ALETHEIA
Revista de Psicologia
No 27 (1) - Jan./Jun. 2008
ISSN 1413-0394
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ALETHEIA
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ISSN 1981-1330
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Aletheia / Universidade Luterana do Brasil. - N. 1
(jan./jun. 1995)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 1995.
v. ; 27cm.
Semestral
ISSN 1413-0394
1. Psicologia - periódicos. I. Universidade Luterana
do Brasil
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Aletheia, Revista semestral editada pelo Curso de Psicologia da Universidade Luterana do
Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes categorias:
artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o
pensamento dos Editores ou Conselho Editorial
Sumário
5
Editorial
Artigos de pesquisa
7
Stress, coping e adaptação na transição para o segundo ciclo de escolaridade:
efeitos de um programa de intervenção
Stress, coping and adaptation in middle school transition: effects of an
intervention program
Karla Sandy de Leça Correia, Maria Alexandra Marques Pinto
23
Auto-revelação na Internet: um estudo com estudantes universitários
Self-disclosure in the Internet: A study with university students
Ana Cristina Garcia Dias, Marco Antônio Pereira Teixeira
36
Recordação autobiográfica: reconsiderando dados fenomenais e correlatos neurais
Autobiographical recollection: Reconsidering phenomenological data and
neural correlates
Gustavo Gauer, William Barbosa Gomes
51
Fenomenologia da queixa depressiva em adolescentes: um estudo crítico-cultural
Phenomenology of the depressive complaint in adolescents: a critical cultural
study
Anna Karynne da Silva Melo, Virginia Moreira
65
Projeto do futuro e identidade: um estudo com estudantes formandos
Project of future and identity: a study with senior college students
Larissa Hery Ito, Dulce Helena Penna Soares
81
Um estudo prospectivo sobre o estresse cotidiano na 1ª série
A prospective study on daily hassles in first grade
Edna Maria Marturano, Elaine Cristina Gardinal
98
Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família
Elderly man: experiencing of roles played during family vital cycle
Ivanilza Etelvina dos Santos, Cristina Maria de Souza Brito Dias
111 Imagem corporal em crianças institucionalizadas e em crianças não institucionalizadas
Physical image in institutionalized children and non institututionalized children
Lorena Emilia Zortéa, Carla Meira Kreutz, Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann
126 Habilidades Sociais Educativas Parentais e problemas de comportamento:
comparando pais e mães de pré-escolares
Parental Social Educational Skills and behavior problem: comparing fathers
and mothers of preschoolers
Alessandra Turini Bolsoni-Silva , Edna Maria Marturano
Artigos de atualização
139 O movimento de João de Santo Cristo no mundo: a via-crúcis de uma identidade
The movement of João de Santo Cristo in the world: the via-crucis of an identity
Andresa Jaqueline Toassi, Michele Caroline Stolf, Maria Chalfin Coutinho, Dulce
Helena Penna Soares
157 Vínculos familiares na adolescência: nuances e vicissitudes na clínica psicanalítica
com adolescentes
Family bonds in adolescence: nuance and vicissitude in psychoanalytical clinic
with teenagers
Aline Bedin Jordão
173 Psicoterapia de casal: modelos e perspectivas
Couple psychotherapy: Models and perspectives
Terezinha Féres-Carneiro, Orestes Diniz Neto
188 Compreender a gestão a partir do cotidiano de trabalho
Understanding management from everyday work life
Leny Sato, Fábio de Oliveira
198 A seca enquanto um hazard e um desastre: uma revisão teórica
The drought while a hazard and a disaster: a theoretical review
Eveline Favero, Vivien Diesel
210 A toxicomania enquanto doença incurável e sua relação com um tratamento
possível
The drug addiction as an incurable disease and its relation with a possible treatment
Amanda Schreiner Pereira
222 Psicologia e epistemologia: por uma perspectiva ética de potencialização da vida
Psychology and epistemology: trough an ethical perspective for the potency of life
Jardel Sander da Silva
Relato de experiência
233 Reflexões acerca do atendimento psicológico a desempregados
Reflections on psychological counseling to unemployed individuals
Janine Kieling Monteiro, Clarissa Machado Pesenti, Daiane Maus, Daniela
Bottega, Fabiane Rosa Machado
Resenha
243 La invención ecológica. Narraciones y trayectorias de la educación ambiental
en Brasil
Bodil Andrade Frich
247 Instruções aos autores
253 Instructions for the authors
259 Instrucciones a los autores
Editorial
A revista Aletheia tem-se mantido fiel à sua concepção ao longo de seus 11 anos
de existência, estando no nome do periódico sua maior representação. Sua trajetória é
marcada pelo compromisso com o desenvolvimento da Psicologia como ciência e como
profissão, e sua conceituação junto à CAPES, reconhecimento da sua qualidade.
Desnecessário elencar todas as dificuldades para chegarmos a esse estágio, uma
vez que todos os periódicos nacionais, em maior ou menor escala, possuem uma história
singular de luta para manter-se em dia e com alto grau de reconhecimento entre seus
pares. Muitas dificuldades perpetuam-se, e outras novas, com certeza, irão surgir.
A Aletheia construiu seu espaço e mantém-se no âmbito de um curso de graduação,
o que torna sua história diferenciada de outros periódicos. É, portanto, uma grande
satisfação para o Curso de Psicologia da ULBRA Canoas, quando comemora seus 25
anos, contar com o reconhecimento e a confiança crescente da instituição, dos autores,
consultores, pareceristas e leitores. O retorno positivo que a Aletheia tem recebido de
toda a comunidade científica é a força que a mobiliza a seguir em frente em sua trajetória,
fazendo caminho, mudando sempre, mas mantendo-se fiel ao seu fluxo, como um rio.
Ser capaz, como um rio
Que leva sozinho
A canoa que se cansa,
De servir de caminho
Para a esperança
E de levar do límpido
A mágoa da mancha,
Como o rio que leva e lava
Crescer para entregar
Na distância calada
Um poder de canção,
Como um rio decifra
O segredo do chão.
Se é tempo de descer,
reter o Dom da força
Sem deixar de seguir
E até mesmo sumir
Para, subterrâneo,
Aprender a voltar
E cumprir no seu curso
O ofício de amar.
Como um rio, aceitar
Essas súbitas ondas
Feitas de águas impuras
Que afloram a escondida
Verdade nas funduras.
Como um rio, que nasce
De outros, saber seguir
Junto com outros sendo
E noutros se prolongando
E construir o encontro
Com as águas grandes
Do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
Mas sem deixar de ser
O mesmo ser que muda
Como um rio.
(Thiago de Mello)
A todos desejamos uma boa leitura!
Os editores
6
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.7-22, jan./jun. 2008
Stress, coping e adaptação na transição para o segundo ciclo
de escolaridade: efeitos de um programa de intervenção
Karla Sandy de Leça Correia
Maria Alexandra Marques Pinto
Resumo: A transição escolar pode ser entendida como um período de crise normativa na vida
de crianças e adolescentes. O estudo analisou as diferenças nos factores de stress relevantes na
transição de ciclo escolar, as estratégias de coping utilizadas e dois índices de adaptação,
académico e social, entre três grupos de estudantes: grupo que participou num programa com
sessões acerca da Transição (n=83) no 4º ano de escolaridade; grupo que participou deste
programa e de treino de Competências Sociais (n=22); e um grupo de controlo (n=104).Os
resultados apontam que o grupo que foi submetido a um programa de promoção de Competências Sociais e de sessões sobre a Transição utilizou com maior frequência estratégias de coping,
particularmente, as de distracção cognitiva e comportamental, do que os outros dois grupos.
Não se verificaram diferenças nos níveis de stress escolar e nos dois índices de adaptação entre
os três grupos considerados.
Palavras-chave: stress, coping, transição.
Stress, coping and adaptation in middle school transition: effects of
an intervention program
Abstract: This study analyzes the differences in the stress factors that are relevant in school
transition, coping strategies used and two adaptation indexes, academic and social, between
three groups of students: a group that took part in a program with sessions about Transition
(n=83) in the fourth year, a group that, in addition to this program, took part in Social Skills
training (n=22) and a control group (n=104). The results reveal that the group that profited
with the Social Skills training and other sessions related with the Transition, made use of coping
strategies more frequently, especially the cognitive-behavioral distraction ones, than the other
two. There were no differences in school stress levels and the two adaptation indexes in the
three groups.
Key words: Stress, coping, transition.
Introdução
A transição de ciclo escolar constitui uma experiência significativa na vida de
uma criança ou jovem, e um grande desafio ao seu desenvolvimento. Existem evidências
de um aumento dos níveis de stress e perturbação emocional associados a essas
transições (Cleto & Costa, 2000; McManus, 1997; Wenz-Gross, Siperstein, Untch &
Widaman, 1997).
Na transição para o segundo ciclo de escolaridade, o pré-adolescente é
confrontado com toda uma série de mudanças que tem que integrar, numa fase em que
grandes alterações estão também a ocorrer em seu desenvolvimento. A entrada na
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
7
adolescência implica mudanças em nível biológico, emocional, cognitivo e social, e a
mudança de escola e ciclo escolar acarreta alterações no contexto escolar, nas regras
de funcionamento, nas relações com os professores e no grupo de pares.
Em termos académicos, a estrutura do meio escolar torna-se mais complexa e
aumentam as expectativas em relação ao desempenho do aluno (Wenz-Gross & cols.,
1997). O tamanho da nova escola, de modo geral, é significativamente maior, o rigor
académico mais elevado, os círculos sociais e a pressão de pares são mais sentidos, a
disciplina é mais focada e directiva, a estrutura escolar e o método de ensino muda, o
número de professores e disciplinas aumenta, existe um menor suporte emocional da
parte dos professores, e uma diminuição do contacto entre os alunos e os professores
(Gutman & Midgley, 2000).
A estrutura do grupo de pares também é afectada, e os alunos são confrontados
com outros alunos mais velhos na mesma escola. Em nível social os alunos devem lidar
com uma rede de pares mais flutuante e de maior dimensão, numa fase de
desenvolvimento em que as relações com o grupo de pares se intensificam e tomam
uma maior relevância (Elias, Gara & Ubriaco, 1985), e em que novas relações têm de ser
estabelecidas.
Nesta fase começam a emergir relações professor-aluno potencialmente mais
conflituosas, em que, por um lado, os alunos procuram progressivamente mais
autonomia, e por outro, os professores dão maior ênfase ao controlo e à disciplina
(Wenz-Gross & cols., 1997). De acordo com a revisão de literatura realizada por Akos e
Galassi (2004), os alunos parecem identificar três categorias primárias de preocupações
relativas à transição, nomeadamente, académica, processual e social.
Este trabalho se insere no âmbito de estudos acerca dos processos de stress e
coping e das suas relações com a adaptação na mudança de ciclo escolar. O stress e o
desafio inerentes à adaptação podem criar crises desenvolvimentais mesmo para
indivíduos com mais recursos (Akos, 2002). A forma como são resolvidas essas crises
depende da avaliação que é feita das exigências e dos recursos de coping que são
mobilizados para fazer face a essas mesmas exigências (Lazarus & Folkman, 1984).
Na ausência de modelos específicos ou teorias que expliquem os processos de
stress-coping na criança, é utilizado o modelo transaccional de Lazarus e Folkman
(1984), desenvolvido para explicar este processo em adultos, mas que tem sido utilizado
como referencial teórico em muitas investigações sobre os processos de adaptação em
crianças e adolescentes (Causey & Dubow, 1992; Compas, 1987; McManus, 1997;
Ryan-Wenger, 1990, 1992; Seiffge-Krenke, 1995).
Na perspectiva da teoria de stress e coping de Lazarus, a avaliação individual dos
stressores relaciona-se mais com a resposta biopsicossocial do indivíduo do que com
o acontecimento em si mesmo (Lazarus & Folkman, 1984). Do ponto de vista dos
resultados de adaptação, não é o stress, per se, que é importante, mas sim a forma como
nos confrontamos com ele, ou seja, o coping. O coping está associado ao ajustamento
emocional e comportamental nas crianças e adolescentes (Causey & Dubow, 1992;
Compas, Davis, Forsythe & Wagner, 1987), e pode ser entendido como um mediador
da relação entre stress e saúde-doença.
8
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Para Ryan-Wenger (1994) e Lima, Serra de Lemos e Prista Guerra (2002), o coping
é um conceito que se insere num termo mais abrangente que é a adaptação, e refere-se
ao esforço comportamental e cognitivo por parte de um indivíduo no sentido de lidar
e gerir os stressores, bem como a relação pessoa-meio. Assim, o coping é concebido
como voluntário, consciente e intencional.
De acordo com o modelo transaccional o stress refere-se a “uma relação particular
entre o indivíduo e o ambiente, que é considerado por este como ameaçador e muito
superior aos seus recursos e capaz de pôr em perigo o seu bem-estar” (Lazarus &
Folkman, 1984, p.43).
Alguns estudos (Alspaugh, 1998; Hirsch & Rapkin, 1987; Seidman, Allen, Aber,
Mitchell & Feinman, 1994) revelam uma associação entre stress escolar e o ajustamento
emocional e académico dos alunos. Os estudos apontam uniformemente para um
declínio no desempenho académico após a transição escolar (Alspaugh, 1998; Gutman
& Midgley, 2000; Seidman & cols., 1994; Seidman, Aber & French, 2004).
A transição para o “junior high school”1 tem sido consistentemente associada a
uma diminuição na motivação académica das crianças e à diminuição na sua percepção
de competência académica (Alspaugh, 1998; Anderman & Midgley, 1997; Cantin &
Boivin, 2004; Wigfield, Eccles, MacIver, Reuman & Midgley, 1991). Alguns estudos
referem que diminuições na auto-estima (Cantin & Boivin, 2004; Seidman & cols., 1994;
Wigfield & cols., 1991) e outras manifestações de distress psicológico estão associadas
a esta transição escolar normativa. Contudo, estas alterações podem ser apenas
temporárias, como sugerido por estudo relativos à auto-estima em que as mudanças
reveladas não se mantêm para além do primeiro ano do segundo ciclo (“junior high
school”) (Cantin & Boivin, 2004; Wigfield & cols., 1991).
No contexto português, as investigações sobre stress, coping e adaptação nas
transições escolares são escassos. Cleto e Costa (2000) realizaram um estudo acerca
das estratégias de coping e a adaptação de alunos de 7º ano de escolaridade, não
tendo sido encontradas diferenças na adaptação à escola entre os alunos que
permaneciam no mesmo contexto escolar e os que mudavam de escola na transição
para o terceiro ciclo. As autoras justificaram os resultados sugerindo que a transição
para o segundo ciclo poderá ter contribuído para a aprendizagem e mobilização de
recursos pessoais de coping e sociais necessários na adaptação à transição
subsequente, na entrada para o terceiro ciclo.
Pereira e Mendonça (2005) realizaram um estudo com crianças que mudaram de
escola na transição para o segundo ciclo de escolaridade. Os acontecimentos indutores
de stress relacionados com o domínio académico foram identificados como os mais
freqüentes, destacando-se a realização dos trabalhos e actividades escolares (81%),
quer por dificuldades de concretização, quer pelo facto de terem de gerir várias exigências
em simultâneo, o que implica uma maior capacidade de organização e de auto-regulação
por parte dos alunos.
1
Na estrutura do sistema educativo nos E. U. A. a transição de ciclo ocorre na passagem do quinto para o sexto
ano (para a middle school), ou na passagem do sexto para o sétimo ano de escolaridade (junior high school)
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
9
Por outro lado, verificou-se um maior nível de stress associado a
acontecimentos referentes à relação com o professor e com as regras da escola. As
crianças apresentavam um elevado grau de preocupação perante incidentes
relacionados com a pressão para o desvio e violência na escola, em situações de
incumprimento de regras na sala de aula e problemas na relação com o professor
(Pereira & Mendonça, 2005).
Relativamente às estratégias de coping, Lima, Serra de Lemos e Prista Guerra
(2002) verificaram num estudo com alunos portugueses do primeiro e segundo
ciclo, com idades compreendidas entre os 8 e os 12 anos, com base no
Schoolagers’Coping Strategies Inventory – SCSI (Ryan-Wenger, 1990), que as
crianças mais novas utilizavam estratégias de distracção cognitiva/comportamental
mais frequentemente e consideram-nas mais eficazes do que as mais velhas. À
medida que a idade aumentava, diminuiu o número de crianças que utilizavam
estratégias de distracção cognitiva/comportamental, assim como a percepção da
eficácia deste tipo de estratégias (Lima & cols., 2002).
Tendo em conta o stress associado à mudança de ciclo escolar indicado por
alguns estudos, e as implicações deste na adaptação dos alunos ao novo contexto,
torna-se importante promover medidas que facilitem a integração dos mesmos. Tal
como Pereira e Mendonça (2005) salientam, as intervenções devem ser desenvolvidas
antes e depois da transição ter ocorrido, e tendo em conta as diferentes dimensões do
stress a que estão sujeitos os alunos em transição de ciclo escolar.
Neste sentido, a presente investigação surge com o objectivo de estudar os
fenómenos de stress, coping e adaptação em alunos que transitaram para o segundo
ciclo de escolaridade, comparando dois grupos que se beneficiaram de programas de
intervenção relacionados com a transição e um grupo de controlo.
Um dos grupos experimentais foi composto de alunos que participaram num
programa de promoção de competências na transição escolar, denominado
“Transições” no terceiro período do 4º ano de escolaridade, enquanto que o outro
grupo participou num programa de promoção de competências sócio-emocionais, ao
longo de três anos, finalizando no terceiro período do 4º ano de escolaridade com o
programa “Transições”. Tendo em conta que o objectivo do programa “Transições”
seria preparar os alunos para a transição de ciclo escolar e para a mudança para um
novo contexto, e diminuir a ansiedade e o stress perante esta mudança, é esperado que
as crianças dos grupos que beneficiaram deste programa apresentassem um leque
maior de estratégias de coping, percebessem menos stress e estivessem mais adaptadas
do que as do grupo de controlo. Era igualmente esperado que estas diferenças fossem
mais acentuadas para o grupo que beneficiou previamente do programa de promoção
de competências sócio-emocionais.
