos e podem lhe dar a proporção de um desastre, além de que seu início lento e final indefinido tornam difícil selecionar medidas defensivas e ações reparadoras. Pereira e cols. (2002) colocam que quando uma enchente ocorre muitos sinais são óbvios e medidas oportunas podem ser tomadas, usualmente com o suporte da opinião pública, pois o desastre é facilmente reconhecido por todos. No caso de uma seca os elementos do desastre tornam-se evidentes muito 202 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 tarde, somente quando o fenômeno já está instalado. Além disso, tais impactos perduram por um longo tempo após a seca ter terminado, particularmente quando há despreparo para lidar com ela, podendo levar o desastre a tomar a dimensão de uma catástrofe (calamidade). Desse modo, um melhor conhecimento deste hazard hidrológico torna-se essencial para o desenvolvimento de ferramentas que possam prever seu início e fim e planejar, de maneira oportuna e apropriada, medidas para se lidar com ele. A psicologia e o estudo dos desastres O estudo dos desastres pela psicologia está atualmente situado nos campos da Psicologia Ambiental e, mais especificamente, da Psicologia das Emergências e dos Desastres. A Psicologia Ambiental enquanto disciplina, vêm buscando enfatizar teoricamente a influência do ambiente nas pessoas, bem como a influência destas no ambiente, seja este último construído ou natural (Bell, Greene, Fisher & Baum, 2001). Desse modo, no que tange aos desastres a relação homem x ambiente é de fundamental importância, uma vez que existe entre ambos uma relação de reciprocidade. A Psicologia dos Desastres, por sua vez, envolve as diferentes esferas de atuação do psicólogo nas situações de ocorrência de emergências e desastres, no estudo dos seus impactos psicológicos nos indivíduos e grupos, bem como, no trabalho de prevenção a desastres e no auxílio às vítimas de modo a reconstruir suas vidas no pósdesastre. Enquanto área do conhecimento, embora recente no Brasil, contempla uma ampla bagagem de investigações e construtos teóricos que datam desde princípios do século XX, e que evoluíram de estudos descritivos e individuais para trabalhos de corte sociológico e estatisticamente significativos, até propostas de técnicas específicas de intervenção (Álamo, 2007). Embora possam ser encontrados na literatura trabalhos na área dos desastres datando do início do século XX, foi nos anos 50 que surgiram os primeiros estudos de enfoque sociológico e psicossocial. Tais pesquisas têm tratado no âmbito individual e social, das conseqüências psicológicas relativas às calamidades, demonstrando que os desastres podem causar estresse emocional, dentre outras conseqüências negativas na saúde mental dos afetados (Coêlho, 1997). Para Vitaliano e cols., citados por Coelho (1997), os desastres deveriam ser interpretados como estressores coletivos devido ao número de envolvidos nas conseqüências dos seus impactos.4 Por desastre, na perspectiva psicológica, compreende-se “um transtorno grave, ecológico e psicológico, que excede a capacidade da comunidade afetada para enfrentar o evento” (World Health Organization, WHO, citada por Coêlho, 1997, p. 64). Estas considerações indicam que ao se avaliar a exposição a estressores como os desastres, 4 É importante mencionar que autores como Bell e cols. (2001) colocam que as “conseqüências” de médio e longo prazo de um desastre nem sempre são negativas na medida em que sua ocorrência pode determinar o aumento da solidariedade social, por exemplo. Entende-se que tais observações tornam o estudo dos desastres especialmente instigante. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 203 deve-se levar em conta tanto o trauma individual baseado em perdas pessoais, quanto a extensão em que uma comunidade foi destruída ou afetada. Embora, prevaleça de um modo geral no estudo dos desastres a sua dimensão física, ou seja, os impactos sociais decorrentes da magnitude de um evento, teóricos como Bell e cols. (2001) destacam que as conseqüências de um desastre, especialmente as psicológicas, estão estreitamente relacionadas à percepção dos indivíduos e grupos, relativa ao evento em si. Isso não significa que o estresse gerado por um desastre não esteja relacionado às restrições impostas por este, bem como às dificuldades de convivência e adaptação ao problema, mas que para que o processo de estresse se inicie é necessário ocorrer uma percepção cognitiva de que há uma ameaça, sendo esta suficiente para desencadear uma resposta de estresse mesmo que o evento físico nunca aconteça (Bell & cols., 2001). Assim, um dado evento ambiental pode ou não ser um estressor em todas as circunstâncias, e em iguais circunstâncias ele pode ser um estressor para um determinado indivíduo enquanto para outros não. Para Bell e cols. (2001), existem três formas de avaliar cognitivamente um desastre, as quais determinam o modo como indivíduos e grupos reagem a ele: a avaliação pode ter seu foco nas perdas - em geral perda rápida de recursos está relacionada com estresse traumático, de acordo com Hobfoll, citado por Bell e cols. (2001), -, ou dizer respeito a perigos futuros (a disponibilidade para antecipar dificuldades potenciais permite prevenir sua ocorrência, mas pode causar uma experiência antecipatória de estresse), ou ainda a avaliação poderá considerar o estressor como um desafio, o que levará o indivíduo a manter o foco na superação deste. Desse modo, a forma de perceber um fenômeno e reagir a ele depende de fatores psicológicos individuais (recursos intelectuais, motivações, experiências prévias), de aspectos cognitivos relativos ao fenômeno em si (percepção sobre a possibilidade de controle sobre o estímulo, previsibilidade, intervalo de tempo até a manifestação do impacto), de variáveis ambientais e sociais, entre outras (Bell & cols., 2001). Destaca-se ainda que a percepção de possibilidade de controle é um importante moderador do estresse, possibilitando um sentimento de capacidade de reagir adequadamente, prever eventos e determinar o que irá ocorrer. A informação prévia sobre o evento, por sua vez, aumenta a percepção de controle deste e reduz a avaliação de ameaça feita quando o estressor é experimentado (Bell & cols., 2001). No que diz respeito às respostas psicossociais frente aos desastres, Coêlho (1997) coloca que algumas investigações têm mostrado que uma multiplicidade de variáveis estão envolvidas no êxito com o qual os indivíduos e grupos enfrentam os estressores resultantes dos desastres, tais como a exposição a estressores, a vulnerabilidade e os recursos psicológicos e sociais que possuem. Variáveis como as citadas anteriormente são apresentadas no modelo psicoepidemiológico descrito por Vitaliano e cols., citados por Coelho (1997), no qual o estresse é definido como uma resposta biopsicossocial relacionada à exposição a estressores, assim como a fatores moderadores. Quanto a estes últimos, na exposição aos desastres dois grupos de variáveis têm sido identificados: vulnerabilidade, ou seja, características individuais e sociais que fazem os indivíduos mais susceptíveis a incidentes estressantes e ao estresse, (como, por exemplo, herança genética e pertencer 204 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 a algum grupo de risco) e recursos, tais como, suporte social e coping5 , de acordo com Coêlho (1997). A autora destaca que o suporte social, do ponto de vista de diferentes teóricos, pode modificar a relação entre estressores e estresse. Se ele for adequado, possui propriedades preventivas, enquanto que se ele for inadequado, pode ser um fator de risco para enfermidades. Os estudos têm evidenciado, também, que as redes de apoio social podem funcionar como fonte de informação e mediação de modo a facilitar o processo de gerenciar desastres, já que, de acordo com Freitas e Montero (2003) nelas se produz o intercâmbio contínuo de idéias, serviços e modos de fazer, de maneira que as pessoas encontram nelas apoio e refúgio além de recursos, o que pode ser de grande relevância no enfrentamento de situações extremas como desastres. Já, os recursos psicológicos referem-se aos estilos psicológicos e cognitivos individuais e às respostas de comportamento. O coping é considerado entre os investigadores como um grupo de ações usadas para lidar com o estresse, que inclui tanto a avaliação da situação, quanto a avaliação dos recursos disponíveis para lidar com ela. A nova tendência das investigações é de analisar coping como um processo que se modifica de situação para situação, muito mais do que como uma característica estática (Coêlho, 1997). No Brasil, estudos como os de Coêlho, Adair e Mocellin (2004), além de Favero (2006) e Krum (2007) evidenciam que indivíduos e grupos afetados por desastres naturais acabam por desenvolver algum tipo de resposta psicológica. O primeiro, realizado no Estado do Paraíba, encontrou níveis significativamente mais elevados de ansiedade e estresse emocional nos indivíduos residentes na área da seca em comparação com os que habitam em área não afetada pelo desastre (Coêlho & cols., 2004). No entanto, não houve incidência de estresse pós-traumático na população afetada pela seca, como os autores já presumiam. O segundo estudo, realizado na zona rural do município de Frederico WestphalenRS, identificou a vivência de sentimentos de desproteção, impotência e insegurança pelas famílias afetadas pelas freqüentes secas, originados pelo despreparo e a falta de recursos para lidar com as inúmeras perdas ocasionadas pelo fenômeno (Favero, 2006). É importante salientar que as famílias estudadas consideraram a ajuda de familiares, vizinhos e do próprio Estado como um importante fator de amenização para os impactos da seca, ou seja, o suporte social é evidenciado como um aspecto favorável no enfrentamento do desastre. Na mesma direção, o terceiro estudo, relativo às respostas emocionais de indivíduos de uma comunidade gaúcha afetados por um tornado, resultou no estabelecimento de categorias de coping que incluíram busca por suporte social, resolução de problemas, evitação, apoio na religião e busca por significado diante da experiência do evento, fatores estes considerados fundamentais na amenização do sofrimento vivenciado pelos sobreviventes do desastre (Krum, 2007). 5 Autores como Antoniazi, Dell’Aglio e Bandeira (1998) e Yunes (2003) colocam que a palavra coping é geralmente utilizada no original em inglês para referir-se a esforços cognitivos e comportamentais para lidar com demandas específicas de situações adversas e avaliadas como sobrecarregando ou excedendo os recursos pessoais. A palavra é geralmente mantida em seu original em inglês, pelo fato de não ser encontrada outra que ofereça o mesmo sentido em português. Coping pode significar “lidar com”, “enfrentar” ou “adaptar-se a”. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 205 Somando-se aos estudos mencionados, encontram-se na literatura sobre desastres pesquisas relativas a desastres ambientais induzidos pela ação humana, como os desastres tecnológicos, por exemplo. Dentre eles, destaca-se um estudo de caso de vazamento de óleo que trouxe conseqüências significativas e de longa duração a nativos e pescadores comerciais do Alasca, ao que Gill (2007) denominou de “impactos sociais de natureza crônica” (p. 01). Tal denominação se deve ao fato de que dezessete anos após o desastre que ocorreu em 1989, ainda persistiam danos ecológicos combinados com impactos crônicos de cunho cultural, psicológico, social e econômico e que continuavam a afetar a comunidade que dependia diretamente dos recursos naturais danificados pelo vazamento de óleo, ou seja, da atividade de pesca. Dentre as conseqüências mais significativas do desastre estão os altos níveis de estresse nos indivíduos afetados e a fragmentação social da comunidade quando comparados a outros grupos que habitam a mesma região e que não tiveram suas atividades afetadas pelo vazamento. Tais resultados se devem especialmente ao declínio das condições econômicas das famílias pela perda de recursos e a demora do Estado em liberar dinheiro para indenizar a vítima (Gill, 2007). Embora, estudos revelem que a ocorrência de um desastre de qualquer natureza e em qualquer situação seja suficientemente significativa para gerar instabilidade na vida das pessoas, pelo fato de perturbar diretamente suas atividades cotidianas (Thornburg & cols., 2007), é comum que indivíduos ou comunidades afetados declaremse despreparados frente à ocorrência de um evento dessa magnitude, de modo que suas conseqüências acabam sendo geralmente graves a ponto de se tornarem crônicas, vindo a afetar diferentes esferas da vida das famílias como a psicológica, a social, a econômica e a cultural, por exemplo. Cabe observar que muitas das pesquisas relativas às reações psicológicas aos desastres referem-se às situações de grande impacto social. No que diz respeito à seca, por suas características de lentidão ao se instalar, as respostas psicológicas dos indivíduos a ela, bem como as atitudes sociais, acabam por se diferenciar em relação aos outros desastres. Nesse sentido, necessita-se ainda de estudos que possam demarcar tais diferenciações, de modo que as intervenções no campo da psicologia em situações de desastres possam também se dar de modo diferenciado. Para compreender melhor a situação dos indivíduos expostos a seca, faz-se necessário considerar que o grau de estresse efetivamente vivenciado e sua persistência resultará não apenas do evento em si, mas de uma combinação de fatores que inclui a vida pessoal e social, bem como o grau de dependência das condições climáticas para o desenvolvimento de suas atividades econômicas e rotineiras. Bosch (2004) salienta que a agricultura (natural), por si só, é uma ocupação estressante devido a fatores como a dificuldade de controlar as condições climáticas, podendo ainda o seu potencial estressor ser elevado pelas condições de seca. Em um estudo realizado no Nebraska (EUA) por Bosch (2004) ficou constatado que durante períodos de secas prolongadas ocorrem mudanças na relação entre os casais de agricultores, especialmente no que diz respeito à comunicação. O homem passa a conversar menos com sua esposa e surgem sintomas de estresse e depressão principalmente naquele indivíduo que é o chefe da família. As secas forçam as famílias 206 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 a tomarem decisões como abandonar plantações, migrar ou fazer empréstimos. As gerações mais novas têm mais dificuldades financeiras para enfrentar períodos prolongados de seca, o que faz com que comumente migrem para buscar trabalho nas grandes cidades. Tais dados ilustram que os desastres como a seca podem afetar a condição psicológica dos agricultores, trazendo conseqüências em sua vida pessoal e social, o que justifica que a psicologia venha a dedicar-se ao estudo não apenas daqueles desastres de grande impacto social, mas também daqueles que se instalam lenta e silenciosamente como a seca, e que nem por isso são menos devastadores. Considerações finais A partir do que foi exposto, ao se tratar da temática da seca, adentra-se necessariamente na discussão sobre riscos, hazards e desastres. Nesse contexto, são encontrados estudos que descrevem tanto as características físicas dos riscos naturais, bem como enfatizam o potencial danoso dos hazards ao interagirem com o ambiente social, como a perspectiva dos geógrafos. Somando-se a eles, a Teorias dos Desastres, desenvolvida do ponto de vista sociológico, trata dos impactos reais da ocorrência de um hazard em determinado contexto social, sendo que tais impactos sociais não dependem apenas das características físicas do fenômeno (como intensidade, duração e freqüência), mas também da vulnerabilidade do contexto social em que eles ocorrem. Já, outro conjunto de estudos chama a atenção para os fatores psicológicos que se encontram envolvidos nos desastres, o que faz desta temática também de interesse para o campo da psicologia. Apesar da importância da temática da seca para a psicologia, uma vez que esta pode infligir sofrimento psicológico nos indivíduos e grupos expostos ao fenômeno, especialmente os mais vulneráveis, ainda não se encontra vasta discussão na literatura, em relação aos outros desastres. Tais achados talvez possam ser explicados pelo que Pereira e cols. (2003) destacam, de que por ser um desastre que se instala lentamente, a seca acaba por não causar tanto impacto social como uma enchente, por exemplo. Desse modo, a atenção ao desastre fica mais restrita a esfera econômica, já que as perdas agrícolas são as que adquirem maior saliência durante e após a ocorrência do evento. No entanto, a seca é um desastre que resulta em uma cadeia de privações para os afetados, e conseqüentemente, em intenso sofrimento psicológico. Acredita-se que com o surgimento da área da psicologia das emergências e dos desastres no Brasil, tais estudos venham a ser estimulados, de modo a contribuir com o desenvolvimento da mesma e a oferecer subsídios para políticas no campo de prevenção e intervenção em desastres. Por fim, há que se desmistificar a concepção ainda em voga de que os desastres ditos “naturais” fogem totalmente ao controle humano. Ainda que estes sejam relativamente imprevisíveis e que humanamente não se consiga evitar sua ocorrência o que leva os afetados a sensação de perda de controle, sabe-se que a dimensão de suas conseqüências (catastróficas ou não) depende e muito das ações do homem sobre o ambiente, as quais podem e devem contribuir para reduzir sua vulnerabilidade Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 207 social aos riscos ambientais. Conhecendo tal realidade, a psicologia não poderia deixar de oferecer sua valiosa contribuição, juntamente com outros campos do saber envolvidos na temática, na tarefa de construir comunidades humanas mais seguras bem como auxiliando-as no enfrentamento e recuperação frente a situações extremas. Referências Alamo, S. V. (2007). Psicología en emergencias y desastres una nueva especialidad. Disponível: <http://www.momografias.com/trabajos10/emde/emde.shtml> Acessado: 01/2007. Antoniazzi, A. S., Dell’Aglio, D. D., & Bandeira, D. R. (1998). O conceito de coping: uma revisão teórica. 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Psicologia em Estudo, 8, 75-84. Recebido em maio de 2007 Aceito em dezembro de 2008 Eveline Favero: psicóloga; mestre em Extensão Rural (UFSM). Vivien Diesel: engenheira florestal; professora adjunta do Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural. Endereço para correspondência: [email protected] * O artigo deriva da dissertação de mestrado intitulada “A seca na vida das famílias rurais de Frederico Westphalen-RS” de autoria de Eveline Favero, Curso de Pós-Graduação em Extensão Rural/UFSM. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 209 Aletheia 27(1), p.210-221, jan./jun. 2008 A toxicomania enquanto doença incurável e sua relação com um tratamento possível Amanda Schreiner Pereira Resumo: Este estudo investigou qual a influência da nomeação doente incurável naqueles que buscam um tratamento para a toxicomania. Para isto foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas com indivíduos do sexo masculino que estão em tratamento e examinadas através de análise qualitativa de conteúdo. Conforme os resultados, a assunção do significante doente proporciona um novo lugar de resposta ao sujeito, o que constitui um início de mudança. Esta nomeação tem uma significação social que situa o sujeito em valores inseridos na cultura. Porém, não há significação pessoal para esta nova condição, visto a inexistência da vinculação deste novo nome à história individual dos entrevistados. Palavras-chave: toxicomania, doença incurável, tratamento. The drug addiction as an incurable disease and its relation with a possible treatment Abstract: This study investigated which is the influence on denominating incurable disease those patients who look for drug addiction treatment. Four semi-estructured interviews were conducted with male individuals that were undertaking treatment and the results were assumption of the significant sick person offers a new position to the subject, which constitutes a beginning of changes. This denomination has a social signification that situates the subject in values inserted in the culture. However there is not a personal meaning for this new condition, considering the nonexistent link for this name with the individual story of those who were interviewed. Key words: Drug addiction, incurable disease, treatment. Introdução A toxicomania tem sido um assunto intensamente abordado por autores de diversas disciplinas. Tamanha importância designada a este tema atualmente, que a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou um Dia Internacional Contra o Uso e o Tráfico de Drogas (26 de junho). No Brasil, muitas campanhas e a necessidade de medidas sociais contra o uso são encabeçadas por entidades governamentais, como a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Estas entidades diferenciam o dependente químico do traficante e consideram o dependente químico como um doente. O termo dependente químico também é utilizado pelas instituições que se apropriam da possibilidade de tratamento de usuários de drogas. Na medicina, a dependência química é designada como estado de intoxicação periódico ou crônico gerado pelo consumo repetido de uma droga e que é acompanhado de um invencível desejo ou de uma necessidade (obrigação) de continuar a consumir a droga e de procurá-la por todos os meios. Segundo Manuila, Manuila e Nicouli (1997), trata-se de uma farmacodependência com tendência a aumentar as doses. 210 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Porém, este indivíduo não possui apenas uma dependência química do produto – droga – mas também uma dependência psíquica, chamada pela Psicologia de Toxicomania. Dentre as características do indivíduo toxicômano, inclui-se a representação da droga para o sujeito. Para o usuário, a droga é apenas mais um objeto, enquanto o toxicômano faz da droga seu objeto exclusivo (Torossian, 1997). Porém, o limite entre eles é tênue e segundo Melman (2000), qualquer um pode tornar-se toxicômano. O encontro com a droga provoca uma transformação psíquica, construindo uma nova história (Nogueira Filho, 1999). Para Ribeiro (1997), quando a droga é o principal objeto de desejo, as relações de alteridade perdem importância e eficácia, estabelecendo-se um curto-circuito narcísico, proporcionando uma ilusão de auto-suficiência (e conseqüente retraimento de investimento no mundo exterior). O constante re-uso é uma forma de refazer a cada dia o preenchimento narcísico, que salva o toxicômano de um desaparecimento subjetivo. Para Melman (1992), a prática da interdição, através da intenção de assistir, de cuidar, participa da manutenção e do entretenimento da toxicomania, pois a abstinência é necessária ao ciclo, uma vez que o objeto se destaca por sua alternância com a falta. A interdição introduz uma erotização suplementar que faz com que todos os argumentos sejam derrubados para privilegiar o que havia sido interditado. Assim, diz que a melhor saída para a toxicomania seria medicalizar a droga (torná-la um medicamento, ao qual o toxicômano pode ter acesso de forma legal), deserotizando a relação do sujeito com esta. A representação social da droga também é evidenciada por alguns autores. Torossian (1997) expõe o fato de vivermos em uma sociedade “adicta” em relação aos ideais e aos imperativos propostos por ela. O toxicômano, nesta sociedade, consome a droga e chega até ela através da busca por um lugar de exceção. Considerando-se que nossa sociedade possui uma cultura de consumo, na qual para “ser” é preciso “ter”, o uso de droga constitui-se em uma das formas de produção de identidade, é uma alternativa frente à fragilidade das referências simbólicas hoje encontradas. Esta busca por referências é uma busca por um lugar social. O toxicômano toma como resposta o lugar de dependente. Pode-se referir ainda, a representação da dependência. Tomando-a como uma doença incurável, a dependência remete a algo que nunca será curado. Assim, o único tratamento possível é o do autocontrole, uma constante abstinência da droga, e o toxicômano passa a ser visto como um doente. Velho (1978) salienta que a doença na nossa sociedade é a categoria mais abrangente que classifica os comportamentos perturbadores, permitindo o mapeamento e o controle dos desvios. Fazendo uma análise social, diz que a categoria drogado é uma acusação moral e médica que assume explicita e implicitamente uma dimensão política, sendo, também, uma acusação totalizadora. A acusação totalizadora é aquela que contamina toda a vida do indivíduo acusado, estigmatizando-os de forma talvez definitiva e atacando a identidade do toxicômano. Nogueira Filho (1999) expõe que a identificação com o significante toxicômano, lê-se: doente, é um saber sem verdade, pois ele não consente em passar por seu romance familiar e pelos significantes que lhe marcaram na sua história, o que Melman (1992), chama de um significante sem significância. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 211 Para Foucault (1968), a consciência do doente quanto à sua doença desdobra-se sempre numa dupla referência, quer ao normal e ao patológico, quer ao familiar e ao estranho, seja ainda ao singular e ao universal. O doente reconhece e dá-lhe o sentido de uma diferença irredutível que o separa da consciência e do universo dos outros. A consciência da doença é tomada no interior da doença, está consolidada nela no momento em que a percebe (Foucault, 1968). Conte (2002) referindo-se à nomeação doente, diz que essa se dá enquanto falta de um traço simbólico de identificação. Ocorre, assim, uma alienação a um significante produzido pelo social (doente). Frente a isto, o sujeito responde através daquilo que supõe que queiram dele. Supõe-se que queiram dele a Cura. No dicionário da língua portuguesa a cura é definida como ato ou efeito de curar, ou seja, de restabelecer a saúde, livrar de doença. No próprio dicionário uma exemplificação com o alcoolismo. “Sabia que o rapaz era alcoólatra, mas não perdia as esperanças de curá-lo”, tratando aqui a cura como fazer alguém perder efeito moral ou hábito prejudicial. Pensa-se: o prefixo in, que remete a “não”, salienta a não possibilidade de perder este efeito. O incurável é o irremediável, que não tem cura. A proposição de duas terapêuticas – medicina e grupos de auto-ajuda – tem como ponto de partida o mesmo ponto de chegada, que é a frase “eu sou toxicômano”. Ambos concordam em que o toxicômano, conhecendo o efeito das drogas, não deve nunca mais se aproximar dela. Não há alternativa, tem de se parar de usar drogas. “Uma vez toxicômano, toxicômano por toda a eternidade. E, interessantemente, passa a existir a toxicomania sem as drogas” (Nogueira Filho, 1999, p. 59). A afirmação de que os grupos de auto-ajuda e a medicina acreditam que as chances de cura são nulas, conforme Nogueira Filho (1999) traz a pergunta: Como lidar com a cura neste caso? Conforme Nogueira Filho (1999), a Psicanálise não lança mão de procedimentos disciplinares, nem de medicamentos. E não vai repetir a resposta “nunca mais”. Vai investigar a toxicomania naquele sujeito singular, sem punir recaídas e gratificar abstinências. A obrigação do psicanalista é prevalecer do simbólico e da palavra. Nasio (1999) diz que em Psicanálise devemos entender a “cura” como um valor imaginário, um pré-conceito. Ele afirma que a demanda de cura parte de quem sofre e ela se alimenta de uma falsa imagem de cura. Porém, é indispensável no início do tratamento. Ao longo do tratamento é que o paciente tem de deslocar o lugar erotizado da droga e poder falar de outros objetos e de outras questões (Torossian, 1997). “Somente quando o tóxico é deslocado da posição de suposto objeto ideal na relação com o sujeito é que fica um buraco” (Conte, 2002, p.39). Para esta autora, é necessário que o paciente faça o luto de um objeto que nunca foi a droga, admitindo que sempre esteve perdido. A interdição desse objeto para sempre perdido deve se dar pela reconstrução de uma lei e não mais pela intervenção do tóxico, isto permitirá que o desejo ressurja, ocorrendo assim a transformação do dito toxicômano em um sujeito propriamente desejante. 212 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Por fim, Nasio (1999) clarifica a cura em Psicanálise: a cura em Psicanálise é a produção de um novo ser psíquico. Método Delineamento Foi realizado um estudo exploratório de abordagem qualitativa, desenvolvido a partir do método de Análise de Conteúdo. A Análise de Conteúdo, conforme Bardin (2006), tem como finalidade chegar, através da descrição, a uma interpretação da comunicação produzida. Participantes Participaram da pesquisa quatro internos da fazenda de recuperação de dependentes químicos Ivorá/RS, com idades entre 20 e 36 anos, todos do sexo masculino, designados como dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, dispostos a tratar-se nesta instituição. Os mesmos foram escolhidos pelo coordenador terapêutico da instituição. Foram devidamente informados e esclarecidos quanto a suas participações no estudo através do Consentimento Informado, estando de acordo com os objetivos e procedimentos da pesquisa. Segue-se uma breve descrição de características dos participantes: Participantes Idade Escolaridade Profissão Presenças de outras pessoas da família com o mesmo problema A1 24 1º ano do 2º grau Comerciante Pai (álcool) B2 24 1º grau incompleto Autônomo Irmão (drogas), Tio (álcool) C3 20 1º grau completo Não tem Não tem D4 36 2º ano do 2º grau Funcionário Público Não tem Instrumentos Ficha de Dados Demográficos: Foi utilizada uma ficha para levantamento de dados gerais dos participantes constando: idade, escolaridade, estado civil, profissão, religião, situação econômica, com quem residem e presença de outras pessoas da família com o mesmo problema. Entrevista Sobre a Concepção Incurável: A qual continha questões norteadoras sobre tempo de internação e de uso de drogas ou álcool; sobre a dependência química (concepção de dependente, o olhar-se como um dependente e a consideração sobre a passagem de usuário para dependente); sobre o tratamento (número de tratamentos realizados, mudanças observadas durante o atual tratamento, diferença deste para os anteriores) e, ainda, questões sobre a concepção de cura (se consideravam a dependência incurável e os significados pessoais e acerca do tratamento a partir disto). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 213 Procedimentos As entrevistas foram gravadas em fitas cassete. Após a gravação, houve transcrição e análise através dos seguintes passos: Descrição: Primeiramente, foi empreendido um tratamento descritivo, através do registro do discurso dos entrevistados (dados brutos transcritos). Inferência: Após a transcrição das entrevistas, delimitaram-se unidades de registro e realizou-se escolha das categorias para a codificação. A partir deste material, possibilitou-se a categorização, utilizando-se em princípio o isolamento de elementos e, na seqüência, a classificação, por meio de um reagrupamento segundo semelhanças e diferenças. Durante o processo de categorização, foram utilizadas regras da análise estrutural: Associação: análise da presença de objetos sempre juntos a outros; Equivalência: encontro de objetos e seus substitutos; Exclusão: percepção objetos substituídos por outros. Interpretação: Da descrição e inferência, culminou a interpretação, na qual as entrevistas analisadas qualitativamente foram articuladas com o referencial teórico levantado. Resultados A seguir serão apontadas as categorias temáticas obtidas através do processo de categorização e, após, descritos e comentados trechos ilustrativos das falas dos entrevistados. Categorias Temáticas: Aprendizado – A toxicomania enquanto doença é aprendida durante o tratamento; Limite – O incurável possibilita uma limitação; Diferenciação – O incurável provoca uma diferenciação; Continuidade – A nomeação doença incurável sustenta uma continuidade no tratamento; Fantasma – A toxicomania existe sem a droga. Aprendizado – A toxicomania enquanto doença é aprendida A concepção de que a dependência de drogas lícitas ou ilícitas é uma doença é aprendida durante o tratamento, a procura pelo mesmo não é realizada pensando em uma busca por cura, mas sim visando cessar o uso. Vejamos os excetos: A1: “aqui dentro da fazenda eu vim saber que é um, que a dependência química é uma doença sabe?”. C3: “Quando eu entrei aqui eu também pensava: usar drogas de sem vergonha, mas depois o cara aprende que é uma doença, né?” A1: “Sabe, é uma doença que não tem cura, mas que eu posso ter uma vida uma vida tranqüila mesmo sendo um doente, é só tomar os cuidados que eu tenho que tomar, fazer o que eu aprendi aqui dentro que tem que fazer”. B2: “Hoje em dia eu me considero, eu era um dependente químico, eu sou, eu vou viver, não tem cura, né? É uma doença que não vai ter cura, né? Tem que tar sempre buscando e eu aprendi tudo isso”. Toda esta compreensão da doença mostra algo que aprendido começa a exercer sobre os indivíduos uma função de mudança. Adotando a nomeação doente, eles 214 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 passam a regrarem-se para assumir tal condição. Parece que a primeira função deste significante é barrar o sujeito. Ou seja, limita-lo. Limite – O incurável possibilita uma limitação O significante “doença” barra, limita o sujeito, ele não é mais aquele que tudo pode ou aquele pelo qual tudo se faz. A cadeia narcísica na qual estava preso parece abrir-se. Adquirindo limites o sujeito passa a encontrar a alteridade, encontrar o outro. Esta limitação é demonstrada nas palavras de D4. D4: Respondendo à questão sobre o que seria a cura – “Saber, entender que não pode mais. Não pode, que tem um limite, bastou, bastou”. Percebe-se que os indivíduos que passam por esse processo atravessam um período depreciativo de seu “eu”, culpam-se, arrependem-se, desculpam-se. Assim como um momento de solidão, a partir do qual reconhecem um “eu” impotente, que assume a condição de espelhar-se em outros para sustentar sua própria imagem, é neste momento que a função do grupo aparece. B2: “eu fui obrigado a vim aqui pra dentro e aí aqui dentro eu conheci, né? Eu vim me conhecer, que sozinho eu não era capaz de largar da droga, né”? Considerar-se um doente, então, permite uma mudança de lugar, de posição. Diferenciação – O incurável provoca uma diferenciação O termo utilizado pelos sujeitos da pesquisa para designarem sua condição é “doença”. Salienta-se todo o peso que esta carrega quando confrontado com o social, com a dita “normalidade”. É constante a comparação entre seus comportamentos com a loucura. A1: “Como eu disse antes, não é normal. Eu tenho consciência hoje de que eu não sou uma pessoa normal. Sabe?”. A1: “...porque quem cuidava dos negócios era eu, sei lá eu, com tudo as minhas loucura, sabe, tinha umas coisas que eu trazia em dia sempre...” C3: “No começo eu ah, tava aqueles louco gritando, ali rezando, bah, dava risada dos cara...” Ao mesmo tempo, parece não haver um comprometimento maior com esta condição, no sentido de provocar uma verdadeira transformação psíquica no sujeito. Podemos observar no discurso de B2 que é bastante difícil responder sobre seus sentimentos em relação a esta condição de doente incurável: B2: “ai, não tem como te explicar, sabe?...na verdade eu não... acho que eu não ligo muito, eu sei que eu sou um doente, sabe, mas eu não sei como te explicar assim como eu me sinto sendo um doente, sabe? Bem dizer é normal eu acho. Normal, normal de repente pra outras pessoas não seja, né? Mas pra mim é, normal, né?” Esta nova nomeação não consolida a mudança, o que acontece é o aparecimento de um nova designação na cadeia significante. Ou seja, é o significante em si que aparece. Porém, observa-se que isto é suficiente para que surja a possibilidade de um novo olhar sobre si: A1: “Olha, ser um dependente químico pra mim é ser uma pessoa especial, não sou uma pessoa normal, sabe... pra mim seria isso, especial porque eu sou diferente”. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 215 Continuidade – A nomeação doença incurável sustenta uma continuidade no tratamento Esta nova forma de existir do sujeito é o que sustenta alguma continuidade do tratamento. Antes de existir a concepção doente, existia um indivíduo cujo tempo era irreal, ou melhor, era um ser que vivia permanentemente em tempo presente. Esta nova condição parece representar uma noção de futuro. Justamente por limitar, por determinar, possibilita que se enxergue além, possibilita a utilização de novos sonhos futuros. B2: “A, hoje eu vejo o futuro, né? Viver feliz, não, feliz que eu assim é viver sem ela, sem a droga, sem o álcool, trabalhar, viver uma vida normal, como todo mundo vive: trabalho, casa, família, saí, passear, se divertir, mas sempre com sobriedade”. A idéia de cura que acompanha o “doente” é bastante controversa. Acreditando que é uma doença incurável, estará curado. B2: “No momento eu acho que um dependete químico achar que ele tá curado ele vai recair, porque daí ele não vai buscar mais, ele vai parar...” Fantasma – O toxicômano existe sem a droga B2: “Vou ser um eterno doente, né”? Empreender um sentido para uma doença incurável é pensar para quais possibilidades ela aponta, e esta parece levar para uma eterna busca de controle pessoal. A1: “Um tratamento, eu acho que força de vontade, sabe, tu saber que tu não vai sair curado, sabe, porque a tua doença não tem cura, mas nem por isso tu vai desistir. Sabe. Nem por isso eu vou desistir de pelo menos tentar sabe, se eu sei que eu tenho uma doença que ela é progressiva, é fatal. Se eu conseguir me curar, se eu conseguir... se eu conseguir tomar os cuidados que eu sei que eu tenho que tomar hoje, posso ter uma vida tranqüila, sabe”. D4: “Eu falei que é uma constante, dia após dia, um tratamento não tem, tem todo dia, só por hoje eu não vou beber, só por hoje eu não vou usar drogas, é uma busca diária”. É no momento em que mesmo sem a presença da droga ela está constantemente presente para o sujeito, que ela aparece ainda como o objeto ideal. C3: “é eu sei que eu tenho essa doença assim, né, tentei sair fora sozinho e não consegui, sei que eu vou carregar pra sempre isso aí”. Discussão Como Ribeiro (1997) coloca, o consumo de drogas hoje é representado no campo científico. Campo do qual a Psicologia participa. Esta é uma tentativa de situar uma temática determinada, a temática da cura. A discussão baseia-se no conceito de cura da Psicanálise, trazida por Nasio (1999): produção de um novo sujeito psíquico. A terminologia “toxicômano” é utilizada conforme conceito aplicado por Torossian (1997) onde a droga aparece como objeto exclusivo. O termo “doença” é o que remete ao incurável, terminologia apreendida como objeto de estudo deste trabalho em referência ao tratamento da toxicomania dos 216 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 entrevistados. Estamos aqui tratando de sujeitos. Melman (2000) advém ao fato de que é a droga quem faz o toxicômano. A história que inicialmente se propõe ao uso de drogas é a que Torossian (1997) salienta como busca por um lugar de exceção, encontrado na droga. Melman, (1992) diz que nesta tentativa é ultrapassada a borda da própria vida. Aí se pode pensar na doença, no significante doença: ele está barrando o objeto droga? O significante doença barra sim, limita o sujeito, como bem podemos presenciar na segunda categoria temática levantada, o limite. Este significante traz consigo a marca de uma diferenciação, que sustenta uma alteridade. Alteridade que antes era perdida por causa de um curto circuito narcísico existente. Este curto circuito narcísico aqui referido é o que Ribeiro (1997) aponta como o responsável pela perda da importância das relações de alteridade. Conte (1997) divide a mesma idéia dizendo que o preenchimento narcísico é refeito a cada dia. Se pensarmos no termo freqüentemente utilizado pelos sujeitos da pesquisa e pelos usuários de drogas: “ativa”, podemos associá-lo a uma questão temporal. Na “ ativa” faz-se a cada dia um novo corpo, é uma ação diária, de atos. Para que suas palavras não tenham mais peso de atos é necessário que se instaure uma função Paterna, esta função é a que designa o sujeito enquanto ser social, proporcionando o limite e a referência. Quanto à instância terceira (função Paterna), Melman (1992) propõe que o que se constrói a partir do significante produzido durante o tratamento é uma resposta, por parte do toxicômano, do que supõe que queiram dele. Isto explica o porque do aprendizado sobre a doença (primeira categoria). O indivíduo não vai procurar o tratamento pensando em uma cura, mas o que encontra dentro da fazenda é uma série de informações que necessitam de uma resposta sobre o que busca ali. O doente incurável parece ser o lugar de onde ele consegue responder durante o tratamento. Se retornarmos à categoria Diferenciação pode-se observar claramente a tentativa de enquadre social proposta pelo significante “doença”. Velho (1978) diz que a doença permite o controle dos desvios; a partir dela se constrói um discurso sobre anormalidade. Este mesmo autor coloca que esta concepção (doente) contamina toda a vida do sujeito, atacando sua identidade. A percepção obtida através deste estudo é a de que antes de um ataque, trata-se de uma nova possibilidade de identidade a ser construída. Na mesma categoria podemos notar a dupla referência: do normal e da loucura, que Foucault (1968) diz implicar a doença mental. O reconhecimento do “doente”, continua ele, dá sentido de uma diferença. Esta questão da normalidade parece bastante significativa, há uma constante comparação com as coisas normais, há uma constante referência à loucura. Ao mesmo tempo em que tentam imitar homens que consideram “normais”, querendo ter um cotidiano igualmente estável (B2 na primeira fala da categoria Continuidade), eles adotam o termo incurável, que lhes conota uma diferenciação. Querem ter comportamentos considerados normais e se nomeiam como anormais, a fim de conquistar um lugar diferente. É um lugar diferente do que antes possuíam no tempo da “ativa”, mas ainda assim um lugar de diferenciação do sujeito. Ressoa uma transição: Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 217 do louco, para o louco disfarçado de normal (extremamente perceptível quando C3 fala na terceira categoria sobre seus atuais “irmãos de caminhada”), até o normal. O indivíduo parece apegar-se a esta nomeação como norma, norma que propicia um investimento em seu tratamento, em si. Este investimento aparece a nível comportamental. O indivíduo regra-se, instaurando um limite (já citado) para que consiga sustentar sua atual condição, de não uso de drogas. Isto é o que Conte (1997) salienta como uma lei que se presentifica no real, através de regras. É preciso controlar-se e adquirir a noção de doença. Esta borda que se forma a partir da nomeação doente permite que o indivíduo atue no futuro, como se pode observar na categoria Continuidade, ou pense em relação ao futuro. O que antes se sustentava apenas como presente, agora provoca chances de continuidade. Há aí, a presente necessidade de significantes que digam quem são e para onde vão. Esta questão parece ser norteante no tratamento e encontra sua resposta na concepção incurável. Algo que eles possam ter certeza que sempre serão. Algo que não os façam distanciar-se bruscamente do que foram: drogados, pois permanecem sendo. Este significante, porém, parece não alterar os sentimentos destes indivíduos, ou então estes parecem ainda não querer se confrontar com a possibilidade de sentir. A doença é tratada como evento externo que se apossa deles, a qual devem responder em atos. Aí se encontra o que Nogueira Filho (1999) fala sobre a existência da toxicomania sem as drogas, perceptível na categoria Fantasma. Justamente isto parece acontecer quando o incurável se faz presente como resposta. A nomeação incurável, assim como dependente químico, produz a possibilidade de que a droga exista permanentemente, como bem relata B2 em sua fala na quinta categoria temática. É o que Melman (1992) coloca como falta que é celebrada. Nela o objeto (droga) se destaca por sua alternância em estar presente ou ausente. Quando isto ocorre, tanto o objeto quanto o interdito tornam-se reais. Pensando-se no quanto nos sujeitos da pesquisa a mudança provocada pelo interdito ‘doença’ é externa (comportamental), percebe-se que há uma simbolização pouco cristalizada, no sentido de que o sujeito não pensa em elaborar sua situação passada, nem as angústias que lida no hoje. Apenas as nomeia para que, sendo explicadas, possam ser externas a ele, ele ainda não se identifica como ser transformador. A cura não é admitida. Há a percepção de que no momento em que ela for concebida como possibilidade, o momento atual se dilacera. Isso oportuniza o não envolvimento total do sujeito em seu tratamento. Entender e aprender que é um doente em recuperação e que esta recuperação atenta justamente ao fato de considerar-se um doente, mantém o indivíduo num estado limite, porém não leva este a desejar outra condição para si. Parece mais uma obrigação do que um desejo, é uma necessidade. Nas palavras de A1, na primeira categoria há o verbo TER, que presentifica um dever e não algo assumido através da vontade. Na mesma categoria B2 busca uma afirmação, NÉ, para a doença, demonstrando uma busca constante para uma afirmação que está aprendendo. Ao falar da nomeação toxicômano, Nogueira Filho (1999) diz que a identificação com este significante é um saber sem verdade, pois não consente em passar pelos significantes que marcaram a história. 218 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Resta a questão: será que na concepção de toxicomania enquanto doença não há apenas um significante sem significância, como se refere Melman (1992) ao toxicômano? Acredita-se que não, a questão da doença está contida na cultura, cultura que a reconhece, como diria Foucault (1968). Parece justamente que a nomeação doente é aceita culturalmente e a drogado não, o termo drogado acaba carregando consigo as designações de desprezo. É imprescindível salientar o que Nasio (1999) fala sobre demanda de cura, que é algo indispensável no início do tratamento. É este valor imaginário da cura que parece sustentar a continuidade do tratamento, referido na categoria Continuidade. Enfim, o significante carrega consigo uma representação social. Cabe ao toxicômano dar um significado individual à condição de doente, que acaba de assumir. Retomando o tratamento psicanalítico, modelo teórico adotado nesta pesquisa, retrata-se o que foi colocado por Conte (1996) como fracasso frente a um ideal. É preciso que no tratamento do toxicômano o tóxico seja deslocado da suposição de suposto objeto ideal, como mais tarde Conte (2002) propõe. Isto proporciona o buraco, a falta, a renúncia ao objeto perdido. Será que este buraco não é encontrado quando os toxicômanos referem-se à “fissura pela droga”? Acredita-se que não porque ainda é pela droga. É a droga que impera. É preciso que admitam que sempre estiveram perdidos. O momento depreciativo do eu talvez inicie esta admissão. A nomeação doente também, mas ainda assim ela está presa no objeto droga. Ocorre, precisamente, que a dependência de drogas, ao ser considerada uma doença, proporciona uma nova posição ao toxicômano, um novo lugar do qual possa responder. A simbolização de sua condição, por sua vez, parece não preceder a assunção desta condição. Desta forma, há um significante que nomeia, mas que não propõe ao sujeito novas significações, uma vez que estas são concebidas pelo peso simbólico colocado socialmente na palavra “doença”. O toxicômano passa a sustentar uma nova imagem, imagem que constitui um lugar social bastante próprio, lugar de exclusão. Ao mesmo tempo em que o termo incurável leva a um lugar de exceção, ele trás embutido uma série de valores sociais e culturais. Cabe perguntar: É possível que este sujeito sustente este significante “doença” num lugar onde não é positivamente valorizado, mas sim onde lhe é atribuído valor oposto? Considerando-se que a toxicomania aparece neste sujeito como sintoma e não como causa, e que fica evidenciada sua relação de dependência com os objetos, igualmente sua fragilidade diante destes, pode-se pensar que será bastante difícil para ele utilizar um lugar de exclusão o qual precise ocupar. Enquanto “drogado”, este sujeito estava acompanhado de seu objeto: a droga, é a relação pura e “ativa”, como costumam nomear. Diante da doença este sujeito parece sim se abster desta atividade e passar a outro pólo: a passividade, passividade diante deste “novo dizer”, do outro, que o configura, o nomeia. Estas repostas pedidas socialmente, pelo outro, são respostas que causam um buraco, uma fissura. Espera-se que a esta fissura ele não responda com o objeto droga, mas que encontre novas soluções. Espera-se que a busca de novas respostas esteja sendo realizada com desejo, ou seja, espera-se que as novas questões que lhe sejam Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 219 colocadas suscitem a intenção de um benefício do próprio toxicômano. Com isto, dizse que é necessário que as pessoas que compartilharão com o toxicômano deste novo significante o reproduzam desejando uma transformação do sujeito e não apenas pensando que esta condição lhe trará mais “tranqüilidade”. Isto preocupa no momento em que os participantes da pesquisa revelam estar praticando a mudança em função de seus entes queridos e não em razão própria. Assim, não há significação dada pelo toxicômano que acompanhe o significante. Pode-se dizer que a cura, enquanto produção de um novo sujeito psíquico, não ocorre. É negada a afirmação dada pelos participantes da pesquisa de que a cura estaria na própria concepção de doente incurável. Pode ser que esta transformação posteriormente seja possível. O significante assumido poderá ser a porta de entrada para esta produção. Basta pensarmos em um bebê recém nascido, um ser que acaba de chegar ao mundo e passa a ser nomeado. O significante, seu nome próprio, é o que dará a ele um lugar. A partir deste será possível que ocorram significação e a construção de uma identidade, a partir de sua troca com o mundo. No toxicômano o significante doente igualmente lhe dará um nome, porém, este não é próprio, ele já existe. Enfim, essa existência é carregada de valores sociais que exigirão do sujeito uma nova postura. Ele terá de construir dois caminhos que se cruzarão: a representação desta nomeação dentro de sua história particular e o interlace desta com uma nova condição enquanto ser social, do qual serão esperadas respostas. Enfim, este estudo avaliou as condições em que a consideração doente incurável influencia o toxicômano que procura um tratamento para livrar-se do uso de drogas. O termo doença proporciona um novo lugar ao toxicômano, uma posição da qual poderá responder diferentemente, porém não parece haver uma mudança mais profunda, no sentido de culminar na existência de um novo sujeito. Esta terminologia pode ser sim uma porta de entrada para que isto ocorra. Através deste estudo, está-se ciente de que não se esgotaram as possibilidades de análise sobre este tema. Alerta-se aos limites em termos de generalizações, devido a particularidades desta pesquisa quanto ao número e escolha dos sujeitos pesquisados e ao referencial escolhido. Referências Bardin, L. (2006). Análise de Conteúdo. (L. A Reto & A. Pinheiros, Trad.). São Paulo: Edições 70/Livraria Ed. (Original publicado em 1977). Conte, M. (1996). Os efeitos da contemporaneidade: consumo de álcool, drogas e ilusões. Boletim de Novidades Pulsional Centro de Psicanálise, 9 (90), 09-13. Conte, M. (1997). Toxicomanias. Correio da APPOA. Toxicomanias, 49, 9-15. Conte, M. (2002). A clínica institucional com toxicômanos: uma perspectiva psicanalítica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 5 (2), 28-43. Foucault, M. (1968). Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Manuila, L., Manuila, A., & Nicoulin, M. (1997). Dicionário Médico Andrei. São Paulo: Andrei. 220 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Melman, C. (1992). Alcoolismo, Delinqüência, Toxicomania. Uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta. Melman, C. (2000). Clínica Psicanalítica. Artigos Conferenciais. Salvador – BA: Ágalma. Nasio, J-D. (1999). Como Trabalha um Psicanalista? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Nogueira Filho, D. M. (1999). Toxicomanias. São Paulo: Escuta. Ribeiro, E. M. (1997). Genealogia de um engano. Correio da APPOA. Toxicomanias, 49, 27-29. Torossian, S. D. (1997). O lugar do outro na subjetividade dos adolescentes usuários de drogas. Correio da APPOA. Toxicomanias, 49, 16-19. Velho, G. (1978). Duas Categorias de Acusação na Cultura Brasileira Contemporânea. Em: S. A., Figueira (Org.), Sociedade e Doença mental (pp. 37-45). Rio de Janeiro: Campus. Recebido em agosto de 2007 Aceito em janeiro de 2008 Amanda Schreiner Pereira: psicóloga; especialista em Psicologia Clínica (CRP) e em Atendimento Clínico – Ênfase em Psicanálise (UFRGS); mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM); psicóloga do CAPS (Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS). Endereço para correspondência: [email protected] Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 221 Aletheia 27(1), p.222-232, jan./jun. 2008 Psicologia e epistemologia: por uma perspectiva ética de potencialização da vida Jardel Sander da Silva Resumo: Este artigo versa sobre as questões epistemológicas basilares que envolvem a psicologia como ciência da subjetividade humana. Realiza-se uma investigação crítica e contemporânea sobre estas questões, avaliando a pertinência à psicologia de uma verificação epistemológica que separaria um sujeito de conhecimento de um objeto a ser conhecido, e que teria como conseqüência uma estagnação de ambos. Opta-se, enfim, por uma postura crítica que defende a especificidade da psicologia, e que encontra na avaliação ética, como possibilidade de se conhecer através do movimento e do devir, a mais útil à psicologia, no sentido de possibilitar a esta contribuir ativamente na potencialização da vida. Palavras-chave: epistemologia, ética, psicologia Psychology and epistemology: trough an ethical perspective for the potency of life Abstract: This paper discusses the fundamental epistemological questions involving psychology as a science of the human being subjectivity. This work makes a critical and contemporary inquiry on these questions, checking Psychology’s verification of an epistemological approval that apart the subject of knowledge from an object to be known. The consequence of such think would be both stagnation. We choose, therefore, a critical position defending the Psychology specificity, finding in an ethical evaluation a possibility of knowing through movement and change, reaching thus a more useful perspective to Psychology, contributing to the potency of life. Key words: epistemology, ethics, psychology Introdução Gostaria de iniciar este trabalho com uma pergunta que, a meu ver, mostra-se como uma grande diretriz epistemológica para os dias de hoje, bem como para nosso futuro: - O que queremos com a ciência, ou da ciência, ou dos saberes? Esta pergunta, pelo seu teor – e à medida que pretendo conduzi-la como direcionadora deste trabalho –, pressupõe uma certa postura em relação ao que se entende por epistemologia, mas também frente à sua utilidade. Em tempos passados, talvez não bem passados, jamais se questionaria o que querer da ciência, ou ainda, da sua utilidade; a ciência, na plenitude celestial de sua neutralidade, à semelhança do mundo das idéias de Platão, justificava-se por si, era ela a própria garantia da validade das verdades descobertas. Não se questionava a ciência como método; mas sim, os métodos dentro (e fora) da ciência. E é aí que, simplificadamente, poderíamos situar a epistemologia: encarregada de traçar essa linha divisória entre o dentro (ciência) e o fora (não-ciência). 