Finalmente, pretendeu-se ainda explorar as diferenças nos níveis de stress, coping
e adaptação em função da variável escola de proveniência, isto é, a escola que os
alunos frequentaram no 4º ano de escolaridade, uma vez que as características das
escolas de onde estes transitaram poderiam ser relevantes para a compreensão dos
resultados.
10
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Método
Amostra
A amostra foi constituída de 209 alunos que frequentavam o 5º ano de
escolaridade pela 1ª vez, em três escolas de 2º e 3º ciclo de escolaridade do ensino
público da área de Lisboa.
A escolha das escolas deveu-se ao facto de serem a sede de Agrupamento da
qual fazem parte as escolas de 1º ciclo de ensino básico onde foi desenvolvido um
programa de competências na Transição do 1º para o 2º ciclo, no ano lectivo 2004/2005.
Foram considerados três grupos: um grupo que beneficiou de um programa de
promoção de competências na transição escolar, denominado Transições no terceiro
período do 4º ano de escolaridade (n=83), um grupo que para além desta intervenção
beneficiou de um trabalho em nível das competências sócio-emocionais, ao longo de
três anos (n=22), e um grupo que não beneficiou de qualquer intervenção (n=104).
No total da amostra, a percentagem de alunos de sexo masculino (49,3%) e de
sexo feminino (50,7 %) eram semelhantes, e tinham idades compreendidas entre os 9 e
os 15 anos, estando a maioria dentro do escalão etário dos 10 aos 11 anos (78,9%).
Contudo, é de salientar a percentagem considerável de alunos que frequentavam pela
primeira vez o 5º ano de escolaridade com idades entre 12 e 15 anos (20,4%).
Foram considerados como indicadores sócio-econômicos a profissão do pai e da
mãe. Pode-se verificar que 75% das respostas obtidas indicavam pais desempregados,
operários, empregados de serviços e comércio, enquanto que os restantes 25 %
correspondiam a empresários e quadros médios e superiores.
No que se refere à profissão da mãe, apenas 11,7% correspondiam a empresárias
e quadros médios ou superiores, sendo as restantes 88,3% distribuídas pelas profissões
doméstica, operárias, empregadas dos serviços e do comércio, e ainda 19,4%
desempregada.
Instrumentos
Para além dos dados biográficos, o questionário utilizado incidiu nas seguintes
variáveis:
Índice de Desempenho Acadêmico: Para avaliar a adaptação académica foi
construído para este estudo um índice de desempenho académico que corresponde à
média das notas do final do primeiro período nas disciplinas Língua Portuguesa,
Matemática, Língua Estrangeira, História e Geografia de Portugal, Ciências da Natureza,
Educação Física, Educação Visual e Tecnológica e Educação Musical.
Indicador de Apoio Social: Para avaliar a adaptação do ponto de vista social foi
construído para este estudo um indicador de apoio social, nomeadamente o número de
pessoas com quem a criança acha que pode contar para o ajudar quando tem algum
problema ou quando se sente triste ou preocupado com alguma coisa, e o grau de
satisfação com o apoio que espera dessas pessoas, avaliado numa escala de 1 (Nada
Satisfeito) a 4 (Muito Satisfeito) para cada pessoa indicada. Para calcular o índice de
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
11
apoio social foi efectuado o somatório do grau de satisfação dividido pelo número de
pessoas referido, obtendo assim a média de satisfação com o apoio social esperado.
School Stress Inventory (Siperstein & Wenz-Gross, 1997; versão portuguesa de
Pereira, 2003): Este instrumento tem por objectivo avaliar a ocorrência de acontecimentos
perturbadores em contexto escolar e o nível de stress associado a esses acontecimentos
em estudantes do “middle school”, que corresponde ao segundo ciclo, do sexto ao
oitavo ano de escolaridade. A versão original deste instrumento é constituída por 53
itens, que correspondem a acontecimentos potencialmente geradores de stress, e cuja
resposta assenta numa escala de 0 a 4. O aluno deve decidir se cada acontecimento
ocorreu durante aquele ano lectivo, sendo atribuída a pontuação 0, para os
acontecimentos que não ocorreram, e de 1 (não preocupado) a 4 (muito preocupado)
para os acontecimentos que ocorreram naquele ano lectivo atendendo à forma como
se sentiu, ou seja, ao nível de stress associado.
As análises factoriais apoiam uma estrutura em três factores tanto na versão
original (Wenz-Gross & cols., 1997) como na versão portuguesa (Pereira, 2003): Um
factor denominado Stress Académico, constituído por 14 itens (eg. “ter notas baixas
na minha ficha de avaliação de fim de trimestre”); outro de Stress Social, constituído
por 15 itens (eg. “ter dificuldade em fazer novos amigos”) e um terceiro factor de Stress
em Relação aos Professores e Regras, formado por 20 itens (eg. “entregar um trabalho
fora de prazo”). Esta estrutura em três factores explica 33,86% da variância encontrada.
Dos 53 itens da versão original foram retirados 4 itens na adaptação portuguesa por
não cumprirem o critério de inclusão (peso factorial superior a 0,30) relativamente a
nenhum dos factores. Os estudos psicométricos da versão original e da adaptação
portuguesa apoiam a existência de bons índices de fiabilidade e de validade do
instrumento. Os factores revelaram coeficientes de consistência interna com valores
entre 0,74 e 0,82 para a escala original (Wenz-Gross & cols., 1997), superior a 0,80 na
versão portuguesa (Pereira, 2003).Os valores do α de Cronbach no presente estudo,
são de 0,96 para a escala total, e entre 0,90 e 0,91 para as sub-escalas, indicando uma
boa consistência interna
Schoolager’s Coping Strategies Inventory (Ryan-Wenger, 1990; versão
portuguesa estudada por Lima, Serra de Lemos & Prista Guerra, 2002): Este é um
instrumento de auto-relato, que avalia o tipo, a frequência e o grau de eficácia das
estratégias de coping utilizadas pelas crianças entre os 8 e os 12 anos de idade (RyanWenger, 1990), e é constituído por 26 itens. As crianças cotam cada estratégia de
coping quanto à frequência de uso perante stress, e quanto ao grau de eficácia, numa
escala de 0 a 3, sendo obtidas três medidas: o valor da escala de Frequência, o valor da
escala de Eficácia, e o valor total da escala SCSI. A análise factorial exploratória dos
dados da versão original (Ryan-Wenger, 1990) revelou uma estrutura não
suficientemente clara, pelo que a autora optou por considerá-la como um instrumento
unidimensional. Na adaptação portuguesa foram excluídos os itens 2, 16, 20, 22, e 23,
que apresentavam valores baixos na análise da consistência interna da escala. As
análises factoriais revelaram uma estrutura em três factores semelhante para a escala
de frequência e de eficácia, considerada pelas autoras bastante satisfatória, interpretável
e conceptualmente coerente (Lima & cols., 2002).
12
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Na escala de Frequência, o factor 1 é constituído por 10 itens (eg. “jogar um
jogo ou fazer qualquer coisa do género”) e agrupa estratégias que podem ser
designadas de distracção cognitiva e comportamental. O factor 2 agrupa itens que
descrevem formas de lidar com stressores geralmente designados de
comportamentos de acting out, ou de exteriorização de afectos negativos (eg.
“andar à luta com alguém”). Finalmente o factor 3 inclui itens que se referem a
estratégias activas ou de diálogo interno que incluem formas de a criança lidar com
os problemas centrando-se nos recursos próprios na tentativa de os resolver (eg.
“fazer alguma coisa para resolver o problema”). A análise factorial da escala de
Eficácia revela uma estrutura factorial igual à da escala de Frequência, à excepção
de um dos itens (item 15).
Relativamente à consistência interna das Escala de Frequência e de Eficácia
foram encontrados valores aceitáveis de α de Cronbach, superiores a 0,75 tanto na
versão original (Ryan-Wenger, 1990) como na versão portuguesa (Lima & cols.,
2002), e superiores a 0,82 no presente estudo. Os valores a de Cronbach para os
factores indicam uma boa consistência interna (α>0,70), tanto para a adaptação
portuguesa de Lima e cols. (2002) como no presente estudo, com excepção do
factor referente às estratégias activas ou de diálogo interno em que os valores de
µ são mais baixos (α de 0,56 para a escala de frequência, e de 0,57 para a escala de
eficácia no presente estudo), mas considerados suficientes para o reter na análise
dos resultados.
Procedimento
No ano lectivo 2004/2005 foram desenvolvidos dois programas com alunos do 4º
ano de escolaridade: um programa denominado “Transições” e um programa de treino
de Competências Sociais.
O programa “Transições” tinha por objectivo preparar os alunos para a mudança
de ciclo e escola. As sessões, de carácter lúdico-pedagógico, pretendiam dar a conhecer
antecipadamente a realidade da nova escola, nomeadamente, os diversos espaços e
suas funções e regras, disciplinas, e treinar competências de organização do material e
do tempo.
O programa de Competências Sociais pretendia desenvolver competências como
a comunicação verbal e não verbal, comportamento assertivo, capacidade de resolução
de problemas, e tomada de decisão.
Após a transição para o quinto ano de escolaridade foram aplicados os
instrumentos de forma a perceber os efeitos da intervenção efectuada, comparando os
dois grupos experimentais com um grupo de controlo, não tendo existido um pré-teste.
A aplicação dos instrumentos foi realizada maioritariamente no contexto de sala
de aula ao grupo total da turma, nas aulas de Formação Cívica, entre Janeiro e Março
de 2006. Foram seleccionadas as turmas que continham alunos que participaram nos
programas referidos no quarto ano de escolaridade.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
13
Resultados
Em primeiro lugar testou-se a equivalência dos três grupos, relativamente à idade,
distribuição de sexo e das profissões do pai e da mãe. Não foram encontradas diferenças
significativas na média das idades (F(2,206)=2,285; p>0,05), na distribuição dos sexos
(c2=4,720, p>0,05), na distribuição das profissões do pai (c2=5,786; p>0,05), e da mãe
(c2=7,689; p>0,05) dos três grupos considerados.
Diferenças no Stress Escolar nos grupos referentes à participação no Programa
Não se verificaram diferenças significativas nos três grupos relativamente ao
Stress Escolar total (F(2,206)=1,49; p>0,22), ou ao Stress Académico (F(2,206)=2,16;
p>0,11), Stress Relacionado com o Professor e Regras (F(2,206)=1,04; p>0,35) e Stress
Social (F(2,206)=0,83; p>0,43), conforme mostra o Tabela 1.
Tabela 1 – Análise da variância do stress escolar nos três grupos: Transições, Competências + Transições,
e Sem Intervenção
Transições
Transições + Competências Sociais
Sem intervenção
Stress Académico
M
24,74
30,38
23,85
DP
14,66
13,19
12,41
Stress Professor/ Regras
M
23,20
27,98
21,98
DP
19,14
17,93
16,44
Stress Social
M
16,00
18,65
14,91
DP
14,08
13,17
11,16
Stress Escolar Total
M.
63,94
77,01
60,74
DP
44,44
41,49
36,15
Fonte da variação
Soma dos quadrados
g. l.
Média dos uadrados
F
2,159
Stress Académico
778,459
2
389,229
Dentro dos grupos
Entre grupos
37140,063
206
180,292
Total
37918,522
208
Stress Professor /Regras
Entre grupos
654,589
2
327,294
Dentro dos grupos
64648,345
206
313,827
Total
65302,934
208
1,043
Stress Social
Entre grupos
263,344
2
131,672
Dentro dos grupos
32721,253
206
158,841
Total
32984,597
208
0,829
Stress Escolar Total
Entre grupos
4813,608
2
2406,804
Dentro dos grupos
332734,94
206
1615,218
Total
337548,55
208
*p<.05
14
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
1,490
Diferenças nas estratégias de coping nos grupos referentes à participação no
Programa
Verificaram-se apenas diferenças significativas na frequência de estratégias de
coping de distracção cognitiva e comportamental (F(2,206)=4,27; p<0,05), e na frequência
total de estratégias de coping (F(2,206)=3,61; p<0,05). O grupo que beneficiou de
Competências Sociais e Transições apresentou maior frequência de estratégias de
distracção cognitiva (M=16,23, DP=4,77) e maior frequência total de estratégias de
coping (M=28,60, DP=8,25) do que os grupos Transições (M=13,16, DP=2,63; e M=24,03,
DP=7,64), e sem intervenção (M=13,51, DP=4,20; e M=23,90, DP=7,56), de acordo com
o teste de Tukey (p<0,05). Não se verificaram diferenças significativas entre os três
grupos no que se refere à frequência de estratégias de coping de acting out e de
estratégias activas ou de diálogo interno ou à eficácia das três dimensões de coping.
Tabela 2 – Análise da variância da frequência do coping nos três grupos de intervenção: Transições,
Competências + Transições, e Sem Intervenção
Transições
Transições + Competências Sociais
Sem intervenção
M
13,16
16,23
13,51
DP
2,63
4,77
4,20
Escala de Frequência da SCSI
Distracção Cog. E Comportamental
Acting Out
M
3,08
3,98
2,81
DP
2,61
3,25
2,54
Activas/ Diálogo Interno
M
7,79
8,39
7,58
DP
2,81
3,15
3,09
M
24,03
28,60
23,90
DP.
7,64
8,25
7,56
Frequência Total
Fonte da variação
Soma dos quadrados
g. l.
Média dos quadrados
F
4,269*
Distracção Cog. E Comportamental
Entre grupos
168,056
2
84,028
Dentro dos grupos
4054,532
206
19,682
Total
4222,587
208
Acting Out
Entre grupos
25,340
2
12,670
Dentro dos grupos
1448,209
206
7,030
Total
1473,548
208
1,802
Activas/ Diálogo Interno
Entre grupos
12,059
2
6,030
Dentro dos grupos
1840,955
206
8,937
Total
1853,014
208
0,675
Frequência Total
Entre grupos
424,186
2
212,093
Dentro dos grupos
12100,119
206
58,738
Total
12524,304
208
3,611*
*p<.05
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
15
Tabela 3 – Análise da variância da eficácia do coping nos três grupos: Transições, Competências +
Transições, e Sem Intervenção
Transições
Transições + Competências Sociais
Sem intervenção
M
15,76
16,99
15,78
DP
4,64
3,80
4,04
Escala de Eficácia da SCSI
Distracção Cog. E Comportamental
Acting Out
M
4,17
4,24
3,61
DP
3,31
3,26
3,12
M
12,02
12,50
12,19
DP
3,52
3,74
3,80
M.
31,95
33,72
31,58
DP
8,51
8,75
8,47
Activas/ Diálogo Interno
Eficácia Total
Fonte da variação
Soma dos quadrados
g. l.
Média dos quadrados
F
0,799
Distracção Cog. E Comportamental
Entre grupos
29,084
2
14,542
Dentro dos grupos
3751,062
206
18,209
Total
3780,147
208
Acting Out
Entre grupos
17,745
2
8,873
Dentro dos grupos
2129,448
206
10,337
Total
2147,193
208
0,858
Activas/ Diálogo Interno
Entre grupos
4,331
2
2,155
Dentro dos grupos
2800,427
206
13,594
Total
2804,737
208
0,159
Eficácia Total
Entre grupos
83,622
2
41,811
Dentro dos grupos
14945,558
206
72,551
Total
15029,180
208
0,576
*p<.05
Diferenças na adaptação nos grupos referentes à participação no Programa
Foram considerados os dois índices de adaptação, um do ponto de vista académico
e outro social, e testada a análise de variância nos três grupos. Não se verificaram
diferenças significativas nos três grupos relativamente às notas escolares (F(2,157)=2,45;
p>0,09) e à média de satisfação com o apoio social (F(2,178)=0,74; p>0,47).
16
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Diferenças relativas à escola de proveniência
Foram estudadas as diferenças em nível do stress escolar, estratégias de coping e
adaptação tendo em conta a escola de 1º ciclo frequentada pelos alunos no ano anterior.
Uma vez que os alunos transitaram de vinte e oito escolas de 1º ciclo, e que algumas
delas estavam muito sub-representadas na amostra do estudo, tornou-se necessário
agrupar algumas escolas de proveniência (aquelas com menos de cinco sujeitos na
amostra), tendo sido utilizado o critério de pertencerem ao mesmo agrupamento de escolas.
Relativamente ao stress, não foram verificadas diferenças significativas no nível
de stress académico (F(14,194)=2,41; p<0,01), stress relacionado com os professores e
regras (F(14,194)=2,69; p<0,01), stress social (F(14,194)=2,65; p<0,01), e no nível de
stress escolar total (F(14,194)=2,81; p<0,01) de acordo com a escola de proveniência.
Ao analisar as diferenças entre alunos provenientes de diferentes escolas de 1º
ciclo, através do método de Tuckey (p<0,05), pode-se verificar que os alunos
provenientes das escolas 1 e 7, onde foram desenvolvidas actividades referentes à
transição, apresentaram em média, maior stress académico do que os alunos da escola
14 (escola sem intervenção).
Por outro lado, verificou-se que os alunos da escola 1 apresentaram, em média,
mais stress relacionado com professores e regras, do que os alunos provenientes das
escolas 4 (escolas com intervenção) e 6 (escola sem intervenção), e maior stress social,
e stress escolar total do que os das escolas 4 e 10 (que beneficiaram de intervenção), e
6 e 14 (sem intervenção).
Relativamente à frequência de estratégias de coping, verificamos existirem
diferenças significativas entre os grupos provenientes de diferentes escolas de primeiro
ciclo na frequência de estratégias de coping de distracção cognitiva (F(14,194)=1,91;
p<0,05), e de estratégias de coping activas ou de diálogo interno(F(14,194)=1,74; p=0,05),
e na frequência total de estratégias de coping utilizadas (F(14,194)=2,45; p<0,01).
Com base no método de Tukey HSD (p<0,05), verifica-se que os alunos da escola
3 (alvo de intervenção) apresentaram em média maior frequência de estratégias de
coping de distracção cognitiva do que os alunos das escolas 6 (sem intervenção).
Por outro lado, os alunos provenientes da escola 6 (sem intervenção) utilizaram em
média, com menor frequência estratégias de coping activo, e menor frequência total de
estratégias do que os alunos das escolas 3 e 7 (alvo de intervenção), e 12 (sem intervenção).
Em nível da eficácia percebida das estratégias de coping não foram verificadas
diferenças significativas em qualquer das dimensões da escala entre os grupos
provenientes de diferentes escolas (de acordo com o método de Tukey, p>0,05).
Por outro lado, não se verificaram diferenças significativas relativamente às notas
escolares (F(14,145)=1,69; p>0,05) e à média de satisfação com o apoio social nos
grupos estabelecidos de acordo com a escola de proveniência (F(14,166)=1,08; p>0,05).
Discussão
Ao comparar o grupo que beneficiou de competências sociais e competências
inerentes à transição escolar, com o grupo que participou apenas nas sessões sobre a
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
17
transição escolar e o grupo sem intervenção, não foram encontradas diferenças no
nível de stress escolar total nem nos vários factores de stress. O facto de alguns alunos
terem beneficiado de intervenção antes da transição para o quinto ano de escolaridade,
não parece ter tido implicações nos níveis de stress percebidos após a transição.
Tendo em consideração que um dos objectivos da intervenção era diminuir o
stress na transição escolar era esperado que o grupo Competências sociais e Transições,
e o grupo Transições, apresentassem níveis de stress mais baixos do que o grupo sem
intervenção.
Este resultado pode ter tido diferentes explicações. Por um lado, o facto da
recolha de dados ter sido feita por uma técnica que trabalhou com algumas das crianças
inquiridas no contexto dos programas Transições, pode ter facilitado a exposição das
preocupações por parte destas crianças. O trabalho realizado, em pequenos grupos,
terá, nessa perspectiva, permitido estabelecer uma relação de confiança, e a possibilidade
de expressar as suas emoções e preocupações. Um dos aspectos trabalhados no
grupo Competências Sociais e Transições é a expressão emocional, a identificação e
expressão de afectos tanto positivos como negativos. Por outro lado, o momento em
que foi realizada a recolha de dados poderá também ter influência. O facto dos
questionários terem sido aplicados no segundo período escolar, terá permitido existir
um ajustamento inicial perante a entrada na nova escola e na nova rotina escolar.
O programa Transições implicou sobretudo questões processuais referentes à
transição, tendo sido abordadas as novas rotinas escolares e a complexidade do novo
ambiente escolar. Na fase em que a recolha de dados foi efectuada teria existido tempo
suficiente para a adaptação às mudanças processuais inerentes à transição.
Segundo Akos e Galassi (2004), a maior parte dos alunos provavelmente adaptarse-á mais facilmente aos aspectos processuais da transição do que às questões
académicas ou sociais. As preocupações a nível processual devem ser antecipadas
uma vez que a transição implica uma mudança de um meio escolar mais simples para
outro mais complexo. O envolvimento em actividades conjuntas em diferentes ambientes
requer que a pessoa se adapte a várias pessoas, tarefas e situações, implicando que
aumente o alcance e flexibilidade das suas competências sociais e cognitivas
(Bronfenbrenner, 1979).
Relativamente às estratégias de coping, o grupo que beneficiou de Competências
Sociais e Transições, apresenta maior frequência total de estratégias e maior frequência
de estratégias de distracção cognitiva e comportamental, do que o grupo que beneficiou
unicamente das sessões relacionadas com a transição, e do que o grupo sem
intervenção. Tendo em consideração que este grupo beneficiou de um treino de
competências pessoais e sociais era esperado que tivessem alargado o leque de
estratégias de confronto disponíveis.
O facto de utilizarem com maior frequência as estratégias de distracção cognitiva
e comportamental, do que os demais grupos pode representar uma forma de confronto
perante situações em que não é percebido qualquer controlo sobre os acontecimentos
indutores de stress. Estes resultados vão de encontro com o estudo de Lima e cols.,
(2002), que indica que as crianças mais novas utilizam com maior frequência e consideram
mais eficazes este tipo de estratégias. Uma variável que interessaria introduzir em
18
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
futuros estudos corresponde à percepção de controlo das crianças sobre os stressores.
Alguns estudos mostram que o sentido de controlo sobre o stressor tem impacto
no bem-estar, no comportamento de coping e nos resultados. Hardy, Power e Jaedicke,
citados por Ryan-Wenger Sharrer e Campbel (2004), verificaram que as crianças que
sentiam que não tinham qualquer controlo sobre os stressores diários respondiam
com maior evitamento do que as crianças que percebiam algum controlo.
Assim, seria útil identificar as percepções de controlo da criança sobre o stressor,
e estudar a relação entre o controlo, tipos de estratégias utilizadas e resultados. Em
situações em que a criança percebe baixo controlo do stressor, e em que se considera
existir potencial para a mudança nessa percepção, esta pode ser ajudada a encontrar
formas de recuperar algum controlo e mudar respostas maladaptativas.
Por outro lado, não se verificaram diferenças nos dois índices de adaptação do
ponto de vista académico e social. O grupo que beneficiou de Competências Sociais e
sessões referentes à Transição apresenta em média notas escolares e satisfação com o
apoio social semelhantes aos do grupo que participou unicamente no programa
Transições e do grupo sem intervenção. A inexistência de diferenças entre os grupos
nos indicadores de adaptação pode ser explorada tendo em conta o papel da variável
“escola de proveniência”.
Ainda que os grupos estudados sejam equivalentes em relação à distribuição
por sexo, idade e em nível das distribuições das profissões do pai e da mãe, o critério
de inclusão nos dois tipos de intervenção pode contemplar variáveis estranhas,
designadamente a “escola de proveniência”, que podem interferir nos resultados.
Foram incluídas no grupo Transições todas as crianças que frequentavam escolas de
1º ciclo de escolaridade abrangidas pelos projectos de prevenção primária de cinco
freguesias de Lisboa. Contudo, o facto de algumas destas crianças terem beneficiado
de programas de competências sociais e pessoais para além das sessões relacionadas
com a transição introduz algumas variáveis que importa ter em conta. Este grupo é
constituído por alunos provenientes de duas escolas de primeiro ciclo (escolas 3 e 7).
Na escola 3 foram trabalhadas competências sociais e pessoais com todos os alunos
de 4º ano de escolaridade, finalizando o terceiro período do terceiro ano de intervenção
com sessões temáticas acerca da transição. Contudo, na escola 7 o programa de
competências foi aplicado a uma das duas turmas de 4º ano, tendo sido o critério de
selecção desta turma a dificuldade de aprendizagem e problemas de comportamento
revelados por alguns dos seus alunos, sendo assim uma turma sinalizada.
Desta forma, e uma vez que não foi efectuado um pré-teste, não é possível
comparar dentro de cada grupo as diferenças antes e depois da intervenção. O facto
do grupo Competências Sociais e Transições estar ao mesmo nível de adaptação do
que os outros dois grupos pode não traduzir que a intervenção não promova a
adaptação dos alunos. Este grupo poderia manifestar antes da intervenção índices de
desempenho escolar e satisfação com a rede social inferiores aos outros dois grupos,
e a intervenção ter levado ao esbater das diferenças iniciais.
De futuro seria importante realizar um estudo experimental que contenha um préteste e outros dois momentos de avaliação, logo após a intervenção, e após a transição
escolar.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
19
O relevo da variável “escola de proveniência” na explicação dos resultados do
presente estudo torna-se mais claro ainda pelo facto de se terem encontrado diferenças
entre alunos provenientes das diferentes escolas de primeiro ciclo, estatisticamente
significativas tanto ao nível do stress escolar como do tipo de estratégias utilizadas, e
tendencialmente significativas ao nível da adaptação académica (notas escolares).
Os alunos provenientes da escola 1 (alvo de intervenção) apresentam valores de
stress total, stress académico, stress relacionado com os professores e regras, e stress
social mais elevados. Por outro lado, ao analisar as médias das notas escolares obtidas
no primeiro período do 5º ano, verificamos que os alunos provenientes das escolas 1
e 9 (com intervenção referente à transição escolar) apresentaram notas mais baixas,
embora as diferenças não sejam estatisticamente significativas. Este facto poderá
traduzir diferenças nas populações que frequentam estas escolas e que não foram
contempladas neste estudo.
Uma das diferenças corresponde à raça ou etnia dos alunos. Na zona onde uma
das escolas está inserida existem alunos filhos de imigrantes, chineses, indianos e de
países de Europa de Leste. O facto de pertencerem a uma cultura diferente, pode
afectar a adaptação à escola e implicar experiências adicionais de stress, para além da
transição de ciclo e espaço escolar que não foram contempladas no presente estudo.
Tal como Seiffge-Krenke (1995) refere, a acumulação de acontecimentos normativos e
de mudanças resultantes de processos maturacionais acelerados, pode levar a um
aumento do nível de stress.
Por outro lado, o facto de alunos provenientes de determinadas escolas
apresentarem mais estratégias de coping de determinado tipo poderá traduzir diferenças
relacionadas com características da escola, como sejam, o darem maior ou menor
controlo aos alunos, existirem programas de apoio aos alunos, etc. Assim, o estudo de
stress, coping e adaptação na transição deve ter em conta não só as características da
escola para a qual os alunos transitam mas também as características da escola de
proveniência. O facto da escola de primeiro ciclo estar próxima a nível geográfico da
escola para a qual o aluno transita, as características organizacionais da escola, a
existência ou não de programas de apoio ao aluno, pode ter implicações na forma como
é vivida a transição.
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Recebido em agosto de 2007
Aceito em março de 2008
Karla Sandy de Leça Correia: psicóloga; mestre em Psicologia, área de especialização em Stress e BemEstar; doutoranda em Psicologia da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade de Lisboa.
Maria Alexandra Marques Pinto: psicóloga; doutora em Psicologia, área de especialização em Psicologia da
Educaçao; professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.23-35, jan./jun. 2008
Auto-revelação na Internet: um estudo com estudantes
universitários
Ana Cristina Garcia Dias
Marco Antônio Pereira Teixeira
Resumo: O objetivo deste estudo foi verificar diferenças na disposição de universitários para
auto-revelarem-se em contextos face a face (FaF) e virtuais (chats). Um questionário que avalia
seis áreas de auto-revelação foi aplicado a 180 universitários com idades entre 18 e 36 anos
(56,1% mulheres). Os participantes foram solicitados a avaliar sua intenção de auto-revelação
nos seguintes contextos: FaF com amiga, FaF com amigo, desconhecida em um chat e desconhecido em um chat. A disposição para revelação de si foi mais alta para o contexto FaF do que para
o virtual nas seis áreas. Algumas diferenças entre os sexos foram observadas. Os resultados
sugerem que os estereótipos de gênero tendem a ser reproduzidos nas relações virtuais, e que os
chats são considerados um contexto menos favorável à auto-revelação do que o contexto FaF.
Palavras-chave: auto-revelação, Internet, comunicação.
Self-disclosure in the Internet: A study with university students
Abstract: The aim of this study was to compare undergraduates’ intent to self-disclose in face
to face (FtF) and virtual environments (chatrooms). A questionnaire covering six areas of selfdisclosure was applied to 180 university students aged between 18 and 36 years (56,1%
women). Participants were asked to evaluate their intent to self-disclose in the following
situations: FtF with a female friend, FtF with a male friend, to an unknown female in a
chatroom, and to an unknown male in a chatroom. Intent to self-disclose was higher for the FtF
context than for the virtual context, in all six areas. Some gender differences were observed.
Results suggest that gender stereotypes tend to be reproduced in virtual relationships, and that
chatrooms are considered a context less favorable to self-disclosure than the FtF context.
Key words: self-disclosure, Internet, communication.
Introdução
A expansão do uso da Internet, principalmente a partir da década de 1990, vem
produzindo mudanças na forma das pessoas se relacionarem umas com as outras. Antes
desse período, a Internet era vista basicamente como um recurso capaz de oferecer uma
grande quantidade de informações impessoais, chegando a ser considerada eventualmente
uma ameaça às relações pessoais devido à redução dos contatos presenciais necessários
à obtenção de informações (Weisgerber, 2000). No entanto, a penetração da rede no cotidiano
fez com que milhares de pessoas adquirissem o hábito de dispensar várias horas de lazer na
utilização da Internet, além do tempo já gasto no desenvolvimento de atividades relacionadas
ao trabalho e ao estudo (Leitão & Nicolaci-da-Costa, 2000). Assim, de um simples
instrumento de pesquisa ou fonte de informações, a Internet passou a ter um papel
fundamental na vida social de muitas pessoas.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Nicolaci-da-Costa (2005) observa que a Internet está provocando impactos
profundos em diferentes setores da vida social e pessoal dos indivíduos. Para a autora,
esta tecnologia revolucionária vem reconfigurando tanto as relações sociais quanto a
própria subjetividade. Ela está possibilitando a emergência de um sujeito flexível,
adaptável, inquieto, ágil, aberto à experiência e multifacetado. Este indivíduo sente
prazer em quase tudo que faz online e utiliza a rede, especialmente, com objetivos de
auto-expressão e auto-conhecimento.
Para Nicolaci-da-Costa (2005), a Internet oferece diferentes espaços através dos
quais os sujeitos podem se expressar, sendo que muitas vezes um mesmo indivíduo
pode ocupar simultaneamente diversos desses espaços. Na Internet as pessoas podem,
através da revelação de si, construir diferentes narrativas sobre seu eu, apresentando
diferentes características, identidades ou facetas de seu si-mesmo. O conhecimento de
si é construído através do retorno oferecido pelo outro; retorno este que é uma resposta
a essa revelação de si. Contudo, devido à multiplicidade de espaços e possibilidades
de narrativas que o ambiente virtual oferece, a auto-revelação (ou self-disclosure) está
sujeita a inúmeras variações e redefinições, tendo como ponto de unificação apenas o
próprio sujeito enunciador da narrativa pessoal.
A auto-revelação é um aspecto central a ser estudado no contexto da rede. A
revelação de si, além de ser um instrumento importante na construção da identidade, é a
principal via através da qual se desenvolvem as relações na Internet. Mas teria a autorevelação via rede as mesmas características que a auto-revelação em contextos face a
face? Esta é uma questão que tem sido abordada na literatura recente sobre Internet.
Merkle e Richardson (2000) indicam que, diferentemente do contexto face a face, a
Internet é um ambiente onde a auto-revelação tem um papel central nas interações que são
estabelecidas. É através das habilidades que o indivíduo tem para se auto-revelar e
compartilhar pontos de vista pessoais na rede que uma relação pode ser construída, mantida
ou transformada. Na rede, a revelação de si cumpre a função de aproximar pessoas que, no
contexto presencial, poderiam tanto sentir-se atraídas por outros fatores (como, por exemplo,
a aparência) como distanciadas por preconceitos ou estereótipos (Schnarch, 1997). Assim,
a revelação de si na Internet pode ser considerada o comportamento-chave em torno do
qual se desenvolvem as relações interpessoais na rede. Alguns autores, como Merkle
(1999), indicam que a revelação de si, apesar de possuir uma função semelhante – a
aproximação de pessoas – ocorre de maneira diferente nos contextos face a face e virtual,
uma vez que é realizada predominantemente entre pessoas desconhecidas, que percebem
o intercâmbio de informações pessoais como uma oportunidade única de se conhecerem e
manterem as relações por eles iniciadas. Em outras palavras, se não há revelação de si, não
há o estabelecimento e manutenção de uma relação interpessoal.
Além disso, a Internet, por possibilitar a comunicação em situação de anonimato,
permite a vivência de uma experiência clássica relatada na literatura sobre a revelação
de si conhecida como a “situação do estranho”. Esta situação se caracteriza pela
revelação espontânea de aspectos da sua intimidade que um sujeito pode fazer a um
estranho em ambientes cotidianos, como um trem, por exemplo. Essa revelação ocorreria
porque o anonimato daria ao sujeito que se revela uma sensação de liberdade e proteção,
uma vez que os riscos de sofrer algum tipo de conseqüência negativa devido à revelação
são menores do que em situações que envolvem pessoas conhecidas.
24
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Apesar da sua importância, observa-se que os estudos sobre a auto-revelação
na Internet são ainda incipientes. Os primeiros trabalhos desenvolvidos sobre o tema
foram feitos, em sua maioria, por terapeutas de família utilizando-se de observações
clínicas, revisões de literatura e experiências de trabalho em sites destinados a responder
questões sobre sexualidade na rede (Grayson & Schwartz, 2000; Leon & Rotunda,
2000; Merkle & Richardson, 2000; Schnarch, 1997; Suller, 1999). Observa-se ainda um
volume restrito de estudos empíricos destinados a conhecer de maneira detalhada as
diferenças entre a revelação de si nos contextos face a face e na rede.
Velkovska (2002), em um estudo que teve por objetivo compreender as
conversações íntimas na rede, observou que a revelação de si no ambiente virtual
seguia um protocolo implícito, no qual os indivíduos, para estabelecerem e manterem
uma relação, deviam realizar tanto perguntas quanto oferecer respostas acerca de si
mesmos. Nas situações em que isso não ocorreu, observou-se tanto estranhamento
como desinteresse pela manutenção desse contato via rede. A autora considerou que
o fluxo contínuo de troca de informações é o que garante o estabelecimento deste
espaço comum; desta forma, silêncios não costumam ser tolerados na rede.
Já no contexto face a face, a auto-revelação não é tão essencial, embora esta
cumpra a tarefa de aproximar pessoas que já se conhecem fisicamente e buscam uma
maior afinidade e/ou proximidade. As relações estabelecidas presencialmente não se
fundam exclusivamente na auto-revelação, uma vez que existem outras vias para a
troca de informações e sentimentos. Na verdade, alguns autores sugerem que a autorevelação via rede, especialmente no que se refere aos aspectos íntimos, ocorre de
maneira mais rápida e profunda do que nas relações estabelecidas no contexto presencial,
uma vez que o distanciamento físico e o anonimato facilitariam a revelação (Joinson,
2001; Parks & Floyd, 1996). A ausência do olhar do outro e a não identificação pessoal
seriam fatores que diminuiriam a vergonha e a auto-avaliação de si provocada pela
exposição presencial.