222 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Desta lida advieram diversos crivos de divisão, os quais propunham, segundo certos critérios lógicos, o que era e o que não era ciência. Em outras palavras, a epistemologia, enquanto metaciência, a qual estuda como as ciências conhecem, e se seus métodos de conhecimento são realmente científicos. Diversos epistemólogos propuseram diferentes crivos divisórios para as ciências. Rudolf Carnap, por exemplo, propôs, primeiramente, o critério de verificabilidade: seria significativo o enunciado empiricamente verificável. Posteriormente, após várias críticas, reviu sua teoria e propôs o critério de confirmabilidade: nenhum enunciado é plenamente verificável, podendo somente ser mais e mais confirmado. Por seu turno, Karl Popper, situou seu critério demarcativo na falseabilidade, traçando uma linha divisória entre Sistemas Empíricos (científicos) versus Sistemas Metafísicos (filosóficos). Segundo este critério, se não posso confirmar todas as minhas sentenças, ao menos posso me assegurar da sua negativa, ou seja, se não posso provar que todos os gatos são pretos, no entanto, posso me certificar do contrário – que nem todos são –, bastando encontrar um gato de outra cor1 . Outro importante teórico, Thomas Kuhn, assinalou o aspecto convencional das ciências, presente na sua teoria dos paradigmas, segundo a qual estes são “(...) as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (Kuhn, 1978, p.13) De forma ampla, paradigma é uma visão de mundo: diz o que existe no universo e como explorá-lo, ou seja subministra regras. A partir desse referencial, os termos do conhecimento só são efetivos na medida em que são compartilhados por uma comunidade científica, vale dizer, a partir de sua prática social. Nesse sentido, valem todas as formulações que possam se fazer a partir de estudos rigorosos que levantem respostas articuladas a um corpo de conhecimento. No entanto, nem Carnap, nem Popper, nem Kuhn encontram em suas teorias subsídios para incluir as Ciências Humanas no seleto “clubinho” d’A Ciência. Devido à especificidade de seu objeto, bem como pela própria natureza do sujeito-pesquisador, as Ciências Humanas, de modo geral, não possuem um corpo teórico unificado, um solo comum de onde derivar suas especialidades. Nem os dois termos de sua designação (Ciência e Humano) encontram consenso. Todavia, outros teóricos têm se debruçado sobre esta problemática e chegaram a algumas conclusões que nos podem garantir mobilidade e pertença dentro do campo científico. Hilton Japiassu (1977), baseando-se em Michel Foucault, ressalta a nãocientificidade das Ciências Humanas. No entanto, isso não é posto como empecilho, uma vez que a própria positividade destas ciências se encontra num certo distanciamento em relação aos cânones tradicionais d’A Ciência. Ou melhor, segundo Foucault: “Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças, 1 Para uma comparação entre as epistemologias de Carnap e Popper, cf. DUTRA, Luiz H. de A. A Diferença entre as Filosofias de Carnap e Popper. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, 1 (1): 7-31, jan.-jun. 1991. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 223 nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências onde se trata da vida, do trabalho e da linguagem.” (Foucault, 1992, p.368) Esse saber fronteiriço, na concepção deste autor, estabelece-se justamente através do “oculto”, do não-imediatamente-perceptível. (...) o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem e que se poderia analisar como tal? (...) Mas a representação não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda sua extensão; é o suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível. (Ibid.: 380, o grifo é meu) Esse caráter representativo do objeto das Ciências Humanas direcionou sua empreitada para o campo da hermenêutica (no sentido amplo), pois, uma vez que a “verdade” sobre o fato humano não se dá imediatamente ao olhar, é preciso interpretálo, ou melhor, mediá-lo através da interpretação2 . As ciências do objeto-humano passam pelo humano-do-sujeito (pesquisador). E talvez seja justamente este o epicentro de toda crítica às Ciências Humanas, bem como aquilo que mais as afasta do clássico rigor científico. Pois, uma vez que a “verdade” não se dá imediatamente ao olhar, devendo ser interpretada, é preciso que alguém a interprete. E, no caso das Ciências Humanas – diferentemente da química, da física etc. –, a proximidade entre sujeito (interpretador) e objeto (interpretado) é nítida e insuperável. De modo que toda tentativa de adequação epistemológica das Ciências Humanas às Ciências Naturais é vã, pois que se corre o risco de jogar a água do banho com o bebê junto. No entanto, não se pode ignorar o perigo sempre presente de se cair num subjetivismo teórico, em que tudo é relativo, uma vez que “a minha opinião é diferente da sua”. O “opinismo” (pseudo) teórico é um risco para as Ciências Humanas, reforçando a necessidade de se traçar diretrizes para o pensamento e a prática. Crítica à epistemologia A partir disso, gostaria de focalizar alguns autores que argumentam em favor de uma saída (ou uma entrada) para as Ciências Humanas, no que tange à cientificidade, ou, ao menos, a alguns critérios que as afastem da trivialidade da opinião. Bombassaro (1992), em seu livro As Fronteiras da Epistemologia, tenta forjar uma síntese entre racionalidade (critério) e historicidade (mutação, processo) no campo epistemológico. Desta síntese, o que nos interessa aqui é a sua proposta de uma 2 Michel Foucault discute a questão da hermenêutica moderna num texto em que identifica aqueles que seriam os principais hermeneutas da modernidade: Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Karl Marx. Para Foucault, estes autores teriam nos legado uma forma de interpretar os símbolos (nossa hermenêutica) como mergulho numa profundidade própria, que irá nos mostrar, bem na esteira do pensamento nietzschiano, que não há fatos, somente interpretações. Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud, Marx. In.: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. (2000) Organização, seleção de textos, Manoel Barros da Motta; tradução, Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Ditos e escritos; II) 224 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 espécie de “território de encontro”, no qual racionalidade e historicidade se juntariam de modo a potencializar o pensamento e a ação. Este território é a dimensão prática. Nas palavras do autor: A substituição paradigmática do “eu penso” pelo “eu argumento”, salientando a dimensão pragmático-lingüística, impõe à epistemologia uma maneira completamente diferente de considerar o conhecimento, na medida em que não se torna mais possível encontrar padrões de racionalidade independentemente do mundo prático, onde o conhecimento é produzido e no qual a historicidade constitui-se em elemento central. (Bombassaro, 1992, p.120-1, grifo meu) Mergulhando um pouco mais na radicalidade (e urgência) de um parâmetro pragmático para nosso pensamento e nossa ação, poderíamos tomar como argumento as palavras de Deleuze: Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. (Deleuze In.: Foucault, 2006, p.71) No entanto, o uso do instrumental teórico requer critérios. E, para tanto, há que se recorrer a algum balizamento, que inclua uma concepção de homem, uma metodologia e um resultado a ser atingido. A forma de satisfazer a esses requisitos, principalmente em se tratando da área em que estamos inseridos (a psicologia), é proposta por Luís Cláudio Figueiredo, em diversos de seus trabalhos, dos quais gostaria de focalizar o livro Revisitando as Psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Um trecho deste livro é perfeito para recolocarmos a questão da epistemologia, redirecionando-a: Será, então, que o abandono do projeto epistemológico moderno e das versões normativas da epistemologia nos deixaria imersos na indecisão e na impossibilidade completa de justificar racionalmente nossas opções teóricas e práticas? É nesta conjuntura que a dimensão ética dos discursos e práticas das psicologias emerge como o plano no qual uma nova racionalidade poderá ser exercida. (Figueiredo, 1995, p.24) Essa nova racionalidade de que fala Figueiredo toma como referência a experiência, a experiência do nosso interlocutor – ou, como queiram, do “outro”, do nosso “objeto”: “As linguagens – tanto as teóricas e especializadas como as cotidianas – deixam de ser concebidas como meros instrumentos para a representação mais ou menos fiel de uma realidade para se converterem em dispositivos constitutivos da experiência.” (Figueiredo, 1995, p. 25-26) Esta perspectiva propõe a superação da representação, pois esta ainda está atrelada a um modelo, que seria seu referente verdadeiro, que seria sua verdade. E se, Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 225 conforme foi colocado anteriormente, a base das Ciências Humanas for a representação, cabe-nos desmontar esta base, limpar o terreno, ao menos o nosso terreno, e construir algo novo. Isso remete à problematização da função e do local dos intelectuais. Nas palavras de Foucault: Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. (...) O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso. (Foucault, 2006, p.71) A ética, um caminho possível Diante do exposto, e se quisermos buscar algum balizamento para nosso pensamento-ação, não o encontraremos na epistemologia, mas sim numa ética. Para conceituá-la, tomemos emprestadas as elaborações realizadas por Gilles Deleuze – em seu trabalho sobre Espinosa – e Michel Foucault. Este autor, ao discutir as “prescrições morais”, coloca que estas seriam uma espécie de “(...) relação consigo mesmo que se deveria ter, esta ‘rapport à soi’[ligação a si próprio] (...), e que determina como o indivíduo deve se constituir como sujeito moral de suas próprias ações.3 ” (Foucault, 2001, p.1212-1213). Mas para longe de qualquer voluntarismo, o que Foucault está configurando aqui, e em seus estudos sobre o que ele chama de modos de assujeitamento (mode d´assujettissement), é este terreno dos modos de existência em que nos deslocamos, em que existimos. Aprofundando esta questão, Deleuze, ao interpretar a filosofia espinosista, assinala a diferença entre moral e ética, entendendo a questão ética como uma modificação dos valores, e a Ética como sendo “(...) uma tipologia dos modos de existência imanentes, [que] substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a valores transcendentes. (...) A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau).” (Deleuze, 2002, p.29) Destas duas noções, podemos formar um conceito de ética que englobe uma “relação consigo próprio” balizada não pelos valores d’O Bem e d’O Mal; mas sim pelos modos de existência que compreendem o que é bom e o que é mau. Indo um pouco mais adiante na concepção espinosista, o que se deve procurar, são as alegrias ativas, o que é bom, isto quer dizer: o que amplia a minha capacidade de agir; e o que se deve tentar evitar são as paixões tristes, o que é mau, isto é, o que diminui minha capacidade de agir. 3 Tradução livre de: “(...) c’est la relation à soi-même qu’il faudrait avoir, ce rapport à soi (...) qui determine comment l’individu doit se constituer en sujet moral de sés propes actions.” 226 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 O que é fascinante nestas noções é precisamente o fato de a ética não estar ligada a nenhum valor transcendental, nenhum meta-valor. A ponderação está ligada à experimentação do sujeito, dentro de um modo de existência ético, ou seja, que afirme a vida, enquanto potência de criação, isto é, movimento e devir. Nas palavras de Deleuze: Há, efetivamente, em Espinosa, uma filosofia da ‘vida’: ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. (Deleuze, 2002, p. 32) Daí se reafirma que o que está em questão é a alegria. “A Ética é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação.” (Deleuze, 2002, p. 34) A reflexão que Espinosa faz em sua Ética é deveras profunda e extensa. Para os fins aqui propostos, basta compreendermos que a procura pelas alegrias ativas se dá, efetivamente, pela seleção dos bons encontros, os encontros que não nos envenenam: procurar a alegria em detrimento da tristeza. Ou melhor, nas belas palavras de Deleuze: (...) quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência desse corpo se opusesse à nossa potência, operando uma subtração, uma fixação: dizemos nesse caso que nossa potência de agir é diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao contrário, quando encontramos um corpo que convém com a nossa natureza, e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afectam são então de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida. (Deleuze, 2002, p. 40) Pode-se tomar Figueiredo (1995) para complementar esta concepção, trazendo-a para a atuação do psicólogo, pois ele chama a atenção ao papel do agente psi, que tem como função evitar que se caia tanto num descrédito da experiência, quanto numa super-valorização da mesma, que pode desembocar num narcisismo estéril. Para tanto, este autor colocará a necessidade de uma mediação entre o fenomenal (a experiência) e o meta-fenomenal (a avaliação reflexiva). Para tal [uma avaliação ética], há também que atentar para, de uma parte, como se efetua o reconhecimento e o acolhimento da experiência tal como se dá ao sujeito, e, de outra, como se cumpre a tarefa de desconstrução do reino das identidades e das representações desde o ângulo do meta-fenomenal tal como teorizado. Esta seria a tarefa desilusionadora das psicologias. (Figueiredo, 1995, p.31) A nossa empreitada, então, desloca-se do campo representacional, e assenta-se no plano experiencial. Esse distanciamento é de suma importância, uma vez que o viés representacional remete-se à tradição filosófica platônica, segundo a qual os fenômenos Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 227 terrestres seriam cópias ou simulacros do mundo das idéias. E nas pesquisas em Ciências Humanas tem-se feito muito isso: a partir de uma ordem imaginada, a idéia ou os ideais – ideal democrático, ideal de justiça, ideal humanitário etc. – estuda-se de que forma (qualidade) e/ou quanto (quantidade) a “realidade” se distancia destes ideais (a verdade). O que ocorre é que o saber serve, então, para julgar a vida ou, mais corriqueiramente, para apontar seus erros. É nesse ponto que nos interessa um outro direcionamento epistemológico, uma outra base filosófica, que retoma uma prática cara aos filósofos pré-socráticos: o pensamento e a vida são indissociáveis. E aquele não deve julgar esta, mas sim afirmá-la. Inspirado por Heráclito, o filósofo do devir, Nietzsche4 formou seu pensamento sobre essa necessidade de o filósofo ser “mundano”, e da filosofia ser afirmativa. Nas palavras de Deleuze, em um de seus trabalhos sobre Nietzsche, a ligação entre pensamento e vida aparece desta forma: O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi essencialmente esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade do pensamento e da vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida. (Deleuze, 1994, p.17-8) É o retorno ao mundo, à vida, à experiência. Esta é uma possibilidade para o pensamento-ação, ou como diriam Deleuze e Guattari (1992): são buracos no existente que abrem caminhos a novas possibilidades. A pesquisa, também ela, precisa esburacar o seu existente, para abri-lo a outros possíveis. Pois, se há algo a se descobrir no existente, certamente não é a verdade; mas uma nova potência, um novo mundo, a vida que medra rizomática e insistente. E, no entanto, não há uma resposta, ou mesmo uma fórmula para uma tal vida. Nietzsche a chama de “a grande saúde”, isto é, “aquela que não basta ter, a que se adquire, que é necessário adquirir constantemente, por ser sacrificada sem cessar, por ser necessário sacrificá-la sem cessar!” (Nietzsche, 1987, p.297 - aforismo 382) Mas, ainda assim, é mais como um desafio que isso nos soa, no máximo um convite, uma provocação. Como poderíamos abrir o pensamento para esta vida, e como a psicologia poderia se aproximar desta força? Ética e psicologia Colocada de outra forma, esta questão da aproximação da Psicologia com a potência vital poderia ser iniciada de uma maneira mais abrangente e genérica: é possível 4 Sobre a indissociabilidade vida-pensamenlo, cf. principalmente: NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1992; e A Gaia Ciência. 4a ed. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1987. 228 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 pensar? Para, então, ser focalizada em nosso caso específico: é possível à psicologia conhecer? O que surge, pois, é uma necessidade de critério. No século XVII, René Descartes buscava este critério, e se punha a primeira questão – não sem assombro e certo calafrio frente a um possível desmoronamento cético – mais ou menos da seguinte forma: como é possível conhecer sem se perder nas infinitas mediações, sem sermos iludidos? A sua resposta foi tecida através da dúvida metódica, do método. E o que seria um método? José Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia, assim nos informa: Tem-se um método quando se segue um certo caminho, para alcançar um certo fim, proposto de antemão como tal. Este fim pode ser o conhecimento ou pode ser também um fim humano ou vital; por exemplo, a felicidade. O método contrapõe-se à sorte e ao acaso, pois o método é, antes de mais, uma ordem manifestada num conjunto de regras. (Mora, 1982, p.264) É interessante notar, na definição acima, que não há nada mais próximo de nossas vidas, enquanto direcionamento finalista; e, paradoxalmente, nada mais distante, pois o cotidiano nos ensina que não há como estabelecer um caminho de antemão. E é nesse paradoxo que o método se instala, prenhe de sua historicidade. Pois, o que geralmente concebemos como método traz consigo muito do seu cartesianismo originário: a boa condução da razão e a procura da verdade. Voltamos a Descartes, para dele nos distanciarmos. Entretanto, não nos cabe caçoar, levianamente, da empreitada racionalista, com o sorriso cínico do niilismo pós-qualquer-coisa. Pois há no método uma tentativa de lidar com o caos, com a profusão de intensidades a que o mundo nos expõe. O que nos importa, como teor da crítica, é que o método, geralmente, tem lidado com a vida através de uma estabilização. É por isso que se sente certo cheiro de estagnação no método e na metodologia. Talvez, mesmo, nossa pele perceba o problema do método: um ar frio, uma inação gelada própria do que não tem vida, cujo sangue há muito já não corre. O método, muitas vezes, sofre de coagulação mortificante. Há um entrave, pois, no que se tem chamado aqui de método – a partir da citação acima – que diz respeito ao sujeito, e este, ao controle. Método-sujeito-controle formam uma estagnante trindade na ciência (ao menos ao que nos interessa para a psicologia): pois o método instrumentaliza um sujeito de conhecimento, para que este controle os acontecimentos e os conheça. E é neste ponto que precisamos traçar uma outra forma de nos relacionarmos com o conhecimento, principalmente em psicologia. É necessário que tornemos contemporânea as discussões em psicologia. Nossos instrumentais teóricos – nossas bases epistemológicas – têm servido há várias décadas (há mais de um século, na verdade), e provavelmente continuarão a servir (uns mais, outros menos). No entanto, a contemporaneidade nos coloca problemas urgentes e bastante sui generis, porque a subjetividade, enquanto processo de produção (maquínica, nas palavras de Guattari & Rolnik, 1996), mostra-se bastante diversa do que se apresenta em várias das teorias da psicologia. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 229 Nosso primeiro impulso é o de tomar a teoria como modelo (crivo, muitas vezes) e confrontar as pessoas a este referencial. Neste movimento, podemos, então, patologizá-las e/ou classificá-las. Mas parece que se perde aí, justamente, a potência das configurações subjetivas atuais. Afinal, é muito fácil diagnosticar nosso afã hedonista, nosso desejo infinito de imortalidade (e beleza), nosso imediatismo, nosso narcisismo... para isso, basta uma olhada em qualquer banca de revistas. No entanto, há potências sendo atualizadas e vividas, que pedem interpretações que façam jus à sua atualidade e complexidade. Mas voltemos ao método. Falávamos da trindade sujeito-método-controle. Podemos entendê-la a partir da utopia do sujeito moderno, que era a de controlar o caos das coisas, da vida, para vê-la deslizar sobre seus trilhos finalistas. Sua (ainda nossa) forma de saber reflete isso, de várias maneiras. E só nos é possível conhecer diferentemente se entendermos, na sua radicalidade e tragicidade, e sem nenhuma utopia, que “as coisas não têm paz”5 , e que não há caminho seguro e reto, estabelecido de antemão. A realidade e a verdade existem, sim, mas são da ordem da estratégia e das linhas de força, em vez de serem uma descoberta: a verdade não é uma princesa adormecida em sua torre esperando que vençamos o dragão e lhe beijemos os lábios. Portanto, parece que nosso desafio é pensar a partir do movimento próprio às coisas, à vida. Afinal, o que se entende aqui por “vida” é justamente esta potência de devir, este movimento trágico da criação e da destruição. Vida é movimento. E nossos métodos, amiúde, necessitam estagnar a vida para observá-la, registrá-la, analisá-la. Os processos de subjetivação são processualidades abertas, afetáveis e afetantes. São da ordem do encontro. Como observá-los? Seria isso possível? Para nosso desconforto, a resposta é negativa: não há como simplesmente observar, como se houvessse um lugar privilegiado de observador, onde este pudesse captar todo o movimento em sua extensão e profundidade. Há que vivê-los! O pensar, e o pensar psicológico, sobretudo, é vivência, ou melhor, experimentação. E é um duplo movimento de experimentação: uma experimentação da vida em sua potência de singularização; e uma experimentação do pensamento em sua potência diferenciante. Ambos movimentos são afirmativos. Ou melhor, uma dupla afirmação, que conflui: o pensamento afirmando a vida, a vida ativando o pensamento. Sendo que o pensador é também um vivente, um pensador-experimentador. Ele precisa ser afetado: pensar por afetos6 , o que nada tem a ver com qualquer sentimentalismo. Essa qualidade de pensamento é que se faz necessária quando almejamos as bodas entre vida e pensamento. Mas, afinal, por que – ou mesmo para que – pensar? Pensar é um modo de traçar um movimento conjunto à vida: uma dança, uma improvisação. Não se pensa porque 5 As Coisas, música de Arnaldo Antunes. Para Espinosa, o afeto seria como um índice da transição entre dois estados (espírito e corpo): “A passagem a uma perfeição maior ou o aumento da potência de agir denomina-se afeto ou sentimento de alegria; a passagem a uma menor perfeição ou a diminuição da potência de agir, tristeza.” (Deleuze, 2002, p.57) Gostaria de reter, aqui, a idéia de registro sensível de movimento. 7 Para esta noção, cf. PELBART, P. P. (1989). Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense. p.103 e ss. 6 230 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 se decidiu a fazê-lo; pensa-se porque se é provocado a, convocado. A vida – enquanto caos-germe7 – nos atravessa com seus fluxos (devires) e nos convoca ao movimento, às desterritorializações e reterritorializações. Ao pensamento, cabe acompanhá-la nesta dança, neste jogo. Conclusão A ética surge, pois, como uma possibilidade de conhecermos através do movimento. Se quisermos atravessar o território hermenêutico da representação, que tanto abrigou quanto colonizou a psicologia, precisaremos rever nosso uso do conhecimento, nosso modo de usá-lo. Pois é preciso, antes de mais nada, que a ciência sirva, no sentido de utilidade e submissão. E aqui voltamos à idéia de ferramenta, citada acima. A ciência não deve buscar verdades; mas sim utilidades. E não no sentido de um raso utilitarismo, mas no sentido ético: a utilidade como ética da ciência. Não se pretender verdadeira; mas útil. Para abdicar da sua tirania (seu poder despótico) é preciso que abra mão também de sua paixão incondicional pelas verdades. Como? A partir do momento em que a ciência abre mão de julgar o mundo segundo seu crivo (a verdade), deixa de lado seu pretenso – e muitas vezes falso, e outras vezes inútil – poder sobre o mundo. A partir do momento em que a utilidade é seu objetivo, deixa a critério do utilizador a sua validade. Não se alimenta de vida (muitas vezes humanas) para nutrir o seu desejo pelo impossível; serve às vidas, oferece-se a elas, dá o seu peito para alimentá-las, para nutri-las: a CIÊNCIA-NUTRIZ contrapondo-se à ciência-parasita. Por fim, esta ética que, para Figueiredo, refere-se etimologicamente a ethos, a “habitar o mundo”, a uma “morada” (Figueiredo, 1995, p.44), devolve-nos a possibilidade de habitar nosso mundo. Para a psicologia, isto quer dizer que restitui uma vocação esquecida: a de buscar conhecer a subjetividade humana no que lhe é mais próprio, isto é, o movimento, o devir. A ética, como aqui discutida, possibilita-nos atravessar a dicotomia sujeito-objeto, tão cara à ciência, tão problemática à psicologia, para encontrarmos um conhecimento que se abstém de seu ímpeto normativo (tu-deves8 ) para que possa auxiliar na potencialização do querer. O que queremos da ciência? O que queremos da psicologia? Que ela intervenha no sentido de viabilizar a potência do querer. Referências Bombassaro, L. C. (1992). As fronteiras da epistemologia (2a edição) Petrópolis: Vozes. Deleuze, G. (1994). Nietzsche. Lisboa: Ed.70. (Col. Biblioteca Básica de Filosofia; 16) 8 A referência aqui novamente é Nietzsche, em seu livro Assim Falou Zaratustra, em “Das Três Metamorfoses” (Nietzsche, 1998, p.51 e ss.). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 231 Deleuze, G. (2002). Espinosa: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta. Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34. Figueiredo, L. C. M. (1995). Revisitando as Psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. São Paulo/Petrópolis: EDUC/Vozes. Foucault, M. (2001). À propôs de la généalogie de l’étique: un aperçu du travail en cours – 1983. Em: Dits et Écrits,vol. II – 1976-1988. Paris: Gallimard. Foucault, M. (1992). As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas (6ª edição). Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes. Foucault, M. (2006). Microfísica do poder (22ª edição) Rio de Janeiro: Graal. Guattari, F. & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo (4ª edição) Petrópolis, RJ: Vozes. Japiassu, H. (1977). Introdução à epistemologia da psicologia. Rio de Janeiro: Imago. Kuhn, T. S. (1978). A estrutura das Revoluções Científicas (2ª edição) São Paulo: Perspectiva. Mora, J. F. (1982). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote. Nietzsche, F. W. (1987). A Gaia Ciência. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores. Nietzsche, F. W. (1998). Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Recebido em julho de 2007 Aceito em março de 2008 Jardel Sander da Silva: doutor em Psicologia; professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas Endereço para correspondência: [email protected] 232 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Aletheia 27(1), p.233-242, jan./jun. 2008 Reflexões acerca do atendimento psicológico a desempregados Janine Kieling Monteiro Clarissa Machado Pesenti Daiane Maus Daniela Bottega Fabiane Rosa Machado Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões feitas acerca do Atendimento Psicológico a Desempregados. Esta experiência trata de uma parceria entre a Unisinos e FGTAS/SINE São Leopoldo/RS, iniciada em 2003. Visando fazer articulações entre a Psicologia do Trabalho e a Psicologia Clínica, salientamos a importância de se agregar estas duas áreas, de forma complementar, como uma junção de áreas que pensa, de forma ampliada, as demandas e representações do sujeito total, que sofre com o trabalho ou com a falta dele. O desemprego origina, muitas vezes, experiências de solidão, desamparo e desespero, como atestam as queixas trazidas por esta clientela. Refletindo-se a partir das falas de pacientes, no processo terapêutico, procuraremos apresentar a psicoterapia como uma forma de possibilidade de suporte para a situação existencial desencadeada pelo desemprego. Palavras-chave: atendimento psicológico, desemprego, psicologia clínica. Reflections on psychological counseling to unemployed individuals Abstract: This paper presents some reflections on psychological counselling sessions with unemployed individuals. This research has been enabled because of a partnership between Unisinos and FGTAS/SINE-São Leopoldo which began in 2003. The authors argue that Labor Psychology and Clinic Psychology might come together as an important aggregation of two different branches of psychology that takes into consideration, in a comprehensive fashion, the needs and representations of the total self, one who suffers from his/her job or with the lack thereof. Unemployement is many times the origin of experiences of loneliness, contempt and dispair as the complaints of the patients in the data attest. Through reflections on the patients’ discourse during counselling sessions, the authors try to present psychotherapy as a possible tool of support to the existential experiences that are brought about by unemployment. Key words: Unemployment, Psychological Attendance, Clinical Psychology. Introdução Em dezembro de 2003 iniciou-se uma parceria entre Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e FGTAS/SINE Agência São Leopoldo. Esta parceria contou com o envolvimento de três núcleos da Universidade, entre eles o Núcleo de Excelência em Psicologia do Trabalho (NEPT). Nessa ocasião, a Coordenação do SINE (Sistema Nacional de Empregos) da cidade de São Leopoldo solicitou à Unisinos que fossem realizadas intervenções relacionadas à qualificação junto aos Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 233 desempregados. Esse pedido era resultado da crença de que este público não conseguia trabalho, principalmente, por não apresentar uma postura adequada nas entrevistas de seleção. Partiu-se então para uma análise desta demanda, onde se recorreu a uma investigação diagnóstica para poder entender quais eram as necessidades reais que se apresentavam. Após a realização deste diagnóstico feito pelo NEPT, foram oferecidas ao SINE/São Leopoldo várias propostas de frentes de trabalho, entre elas, indicou-se o Atendimento Psicológico aos Desempregados que procuram o serviço do SINE. Na análise diagnóstica, constatou-se que a falta de perspectiva de resolução da fase de desemprego ultrapassa a condição de falta de renda. Estabelecendo não só condições favoráveis à instalação e manutenção de diversas psicopatologias, como também produzindo um estado de sofrimento específico do desemprego. Evidenciou-se então a necessidade de uma escuta para estas questões e sofrimentos decorrentes da situação de desemprego. Até o ano 2006, havíamos atendido em torno de 185 pessoas neste serviço. Desta forma, o seguinte trabalho visa apresentar algumas considerações acerca do Atendimento Psicológico para Desempregados, no sentido de chamar a atenção para o sofrimento psíquico específico decorrente desta condição e dos benefícios que a psicoterapia pode trazer para o desempregado. Para isto procuraremos ainda, discorrer sobre uma aproximação e articulação entre a Psicologia do Trabalho e a Psicologia Clínica. Propomos a reflexão sobre estas duas não como Psicologias distintas, mas sim de forma complementar, como uma junção de áreas que pensa, de forma ampliada, as demandas e representações do sujeito total, que entre outras coisas, sofre com o trabalho ou com a falta dele. Aproximando a clínica do trabalho Começamos a pensar, mais fortemente, na importância da aproximação da Psicologia Clínica com a Psicologia do Trabalho quando iniciamos o atendimento psicológico a desempregados e vimos que é impossível dissociar estas duas áreas. Pois a nossa proposta inicial era fazer uma escuta mais voltada e/ou centrada para questões de como o sujeito estava lidando com a falta de trabalho e de como veio construindo a sua trajetória profissional. Mas notamos, através das falas dos desempregados, que não tínhamos como abordar isto sem entrar também em questões que se relacionavam com outras áreas: familiar, social, afetiva, etc. Partindo deste ponto, é importante situar o conceito e/ou significado do trabalho. Para Chauí o trabalho é uma das dimensões da vida humana que revela nossa humanidade, pois é por ele que dominamos as forças da natureza, é por ele que satisfazemos nossas necessidades vitais básicas, e é nele que exteriorizamos nossa capacidade inventiva e criadora (Chauí, 1999, citado por Sato & Schimidt, 2004). Como coloca Antunes (1995), acreditamos que a categoria trabalho possui ainda um estatuto da centralidade, no universo de práxis humana existente na sociedade contemporânea. Cabe destacar ainda a importância e a centralidade do trabalho na vida do sujeito e como esta repercute no fenômeno desemprego, a partir de Lima e Borges (2002, p.338): 234 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Ao contrário de certos modismos teóricos contemporâneos, defendemos a centralidade do trabalho para o homem, mesmo nas suas formas mais entranhadas. Em outras palavras, não vemos como pensar o homem desconsiderando essa categoria e muito menos como pensar as conseqüências do desemprego desconsiderando o fato de que o trabalho foi e permanece central para o ser humano. Assim, as reações do desempregado à sua condição não são fruto apenas das perdas materiais que sofreu, mas, sim, da impossibilidade de expressar-se, desenvolver-se e deixar sua marca no mundo. Portanto para estes autores, a ruptura do vínculo do sujeito com seu trabalho acarreta também a ruptura das principais referências que estruturam seu cotidiano, com tudo aquilo que permitia sentir-se parte integrante do seu meio. A expulsão do mundo do trabalho e, conseqüentemente, a exclusão da sociedade faz com que os indivíduos desempregados passem a ser impedidos de uma vida dotada de algum sentido (Antunes, 2002). O trabalho, até então, tinha um caráter de servir como referência econômica, social, cultural e, principalmente, psicológica (Castel, 1998). Por tudo isto, salienta-se a demasiada importância que o trabalho assume na vida das pessoas, sendo que ao cortar essa ligação depara-se com a perda de todo esse investimento e de reconhecimento social e subjetivo. No que diz respeito às questões sociais, ter um emprego significaria mais do que ter uma atividade assalariada, pois também compreenderia todos os elementos que a acompanham: “reconhecimento de qualificação, acesso à formação contínua, condições de higiene e segurança e participação coletiva” (Férreol citado por Santos, 2000. p. 54) e portanto a condição contrária, de estar desempregado, privaria o sujeito de tudo isto. Encontramos na literatura autores que defendem que o distanciamento entre saúde mental e trabalho e a prática clínica se traduz no acanhamento da clínica como escrava dos acontecimentos da infância e de classificações psicopatológicas, tendo por base sintomas ora do ponto de vista organicista, baseados em resultados neuroquímicos ou genéticos, ora de um ponto de vista mais psicológico, mas não introduzindo as questões relativas ao trabalho (Vasques – Menezes, 2002). Ainda, destaca-se que a ausência da categoria trabalho na prática clínica tem dificultado o entendimento de muitos dos sofrimentos psíquicos e o tratamento de algumas psicopatologias, principalmente, as relacionadas com as psicopatologias do trabalho (Codo, 2002). Le Guillant (Codo, 2004) explora esses aspectos na medida em que busca escapar a dois vieses que constatavam antigamente e que seguem até os dias de hoje, ou seja, o psicologismo que consiste em se prender demasiadamente à subjetividade, negligenciando os aspectos relativos ao meio, e uma espécie de sociologismo que atribui tudo ao meio, desvalorizando os dados psico-históricos. É por isso que tal autor nos adverte para a importância de considerarmos o papel fundamental exercido pelo meio, tanto no surgimento quanto no desaparecimento dos distúrbios mentais, mas sem nos esquecermos do fato singular que é o sujeito, onde aspectos sociais e individuais estarão sempre se articulando na gênese das doenças, superando a dicotomia entre subjetividade e objetividade, entre singular e coletivo. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 235 Por tudo isto, acreditamos que os profissionais de saúde mental, psicólogos clínicos e do trabalho devem repensar os limites de uma e outra área, o que novamente remete à crítica que se faz sobre a ausência da categoria trabalho na prática clínica tradicional e as conseqüências que isso pode causar ao paciente em termos de diagnóstico, intervenção e prognóstico. Busca-se a possibilidade de uma ação mais articulada, clínica e trabalho, juntos, uma apoiando o olhar da outra na leitura e discussão dos casos (Codo, 2002). Como cita este mesmo autor (2004), o trabalho é sempre prenhe de subjetividade, portanto, carece da lógica clínica, e a clínica, por sua vez, está condenada a caminhar por onde o ser humano se torna sujeito, e isso envolve necessariamente o trabalho. A experiência do atendimento psicológico a desempregados Como já citado anteriormente, foi a partir de um diagnóstico realizado na FGTAS/SINE – Agência São Leopoldo, iniciado em agosto de 2003, o qual visava conhecer a realidade do público de trabalhadores que buscavam (re)inserção no mercado e suas relações com os diversos momentos de interface junto ao SINE, que iniciamos um trabalho de atendimento psicológico a desempregados. Neste foi observado que a falta de perspectiva de resolução da fase de desemprego ultrapassa a condição de falta de renda. Estabelecendo não só condições favoráveis à instalação e manutenção de diversas psicopatologias como também produzindo um estado de sofrimento específico do desemprego. Nos relatos dos desempregados entrevistados apareceram sentimentos de depressão, desesperança, insegurança, isolamento e problemas na auto-estima, entre outros. Evidenciou-se então a necessidade de uma escuta para estas questões e sofrimentos decorrentes da situação de desemprego. Em novembro de 2003, iniciamos os atendimentos individuais com desempregados, que foram realizados com estagiários de Psicologia do NEPT, com o objetivo de resgatar a sua subjetividade, visando melhorar a auto-estima e a saúde psíquica destes. Utilizamos o tratamento psicoterápico de orientação breve focal, com ênfase no trabalho, como metodologia para os atendimentos. Esta estratégia consistiu em fazer intervenções referentes ao mundo do trabalho, visando sua ressignificação. No entanto, como citado anteriormente, vimos, através das falas dos desempregados, que não tínhamos como abordar somente este foco, sem entrar também em questões que se relacionavam com outras áreas destes sujeitos como: familiar, social, afetiva, etc. No âmbito da agência do SINE foram divulgados os atendimentos psicológicos e, com o tempo, listas de espera começaram a se formar. A demanda crescente instigou o serviço a buscar alternativas de execução das atividades. Para isto, adotamos o acolhimento como atividade inicial à psicoterapia, onde podíamos trabalhar também a visão que estes desempregados tinham a respeito da clínica e do atendimento psicológico e a existência ou não de uma demanda real. Pois, algumas vezes, os desempregados acreditavam que o objetivo deste serviço era ajudá-los a conseguir um emprego. E, nesta ocasião, deixávamos claro que isto poderia ser uma conseqüência ou não dos atendimentos. 236 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Algumas mudanças também foram necessárias no projeto, como a necessidade de se fazer atendimentos para manutenção e acompanhamento, pois alguns pacientes colocavam que se sentiam angustiados, antecipadamente, por terem que parar o atendimento, caso conseguissem um emprego. Entendeu-se ainda que algumas dificuldades destes permaneciam mesmo com a condição de ter obtido um trabalho. Aqui podemos trazer como exemplo o caso de uma paciente que não conseguia ficar muito tempo nos seus empregos. Partimos ainda do conceito de uma clínica psicológica para além de um setting (local) ou uma técnica, concebida então como sendo uma postura, uma ética. Portanto, pode ser focada para o desenvolvimento de estratégias para lidar com o sofrimento psíquico e para um saudável movimento de reorganização frente ao desemprego (Moura, 2001). Como referencial para os atendimentos breves focais utilizamos, sobretudo Lemgruber (1997). Esta salienta que focalizar significa que o terapeuta vai tentar levar o paciente a trabalhar emocionalmente em especial uma área previamente determinada, sendo que, para isto, será acessado material não só inconsciente, mas também consciente do paciente. O foco no trabalho e na experiência do desemprego demonstrouse, na continuidade dos atendimentos, como uma metodologia viável para uma escuta do sofrimento psíquico no trabalho. Salienta-se que todos os aspectos relatados pelos pacientes a partir da delimitação deste puderam ser encadeados com o núcleo central em questão, corroborando as idéias da autora. O foco na situação do desemprego proporcionou também aquilo que Lemgruber (1997) designa como efeito carambola, ou seja, uma reorganização na vida do paciente em todos os aspectos a partir da terapia desenvolvida sobre um enfoque específico. Desemprego e o sofrimento psíquico A idéia da existência de uma psicopatologia do desemprego já foi sedimentada por diversos autores (Angerami & Santos, 1984; Seligmann-Silva, 1994; Lima & Borges, 2002), que admitem que, sobretudo o desemprego prolongado, pode criar uma situação propícia à emergência de distúrbios mentais característicos. Neste caso, é comum a desestruturação de laços sociais e afetivos, que podem ainda causar restrição de direitos, insegurança socioeconômica, redução da auto-estima, sentimento de solidão e fracasso, levando, com freqüência, à evolução de distúrbios e dependência de drogas como o álcool (Lima & Borges, 2002). Alguns estudos internacionais também indicaram o desemprego associado a desfechos clínicos como à depressão (Gallo et al, 2006; Price, Choi & Vinokur, 2002; Stankunas, Kalediene, Starkuviene & Kapustinskiene, 2006), a ansiedade (Comino & cols., 2003; Stankunas & cols., 2006) e baixo sentimento de bem-estar (Carrol, 2007; Kennedy & McDonald, 2006). O trabalho, compreendido como atividade genérica é uma forma de relação com coisas e pessoas e, por isso, forma identidades, jeitos de ser e existir num mundo compartilhado. Por tudo isto, o desemprego e a insatisfação no trabalho estão, muitas vezes, na origem de experiências de desenraizamento, solidão, desamparo e desespero, como atestam as queixas trazidas por esta clientela. (Sato & Schimidt, 2004). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 237 Segundo Goulart e Guimarães (2002), a respeito das repercussões psicossociais, o que tem sido apurado é a vivência do desemprego com um forte sentimento de desagregação social e pessoal. Os resultados são alarmantes e indicam que o desemprego pode culminar em depressão, angústia, sentimentos de impotência e de culpa, perda da auto-estima, alcoolismo, tabagismo, uso de drogas em geral, conflitos conjugais e familiares, isolamento social e até suicídio. Todas estas experiências de condições adversas da situação de desemprego foram, muitas vezes, observadas nas falas dos pacientes: “Sinto-me mal, mal... é a angústia da gente não ter trabalho...”. “Acho que vou enlouquecer ou ficar louco se continuar mais tempo assim...”. P., homem, 61 anos, desempregado há cinco meses. “Uma imensidão de tristeza...”. “Tomo remédio para tudo, mas esta angústia de não ter emprego, esta angústia não tem remédio...”. R., mulher, 28 anos, desempregada há quatro meses. “Vou colocar fogo na rádio... Pois este é um meio de comunicação e não me ajuda a arrumar emprego... Aí eu vou preso... Mas para mim até que é bom, não tenho filhos aí fico preso lá, só dormindo, ganho tudo e não preciso mais procurar emprego”. F., homem, 43 anos, desempregado há um ano. Trabalhar é condição imprescindível para se viver. Não o é, apenas, no sentido material, mas para que alguém seja socialmente confiável, e isto lhe atribui um lugar social. No desemprego, mais do que reações à sua condição por causa das perdas materiais que sofreu, os desempregados apresentam reações também referentes à impossibilidade de expressar-se, desenvolver-se, deixar sua marca no mundo. O que pode ser ilustrado pelos depoimentos abaixo: “Sinto-me sem utilidade, tenho vergonha de ficar em casa de tarde, porque os vizinhos vão saber que estou desempregada...”. V., mulher, 37 anos, e M., mulher, 26 anos, há 11 meses desempregadas. “Saí para procurar emprego para ninguém dizer que sou vagabundo...”. M., homem, 32 anos, desempregado há mais de 2 anos. “Gostaria muito de ser feliz sem medo... medo de rejeição. Hoje meus problemas parecem tão grandes que fico me perguntando se sou tão diferente assim. Só queria ser ou ter coragem para falar às pessoas que preciso muito, que eles me ajudem a parar de ter medo de tudo.” S., mulher, 32 anos há um ano desempregada. 238 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Podemos refletir aqui que o desemprego abarca questões que atravessam toda a vida destas pessoas e que existe uma demanda nestas para falar sobre as suas vivências frente ao desemprego. Esta demanda e este fenômeno já foram constatados em estudos anteriores (Sato & Schimidt, 2004; Terra, de Carvalho, Azevedo, Venezian & Machado, 2006). Diante desta situação apresentada, cabe perguntar de que modo e em que circunstâncias a Psicologia e, mais especificamente, a Clínica Psicológica podem contribuir, de forma a abrandar o sofrimento psíquico do sujeito advindo do desemprego. O que se busca conjeturar aqui é a possibilidade de situar-se como ponto organizador de uma ajuda psicológica voltada para o universo do trabalho e do desemprego, no qual o setting psicoterapêutico se constitua como oportunidade de interrogação sobre quem se é, indissociável da interrogação sobre onde se está, ou ainda, para onde se está indo. Ou seja, para o psicoterapeuta significa poder sustentar e, mesmo facilitar, que o sujeito interrogue-se, interrogando ao mesmo tempo, o mundo em que se move. (Sato & Schimidt, 2004). Já que mesmo o desempregado necessita fazer escolhas a todo o momento, mesmo sem se dar conta. Desta forma, pode-se auxiliar o sujeito a se potencializar para sua reinserção no mercado de trabalho. Buscando ainda refletir sobre algumas questões centrais como: Quem sou eu? No que eu gostaria de trabalhar? Como estou fazendo as minhas escolhas? Acompanhamos as idéias de Moura (2001) de que o desemprego, ao mesmo tempo em que “dissolve” a subjetividade do trabalhador produzida ao longo da experiência de trabalho, também produz, nos sujeitos, uma abertura à capacidade de análise crítica frente à situação que este está passando, ou seja, pode ocorrer um aumento na capacidade de auto-percepção dos sujeitos. Neste sentido, a clínica psicológica pode proporcionar ou contribuir para esta “abertura”, na medida em que conduz os sujeitos a constantes questionamentos sobre quem se é, independente da sua condição, como já citado anteriormente. A fala de uma paciente, ao ser questionada sobre como estava sendo o processo terapêutico pelo qual vinha passando, nos ratifica este apontamento teórico: “Foi muito bom, hoje eu consigo me colocar mais, dizer o que penso, o que quero, o que considero melhor para mim. Não fico só guardando e me angustiando com as coisas. Não sei o que aconteceu exatamente, acho que posso chamar de autodescoberta. Eu me autodescobri e isso foi devido as nossas conversas... eu vinha aqui falava, falava e daí depois eu saía daqui e ficava me escutando, lembrando e aquilo ficava sempre em mim.” V., mulher , 37 anos, desempregada há 11 meses. Considerações finais A situação do desemprego parece obrigar os sujeitos a olharem para si, e muitas vezes, esse movimento é feito pela primeira vez nesta situação de perda de Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 239 emprego. Isso pode promover uma inusitada possibilidade de liberdade e autonomia frente ao futuro, ampliando os limites antes impostos pelo “ser – trabalhador”, pois o trabalho, ao mesmo tempo em que sustenta e forma identidades, também as aprisiona. Sob esta perspectiva, segundo Moura (2001), enfrentar o desemprego, significa esvaziar-se, desapropriar-se, desalojar-se de si mesmo, abrir-se às desestabilizações. Desprovidos deste “ser – trabalhador” os sujeitos vêem-se solitários, isolados, desvalorizados, carregados de culpa e vergonha. No entanto, o desemprego pode oportunizar uma re-construção, abrindo possibilidades de resignificação da vida e do trabalho, sendo que no setting terapêutico, este processo é facilitado, na medida em que o sujeito vai falando e se escutando, se escutando e escutando ao terapeuta. Na área psicológica, toda e qualquer terapia, nas mais diferentes linhas ou escolas, em última instância, segundo Codo (2004), partem da possibilidade de re-significação de conteúdos internos do sujeito para que ele consiga melhor articular seu mundo interno e externo, de modo que esta nova forma de ser no mundo induza ou produza modificações em seu ambiente, coerentes com as suas necessidades, aumentando a probabilidade de sucesso e bem-estar. Nesse sentido acreditamos que, independente do referencial teórico, o mais importante é procurar em qualquer exercício e, principalmente, na Clínica conduzir uma prática na direção de “ampliar as possibilidades dos pacientes de escolha e de construir uma renovada realidade pessoal” (Sakamoto, 2000). Procurando, assim, ajudar o sujeito a lidar com seu sofrimento, o qual ele se sente, nesse determinado momento, impossibilitado de transformar. Assim, pensamos a psicoterapia como uma forma de possibilidade de repouso e suporte para a situação existencial desencadeada pelo desemprego (Sato & Schimidt, 2004). Um olhar psicológico pode, também, ser importante para salientar que as mudanças existenciais e psicológicas que são, muitas vezes, experimentadas pelos desempregados, pedem cuidados que ultrapassam a mera recolocação no mercado de trabalho. A proteção e o amparo psicológicos estendem-se, ainda, na apreciação das tentativas de retorno ao emprego, uma vez que se considera que este retorno, em condições adversas de trabalho, para o indivíduo fragilizado, pode tender mais ao prejuízo psicológico do que ao benefício. Por fim destaca-se que o desempregado pode ter muitos benefícios e amenizar o seu sofrimento psíquico se puder ter acesso a um atendimento psicológico. Referências Angerami, V. A., & Santos, R. A. (1984). Dados sobre a tentativa de suicídio e sua relação com o desemprego. In Suplemento de Ciência e Cultura. 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Narraciones y trayectorias de la educación ambiental en Brasil Bodil Andrade Frich Quiero comenzar mi presentación agradeciendo a la coordinación de la Maestría en Estudios Regionales en Medio Ambiente y Desarrollo la invitación que me hicieron a participar en esta presentación, ya que ello, me dio la oportunidad de leer con todo cuidado la obra de la doctora Isabel de Moura Carvahlo, y situarme en un nuevo punto de vista desde donde mirar con una perspectiva diferente, el campo de la educación ambiental, dentro del que mi propia actividad profesional se desarrolla. Por lo anterior, mi lectura formará parte de un sin fin de posibles interpretaciones y como un juego de cajas rusas, yo como educadora ambiental interpreto la interpretación que otra educadora ambiental ha realizado sobre las interpretaciones que diversos colegas brasileños expresan a través de narraciones sobre sus propias trayectorias como educadores ambientales. Interpretaciones siempre en busca del sentido profundo que guía nuestro decir, hacer y sentir respecto a este reciente y dinámico campo de la educación ambiental, en el que se teje una compleja red de significados articulados en un campo social. Desde la perspectiva hermenéutica que la autora propone para guiar el análisis de las vidas narradas, en las que se articulan las dimensiones individuales, sociales y políticas de las trayectorias profesionales de los narradores, dentro de un contexto histórico, el lenguaje cobra una gran importancia como una forma de ser, estar y hacer el mundo, pues como dice José Omar Acá, es “a partir de este acto semiótico primordial, constante y dinámico, que articulamos y damos sentido al mundo”, en este caso a la relación conflictiva del ser humano y su medio ambiente, lo que constituye lo que la autora nombra “sujeto ecológico” quien es inventado en palabras de la autora, en el acto narrativo autobiográfico de los educadores ambientales, un sujeto ecológico que supone idealmente un actuar según una ética ambiental. En esta obra la autora construye los significados que dentro de un campo de tensiones orientan la acción ambiental de los agentes que ahí establecen un desarrollo personal y profesional. Se presentan las narraciones de 16 educadores ambientales, que incluyen fundadores de la educación ambiental (EA), la primera y la segunda generación pos fundadora, así como dos líderes ecológicos brasileños, como corpus de relatos que expresan diferentes experiencias educativas y de formación en educación ambiental en Brasil. La autora busca abordar la interacción entre el campo ambiental y Carvalho, Isabel Cristina de Moura (2006). La invención ecológica: narraciones y trayectorias de la educación ambiental en Brasil. Puebla: Universidad Iberoamericana (UIA) de Puebla y la Universidad Veracruzana. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 243 las trayectorias, en la construcción de una condición narrativa que permite formular la cuestión ambiental como identidad distintiva de un grupo y de un espacio social en el que se inscriben los itinerarios profesionales analizados. En el libro de Isabel de Moura, se revelan, a través de las trayectorias biográficas analizadas, los caminos recorridos por los sujetos y se registra el paso del tiempo en el que se suceden diferentes coyunturas políticas. Según la autora cada trayecto, desde su propia concepción, constituye, una narrativa política sobre el actuar político a través del cual se reproducen y se recrean formas de ver y hacer política, ecología y educación ambiental. El libro conformado por 210 páginas traducidas del portugués al español con gran claridad por Jorge Abascal y Fernando Aragón, se divide en 6 secciones organizadas en dos partes. En la primera se desarrolla la manera como los sentidos se van tejiendo en la tradición ambiental como una trama de tensiones múltiples, en las que se inserta el educador ambiental como parte de un contexto histórico que va modelando el campo ambiental. El libro ofrece la descripción de un campo ambiental fuertemente marcado por el contraste entre una perspectiva explicativa con una clara herencia naturalista, cuyo discurso excluye al mundo humano al insertar el medio ambiente en la naturaleza y otra perspectiva comprensiva del medio ambiente bajo la cual se reconoce el papel que la educación tiene como una práctica interpretativa del ambiente como campo complejo de relaciones entre la sociedad y la naturaleza, la cual depende del horizonte comprensivo del intérprete, por lo que esta interpretación según Isabel, nunca será unívoca. Con una gran claridad la autora caracteriza las diferentes sensibilidades que conforman el ideario ambiental contemporáneo que van desde la visión de una naturaleza controlada por la razón, la visión pastoral idílica del naturalismo inglés del siglo XVII, las sensibilidades burguesas del siglo XVIII, hasta la visión del romanticismo europeo de los siglo XVIII y XIX y el imaginario edénico sobre América. Visiones que permanecen en una tradición ambiental en la que se arraigan, refuerzan y se transforman valores como parte de un complejo juego de intereses y motivaciones que cruzan el campo ambiental. Lo anterior permite a la autora sentar las bases teóricas para desarrollar en la segunda parte del libro, la invención del sujeto ecológico, título de este libro, quien debe ser comprendido según Isabel, como el sujeto de la acción ambiental, como un tipo ideal que alude simultáneamente a un perfil identitario y a una utopía societaria, siendo la educación ambiental la acción educativa de este sujeto. En la segunda parte Isabel va entretejiendo con gran habilidad narrativa, fragmentos textuales de las entrevistas con la interpretación que de ellos hace a la luz de la historia, recorriendo momentos de gran tensión política y social en Brasil, cuya huella aún lastima y perdura en la memoria de todos aquellos que viveron aquellos tiempos y que a su vez constituyó la coyuntura en la que la educación ambiental brasileña comenzó a tomar forma, desde acciones aisladas bajo 244 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 percepciones difusas de la problemática ambiental, dentro de un clima de represión política, hasta iniciativas de organizaciones de la sociedad civil en torno a la cuestión ambiental decodificadas como no- políticas dentro del régimen militar. Las diferentes afiliaciones políticas, constituyeron el bagaje de experiencias constitutivas del sujeto ecológico, distinguiéndose en las narraciones diferentes pesos en el equilibrio entre pasión y profesionalización de cada educador ambiental entrevistado. Por otro lado la contracultura, aparece como matriz simbólica en la formación del sujeto ecológico. Es interesante la manera como en la obra se incorpora la dimensión subjetiva a la temática tratada, al identificar en los relatos autobiográficos el viaje del yo, de la interioridad hacia lo ambiental. El recorrido de lo interior a la naturaleza dice Isabel, “ podría ser visto como parte de esa actualización-reinvención de un espectro de valores alternativos, en que el Yo romántico, como espacio de revolución personal y social, es visto de nuevo y reinvertido de sentido”. Por otra parte, en la última sección del capítulo 5, se caracteriza el circuito editorial y la formación de especialistas en medio ambiente y educación ambiental en Brasil, a partir de los años ochenta, ya que constituyen para la autora, procesos que contribuyen a caracterizar la constitución del campo ambiental. En el último capítulo titulado la política en tránsito y los tránsitos de la política, se busca mostrar como por un lado los recorridos y experiencias de vida de los educadores ambientales, se encuentran insertos en un tránsito colectivo en busca de una nueva política y cómo la política se encuentra en un momento de transición marcada por la autonomización y estatización de los sujetos y de la acción lo que no se circunscribe únicamente al campo ambiental, sino que revela las condiciones actuales de la política. La obra plantea como una de sus conclusiones, la necesidad de replantear, de resignificar diversos ejes que cruzan el campo ambiental como son: Sujeto - sociedad, privado – público, ética- estética como parte de una nueva izquierda contracultural pero desde la perspectiva del conflicto constituyente de la modernidad que podríamos describir como ejes de oposición: Emancipación-control, racionalización-subjetivación, razón universalindividualismo, subjetividad y ciudadanía- regulación y emancipación (p 187). Frente a esta tensión de polaridades, se muestran posiciones que van desde declarar la muerte de la política, hasta ver en el momento actual la oportunidad para la construcción de una nueva política a partir de espacios de negociación entre lo público y lo privado. Sin embargo la obra deja abierta la reflexión sobre los sentidos que la centralidad del sujeto puede adquirir y sobre las nuevas formas de la acción política con relación al campo ambiental en general y al sujeto ecológico en particular. Para cerrar mi presentación quisiera retomar una cita de Enrique Leff (2000, p.8) que la autora inscribe en su texto a fin de subrayar la importancia que este libro tiene lo que el libro que hoy se presenta, aporta al campo de la educación ambiental: ¿?? “Una hermeneutica ambiental es un mirar desde la complejidad ambiental-entendida Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 245 como expresión de la crisis de civilización- desde donde se desentrañan los orígenes y las causas de esta crisis, y desde donde se proyecta un pensamiento para la reconstrucción del mundo. A través del análisis de las narraciones referidas en esta obra y desde la percepción de la profunda crisis del pensamiento y del modo de vida moderno, la autora vislumbra lo ambiental como un campo simbólico capaz de resemantizar proyectos políticos y utopías para contribuir a transformar el mundo y participar en la construcción de un futuro mejor. Recebido em agosto de 2007 Aceito em novembro de 2007 Bodil Andrade Frich: bióloga; mestre em educação; professora da Universidade Ibero Americana de Puebla Endereço para correspondência: [email protected] 246 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Instruções aos autores Política editorial A Aletheia é uma revista semestral editada pelo curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil destinada à publicação de trabalhos de pesquisadores envolvidos em estudos produzidos na área da Psicologia ou ciências afins. Serão aceitos somente trabalhos não publicados que se enquadrem nas categorias de relato de pesquisa, artigos de revisão ou atualização, relatos de experiência profissional, comunicações breves e resenhas. Relatos de pesquisa: investigação baseada em dados empíricos, utilizando metodologia e análise científica. Artigos de revisão/atualização: revisões sistemáticas e atuais sobre temas relevantes para a linha editorial da revista. Relatos de experiência profissional: estudos de caso contendo discussão de implicações conceituais ou terapêuticas; descrição de procedimentos ou estratégias de intervenção de interesse para a atuação profissional dos psicólogos. Comunicações breves: relatos breves de experiências profissionais ou comunicações preliminares de resultados de pesquisa. Resenhas: revisão crítica de livros recém-publicados, orientando o leitor quanto a suas características e seus usos potenciais. Aspectos éticos: todos os artigos envolvendo pesquisa com seres humanos devem declarar que os sujeitos do estudo assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com as diretrizes nacionais e internacionais de pesquisa. No caso de pesquisa com animais, os autores devem atestar que o estudo foi realizado de acordo com as recomendações éticas para esse tipo de pesquisa. Os autores também são solicitados a declarar, na seção “Método”, que o protocolo da pesquisa foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do local de origem do projeto. Conflitos de interesse: os autores devem declarar todos os possíveis conflitos de interesse (profissionais, financeiros, benefícios diretos ou indiretos), se for o caso. A falha em declarar conflitos de interesse pode levar à recusa ou cancelamento da publicação. Normas editoriais 1. Serão aceitos somente trabalhos inéditos. 2. O artigo passará pela apreciação dos Editores. 3. Após a avaliação inicial, os Editores encaminharão os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial, que poderá fazer uso de consultores ad hoc de reconhecida competência na área de conhecimento. A Comissão Editorial e os consultores ad hoc analisam o manuscrito, sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação. 4. Os artigos poderão receber: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulações; c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor será Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 247 devidamente comunicado. Os originais, em nenhuma das possibilidades, serão devolvidos. 5. O(s) autor(es) do artigo receberá(ão) cópia dos pareceres dos consultores e será(ão) informado(s) sobre as modificações a serem realizadas. 6. No encaminhamento da versão modificada do seu manuscrito (no prazo máximo de 15 dias após o recebimento da notificação), os autores deverão incluir uma carta ao Editor esclarecendo as alterações feitas e aquelas que não julgaram pertinentes e a justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadas com a ferramenta Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificações realizadas pode ser realizado via e-mail ([email protected]). 7. Os Editores reservam-se o direito de fazer pequenas alterações no texto dos artigos. 8. A decisão final sobre a publicação de um manuscrito sempre será do Editor Responsável e Conselho Editorial que fará uma avaliação do texto original, das sugestões indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor. 9. Os artigos poderão ser escritos em outra língua além do português (espanhol e inglês). 10. Independentemente do número de autores, serão oferecidos dois exemplares por trabalho publicado. O arquivo eletrônico com a publicação em PDF será disponibilizado no site www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. As opiniões emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade do(s) autor(es), e sua aceitação não significa que a revista Aletheia ou o curso de Psicologia da ULBRA lhe dão apoio. 12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente, desde que obtida a permissão do Editor Responsável. Os direitos autorais obtidos pela publicação do artigo não serão repassados para o autor do artigo. Apresentação dos manuscritos 1) Os artigos inéditos deverão ser encaminhados em disquete ou CD e uma via impressa, digitada em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12 e paginada desde a folha de rosto personalizada. A folha deverá ser A4, com formatação de margens superior e inferior (no mínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista adota as normas do Manual de Publicação da American Psychological Association APA (4ª edição, 2001). 2) O número máximo de laudas deve atender a seguinte orientação: relatos de pesquisa (25 laudas); artigos de revisão/atualização (20 laudas); relatos de experiência profissional (15 laudas), comunicações breves (5 laudas) e resenhas (máximo de 5 laudas). 3) Encaminhamento: toda correspondência deve ser encaminhada à revista Aletheia, aos cuidados do Editor Responsável. 248 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 4) Todo manuscrito encaminhado à revista deverá ser acompanhado de uma carta de autorização, assinada por todos os autores, onde deve constar: a) a intenção de submissão do trabalho à publicação; b) a autorização para reformulação da linguagem, se necessário; c) a transferência de direitos autorais para a revista Aletheia. 5) O artigo deve conter: a) folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dos autores; formação, titulação e afiliação institucional dos autores; resumo em português de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; título do artigo em língua inglesa; abstract compatível com o texto do Resumo; key-words; endereço para correspondência, incluindo CEP, telefone e e-mail. b) folha de rosto não identificada: título do artigo em língua portuguesa; resumo em português, de 10 a 12 linhas, 3 palavras-chave, título do artigo em língua inglesa, resumo (Abstract) em inglês, compatível com o texto do Resumo; key-words. c) corpo do texto. d) sugere-se que os artigos referentes a relatos de pesquisa apresentem a seguinte seqüência: Título; Introdução; Método (população/amostra, instrumentos, Procedimentos de coleta e Análise de dados – incluir nessa seção afirmação de aprovação do estudo em Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde); Resultados; Discussão, Referências (títulos em letra minúscula e em seções separadas). Usar as denominações tabelas e figuras (não usar a expressão quadros e gráficos). Colocar tabelas e figuras incorporadas ao texto. Tabelas: incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word – ‘Simples 1’. Na publicação impressa, a tabela não poderá exceder 11,5 cm de largura x 17,5 cm de comprimento. O comprimento da tabela não deve exceder 55 linhas, incluindo título e rodapé(s). Para assegurar qualidade de reprodução, as figuras contendo desenhos deverão ser encaminhadas em qualidade para fotografia (resolução mínima de 300 dpi). A versão publicada não poderá exceder a largura de 11,5 cm para figuras. Anexos: apenas quando contiverem informação original importante, ou destaque indispensável para a compreensão de alguma seção do trabalho. Recomenda-se evitar anexos. 6) Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo às normas adotadas pela revista (APA, 4ª edição) não serão avaliados. Normas para citações - As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de texto ao qual se refere a nota. - As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (4ª edição). Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 249 - No caso da citação integral de um texto: deve ser delimitada por aspas, e a citação do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma citação literal com 40 ou mais palavras deve ser apresentada em bloco próprio em itálico e sem aspas, começando em nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma posição de um novo parágrafo. A fonte será a mesma utilizada no restante do texto (Times New Roman, 12). • Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da publicação. Exemplo: Rodrigues (2000). • Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no texto. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000) – quando os sobrenomes forem citados entre parênteses, devem estar ligados por &. Quando forem citados fora de parênteses, devem ser ligados pela letra e. • Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência, seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize o sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. Exemplo: Silva, Foguel, Martins e Pires (2000), a partir da segunda referência, Silva e cols. (2000). • Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. (ANO). Na seção referências, todos os autores deverão ser citados. • Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação original, seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant 1871/1980). • Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes e não a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). • Publicações diferentes com a mesma data: acrescentar letras minúsculas, após o ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c. • Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: utilizar a expressão citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),... Na seção Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins). • Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data, página. Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45). Normas para referências As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em minúsculo. Livro Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. 250 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Capítulo de livro Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. Artigo de periódico científico Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121. Artigos em meios eletrônicos Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível: <http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000. Artigo de revista científica no prelo Albuquerque, P. (no prelo). Trabalho e gênero. Aletheia. Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP. Tese ou dissertação publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Tese ou dissertação não-publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Obra antiga e reeditada em data muito posterior Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre: Universal. (Original publicado em 1950). Autoria institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).Washington: Autor. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 251 Endereço para envio de artigos Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José Sala 121 - Prédio 01 Canoas – RS – Brasil CEP: 92425-900 252 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Instructions to authors Editorial policy Aletheia is a half-yearly journal edited by the Psychology Program of the Lutheran University of Brazil, which purpose is to publish papers in Psychology and related sciences. Only unpublished papers will be accepted into these categories: original articles, review/update articles, professional experiences reports, brief communications and book reviews. Original articles: empirical research reports with scientific methodology. Review articles/ Update articles: systematic and update reviews about relevant themes according with editorial policy. Professional experiences reports: case reports with discussion of its conceptual or therapeutic implications; description of intervention procedures or strategies of psychology practitioners’ interest. Brief communications: brief reports of professional experiences or preliminary communications of original character. Book review: critical review of recently published books that may be of interest to psychology. Ethical aspects: All the articles involving research with human subjects must state that individuals included in these studies gave a Written Informed Consent, according to the national and international ethical regulations. In case of research with animals, authors must confirm that the study was done in accordance with the ethical care standards for the animals involved in the research. The authors are also requested to state in the “Methods” section that the research protocol was previously approved by a Research Ethics Board. Disclosures: The authors are requested to disclose all possible kinds of conflict of interest (professionals, financials, direct or indirect benefits), if the case. The failure to disclose properly can lead to publication refusal or cancellation. Editorial rules 1. Only unpublished articles will be accepted. 3. The articles will be evaluated by the Editors. 2. After initial evaluation, the Editors will send the submitted papers to the Editorial Board, which will be helped, whenever necessary, by ad hoc consultants of recognized expertise in the knowledge area. The Editorial Board and ad hoc consultants will analyze the manuscript, suggest modifications, and recommend or not its publication. 