Além das diferenças já descritas, Merkle e Richardson (2000) acreditam que a
revelação de si na Internet pode ser menos influenciada pelos estereótipos de gênero
tradicionais, presentes no contexto face a face. Por exemplo, há evidências de que, em
contextos presenciais, as mulheres tendem a falar mais de si (Cozby, 1973; Foubert &
Sholley, 1998; Shulman, Laursen, Kalman & Karpovsky, 1997) e a enfatizar mais os aspectos
emocionais nas suas revelações do que os homens (Radmacher & Azmitia, 2006). Merkle
e Richardson (2000) sugerem que as diferenças de gênero que são geralmente encontradas
nas situações de revelação face a face podem ser diminuídas ou mesmo anuladas na
rede. Neste sentido, acreditam que a Internet oportunizaria para os homens a possibilidade
de falar mais abertamente de seus sentimentos e emoções, enquanto para as mulheres a
rede ofereceria a liberdade para revelarem seus desejos e fantasias secretas, sem
comprometer a imagem pessoal. Contudo, algumas pesquisas têm mostrado que alguns
esterótipos de gênero presentes nas relações face a face também se manifestam no
ambiente virtual (por exemplo, Merkle, 1999; Punyanunt-Carter, 2006; Whitty, 2002).
Na literatura brasileira, não foram localizados estudos que abordassem especificamente
o tema da auto-revelação na Internet com jovens universitários. Em função disso, esta
pesquisa teve por objetivo investigar, exploratoriamente, possíveis diferenças nas intenções
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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de revelação de si, entre jovens universitários, em contextos face a face e virtuais (chats ou
salas de bate-papo), além de verificar diferenças entre os sexos. As questões norteadoras
de pesquisa foram: os jovens percebem o ambiente virtual como mais propício ou menos
propício à revelação pessoal a outra pessoa? Se diferenças entre os contextos virtual e
presencial são percebidas, estas diferenças dependem dos temas de revelação e do sexo
do interlocutor? E, por fim, homens e mulheres diferem quanto à sua disposição para
revelar-se nos contextos virtual e presencial?
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 180 universitários com idades entre 18 e 36 anos (M=
20,8; DP= 3,4), dos quais 56,1% eram mulheres. Os estudantes eram provenientes dos
cursos de Psicologia, Engenharias e Enfermagem, e cursavam do primeiro ao sexto semestre
dos cursos. A amostra foi obtida por conveniência. Aproximadamente 85% dos participantes
declararam já terem utilizado chats (salas de bate-papo) pelo menos uma vez. Entre os
usuários, 18,9% relataram utilizar os chats uma vez ou mais durante a semana.
Instrumento
O instrumento utilizado nesse estudo foi uma escala de revelação de si inspirada no
Questionário de Revelação de Si de Jourard (1971), que foi adaptado para o português por
Vilarinho (1988) com uma amostra de estudantes universitários. A escala de Vilarinho é
composta por 40 itens distribuídos em seis áreas de revelação: atitudes e opiniões em geral
(opiniões), gostos e interesses pessoais (gostos e interesses) , percepções sobre o trabalho
(trabalho), atitudes e sentimentos em relação a dinheiro (dinheiro), aspectos da personalidade
(personalidade), e percepções e sentimentos sobre o corpo (corpo). No formato utilizado
por Vilarinho os itens são apresentados aos sujeitos em cartões, sendo os mesmos instruídos
a marcar, em uma folha com uma grade de respostas, o quanto eles estariam ou não dispostos
a revelar determinados aspectos de si (indicados nos cartões) a diferentes pessoas. São
exemplos de itens do instrumento (para cada uma das áreas de revelação de si): “O que faz
eu realmente me sentir: aborrecido, ansioso ou com medo” (personalidade), “Sobre o modo
como gasto meu dinheiro: no que gasto mais folgadamente ou até bastante” (dinheiro),
“Em relação à moda do vestuário: o que eu não gosto de usar” (gostos e interesses),
“Minhas opiniões sobre os aspectos morais de um homem: o que eu considero digno e
nobre” (opiniões), “Os meus sentimentos sobre diferentes partes do meu corpo: pernas,
quadris, cintura, busto, etc: o que eu não gosto em mim” (corpo) e “As condições do meu
trabalho: que eu acho precárias e desfavoráveis” (trabalho).
Nesta pesquisa foram alterados a forma de apresentação da escala e os alvos da
revelação (situações de revelação). Ao invés de serem utilizados cartões individuais
com cada um dos itens, estes foram apresentados impressos em uma mesma folha de
respostas, como itens de um inventário. Respeitou-se, contudo, a ordem de apresentação
dos itens. Já os alvos da revelação foram alterados em função dos objetivos desta
pesquisa. Assim, para cada item, os participantes deveriam avaliar, em uma escala
26
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Likert de 5 pontos, o quanto estariam ou não dispostos a revelar o aspecto de si
descrito no item nas seguintes situações de revelação (alvos): amigo face a face, amiga
face a face, desconhecido no chat e desconhecida no chat. A divisão dos alvos em
“amigo/a face a face” e “desconhecido/a no chat” teve a função de caracterizar uma
situação de não anonimato e de anonimato daquele que se revela, respectivamente.
Os índices de consistência interna (alpha de Cronbach) observados nesta pesquisa
para as seis áreas e as quatro situações de revelação (alvos) variaram de 0,74 a 0,92,
indicando boa fidedignidade. É importante ressaltar que o instrumento empregado não
pretende avaliar a intensidade ou freqüência de comportamentos reais de revelação de
si, mas sim a intenção dos respondentes para se engajarem em tais comportamentos.
Procedimentos
Os questionários foram aplicados em salas de aula, após contato com os
professores e sua autorização. No início da aplicação foram explicados os objetivos e
procedimentos da pesquisa, solicitando aos jovens a sua participação. Esclareceu-se
que o estudo buscava conhecer a revelação de si de universitários nas salas de batepapo da Internet, e que a participação no mesmo era opcional e voluntária. Foi explicado
a forma de preenchimento do questionário e esclarecido ainda que não existiam respostas
certas ou erradas, pois o interesse da pesquisa era conhecer as opiniões acerca da
revelação de si nas salas de bate-papo. Informou-se também que os participantes não
receberiam uma devolução individual acerca dos resultados da pesquisa, uma vez que
os questionários eram anônimos. Termos de consentimento para participação na
pesquisa foram obtidos antes do preenchimento do instrumento.
Análise dos dados
A fim de investigar a existência de diferenças no nível de revelação de si entre
homens e mulheres nas diferentes situações de comunicação foram realizadas análises
de perfil para cada uma das áreas avaliadas. A análise de perfil (Tabachnick & Fidell,
2001) é um procedimento de análise multivariada na qual se verifica se o perfil de
médias para um conjunto de variáveis (neste caso, os níveis de intenção de revelação
nas diferentes situações: com amigo face a face, com amiga face a face, com um
desconhecido no chat, com uma desconhecida no chat) é diferente para os grupos
sendo comparados (no caso, homens e mulheres). O delineamento utilizado na análise
foi, portanto, um delineamento fatorial 2 (fator entre-sujeitos: sexo – masculino, feminino)
x 4 (fator intra-sujeitos: situação de comunicação – com amigo face a face, com amiga
face a face, com um desconhecido no chat, com uma desconhecida no chat), sendo
este útlimo fator considerado como medida repetida.
Resultados
Com o intuito de tornar mais compreensível a apresentação dos resultados, as
informações relativas às análises estatísticas são descritas, inicialmente, de uma forma
abreviada. Posteriormente, as médias obtidas são comentadas, sinalizando quando
diferenças estatisticamente significativas tiverem sido observadas.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
27
Em primeiro lugar foram realizadas as análises de perfil para cada uma das áreas de
revelação. Para todas as seis áreas, os testes multivariados (usando o critério de Wilks)
revelaram um efeito significativo (p<0,005) do fator situação de comunicação, indicando
que pelo menos uma média diferia das demais quando comparadas as quatro situações de
comunicação. A análise mostrou ainda uma interação significativa (p<0,005) entre os fatores
sexo e situação de comunicação (nas seis áreas), o que ensejou a realização de análises
específicas buscando identificar em quais situações de comunicação, dentro de cada área,
havia diferenças significativas entre os sexos, além de diferenças entre as quatro situações
de comunicação. Estas análises específicas consistiram em testes t para comparações de
médias. Dado o caráter exploratório do estudo, adotou-se como critério para decidir se uma
diferença específica era estatisticamente significativa um valor de p<0,01.
Tabela 1 – Médias (e desvios-padrão) do Nível de Auto-Revelação em Função do Sexo e da Situação
de Revelação para as Seis Áreas de Auto-Revelação
Situação de Revelação
Área / sexo
Área: gostos e interesses
Mulheres
Homens
Área: trabalho
Mulheres
Homens
Área: corpo
Mulheres
Homens
Área: personalidade
Mulheres
Homens
Área: dinheiro
Mulheres
Homens
Área: opiniões
Mulheres
Homens
Face a face
amigo
(1)
Face a face
amiga
(2)
Chat
homem
(3)
Chat
mulher
(4)
2,99
(0,90)
3,15
(0,81)
3,14
(0,81)
3,09
(0,86)
2,64
(1,34)
2,43
(1,27)
2,64
(1,36)
2,60
(1,12)
1? 2
2,27
(1,04)
2,47
(1,23)
2,45
(0,98)
2,40
(1,27)
1,41
(1,20)
1,31
(1,39)
1,43
(1,23)
1,38
(1,40)
--
1,93
(1,01)
2,16
(1,03)
2,27
(0,98)
2,13
(1,11)
1,19
(1,13)
1,36
(1,12)
1,24
(1,16)
1,55
(1,14)
1? 2
2,04
(0,90)
2,24
(0,83)
2,33
(0,83)
2,37
(0,83)
1,26
(0,87)
1,23
(0,94)
1,28**
(0,88)
1,66**
(0,92)
1? 2
2,01**
(1,02)
2,47**
(0,84)
2,17
(0,93)
2,30
(0,98)
1,18
(1,02)
1,39
(1,08)
1,21
(1,03)
1,42
(1,04)
1? 2
2,60**
(0,91)
2,95**
(0,82)
2,73
(0,86)
2,86
(0,86)
2,03
(1,15)
2,13
(1,23)
2,05
(1,12)
2,25
(1,15)
1? 2
Dif. entre
situações*
--
--
--
3? 4
--
--
Nota: as médias podem variar de 0 a 4.
* em todas as áreas e para ambos os sexos foram obervadas diferenças significativas (p<0,01) entre as situações 1 e 3, 1 e 4, 2
e 3, 2 e 4, além das diferenças indicadas na tabela.
** diferença estatisticamente significativa (p<0,01) entre os sexos na área de revelação.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
A Tabela 1 exibe as médias e os desvios-padrão observados para cada uma das
áreas de revelação de si adotadas no estudo, conforme o sexo e a situação de
comunicação. Note-se, desde já, que em todas as áreas observou-se uma diferença no
nível de revelação de si quando se comparou as situações face a face com a as situações
de chat, tanto entre homens quanto entre mulheres. Para ambos os sexos, a revelação
na situação face a face foi superior à da situação de chat, não importando se o
interlocutor da revelação fosse homem ou mulher (estas diferenças são indicadas
como nota nas Tabela 1, para facilitar a visualização de outras diferenças).
As mulheres apresentaram (Tabela 1) uma maior intenção de revelação de si no
que diz respeito a “gostos e interesses” para amigas do que para amigos nas situações
face a face. Já em relação ao assunto “trabalho” as únicas diferenças observadas
foram as já referidas anteriormente entre as situações face a face e de chat. Para o tema
“corpo”, os dados da tabela indicam que as mulheres apresentaram uma maior intenção
de revelação de si para amigas do que para amigos nas situações face a face.
Observando-se a Tabela 1, percebe-se que, no que se refere ao assunto
“personalidade”, as mulheres apresentaram uma maior intenção de revelação de si
para amigas do que para amigos nas situações face a face. Por sua vez, os homens
mostraram uma disposição a revelar mais da sua personalidade em chats para mulheres
do que para outros homens. Além disso, nas situações de chat, os homens apresentaram
maior nível de intenção de revelação de aspectos da personalidade do que as mulheres
quando o interlocutor (alvo) era uma mulher. Note-se que, para interlocutores do sexo
masculino, a disposição para revelação de homens e mulheres em chats foi igual.
Em relação ao tema “dinheiro”, as mulheres apresentaram uma maior intenção de
revelação de si para amigas do que para amigos nas situações face a face. Quando
comparados às mulheres, no entanto, os homens declararam disposição de revelar
mais de si mesmos para amigos em situações face a face (no que se refere a dinheiro).
Por fim, quanto ao assunto “opiniões”, verificou-se que as mulheres declararam
uma disposição a revelar mais suas opiniões para amigas do que para amigos nas
situações face a face. Já os homens pontuaram mais alto na intenção de revelação de
opiniões para amigos (em situação face a face) do que as mulheres.
Discussão
Um dos objetivos desta pesquisa foi verificar se jovens universitários perceberiam
o contexto virtual (chats) como mais propício à revelação de si do que o contexto presencial
(ou o contrário). Nesse sentido, houve uma convergência nos resultados: para todas as
áreas de revelação e para ambos os sexos os participantes mostraram maior intenção de
revelação de si no contexto presencial. Tal constatação indica que os jovens universitários
preferem os contatos face a face aos virtuais para exporem aspectos de sua intimidade
aos outros. Portanto, embora alguns autores considerem que o ambiente virtual facilitaria
a auto-revelação (Merkle & Richardson, 2000; Schnarch, 1997; Suller, 1999), os resultados
desta pesquisa sugerem o contrário, ou seja, os jovens não se mostraram mais dispostos
à revelação no ambiente virtual do que no presencial. Deve-se considerar, é claro, que
neste estudo foi investigada a intenção de revelação de si, e não a freqüência ou
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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intensidade real de comportamentos auto-revelatórios. Além disso, a maioria dos
participantes deste estudo não eram usuários costumazes de chats. Em função disso,
sua reticência em relação à revelação nas salas de bate-papo pode ser um reflexo da falta
de familiaridade dos participantes com esse ambiente. É possível que, com o uso dos
chats, as pessoas passem a se sentir mais à vontade para revelar aspectos de si mesmas
na rede, à medida em que vão explorando essa nova maneira de se relacionar com os
outros e, possivelmente, experimentando conseqüências pessoais positivas desses
encontros (por exemplo, perceber que chamam a atenção de alguém, que são capazes de
manter uma conversa interessante com desconhecidos, que podem conhecer novas
pessoas e criar amizades etc).
Contudo, o fato de os participantes terem demonstrado preferência pelo ambiente
presencial para a revelação de si é um resultado que enseja reflexão. Por um lado, como
mencionado anteriormente, ele pode indicar que existe uma atitude de temor frente aos
riscos que os contatos via Internet representam, e tal atitude precavida pode fazer com
que muitas pessoas, ainda que justificadamente, acabem não explorando as
potencialidades dessa modalidade de contato interpessoal. Existe, de fato, um discurso
presente na mídia que patologiza e alerta para os perigos do uso da Internet, ao ponto
em que até mesmo usuários que possuem uma experiência positiva com o uso da rede
adotam estratégias de distanciamento, relativização e desqualificação bem-humorada
para lidar com a discrepância percebida entre as suas práticas e esse discurso (Nicolacida-Costa, 2002).
Por outro lado, porém, a preferência pelo ambiente presencial como contexto
para a auto-revelação também pode estar mostrando que a revelação de si, se for
entendida como um processo psicológico que visa o estabelecimento de intimidade
e a criação de um elo afetivo, só adquire um significado pessoal mais relevante
quando o interlocutor é reconhecido como alguém importante para aquele que está
se revelando. Assim, pode-se questionar a idéia de que o anonimato possibilitado
pela Internet seria um fator facilitador da revelação de si e que ajudaria no
estabelecimento de relacionamentos mais autênticos ou maduros. Os chats, com
certeza, possibilitam um aumento na quantidade de contatos que os indivíduos
conseguem estabelecer. No entanto, a qualidade destes contatos, no que diz
respeito à revelação de si, talvez seja baixa quando comparada à qualidade dos
contatos presenciais; neste estudo, pelo menos, os participantes não pareceram
dispostos a revelar-se mais nos contatos virtuais com pessoas desconhecidas do
que com pessoas conhecidas em contextos face a face. De fato, muitas pessoas
talvez vejam as salas de bate-papo da Internet essencialmente como um espaço
lúdico e de exploração, e não como um ambiente no qual poderão se auto-revelar e
assim estabelecer relacionamentos interpessoais significativos. Nesse sentido, a
Internet funcionaria como uma espécie de laboratório social no qual as pessoas
podem explorar e experimentar diferentes versões de si mesmas, graças ao relativo
anonimato dos usuários e aos seus diversos recursos comunicacionais (Bargh,
Mckenna & Fitzsimons, 2002), mas não seria um espaço de construção de
intimidade. Conclusões similares foram obtidas por Dias (2003) em um estudo com
adolescentes, no qual observou que os jovens na rede buscavam principalmente
30
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
lazer e diversão, e não o estabelecimento de relações significativas, nas quais
informações verdadeiras acerca do eu são fundamentais.
Além de investigar diferenças entre os ambientes virtual e real no que diz
respeito à auto-revelação, este estudo também procurou verificar se tais diferenças
dependeriam do assunto revelado e do sexo do interlocutor, bem como possíveis
diferenças relacionadas ao gênero. Nesse sentido, as mulheres mostraram-se mais
dispostas à revelação de si em contextos face a face com amigas do que com amigos,
em cinco das seis áreas de revelação. Já os homens mostraram igual disposição de
revelação para amigos homens e amigas mulheres, quando em contextos presenciais.
Tal resultado é coerente com as expectativas sociais de que as mulheres compartilhem
mais seus sentimentos, falem mais de si e que ouçam mais os outros, expectativas
estas verificadas em alguns estudos que tratam da auto-revelação em ambientes
presenciais e virtuais (por exemplo, Foubert & Sholley, 1998; Radmacher & Azmitia,
2006; Whitty, 2002).
Assim, é compreensível que mulheres tenham indicado preferir conversar mais
(ou estimem conversar mais) com outras mulheres do que com homens, ainda que
amigos. Por sua vez, os homens não parecem ter uma preferência de gênero na revelação
de si presencial. Talvez se pudesse esperar que os homens apresentassem uma maior
disposição de revelação aos amigos em contextos face a face, dado que o círculo de
amizades dos homens tende a ser composto também por homens em sua maioria.
Porém, em contraste com o resultado observado entre as mulheres, a ausência de
diferenças em função do alvo da revelação sugere que os homens talvez confiem mais
no sexo oposto para falarem de si do que as mulheres, possivelmente por perceberem
nestas uma maior receptividade à sua revelação.
Esta última hipótese parece ser válida também para explicar o fato de os homens
terem exibido uma maior intenção de revelação de aspectos da personalidade para
mulheres do que para outros homens, nos chats. Além disso, observou-se uma diferença
de gênero na intenção de revelação quando o alvo da revelação era uma mulher no
chat, com os homens demonstrando maior disposição à auto-revelação do que as
próprias mulheres. Estes são resultados interessantes, pois sugerem que as salas de
bate-papo podem estar sendo vistas pelos homens como uma oportunidade de revelarse de um modo mais autêntico com alguém do sexo oposto do que as mulheres (embora
o contato face a face seja preferido). Deve-se notar que a dimensão de auto-revelação
chamada “personalidade” trata de conteúdos que dizem respeito mais diretamente aos
sentimentos e à identidade pessoal, temas que muitos homens talvez sintam dificuldade
em expressar para outras pessoas, em virtude dos estereótipos culturais. O fato de os
homens se mostrarem mais dispostos a falar de sua personalidade em chats para
mulheres desconhecidas faz pensar que no ambiente virtual os homens podem se
sentir menos preocupados em causar uma boa impressão baseada na imagem pessoal,
e assim revelam aspectos do seu eu que não se sentiriam à vontade para revelar em um
contexto presencial. Uma vez que se trata de um tema que não é considerado
popularmente “conversa de homem”, compreende-se o interesse dos homens em poder
falar sobre estes aspectos de si mesmos com mulheres, supostamente mais receptivas
a estes assuntos.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
31
Não se pode esquecer, no entanto, que os resultados desta pesquisa mostraram
que a intenção de revelação no contexto presencial foi maior do que no virtual.
Assim, embora os chats tenham sido percebidos como um ambiente diferenciado
de revelação de aspectos da personalidade em homens (uma vez que neste ambiente
houve a preferência por um interlocutor do sexo oposto), tal tipo de revelação
anônima não parece substituir ou ser mais importante do que a revelação face a
face. É possível, também, que a forma ou mesmo a profundidade ou grau de
sinceridade acerca daquilo que é revelado sobre a personalidade seja diferente
nos contextos presencial e virtual. Esta é uma questão que merece ser melhor
investigada em estudos futuros.
Outras diferenças entre homens e mulheres também foram observadas nas áreas
dinheiro e opiniões, mas apenas na situação de revelação para amigos em contextos
face a face. Em ambos os casos os homens mostraram uma intenção de revelação
nessas áreas maior do que as mulheres. Isso sugere que esses temas são mais salientes
para os homens em seus encontros presenciais com outros homens, indicando uma
certa “superficialidade” de conteúdo na auto-revelação masculina face a face, ao menos
quando comparada à auto-revelação feminina. De fato, algumas pesquisas mostram
que os homens, na auto-revelação, focalizam mais os aspectos externos ou visíveis
das suas identidades (como atividades realizadas), enquanto mulheres descrevem a si
mesmas privilegiando mais os aspectos íntimos do si mesmo (Hogdson & Fischer,
1979; Radmacher & Azmitia, 2006). Cabe ressaltar, contudo, que para ambos os sexos
e nos dois contextos de revelação (presencial e virtual) os temas com escores mais
altos de intenção de revelação foram “gostos e interesses” e “opiniões”, o que mostra
que tanto homens quanto mulheres tendem a revelar mais de si mesmos em assuntos
menos íntimos, como seria de se esperar, uma vez que é necessário o estabelecimento
de uma certa intimidade entre os interlocutores para que ocorra a auto-revelação de
assuntos mais pessoais (Whitty, 2002).
Em síntese, os resultados desta pesquisa sugerem que a Internet não é percebida
por muitos jovens como um espaço privilegiado de auto-revelação (ao menos nos
chats), quando comparada às possibilidades de revelação presenciais. Esse resultado
instiga o desenvolvimento de novas pesquisas que investiguem qual o lugar que a
comunicação via rede possui na vida das pessoas, pois ele contrasta com os resultados
de outras pesquisas que sugerem uma maior auto-revelação dos sujeitos na Internet
(Bargh, Mckenna & Fitzsimons, 2002; Mckenna, Green & Gleason, 2002; Suller, 1999).
Como comentado antes, talvez a discrepância observada deva-se ao fato de que os
participantes deste estudo não estavam habituados ao uso da rede. Caso fossem
usuários costumazes de chats é possível que o padrão de resultados fosse outro. No
entanto, fica em aberto a questão: por quê algumas pessoas mostram-se mais
dispostas a se revelar na rede e outras não? É razoável supor que indivíduos que
declaram baixa disposição para revelação de si na Internet em comparação aos
contextos presenciais, como se observou neste estudo, provavelmente não buscarão
ativamente os chats com o intuito de estabelecerem relações de intimidade que
impliquem auto-revelação. Então, o que faz com que alguns procurem esse tipo de
32
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
relação? Existem características pessoais prévias ao uso dos chats que explicam
esse comportamento? Algumas pesquisas têm sugerido que indivíduos ansiosos e
solitários valorizam algumas características da comunicação mediada por computador,
como a controlabilidade e a reciprocidade (Morathan-Martin, 1999; Morathan-Martin
& Schumacher, 2003; Kraut e cols., 1998; Peter & Valkenburg, 2006). Outras variáveis
pessoais, como traços de personalidade, podem ser incluídas em pesquisas futuras
a fim de enriquecer a compreensão acerca dos fatores que afetam a auto-revelação
na Internet. Além disso, nesta pesquisa focalizou-se especificamente as salas de
bate-papo como ambiente de encontro e relações interpessoais. Todavia, existem
outras formas de comunicação via rede (correio eletrônico, instant messaging etc)
que possuem características diferentes dos chats, cujos efeitos na auto-revelação
também merecem ser estudados.
Da mesma forma, merecem aprofundamento as questões de gênero implicadas na
revelação de si no ambiente virtual. Este estudo mostrou que os homens, mais do que
as mulheres, parecem que podem se beneficiar do anonimato da rede, especialmente
quando se trata de revelar aspectos de suas personalidades para mulheres. Contudo,
esta suposição de algum benefício é especulativa, pois as razões que levaram os
sujeitos a relatar uma maior disposição à revelação não foram investigadas nesta
pesquisa. Assim, são necessários novos estudos, inclusive qualitativos, que focalizem
as crenças que homens e mulheres têm sobre a comunicação através de chats, bem
como as motivações que levam os indivíduos a procurar (ou não procurar) esse tipo de
comunicação interpessoal.
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Recebido em janeiro de 2007
Aceito em janeiro de 2008
Ana Cristina Garcia Dias: psicóloga; doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento (USP/SP);
professora do Curso de Psicologia da UFSM – Santa Maria.
Marco Antônio Pereira Teixeira: psicólogo; doutor em Psicologia do Desenvolvimento Humano (UFRGS);
professor do Curso de Psicologia da UFRGS – Porto Alegre.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Aletheia 27(1), p.36-50, jan./jun. 2008
Recordação autobiográfica: reconsiderando
dados fenomenais e correlatos neurais
Gustavo Gauer
William Barbosa Gomes
Resumo: Investigações recentes sobre memória humana têm retomado a relevância dos dados
fenomenais da experiência consciente de recordar. Essa tendência tem encontrado aceitação
sobretudo no estudo da memória autobiográfica. Neste trabalho são revisadas soluções
metodológicas adotadas no estudo de correlatos neurais desses processos. São apresentados
dois modelos explicativos dos fenômenos da memória autobiográfica: o modelo de monitoramento
de fonte e o modelo de processos componentes. No monitoramento de fonte, qualidades do
estado de recordação determinam os julgamentos concernentes ao evento e à lembrança. Em
contraste, o modelo de processos componentes não requer uma ordem serial para esse
processamento, a percepção das qualidades e os julgamentos podendo ocorrer paralelamente.
Argumenta-se que os dois modelos convergem por enfatizar os processos conscientes característicos da recordação. No contexto desses estudos constitui-se uma fenomenologia experimental, definida como o estudo empírico e sistemático de dados da experiência fenomenal, tomados
como correlatos de processos cognitivos subjacentes.
Palavras-chave: memória autobiográfica, recordação, fenomenologia, neurociências.
Autobiographical recollection: Reconsidering phenomenological data
and neural correlates
Abstract: Recent inquiries on human memory have recovered the relevance of phenomenal data
in understanding recollection. This trend has been consistent especially in autobiographical memory
research. This study reviews some recent methodological approaches to the relationship between
those processes and their neural correlates. Additionally, we review two frameworks for
investigating autobiographical memory: source monitoring and component processes. In source
monitoring, qualities of recollection determine judgments concerning the event and the memory
itself. In contrast, the component process framework imposes no serial order for those processes,
accepting that perception of qualities and judgments may occur in parallel. We argue that both
models converge in stressing the implicit processes of recollection. Finally, both frameworks are
ascribed to a common approach to the phenomenal qualities of experience. In that sense, they
constitute an experimental phenomenology, understood as systematic empirical inquiry into
conscious experience, with phenomenal data as correlates of implicit cognitive processes.
Key words: Autobiographical memory; recollection; phenomenology; neuroscience.
Introdução
A investigação dos fenômenos de recordação de eventos pessoais baseia-se
grandemente em relatos da experiência consciente. Tais relatos se caracterizam por
articular um conjunto de qualidades, entre as quais: a revivência da experiência passada
original; a imaginação em múltiplas modalidades; a recuperação de pensamentos e
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
afeto da experiência original; a atribuição de lugar e tempo específicos; e a crença de
que o evento original foi efetivamente experimentado (Greenberg & Rubin, 2003). A
crença de que o evento original realmente ocorreu é baseada em atributos e conteúdos
da memória, e em marcadores fenomenais de passado. Especialmente no caso das
memórias pessoais, a descrição dos aspectos fenomenais que acompanham uma
determinada tarefa cognitiva pode colaborar com a explicação das habilidades
investigadas da mesma forma que a identificação das regiões cerebrais ativadas durante
as tarefas tem ajudado a explicar os respectivos sistemas cognitivos (Brewer, 1995).
Dados de qualidades fenomenais da experiência de lembrar clarificam o papel das
características de memórias na identificação da sua origem, no julgamento da sua
realidade, e na influência seletiva do tempo e do ensaio sobre a manutenção de memórias
de eventos pessoais (Johnson, 1988).
Entende-se por memória autobiográfica a recuperação de eventos específicos na
história de vida de uma pessoa (Rubin, 1998). Esse processo vem sempre acompanhado
de um estado subjetivo denominado de recordação consciente, característico da memória
autobiográfica em contraste com outros processos de memória (Greenberg & Rubin,
2003). As experiências pessoais relevantes constituiriam um repertório de eventos com
significados pessoais, considerando que nem todos os eventos que aconteceram e
acontecem com um indivíduo fazem parte da autobiografia dele. A história de vida em que
consiste a autobiografia é composta por alguns eventos pessoais – aspecto episódico
da memória – mas apenas por alguns deles, selecionados por terem significado pessoal
– aspecto semântico da memória (Dall´Ora, Della Sala & Spinnler, 1989).
O fato de a memória autobiográfica ser definida pela presença de um estado
consciente específico coloca desafios metodológicos importantes, sobretudo para o
seu mapeamento em modelos neurocognitivos. Existem pelo menos três níveis de
evidência relevantes à modelagem de processos cognitivos: o comportamental, o anatomofisiológico, e o fenomenal/experiencial. A evidência comportamental é amplamente
reconhecida nas práticas da pesquisa experimental em psicologia cognitiva. Trata-se de
evidência diretamente observável e quantificável, aferida na forma de medidas de
desempenho na tarefa - tradicionalmente tempo de reação e proporção de acertos.
A aceitação do segundo nível, da evidência neural, tem conhecido um grande
crescimento em virtude dos avanços tecnológicos em técnicas de neuroimagem
funcional. São indicadores diretos de processos biológicos claramente observáveis
durante o desempenho em tarefas cognitivas. Eles são passíveis de observação direta
e quantificação, e apresentam a vantagem de uma representação gráfica de forte apelo.
Assim, as áreas do Sistema Nervoso Central (SNC) são identificadas como correlatos
neurais dos processos cognitivos engajados quando da realização de tarefas de
conhecimento, por exemplo codificação, armazenamento e recuperação de informação
na memória.
Por sua vez, os dados fenomenais, aqueles relatados pelo indivíduo sobre sua
experiência com uma tarefa, durante ou após a execução da mesma, são vistos com
reservas por muitos pesquisadores. Pesquisadores refratários ao uso de evidência
fenomenal argumentam que esses dados, coletados através de técnicas de introspecção,
não atendem a critérios metodológicos de quantificação e fidedignidade (Jack &
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Roepstorff, 2002). Tem-se então a tradicional rejeição, em várias tradições de pesquisa
psicológica, da experiência de primeira pessoa. As justificativas são conhecidas: a
experiência em primeira pessoa é mediada pela linguagem sofrendo os sobressaltos
das nuanças semânticas e sendo ainda influenciada por intenções e expectativas do
pesquisador e do participante, comprometendo a interpretação do dado (Jack &
Roepstorff). Até aqui nenhuma novidade para aqueles que reconhecem a importância
dos dados fenomenais e já se acostumaram com o descaso para essa classe de evidência
em estudos psicológicos. A grande novidade é que a situação começa a mudar, não por
influência dos pesquisadores da fenomenologia qualitativa, mas pelo reconhecimento,
por psicólogos experimentais, das limitações dos níveis comportamentais e anatomofisiológico para a compreensão e explicação da memória autobiográfica. As qualidades
fenomenais têm sido ressaltadas em estudos experimentais dos processos cognitivos
associados à memória autobiográfica (Brewer, 1995; Johnson, 1988; Johnson, Hashtroudi
& Lindsay, 1993; Rubin, 1998; Rubin, Schrauf & Greenberg, 2003; Tulving, 1983;
Wheeler, Stuss & Tulving, 1997) e aos fenômenos de recordação (Berntsen, Willert &
Rubin, 2003; Rubin, Feldman & Beckham, 2004).
O objetivo do presente estudo é apresentar uma nova modalidade de fenomenologia
experimental que vem articulando com sucesso a introspecção e a quantificação das
qualidades fenomenais. Tal movimento, inicialmente postulado por Johnson (1988),
atualiza-se em iniciativas como a da neurofenomenologia, que mais recentemente procura
soluções de articulação entre dados comportamentais e fenomenais com evidência
anatomo-fisiológica na modelagem de processos cognitivos (Lutz & Thompson, 2003).
A presente exposição está organizada em quatro partes. A primeira analisa quatro estudos
recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais. A segunda
traz dois modelos para o estudo experimental de qualidades fenomenais da experiência
de recordação: 1) monitoramento de fonte (Johnson e cols., 1993) e 2) processos
componentes (Rubin, 1998). A terceira analisa as convergências e divergências dos dois
modelos apresentados, destacando as contribuições e limites para o desenvolvimento
da fenomenologia experimental. Por fim, a quarta parte define e justifica o uso do termo
fenomenologia experimental para estudos de memória que articulam os níveis
comportamentais, anatomo-fisiológicos e fenomenais.
Articulações de evidências comportamentais, neurais e fenomenais
A consciência autonoética é a principal propriedade definidora da memória
autobiográfica (Greenberg & Rubin, 2003). O termo noética foi usado no passado para
se referir ao estudo das leis fundamentais do pensamento, entre as quais se destacam a
identidade e a contradição. Por proximidade, cabe lembrar que o termo noético refere-se
à atividade intelectual e tem sido usado por autores de tradição fenomenológica como
relativo à noese. A fenomenologia de Husserl recorreu aos termos noese e noema para
diferenciar o ato do objetivo visado pelo pensamento: a experiência é composta não
apenas pela consciência do seu conteúdo – aspecto noemático – mas também pelo
conhecimento tácito, da própria consciência como processo em andamento – aspecto
noético (Ferrater-Mora, 1979; Lutz & Thompson, 2003). Essa distinção, embora não seja
peculiar aos estudos experimentais da memória, ajuda a contextualizar a presente revisão
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
e a especificar o uso do termo fenomenal. Em resumo, pode se dizer então que a consciência
autonoética é o senso de estar revivendo o evento, incluindo a crença de que ele realmente
aconteceu da forma como está sendo lembrado, e a capacidade de contextualizá-lo no
tempo e no espaço (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997).
A demarcação da consciência autonoética, que é um dado fenomenal referente a
uma experiência em primeira pessoa, tem sido operacionalizada nos termos de um
julgamento sobre o caráter do conhecimento da memória que está sendo recuperada,
conhecido como “lembrar versus saber”. Se efetivamente “lembramos” do evento,
temos um estado autonoético, e trata-se de uma memória autobiográfica. Por outro
lado, se apenas “sabemos” que o evento aconteceu, o estado é considerado noético,
e a informação recuperada é de caráter semântico (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997).