4. The papers may be: a) fully accepted; b) accepted with modifications; c) fully refused. In any of the situations the author will be properly communicated. The originals will not be returned in any case. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 253 5. The authors will received a copy of the consultants’ analysis and will be informed about recommended modifications. 6. When the modified version of the manuscript is sent (this may happen up to 15 days after receiving the notification), the authors must include a letter to the Editors, elucidating the changes that have been made and justifying the ones they did not judge relevant to make. All modifications must be highlighted with Word’s tool “yellow brush”. The modified version of the article may be sent by e-mail ([email protected]). 7. The Editors have the right to make small modifications in the text. 8. The final decision of publication of a manuscript will always be of the Editor and of the editorial board in charge. They will take into consideration the original text, the consultant’s recommendations and the modified version of the article. 9. Articles may be submitted in other languages besides Portuguese (Spanish and English) 10. Regardless the number of authors, two copies of the journal per published article will be offered. The electronic version of the printed article (PDF file) can be accessed in Aletheia homepage www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its acceptance does not mean that Aletheia supports it. 12. Total or partial reproduction can be made only after permission of the Editor. Aletheia owns the copyrights and will not transfer them to authors. Preparation of manuscripts 1) The unpublished articles must be sent in diskettes or CD and also one printed copy, typed in double space, Times New Roman letter, size 12, numbered since the title page. The sheet must be A4, with inferior and superior margins of 2,5 cm, and right and left margins of 3 cm. The journal follows the rules of Manual of Publication of American Psychological Association - APA (5th edition, 2001). 2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages); Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages); Brief communications (5 pages); Book review (5 pages). 3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf of the Editor in charge. 4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization letter, signed by all of the authors, stating: a) The intention of submission the article to publication; b) Authorization for modification of language if necessary; c) Transference of copyrights for Aletheia Journal. 254 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 5) The manuscript should contain: a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title and institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail. b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key words; * If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in its original language. c) Body of the text. d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction, Method (population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this section the study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results, Discussion, Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in separate section). Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other terms). Place tables and figures embedded in the text. Tables: including title and notes in accordance with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed version the table may not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of the table should not exceed 55 lines, including title and footer(s). To ensure quality, the reproduction of pictures containing drawings should have photograph quality (minimum resolution of 300 dpi). The printed version can not exceed 11.5 cm width for pictures. Appendixes: only when they contain new and important information, or are essential to highlight and make more understandable any section of the paper. The use of appendixes should be avoided. 6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised. Citations norms - The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the note refers to. - The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition). - In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and the author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal citation with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without quotation mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 255 position of a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text (Times New Roman, 12). • Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of publication. Example: Rodrigues (2000). • Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the text. Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between parentheses: they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis they must be connected by the letter e. • Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference, followed by the date of article between parentheses. Starting from the second reference, use the last name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins and Pires (2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000). • Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited. • Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication, followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980). • Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year of publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c). • Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),... In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins). • Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page. Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45). References norms The bibliographical references must be presented at the end of article. Its disposition must be in alphabetical order of the last name of author in small letter. Book Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Chapter of book Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp (Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. 256 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Article of scientific journal Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health: Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology, 3(1), 95-121. Articles in electronic means Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health” or open field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http:// www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000. Article of scientific journal in press Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia. Work presented in congress Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family. Em Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS. Thesis or published dissertation Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children. Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS Thesis or non-published dissertation Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children. Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program of Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS Old work reedited in posterior date Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre: Universal. (Original published in 1950) Institutional Authorship American Psychological Association (1994). Publication manual (4th edition).Washington: Author Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 257 Address for submissions Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José CEP: 92425-900 Sala 121 - Prédio 01 Canoas – RS – Brasil 258 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Instrucciones a los autores Política editorial Aletheia es una revista semestral editada por el Curso de Psicología de la Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de investigadores, implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias afines. Serán aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las categorías de relato de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos experiencia profesional, comunicaciones breves y reseñas. Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando metodología y análisis científica. Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre temas relevantes para la línea editorial de la revista. Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología. Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o comunicaciones preliminares de resultados de investigación. Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto a sus características y usos potenciales. Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los autores deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las recomendaciones éticas para este tipo de investigación. Los autores también son solicitados a declarar, en la sección “Método”, que el protocolo de la investigación ha sido previamente aprobado por algún Comité de Ética en Investigación del local de origen del proyecto. Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso. El fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de la publicación. Normas editoriales 1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos. 2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores. 3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación del Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida competencia en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 259 ad hoc analizan el artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su publicación. 4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán devueltos. 5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas. 6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15 días después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta al Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes y la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con la herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]). 7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el texto de los artículos. 8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de las sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el autor. 9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español e inglés). 10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará disponible en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia. 11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología de la ULBRA le soportan. 12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente, des de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del artículo. Presentación de los originales 1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa, digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde la hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La revista adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological Association - APA (4ª edición, 2001). 2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos 260 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas de libros (máximo de 5 laudas). 3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la atención del Editor Responsable. 4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar: a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación; b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario; c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia. 5) El artículo debe contener: a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo en lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail. b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave, título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el texto del Resumen en lengua original; keywords. c) Cuerpo del texto. d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten la siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra, instrumentos, procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta sección afirmación de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación de acuerdo con la Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio de Salud o declaración de haber atendido a los criterios de dicha resolución); Resultados; Discusión, Referencias (títulos en letra minúscula y en secciones separadas). Utilizar las denominaciones tablas y figuras (no utilizar la expresión cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras incorporadas al texto. Tablas: incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la APA. Formato Word – ‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder 11,5 cm de ancho x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas, incluyendo título y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras que contengan dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución mínima de 300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm para figuras. Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase evitar anexos. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 261 6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados. Normas para citaciones - Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de texto al cual se refiere a la nota. - Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas de la APA (4ª edición). - En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas y la citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita literal con 40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin comillas, empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del margen, en la misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada en el restante del texto (Times New Roman, 12). • Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año de publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000). • Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para publicaciones en castellano. • Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia, seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia, utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000) • Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor, seguido de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser citados. • Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980). • Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no el orden cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005). • Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego el año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c. • Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),... En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins). • Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha, página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45). 262 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 Normas para referencias Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo. Su disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando presente más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede utilizar la normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por un guión. Ej.: Martínez-Cruz. Libro Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas. Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Capítulo de libro Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre: Artmed. Artículo de publicación periódica científica Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121. Artículos en medios electrónicos Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível: <http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000. Artículo de revista científica en prensa Albuquerque, P. (en prensa). Trabalho e gênero. Aletheia. Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP. Tesis o monografía publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 263 Tesis o monografía no-publicada Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre: Universal. (Original publicado em 1950). Autoría institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.). Washington:Autor Dirección para el envío de artículos Universidade Luterana do Brasil Curso de Psicologia Revista Aletheia Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José Sala 121 - Prédio 01 Canoas/RS – Brasil CEP: 92425-900 E-mail: [email protected] 264 Aletheia 27(1), jan./jun. 2008 ALETHEIA Revista de Psicologia No 27 (1) - Jan./Jun. 2008 ISSN 1413-0394 Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente Emir Schneider Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e Comunitário Jairo Jorge da Silva Pró-Reitora de Ensino a Distância Sirlei Dias Gomes Capelão Geral Pastor Gerhard Grasel Ouvidora Geral Eurilda Dias Roman ALETHEIA Revista de Psicologia da ULBRA Disponível on-line pelo portal PePSIC: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php ISSN 1981-1330 Indexadores: Index-Psi Periódicos (CFP); LILACS (BIREME); IBSS; PsycINFO (APA); PePSIC; Latindex; CLASE Editora Profª. Dra. Mary Sandra Carlotto Editores Associados Prof. Dr. Mauro Magalhães Profª Dra. Sheila Gonçalves Câmara Apoio Editorial Profa. Dra. Tânia Rudnicki Profa. Dra. Lígia Braun Shermann Profa. Dra. Maria Piedade Rangel Meneses Profa. Ms. Fernanda Serralta Conselho Editorial Dra. Ana Maria Benevides Pereira (UEM, Maringá/BR) Dra. Ana Maria Jacó-Vilela (UERJ, Rio de Janeiro/BR) Dra. Antonieta Pepe Nakamura (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Carlos Amaral Dias (ISMT/Lisboa/PT) Dra. Dóris Vasconcelos Salençon (Sorbone, Paris/FR) Dr. Eduardo A. Remor (UAM, Madrid/ES) Dr. Francisco Martins (UnB, Brasília/BR) Dr. Hugo Alberto Lupiañez (UDA, Mendoza/AR) Dra. Isabel Arend (UG, Bangor/UK) Dr. João Carlos Alchieri (UFRN, Natal/BR) Dr. Jorge Béria (ULBRA, Canoas/BR) Dr. Jorge Castellá Sarriera (UFRGS, Porto Alegre/BR) Dr. José Carlos Zanelli (UFSC, Florianópolis/SC) Dra. Jussara Maria Körbes (ULBRA, Canoas/BR) Dra. Maria Lúcia Tiellet Nunes (PUCRS, Porto Alegre/BR) Dra. Maria Inês Gasparetto Higuchi (CEULM, Manaus, BR) Dra. Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS, São Leopoldo/RS) Dr. Mário Cesar Ferreira (UnB, Brasília/BR) Dr. Ramón Arce (USC, Santiago de Compostela/ES) Dr. Ricardo Gorayeb (FMRP-USP, Ribeirão Preto/BR) Dra. Rita de Cássia Petrarca Teixeira (ULBRA Gravataí/BR) Dr. Vicente Caballo (UG, Granada/ES) EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen Assinaturas Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 29 - Sala 202 Bairro São José - Canoas/RS - CEP: 92425-900 Fone: (51) 3477.9118 - Fax: (51) 3477.9115 [email protected] www.editoradaulbra.com.br Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta/exchange Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Biblioteca Martinho Lutero - Setor de Aquisição Av. 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