Ainda que uma informação semântica recuperada possa ser referente a um evento
pessoal, é somente na presença da consciência autonoética se pode afirmar que há
recuperação de uma memória autobiográfica. O ponto de partida da presente exposição
é o modo como tal problema metodológico vem sendo encaminhado em estudos
experimentais da memória autobiográfica. Passaremos então à análise de quatro estudos
recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais.
O primeiro exemplo é o estudo de Greenberg e cols. (2005), que identificou a coativação da amídala, hipocampo e giro frontal inferior durante a recordação
autobiográfica. A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira etapa, solicitavase aos participantes que recuperassem 50 memórias autobiográficas e indicassem pistas
para que cada uma delas pudesse ser evocada posteriormente. Como pistas, podiam
ser usadas algumas palavras ou mesmo uma sentença descritiva do evento. Cada
memória recuperada era avaliada pelo participante, usando para tanto o Questionário
de Memória Autobiográfica (QMA). O QMA contemplava uma série de aspectos
fenomenais da experiência de recordação, como veremos adiante neste artigo. Na
segunda etapa, os participantes eram submetidos aos procedimentos de escaneamento
de Ressonância Magnética Funcional (RMF), quando eram apresentadas a eles as
pistas por eles geradas sobre suas próprias memórias, as quais deveriam reconhecer
como eventos pessoais (conhecimento episódico). Essas pistas autobiográficas eram
entremeadas por descrições conceituais, às quais deveriam responder citando exemplos
das categorias (conhecimento semântico). Os resultados que diferenciaram as duas
situações apontaram para ativações, predominantamente lateralizadas no hemisfério
esquerdo (HE), de amídala, hipocampo e giro frontal inferior. Os autores ressaltam que
a validação dos dados de ativações neurais em conjunto com a análise da tarefa como
efetiva recordação autobiográfica é possível somente mediante os dados de
propriedades fenomenais aferidos através do questionário.
O segundo exemplo é o estudo de Cabeza e cols. (2004) sobre a atividade cerebral
durante evocação episódica de eventos autobiográficos. Nesse experimento, os
participantes utilizaram câmeras digitais para fotografar pontos específicos do campus
universitário. A seguir, os pesquisadores recolhiam as fotografias de todos os
participantes. As fotografias eram então embaralhadas e a reapresentadas aos
participantes para reconhecer que fotos foram tiradas por eles ou por outros. Procediase à tarefa de reconhecimento no scanner do RMF. Foi possível então comparar
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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reconhecimentos verdadeiros e falsos de itens “autobiográficos” – expostos no
contexto natural – e itens-controle, apresentados na situação de laboratório. Os
resultados mostraram uma ativação mais intensa em regiões associadas a
processamento-autoreferente (córtex pré-frontal medial), memória visual/espacial
(regiões corticais parahipocampais e visuais), e recordação episódica (hipocampo). É
interessante notar neste experimento como a situação foi manipulada para poder
alcançar os dados fenomenais. Em primeiro lugar, criou-se uma situação em que a
recordação de eventos pessoalmente vivenciados pudesse ser comparada, em termos
de acuidade da recuperação e controle de variáveis durante a codificação e recordação
de outros itens. Note-se que no caso deste estudo não houve uma produção de dados
de introspecção propriamente ditos. Contudo, a evidência fenomenal foi
operacionalizada em termos do desemepnho na prova de reconhecimento: o
reconhecimento correto da fotografia “autobiográfica” foi a medida da existência do
processo de consciência autonoética.
O terceiro exemplo é o estudo de Kahn, Davachi e Wagner (2004) sobre os
correlatos funcionais-neuroanatômicos da recordação. Este paradigma procurou
controlar, na situação de reconhecimento, a presença do estado de recordação
(episódica) e ausência do mesmo (fonológica). Participantes estudaram uma lista de
adjetivos em duas condições de processamento. Em metade dos itens, a ordem da
tarefa foi “episódica”: criar uma imagem mental de uma cena relacionada ao adjetivo.
Na outra metade, a ordem foi “fonológica”: recitar a palavra de trás para diante. No
scanner de RMF, os participantes responderam se os itens apresentados estavam na
lista ou não, e se foram estudados na condição fonológica ou episódica. Na tarefa de
decidir pela condição de estudo, independente da condição original em si, os resultados
apontaram para múltiplas regiões do córtex pré-frontal (CPF) esquerdo,
convencionalmente ligadas a processos de controle de recuperação. Por outro lado,
ativações diferenciadas foram encontradas entre reconhecimento com recordação
(regiões parahipocampais, bilateralmente) e conhecimento sem recordação (regiões
pré-motoras posteriores ventrolaterais no HE), o que foi identificado pelos autores
como um efeito de recapitulação.
Por fim, o estudo de Piolino e cols. (2004), utilizando Tomografia por Emissão de
Pósitrons (TEP), procurou identificar regiões cerebrais envolvidas na recuperação de
memórias autobiográficas recentes (menos de um ano desde o evento) e remotas
(cinco a dez anos). Esperava-se mudanças na experiência fenomenal de recordação de
eventos pessoais com o aumento do intervalo de armazenamento, traduzida em dois
julgamentos: mudança no ponto-de-vista de campo (perspectiva de primeira pessoa
na cena) para observador (perspectiva de terceira pessoa), e mudança no julgamento
de “lembrar” do evento (experimentando um estado de recordação consciente) para
“saber” do evento (conhecimento da informação do evento sem recordação consciente).
No scanner, os participantes foram instruídos a mentalmente reviver episódios pessoais
e posteriormente relatá-los em voz alta. Os resultados indicaram ativação em comum –
tanto memórias remotas quanto recentes – em uma rede lateralizada no HE, extensa
porém com grande concentração de estruturas do CPF. Quanto aos aspectos
fenomenais das recordações, eventos recentes apresentaram-se com imagens mentais
40
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
mais vívidas em detalhes, e acompanhados de um senso de consciência autonoética
mais acentuado do que eventos remotos.
A apreciação deste conjunto de estudos demonstra um esforço em identificar os
correlatos neurais dos processos de recordação autobiográfica. Dois aspectos
principais podem ser ressaltados nesta análise. Primeiro, uma relativa concordância
em torno das estruturas e circuitos cerebrais correlacionados com as tarefas de
recordação. Segundo, a recentidade desta linha de investigação. Esta recentidade,
embora possa ser provocada por um desleixo histórico pelo fator experiencial na
explicação de processos cognitivos e psicológicos em geral (Jack & Roepstorff, 2002;
Tulving, 1983), demonstra que o interesse e o reconhecimento da importância deste
tipo de dado vêm crescendo a ponto de instigar a comunidade de pesquisadores a
desenvolver paradigmas especificamente voltados a possibilitar a correlação entre
dados neurais, comportamentais, e fenomenais.
No sentido desses desenvolvimentos, Jack e Roepstorff (2002) advogam pela
atenção à evidência fenomenal aferida através de protocolos e relatos de introspecção
na explicação de processos cognitivos. Os dados diretamente observáveis e aceitos
como fonte de evidência na pesquisa cognitiva – comportamental e anatomofisiológico
– têm sido cruciais para a formulação de modelos cognitivos de processos psicológicos.
Os autores argumentam que a correlação entre dados neurais e comportamentais,
embora tradicionalmente aceita desde os avanços nas técnicas de neuroimagem, baseiase num procedimento que acaba demonstrando-se sujeito a julgamento relativamente
subjetivo, a análise de tarefa (task analysis). É por meio da análise de tarefa que um
pesquisador definirá qual processo cognitivo está em funcionamento quando se
observa uma determinada resposta comportamental, concomitantemente à ativação de
determinadas regiões cerebrais. Essa definição, que estabelece que uma área do SNC
é a “sede” de um processo cognitivo, baseia-se em uma premissa que não é plenamente
consensual no âmbito das neurociências. A premissa é de que um padrão de ativação
de estruturas cerebrais depende de qual módulo cognitivo está ativo naquele momento,
ou seja, a correlação é direta e causal entre ativação do substrato neural e processamento
cognitivo. O problema é que a correlação entre os processos cognitivos envolvidos e
a ativação cerebral depende do modelo de processamento cognitivo de que se trata, se
paralelo ou serial. A idéia de processamento serial é tradicionalmente aceita em psicologia
cognitiva, em virtude do modelo computacional corrente em que representações são
transmitidas e transformadas de um módulo para outro de forma sequencial. Por exemplo,
a divisão clássica de Atkinson e Schiffrin da memória em três armazenamentos –
sensorial, curto e longo prazo – prevê um fluxo de informação serial, de uma estrutura
para a outra, e de volta. Por outro lado, alguns autores têm apontado para a existência
de processos em paralelo, conformando um modelo de processos componentes
(Roediger, Buckner & McDermott, 1999; Rubin, 1998).
Como exemplo de papel crítico que os dados de relatos fenomenais podem exercer
nesse contexto, os autores citam o problema das funções do córtex pré-frontal. Com
base apenas na lógica de análise de tarefa, diversos estudos identificaram inúmeras
funções para essas regiões, chegando-se a ponto de se considerar ser impossível
distinguir quais as suas funções específicas (Jack & Roepstorff, 2002). Na realidade, o
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
41
que acontece é que qualquer tarefa que visa a avaliar desempenho cognitivo ativa, em
certa medida, áreas do córtex pré-frontal, simplesmente porque a execução delas envolve
planejamento e controle cognitivo e comportamento direcionado a metas, em outras
palavras, funções executivas. Uma solução para este problema é o método subtrativo.
As áreas somente podem ser identificadas como efetivos correlatos dos processos de
interesse na medida em que, das ativações durante a tarefa que caracteriza o processo,
forem subtraídas as ativações de uma tarefa de comparação, muito próxima daquela,
porém diferenciada num aspecto crítico que caracterize o processo de interesse. Por
exemplo, no estudo de Cabeza e cols. (2004), a diferença crucial entre as respostas
possíveis era o acerto no processamento auto-referente quando do reconhecimento
da fotografia tirada por si mesmo, visto que, de resto os estímulos visuais, bem como
os processos de recuperação episódica eram rigorosamente equivalentes. Daí a
importância de uma atenta operacionalização da evidência fenomenal que define o
processo de memória autobiográfica, como se verificou nesse e nos outros estudos de
neuroimagem que analisamos.
As características do funcionamento do córtex pré-frontal estão entre os
correlatos neurais cujo estudo mais pode se beneficiar da análise de dados fenomenais.
Como exemplos de funções mais bem compreendidas com a análise de dados fenomenais
provenientes de roteiros e relatos, podem ser lembrados o uso de metas e estratégias
metacognitivas em comportamento executivo, memória de trabalho e resolução de
problemas; o pensamento com recurso a representações na forma de imagens mentais;
processos temporais e relação figura/fundo em tarefa atencionais; além das próprias
capacidades de memória autobiográfica, e seus processos componentes, desde a
codificação, retenção e recuperação, até o senso fenomenal de recordação consciente
que caracteriza este em contraste com outros tipos de memória. Por fim, Jack e Roepstorff
(2002) ressaltaram a importância do uso de evidência introspectiva, sistematicamente
aferida na forma de relatos em que os participantes categorizam ou avaliam aspectos
específicos da sua experiência. Tais evidências prestam-se à análise estatística e a
procedimentos de controle fundamentais ao mapeamento por neuroimagem, tornandose muito úteis para a explicação das funções cognitivas mais complexas.
Modelos utilizados na pesquisa de qualidades fenomenais da experiência de
recordação
Paralelamente ao avanço dos estudos de neuroimagem, dois modelos vêm se
destacando no campo da pesquisa de qualidades fenomenais de recordação com base
em dados comportamentais e introspectivos: monitoramento de fonte e processos
compomentes. O modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a
função das características fenomenais (contextuais e perceptuais) de memórias na
realização de julgamentos cognitivos sobre a realidade do evento e sobre a fonte da
lembrança (Johnson & cols., 1993). Em contrapartida, o modelo de processos
componentes tem enfatizado a relação entre características fenomenais da consciência
autonoética e diversos processos cognitivos relacionados a memórias de diferentes
tipos de eventos pessoais, especialmente memórias vívidas (Rubin, 1998). Esses
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modelos não são radicalmente discordantes, mas mantêm peculiaridades quanto à
classificação de processos fenomenais, quanto à precedência causal da explicação, e
quanto à caracterização de um estado distinto de consciência autonoética. A seguir,
passa-se ao exame dos respectivos modelos.
Modelo de Monitoramento de Fonte (MMF)
O modelo de monitoramento de fonte, proposto por Johnson e colaboradores,
procura dar conta dos processos envolvidos na realização de julgamentos sobre a
origem de memórias, conhecimento e crenças (Johnson, 1988; Johnson, Foley, Suengas
& Raye, 1988; Johnson & cols., 1993). Em termos de eventos específicos, o termo
“fonte” se refere às condições em que a memória foi adquirida. Essas condições incluem
os contextos espacial, temporal e social do evento; e o meio e a modalidade através
dos quais o indivíduo recebeu a informação. Características qualitativas, ou
fenomenais, que configuram a fonte de uma determinada memória incluem informação
perceptual, contextual e afetiva, detalhamento semântico, e operações cognitivas –
por exemplo, registros de elaboração e recuperação prévia daquela memória. Esse
conjunto de características que memórias autobiográficas apresentam são a base a
partir da qual sujeitos fazem discriminações sobre a efetiva realidade dos eventos,
como no caso de discernir memórias de pensamentos e imagens das memórias de
eventos efetivamente percebidos; e sobre a fonte da informação, diferenciando entre
várias possíveis fontes sensoriais e racionais, internas e externas. Em resumo, entendese que a classificação que fazemos de eventos como reais ou imaginários, internos ou
externos, resulta de processos de atribuição ou julgamento baseados em qualidades
fenomenais e subjetivas da experiência (Johnson). Dessa forma, o modelo enfatiza a
utilidade de se examinar características fenomenais de memórias de eventos complexos
a fim de compreender a natureza do processo de recordação (Johnson e cols., 1988). O
modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a função das
características fenomenais de memórias na realização de julgamentos cognitivos sobre
a realidade do evento e sobre a fonte da lembrança (Johnson e cols., 1993). Estudos
nessa linha têm levantado evidências relevantes para o entendimento das relações
entre memória e emoção (D’Argembeau & cols., 2003; Schaefer & Philippot, 2005), e
entre a presença de informações perceptuais/contextuais e o discernimento entre
eventos reais (percebidos) e imaginados (Destun & Kuiper, 1999; Johnson & cols.,
1988; Kealy & Arbuthnott, 2003). A emoção é definida como a força afetiva que agrega
significado a um determinado evento na forma de marcador somático (Damasio, 2003;
McGaugh, 2003). Para uma revisão recente sobre a abordagem de memória e emoções
em neurociência cognitiva, recomenda-se o trabalho de LaBar e Cabeza (2006).
O instrumento utilizado em estudos de monitoramento de fonte é o MCQ – Memory
Characteristics Questionnaire, desenvolvido por Johnson e cols. (1988). O MCQ
consiste em 39 questões respondidas em relação a um evento produzido em algum tipo
de tarefa de recordação ou imaginação. Estudos na linha do Modelo de Monitoramento
de Fonte verificaram que eventos reais (percebidos) recentes relacionaram-se a maior
quantidade de informação espacial, detalhes perceptuais, e respostas emocionais
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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(Johnson e cols., 1988). Eventos imaginados, por sua vez, estiveram mais relacionados
a raciocínio do que a vivacidade de imagens. Em outro estudo, Destun e Kuiper (1999)
encontraram eventos prazerosos, tanto reais quanto imaginários, com escores mais
altos no MCQ do que eventos estressantes. D’Argembeau e cols. (2003) compararam
eventos positivos, neutros e negativos, concluindo pela relação entre a emocionalidade
dos eventos e vivacidade do conteúdo perceptual das memórias. As memórias positivas
foram recordadas com maior riqueza de detalhes – mais informação sensorial e contextual
– que as negativas. Eventos positivos também foram mais elaborados, ensaiados e
acessados com maior facilidade. Kealy e Arbuthnott (2003) compararam eventos
percebidos, eventos imaginados livremente, e eventos imaginados de forma guiada
pelos pesquisadores. Eventos percebidos tiveram maiores escores em praticamente
todas as medidas do MCQ.
Modelo de Processos Componentes (MPC)
O Modelo de Processos Componentes (MPC) foi proposto por Rubin e
colaboradores (Greenberg & Rubin, 2003; Rubin & cols., 2003; Rubin & Siegler, 2004;
Talarico & Rubin, 2003) para o estudo da recuperação da memória autobiográfica,
entendida como recordação consciente. O modelo toma as habilidades de memória
autobiográfica como produtos da interação de três grupos de processos componentes:
recordação e crença, processos cognitivos componentes, e propriedades atribuídas a
eventos e memórias. Essas dimensões correspondem a aspectos fundamentais
presentes nas principais definições de memória autobiográfica, memória episódica, e
experiência de recordação, e estão embasadas em dados comportamentais e
neuropsicológicos (Greenberg & Rubin, 2003).
Uma série de sistemas neurocognitivos têm sido identificados como processos
componentes da lembrança autobiográfica, incluindo os processos centrais de
codificação e recuperação: lembrança episódica; imaginação visual, auditiva e espacialmultimodal; emoção; linguagem; e narrativa (Greenberg & Rubin, 2003). Dados
comportamentais indicam que esses componentes formam o conjunto fundamental de
processos necessários para recordar memórias autobiográficas. Também nesse sentido,
evidências de estudos neuropsicológicos apontam que problemas nesses processos,
que têm seus próprios correlatos neurais, causam prejuízos específicos nas habilidades
de memória autobiográfica.
A recordação de eventos passados implica em um estado de consciência
específico que difere dos estados correspondentes à manifestação de outras habilidades
cognitivas e perceptuais. Tal estado, reconhecido como crucial à memória autobiográfica
e que constitui a dimensão de recordação e crença no modelo de Processos
Componentes, corresponde às descrições de Tulving e seus colaboradores sobre a
recordação episódica e a consciência autonoética (Tulving, 1983; Wheeler & cols.,
1997). A dimensão de recordação e crença corresponde ainda de certa forma aos
julgamentos heurísticos referidos no modelo de monitoramento de fonte (Johnson e
cols., 1993). Essa característica permite a um indivíduo distinguir memórias de
percepções, sonhos e fantasias, e assim comportar-se adequadamente à sua realidade
ambiental. Para o modelo, a dimensão de recordação e crença dá conta de qualidades
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
desse estado subjetivo que caracteriza a recordação de eventos únicos do passado:
senso de revivência e de viajar de volta ao tempo do evento original, crença de que o
evento de fato aconteceu como ele é lembrado (dito de outra forma, crença na acuidade
da memória), e senso de lembrar do evento ao invés de apenas saber que ele aconteceu
(julgamento lembrar vs. saber).
A habilidade de recordar, experienciar e relatar eventos autobiográficos implica
em vários processos cognitivos, além da recuperação de informação de vários sistemas
de memória (sobretudo episódica e semântica). Os principais processos componentes
envolvidos na manifestação de memória autobiográfica são aqueles relacionados à
imaginação em diferentes modalidades sensoriais. A recordação autobiográfica também
envolve habilidades de linguagem, pois eventos podem ser lembrados em palavras, em
imagens e em narrativas, desde que eventos podem ser lembrados como histórias
coerentes ou fragmentos desorganizados dos acontecimentos. Ademais, a recordação
autobiográfica inclui muitas vezes a revivência das emoções que o sujeito experimentou
quando do evento original.
O sujeito que recorda pode atribuir aos eventos autobiográficos e às memórias
que a eles se referem, ou que os representam, certas propriedades por meio de
julgamentos meta-cognitivos (Rubin & Siegler, 2004). As propriedades atribuídas a
eventos ou memórias resultam de julgamentos que o sujeito faz com base em informação
referente à memória. Por exemplo, a alta vivacidade das imagens que constituem uma
lembrança pode levar ao julgamento de que o evento é recente, e a coerência da
narrativa dos acontecimentos pode estar relacionada ao fato de se haver ensaiado a
história freqüentemente. Incluem-se entre as propriedades atribuídas: 1) importância
pessoal que o sujeito atribui ao evento, 2) freqüência com que o evento foi ensaiado
(tanto em pensamento quanto em conversação interpessoal), 3) especificidade do
evento (se ele foi único no espaço e tempo, estendido por um período mais longo, ou
se trata-se de uma mescla ou resumo de eventos parecidos) (Rubin e cols, 2003); e 4) a
idade do evento (a estimação pelo sujeito da data em que o evento ocorreu).
Os três processos componentes envolvidos na recordação correspondem aos
três grupos de questões do Autobiographical Memory Questionnaire (AMQ). O
AMQ consiste em um conjunto variável de itens na forma de afirmativas e é usado em
estudos que abordaram aspectos da fenomenalidade da experiência de recordação.
Por exemplo, Talarico e Rubin (2004) exploraram a vivacidade das memórias que
indivíduos tinham da notícia dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 após
diferentes intervalos de tempo, constatando que a característica principal dessas
memórias que se preservava a longo prazo era a confiança na acuidade da memória em
relação ao evento.
Uma das características dos estudos que utilizam o modelo de processos
componentes é o interesse por memórias vívidas ou em lampejo. Essas memórias
duradouras estão associadas a eventos como recebimento de uma notícia importante
ou ao testemunho de um evento de grande impacto (McGaugh, 2003). A importância
emprestada pelo sujeito a esses eventos pode estar relacionada a sua relevância coletiva
e nacional (Brown & Kulik, 1977/2000), ou ao seu significado pessoal (Rubin & Kozin,
1984). Tais fenômenos foram operacionalizados por Kirkegaard-Thomsen e Berntsen
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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(2003) num conjunto de cinco características, a saber: 1) vivacidade da memória; 2)
presença de detalhes dos aconteciementos originais; 3) importância pessoal atribuída
ao evento; 4) caráter incomum do evento; 5) intensidade emocional do evento; 6)
conseqüências para a sua própria vida atribuídas ao evento pelo sujeito; e 7) freqüência
de ensaio daquela memória em pensamento e conversação. Com base nos resultados
de Rubin e Kozin (1984) e no resumo de dados de diversos estudos apresentado por
McGaugh (2003), consideramos esta operacionalização como uma relevante adição ao
entendimento das características fundamentais de memórias de eventos marcantes.
Argumentamos ainda que as qualidades de memórias vividas, entendidas na perspectiva
dos processos componentes, fazem parte da classe de propriedades atribuídas ao
evento. Trata-se de um tipo de julgamento assemelhado, porém distinto dos julgamentos
heurísticos referidos pelo monitoramento de fonte, constituindo possivelmente um
tipo de julgamento sistemático sobre relevância pessoal de eventos (Johnson & cols.,
1993). Esses julgamentos, de acordo com o modelo, também devem relacionar-se nas
qualidades da recordação, porém tal relação pode ser distinta daquela encontrada por
Johnson e colaboradores.
Convergências e divergências entre os modelos
O que há em comum entre as abordagens do monitoramento de fonte e dos
processos componentes é a ênfase na fenomenalidade da experiência consciente desde
a definição dos processos de memória autobiográfica e da descrição dos estados
próprios. Em ambos os modelos, o auto-relato, e a afirmação ou avaliação que o sujeito
faz do seu estado de reviver o evento e acreditar que ele realmente aconteceu, bem
como de expressar se ele vem com imagens, e os julgamentos sobre o evento são a
evidência primária e o parâmetro último de validade (Rubin & cols., 2003). Nesta
abordagem, o auto-relato enquanto evidência é instrumentalizado pelos questionários,
cujos itens refletem os vários aspectos de formulações que resultam da articulação
dos modelos teóricos e dados empíricos experimentais. Afinal, os modelos de processos
componentes e de monitoramento de fonte não são incompatíveis. As diferenças
indicadas são basicamente quanto à precedência das qualidades fenomenais sobre os
julgamentos no monitoramento de fonte, enquanto que em processos componentes
essa ordem não é necessária do ponto de vista teórico. De resto, ambos os modelos
concordam sobre a importância da evidência da natureza fenomenal da experiência de
recordação e contribuem para tanto através ao operacionalizar essas qualidades.
Os questionários são concebidos como dispositivos de mediação que possibilitam
a transposição de uma percepção subjetiva de estados conscientes para indicadores
partilhados, em consonância com uma hipótese fenomênica da possibilidade de
conhecimento de estados conscientes. Nesse sentido, aceita-se a hipótese fenomênica
pela qual a introspecção refere-se a um fenômeno que ocorre na consciência imediata,
mas implica em indicadores superficiais de consciência (por exemplo, relatos verbais ou
gráficos) (Engelmann, 1997). Através dos indicadores de consciência, que podem ser
conhecidos por muitas pessoas, a consciência mediata do observador assemelha-se a
outros indicadores que servem de evidência em qualquer outra ciência empírica.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Fenomenologia experimental, introspecção e quantificação das qualidades
Segundo Johnson (1988), estudos de monitoramento de fonte e outros que se
debruçam sobre as qualidades fenomenais da experiência caracterizam um tipo de
fenomenologia experimental. O termo fenomenologia é usado no sentido de estudo
sistemático das características qualitativas da experiência mental, no caso, da experiência
de recordação autobiográfica. Talvez o termo mais próprio para essa afirmação seja
fenomenalidade ao invés de fenomenologia (Engelmann, 2001), no entanto o termo
fenomenologia da recordação é de uso corrente no contexto da literatura em psicologia
cognitiva.
O conhecimento empírico das qualidades fenomenais da experiência (consciência),
será então mediado, posto que a expressão pública pela qual alguém expressa algo
sobre a sua própria experiência repousa sobre a possibilidade da mediação dos símbolos
da comunicação. Extrapolando essa definição, é lícito assumir que, quando a consciência
conhece reflexivamente os próprios estados internos do organismo, tais como as
qualidades fenomenais da experiência de recordar um evento específico, o processo é
um tipo de introspecção. Nesse sentido, os questionários direcionam o sujeito para as
qualidades fenomenais do estado interno durante a recordação. Mais que isso, a
resposta numérica às escalas oferece indicadores de consciência (Engelmann, 1997)
que tornam possível compartilhar características do estado de consciência. De outra
maneira, essas qualidades estariam restritas à privacidade do pensamento do sujeito.
Os dados fenomenais são hoje considerados fundamentais na explicação dos
processos cognitivos. Embora se reconheça as dificuldades metodológicas, entendese que novas propostas que abordem essa evidência de forma sistemática devem ser
consideradas. A sistematização desses procedimentos colaborará para o manejo da
fidedignidade de relatos, de forma que esses dados possam enriquecer o entendimento
dos processsos cognitivos em apreço. Dessa forma, a modelagem neurocognitiva de
uma capacidade como a memória autobiográfica postula desafios metodológicos
importantes que têm sido atacados apenas recentemente.
Considerações finais
Para Brewer (1995), os dados fenomenais devem ser considerados sob a mesma
lógica pela qual se procuram estruturas anatomo-fisiológicas ligadas aos processos
cognitivos em geral. O argumento dá conta de que diferentes processos cognitivos e
formas de atividade mental têm diferentes correlatos fenomenais. A relevância de se
considerar a evidência fenomenal justifica-se pela tentativa de superar o que Roy e
cols. (1999) chamaram de hiato explicativo. Segundo os autores, as relações entre
mente e cérebro estão sendo exploradas na correlação entre modelos de processos
cognitivos e padrões de ativação neural. O desenvolvimento das técnicas de
neuroimagem popularizou a investigação destas relações. No entanto, a relação entre
os aspectos computacionais e experienciais dos processos cognitivos tem sido
negligenciada por razões de baixa credibilidade das soluções metodológicas disponíveis.
Uma vez desenvolvidos métodos rigorosos e específicos para lidar com a evidência
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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fenomenal, tais como aqueles apreciados neste artigo, entende-se que será possível
uma abordagem de mútua demarcação (Lutz & Thompson, 2003). Por um lado, dados
fenomenais impõem limites à análise e interpretação das evidências de processos
fisiológicos, e dados referentes a estes últimos demarcariam o trabalho conceitual de
maneira mais complexa que a simples análise da tarefa.
Concordamos com Lutz e Thompson (2003), sobre que o desafio a enfrentar é o
de integrar 3 conjuntos de evidências na formalização de modelos explicativos dos
processos pelos quais conhecemos o mundo: dados fenomenais de primeira pessoa
sistematicamente aferidos através de métodos rigorosos; modelos formais de processos
cognitivos derivados da análise de tarefas; e dados neurofisiológicos de processos
cerebrais coletados por técnicas de neuroimagem. Visto que as técnicas de investigação
dos dados neurais conhecem grande desenvolvimento e aceitação, e que o paradigma
explicativo do nível cognitivo encontra-se relativamente estabelecido, cabe fomentar
a evolução das abordagens da evidência fenomenal. Conquanto não haja notícias
sobre estudos brasileiros que tenham articulado evidências comportamentais, neurais
e fenomenais no estudo da memória autobiográfica, espera-se que as informações e
reflexões veiculadas neste trabalho possam subsidiar um debate epistemológico sobre
as peculiaridades de se lidar com tais níveis de evidência em futuros trabalhos nas
áreas de neurociência e psicologia cognitiva.
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Recebido em março de 2007
Aceito em agosto de 2007
Gustavo Gauer: psicólogo; doutor em Psicologia (UFRGS); professor do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais.
William Barbosa Gomes: psicólogo; doutor pela Southern Illinois University – Carbondale; professor do
Instituto de Psicologia (UFRGS).
Endereço para correspondência: [email protected]
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.51-64, jan./jun. 2008
Fenomenologia da queixa depressiva em adolescentes:
um estudo crítico-cultural
Anna Karynne da Silva Melo
Virginia Moreira
Resumo: Esta pesquisa teve como objetivos compreender o fenômeno da queixa depressiva da
clientela adolescente do SPA/NAMI, a Clínica Escola da Universidade de Fortaleza, e a relação entre
a queixa depressiva e o mundo cultural dos adolescentes que buscam tratamento nesta instituição.
Utilizando uma metodologia fenomenológica analisamos vinte prontuários de adolescentes atendidos ou em atendimento com queixa de depressão. Os resultados mostram que a condição sócioeconômica, a relação familiar, a experiência da religião, o relacionamento afetivo, a percepção de si, a
experiência com as drogas, a busca do findar o sofrimento e a dificuldade de interação social são
aspectos constitutivos da experiência vivida da depressão destes adolescentes.
Palavras-chaves: depressão; adolescência; fenomenologia.
Phenomenology of the depressive complaint in adolescents:
a critical cultural study
Abstract: This research had as objective to understand the phenomenon of the depressive
complaint of the adolescent clientele of the SPA/NAMI, the Clinical School of the University
of Fortaleza, and the relation between the depressive complaint and the cultural world of the
adolescents who search treatment in this institution. Using a phenomenologycal methodology
we analyze twenty handbooks of taken care of adolescents or in attendance with depression
complaint. The results show that the partner-economic condition, the familiar relation, the
experience of the religion, the affective relationship, the perception of itself, the experience
with the drugs, the search of finishing the suffering, and the difficulty of social interaction are
constituent aspects of the lived experience of the depression of these adolescents.
Keywords: depression; adolescence; phenomenology.
Introdução
A depressão, como síndrome psicopatológica, está, atualmente, muito presente
na adolescência tal como assinalam estudos recentes sobre esta sintomatologia
específica nesta fase (Braconnier,1989; Harrington, 2005; Moj & Sartorius, 2005). Tendo
em vista que estes estudos foram realizados em outros contextos socioculturais, nos
interessou pesquisar como a depressão é vivida por adolescentes atendidos no SPA/
NAMI - Serviço de Psicologia Aplicada, em Fortaleza, Ceará, com suas características
socioculturais específicas, ou seja, de uma população de um bairro da periferia da
cidade de Fortaleza.
Esta pesquisa consiste em um prolongamento do projeto de pesquisa “Critical
Phenomenology of depression: a cross cultural study in Brazil, Chile, and the United
States” (Moreira, No prelo). Segundo conclusões do referido estudo, há uma mútua
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constituição entre depressão e cultura, significando que a constituição da
psicopatologia é formada de “múltiplos contornos”: a depressão e a cultura estão
entrelaçadas. Pretendendo ampliar aquela investigação a respeito da mútua constituição
entre depressão e a cultura, focalizamos, aqui, especificamente, a clientela adolescente
do SPA/NAMI em Fortaleza. CE. As hipóteses levantadas foram de que a experiência
de depressão do adolescente cearense se constitui mutuamente com o mundo
sociocultural em que ele vive; de que a sintomatologia da depressão é diferente na
adolescência daquela da vida adulta e de que a depressão está relacionada com o
modo de vida do adolescente. A partir da análise fenomenológica (Moreira, 2004) da
queixa inicial de adolescentes que buscam atendimento no SPA/NAMI, nossa
investigação se voltou às diversas formas, através das quais as queixas depressivas
dos adolescentes informam sobre a sua existência, buscando compreender como
aspectos sócio-culturais fazem parte dos sintomas que expressam esta vivência na
adolescência. Esta pesquisa teve como objetivos compreender o fenômeno da queixa
depressiva da clientela adolescente do SPA/NAM, descrevendo a sintomatologia
depressiva como queixa dos adolescentes do SPA/NAMI e compreender a relação
entre a queixa depressiva e o mundo cultural dos adolescentes.
Adolescência, mundo atual e depressão
A adolescência é um período com características próprias, no qual o sujeito
necessita de delimitações para exercitar a busca de si mesmo, responder para si a
questão: quem eu sou? Nesta, é produzida uma angústia inerente ao processo da
adolescência, dado que, ao longo deste, ocorrem mudanças físicas, tais como o
crescimento dos seios e do pênis, por exemplo, e psíquicas, como a capacidade do
pensamento abstrato e sentimento de perdas, que são sensações bastante específicas
desta fase, com situações e peculiaridades próprias experienciadas por qualquer
adolescente. Na adolescência, surgem novas experiências e desmoronam velhas
certezas (Erikson, 1993; Jeammet, 1994; Rappaport & cols., 1993; Rassial,1997).
Nos dias atuais a adolescência é considerada um processo cada vez mais longo,
pois não se trata mais de pensá-la como faixa etária e sim como forma de lidar com os
acontecimentos subjetivos de sua existência. As experiências da infância praticamente
estão desaparecendo com as imposições da mídia, do consumo e da publicidade, que
fazem as crianças cada vez mais próximas do mundo adolescente e adulto. Essa
proximidade faz com que o adolescente contemporâneo viva uma adolescência
prolongada. O que está ocorrendo para que aconteçam estas mudanças? O que vivemos
agora é a expressão da pluralidade e da diversidade dos modos de vida que provocam,
no adolescente, um sentimento de insegurança e de incerteza quanto às suas
necessidades e à possibilidade de realizá-las na relação com o mundo. Isto suscita um
mal-estar que, em alguns casos, gera novas síndromes psicopatológicas, caracterizadas
como stress, fobia, bulimia, alterações do sono e depressão.
É interessante pensar sobre o diagnóstico dessas novas síndromes a partir da
idéia de Bergeret (1988), que indica a existência da dificuldade do clínico em classificar
os fenômenos psicopatológicos na adolescência, por se tratar de um período de
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potencial estrutural, ou seja, não se tem a definição estrutural do sujeito para que se
possa realizar uma definição válida da psicopatologia. Essa dificuldade torna-se ainda
mais complicada, quando se traz à tona a discussão de normalidade e anormalidade.
Para este autor, esses conceitos não podem ser entendidos por aquilo que é da ordem
do coletivo, do ideal ou do que é comum a todos, estatisticamente apontado. Normal e
patológico está em relação ao modo como o sujeito supera ou não supera os seus
conflitos, “... um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais como tantas
outras pessoas...” (p.21).
Assim, normal ou sadio é a flexibilidade das capacidades pessoais e defensivas
ou adaptativas, compreendendo que patológico, é a fixação dessas capacidades.
Bergeret (1988) compreende que a qualquer momento o que é ‘normal’ pode passar a
ser uma patologia mental. Esses conceitos são definidos independentes da noção de
estrutura, como nos indica: “A noção de ‘normalidade’ estaria, assim, reservada a um
estado de adequação funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, seja
esta neurótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do
equilíbrio dentro de uma mesma linhagem estrutural” (p.29).
Numa mesma perspectiva, Widlöcher (2001) assinala que o diagnóstico de um
fenômeno psicopatológico na adolescência, principalmente, o da depressão, deve
levar em consideração aspectos subjetivos e objetivos. O diagnóstico da depressão
deve buscar reconhecer em que ela se diferencia de outros sinais como a simples
tristeza. Os sujeitos descrevem sua angústia, seu sentimento de fracasso e de
desespero, sua sensação de fadiga e sua dificuldade de concentração como sendo os
sintomas experienciados na depressão. Aparece ainda, na descrição dos adolescentes
depressivos, o comportamento abatido, linguagem lenta e movimento corporal mais
paralisado. Widlöcher (2001) afirma que para caracterizar efetivamente a depressão é
necessário aparecer dois sintomas centrais: a tristeza e a lentificação psicomotora.
Apesar do sentido de universalidade dos sintomas, deve-se pensar nas diferenças
culturais na descrição e no sentido do vivido da experiência depressiva do adolescente.
Kleinman e Good (1985), Desjarlais, Eisenberg, Good e Kleinman (1997) também
indicam a estreita relação entre cultura e depressão. Segundo estes autores, os estudos
antropológicos demonstram diferenças entre as culturas tanto no sentido da depressão
como em seus nos sintomas. Assim, diferentes culturas apontam diferentes sinais da
depressão. Entendemos que na realidade brasileira há sinais e descrições diferentes
da depressão quando consideramos que muitos dos jovens no Brasil encontram-se na
rua. Muitas crianças e adolescentes não conseguem permanecer na escola, pois logo
cedo precisam se inserir no mercado de trabalho informal para complementar a renda
familiar. Alguns dos jovens entram na prostituição e no roubo. Esta realidade faz com
que tenham relações sexuais precocemente, consumam drogas e contraiam doenças,
ainda muito novos.
Tendo todas essas questões atravessando a adolescência, Harrington (2005)
compreende que cada vez mais a depressão acontece nos sujeitos adolescentes. A
turbulência na adolescência que antes era considerada como inerente ao processo,
tem passado a ser entendida como algo não tão ‘banal ‘ ou ‘comum’, mas como um
fenômeno que traz um grande conflito nesse período. Devido a isso, tem-se uma enorme
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dificuldade em diagnosticar a depressão na adolescência. Assim o melhor indicador
dessa patologia na adolescência seria a duração do problema.
Numa conceituação validada dos sinais que possibilitam diagnosticar a depressão,
temos a Classificação de Transtornos Mentais e Comportamentos do CID-10 (OMS,
1993), que indica a depressão como pertencendo ao grupo dos transtornos afetivos do
humor, apresentando como principais sintomas, a perda de interesse e de prazer e a
energia reduzida, levando à fatiga aumentada e à atividade diminuída. Outros sintomas
também podem estar presentes tais como concentração, atenção, auto-estima e
autoconfiança reduzidas; idéias de culpa e de inutilidade; visões desoladas e pessimistas
do futuro; idéias ou atos autolesivos ou de suicídio; sono perturbado, e apetite
diminuído. Pode apresentar também aspectos como irritabilidade, consumo excessivo
de álcool, comportamentos histriônicos ou exacerbação de sintomas fóbicos ou
obsessivos. Conforme o CID-10 (OMS, 1993) alguns dos sintomas da depressão são
precipitados pela vida estressante em muitas culturas, mas não define o que considera
estressante e nem mesmo aponta as diferenças culturais. Na verdade, estas são diretrizes
diagnósticas consideradas universais, ou seja, norteiam a descrição e a leitura do
diagnóstico de todo profissional que trabalha com as psicopatologias.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [DSM IV], (2002)
apresenta a depressão na seção relativa aos transtornos de humor. O Transtorno
Depressivo é classificado em: Transtorno Depressivo Maior, caracterizado por um ou
mais episódio depressivo maior (presença dos sintomas de perda de interesse ou
prazer por quase todas as atividades pelo menos por duas semanas); Transtorno
Distímico, a presença dos sintomas por pelo menos dois anos e na maior parte do
tempo; e Transtorno Depressivo Sem outra especificação, são os transtornos com os
sintomas depressivos, mas que não seguem totalmente os critérios dos outros
transtornos citados acima. Na adolescência, segundo esta classificação, os sintomas
de tristeza e ausência de interesse são substituídos, algumas vezes, pelo da irritabilidade.
Compreendemos a importância da leitura diagnóstica a partir da CID-10 (OMS,
1993) e do DSM IV (2002), pois nos aponta indicativos de um delineamento do quadro
depressivo, mas reconhecemos também a limitação desta forma de diagnosticar. Assim,
partimos da idéia de que a depressão é uma das possibilidades de existir do sujeito na
sua relação com o mundo, já que entendemos que os fenômenos psicopatológicos têm
uma etiologia tanto biológica, quanto situacional e cultural (Moreira, 2001). A lente da
psicopatologia crítica, utilizada no presente estudo, nos leva a buscar compreender a
multiplicidade dos contornos na composição da depressão. Trata-se de pensar o sujeito
cultural, numa perspectiva na qual a cultura é compreendida como constituinte dos
quadros psicopatológicos, buscando compreender as desordens psicopatológicas
como manifestações de processos socioculturais, trabalhando tanto no nível
comunitário quanto no interpessoal, para além do individual (Fox & Prilleltensky, 1997;
Moreira, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2003c, 2005a, 2005b; Moreira & Freire, 2003; Sam, &
Moreira, 2002; Sloan,1996).
Com a modernização da sociedade brasileira, as pessoas migraram intensamente
do interior para as zonas urbanas. Isto provocou um aumento da busca de emprego,
habitação, educação e saúde. Com este novo cenário, as relações afetivas foram sendo
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deterioradas, pois a luta pela sobrevivência tornou-se questão central para o sujeito,
não havendo mais espaço para ritos, como sentar nas calçadas para a conversa de fim
de tarde com os vizinhos, que, antes, existiam e que eram importantes para a subjetivação
(Barreto, 1993).
Segundo Scliar (2003), atualmente o homem se perde na ampliação dos espaços
urbanos; com a hegemonia do capitalismo ocorreu a destruição da antiga forma de
viver para surgir uma nova maneira, ou seja, antes o cotidiano não era tão atravessado
pela tecnologia e pela rapidez do tempo como agora em que as relações são virtuais e
efêmeras.
O autor sustenta que a destruição nunca acontece sem a culpa, e com a culpa vem
a depressão. Assim, a depressão passou a ser uma nova maneira de estar no mundo.
Entretanto, esta maneira de viver é considerada, na modernidade, como uma doença,
embora, para Scliar (2003), não exista doença sem hospedeiro. Ou seja, há uma
suscetibilidade do homem moderno à depressão, devido a este novo modo de viver, isto
é, existe uma relação entre depressão psíquica com a depressão econômica e social.
Este autor ilustra a discussão com o exemplo de um outro momento histórico, a
grande depressão norte-americana, quando os trabalhadores viveram um período de
grande temor, de falta de emprego e de fome. Depressão era, então, sinônimo de pobreza,
no sentido econômico. Scliar (2003) destaca que estas duas concepções de depressão,
a psíquica e a econômica, referem-se a uma carência e a um sentimento de perda e de
inadequação para alcançar objetivos. Para ele, no sistema econômico capitalista, pregase um modo de vida maníaco, que seria supostamente menos doloroso e mais rentável.
A mania tem uma imagem melhor do que a depressão, pois se refere à agilidade, à
produtividade e à aceleração necessárias para este novo modo de viver.
Como se inserem estas questões na adolescência? Há uma exigência cada vez
maior e mais veloz do “mundo pós-moderno” quanto ao desempenho e à eficácia com
relação à informação e à tecnologia. Estas exigências se manifestam cada vez mais
cedo para os adolescentes. O início das exigências ocorre desde a infância, quando as
crianças assumem responsabilidades como cuidar de casa, dos irmãos mais velhos, de
reconhecer o certo e o errado, nas classes sociais pobres, ou são cobradas por atividades
complexas e diversificadas como o uso do computador e da internet, nas classes mais
favorecidas economicamente. Nem todos os adolescentes estão preparados para
enfrentar as exigências “pós-modernas”, principalmente aquela que se refere à escolha
definitiva da profissão, pois eles têm dificuldade de lidar com a necessidade de se
adaptar a esta nova proposta de vida, no qual os acontecimentos são rápidos e
eficientes. Muitas vezes o sujeito vive, ainda, numa infância que não elaborou, pois o
mundo impôs a necessidade dele ser adolescente; vive ainda uma vida de criança, e
mesmo com algumas exigências, o tempo não tem a mesma pressa. O que é praticamente
imposto aos adolescentes é a necessidade de estar constantemente reciclando as
informações, pois o que lhes é transmitido é que quanto mais o sujeito for atualizado e
informado, melhor administrará a si mesmo e tanto maior será a sua capacidade de lidar
com as adversidades do mundo.
Descrever a experiência vivida na adolescência muitas vezes se confunde com a
descrição do que caracteriza a depressão. Tristeza, raiva, apatia e sentimento de
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inutilidade são fenômenos comuns tanto à adolescência quanto à depressão. Por isso
mesmo diferenciar adolescência de depressão é, frequentemente, uma questão difícil;
é necessário ficar-se atento não apenas ao sujeito adolescente, como também à sua
relação com o mundo e a seu modo de viver. Ou seja, só a compreensão do mundo
vivido (lebenswelt) do adolescente, tornará possível uma maior clareza com relação a
esta questão, não confundindo características próprias da adolescência com sintomas
de depressão.
Local do estudo: o Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade de Fortaleza –
SPA/NAMI
O SPA/NAMI é uma instituição que tem como objetivo prestar serviços à
comunidade de baixa renda de Fortaleza e proporcionar aos estudantes de psicologia
atividades de estágio. Trata-se da Clínica Escola da Universidade de Fortaleza, que
oferece vários serviços nas áreas de psicologia clínica, escolar e organizacional.
Atualmente, esta instituição atende a todas as comunidades da cidade de Fortaleza,
mas, mais especificamente, a do Dendê. Esta se encontra no bairro Edson Queiroz e
sofre de uma enorme carência econômica, más condições básicas de saneamento,
índices altos de prostituição e de adolescentes com problemas com drogas. Como o
SPA/NAMI está situado neste bairro, dá prioridade de atendimento às pessoas que
residem no Dendê. Os primeiros atendimentos eram realizados especificamente para
a clientela desta comunidade, mas o crescimento da demanda por atendimento tanto
da população do Dendê quanto de outras, ocorreu a ampliação dos serviços e dos
bairros que poderiam receber atendimentos na instituição, que se tornou, hoje, uma
referência em psicologia.
As pessoas buscam os serviços prestados pelo SPA/NAMI fazendo inscrição
através de uma ficha. Esta contém os dados gerais do futuro paciente. Após o
preenchimento desta ficha, ocorre o processo de triagem ou as entrevistas iniciais
feitas pelos estudantes do Curso de Psicologia nos últimos semestres. Nesse processo
de entrevistas iniciais é investigado o motivo da procura pelos serviços do SPA/
NAMI, ou seja, a queixa que levou à busca de ajuda psicológica. Ao término das
entrevistas iniciais ou de triagem, o paciente é encaminhado a algum serviço de
psicologia como psicoterapia, psicodiagnóstico, psicoterapia breve, grupo operativo,
dentre outros, ou para demais serviços oferecidos no NAMI como terapia ocupacional,
nutrição, atendimento médico, fisioterapia, dentre outros. Foi a partir destas fichas
que descrevem a queixa inicial que realizamos a coleta dos dados da queixa de pressão
nos adolescentes atendidos ou em atendimento nos diversos serviços de psicologia
do SPA/NAMI.
Método
Esta pesquisa trabalhou com o método fenomenológico baseado no
pensamento de Merleau-Ponty, entendendo que a experiência de depressão do
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adolescente cearense se constitui mutuamente com o mundo sociocultural em que
ele vive (Moreira, 2004). O método fenomenológico busca a descrição do fenômeno
com o intuito de construir um conhecimento do mundo. Utilizando este método,
propusemo-nos à descrição do que significa ser adolescente atualmente, na realidade
sócio-cultural especifica dos pacientes atendidos no SPA/NAMI, e de como a
depressão é vivida pelo sujeito adolescente, buscando compreender os elementos
do seu mundo relacionados à depressão. Forghieri, (1993) e Amatuzzi (1994, 1995,
1996) indicam que este método elabora a construção de um conhecimento a partir
dos dados e do material colhido. É através da objetivação do vivido que se pode
construir um saber que dê conta daquilo que está acontecendo e da experiência da
qual o pesquisador colheu os dados para articulá-los em uma perspectiva teórica.
Trata-se de descrever uma estrutura para chegar a um conhecimento dela. O
pesquisador é quem constrói os próprios passos na pesquisa. Isto significa que, a
partir do que é colhido, este faz uma análise daquilo que o sujeito quis dizer: é a
intenção significativa do vivido, ou ainda, a análise da intenção de dizer.
Neste estudo foram analisados fenomenologicamente 20 prontuários de
adolescentes atendidos no SPA/NAMI nos diversos tipos de atendimento oferecidos
pela instituição. O material utilizado para a análise foi transcrições contidas nos
prontuários, que descrevem e aponta, na maioria das vezes, a queixa depressiva. Para
tanto, foram lidas as primeiras entrevistas que se referiam ao processo de triagem.
Primeiro, fizemos uma seleção dos prontuários optamos por trabalhar com a
delimitação de adolescência por faixa etária, como critério inicial, por entendermos que
isto melhor delinearia a população que poderíamos pesquisar. Foram selecionados os
prontuários dentre os pacientes em atendimento, os desligados e os de processo
interrompido no período de 2000 a 2003 com faixa etária de 13 a 18 anos. Um outro
critério utilizado foi a sintomatologia adotada numa perspectiva nosográfica da
depressão (Braconnier, 1989; Cid-10/DSM IV, [OMS], 1993). Nos prontuários
pesquisados, inicialmente identificamos a queixa depressiva em adolescentes cuja
idade variou dos 15 aos 18 anos, de ambos os sexos, sendo que, dos 20 prontuários
analisados, 7 eram do sexo masculino e 13 do sexo feminino. A escolaridade média dos
pacientes cujos prontuários foram estudados era o ensino médio e a maioria pertencia
às classes sociais de baixa renda.
O passo seguinte diz respeito ao delineamento da pesquisa fenomenológica em
seu momento inicial, a descrição. Este se deu com a leitura dos prontuários, identificando
aqueles, que na sua transcrição, apresentavam a sintomatologia da depressão, fosse
pela fala textual do paciente, fosse por enumerações de sintomas referentes à depressão.
Salientamos que a transcrição dos prontuários foi feita por alunos que cursavam a
disciplina de estágio na área de psicologia clínica, buscando identificar as falas do
adolescente sobre sua depressão. Não utilizamos as interpretações elaboradas pelos
estagiários e transcritas nos prontuários, pois compreendemos que apenas nas falas dos
próprios adolescentes encontraríamos a descrição da queixa de depressão, buscando
uma maior aproximação com o fenômeno vivido.
Em seguida passamos para as demais fases da pesquisa fenomenológica: a de
redução e de compreensão da vivência da depressão pelos adolescentes, conforme
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modelo empregado por Moreira (2001, 2004). Seguindo este modelo, dividimos o texto
da transcrição dos prontuários em:
a) Texto nativo/transcrição literal do prontuário;
b) Análise descritiva ou articulação de sentido do que emerge da descrição.
Trata-se de uma síntese da transcrição buscando o significado ou o sentido da
experiência de depressão vivida pelos adolescentes;
c) A busca das categorias que emergem das falas dos pacientes, no caso desta
pesquisa, as falas se referem à descrição da queixa depressiva, a adolescência e ao
mundo dos sujeitos e sua cultura.
Resultados
Na descrição da queixa depressiva dos pacientes adolescentes atendidos no
SPA/NAMI, tal como registrada nos prontuários, emergiram os seguintes temas a
serem descritos a seguir e ilustrados pelas falas dos adolescentes com nomes fictícios.
A depressão na adolescência é vivida como uma experiência do contexto
familiar.
“Quando eu tinha treze anos, bem no auge dos conflitos entre meus pais, minha
cabeça já não agüentava mais, conheci uma turma e, um dia, na casa de um amigo,
cheirei cocaína.” (Maria, 16 anos)
“Têm várias coisas, mas a mais importante era que eu conseguisse ser eu mesma,
sem que os outros dissessem o que eu deveria fazer. Eles nunca me deixam fazer nada
que eu queira, como sempre fui a queridinha do papai, eles nunca me deixaram “quebrar
a cara”, descobrir as coisas. A única coisa que descobri foi o pó e foi uma péssima
descoberta.” (Maria,16 anos)
“Meu pai diz: são as piores filhas do mundo”, que o cão a leve! Quando penso
que minha irmã morreu e que o meu pai disse isso, fico arrasada. Como é que um pai
deseja uma coisa dessas a uma filha?”(Joana,16 anos)
A descrição da depressão por parte dos adolescentes refere-se à experiência
com a religião, principalmente no que se refere à vivência da dualidade entre o bem
e o mal e aos valores impostos aos adolescentes.
“Minha religião pede que eu fale com outras pessoas sobre Deus, mas não
consigo. Uma vez, tentei e fiquei passando mal, com as mãos geladas; a voz quase não
saía e fiquei tonta.” (Vitória,13 anos)
“... É o lugar mais horrível do mundo e tem dedo dele (o adolescente refere-se ao
Diabo), e podia ser que estivesse no caminho do mal.” (João, 15 anos)
Os adolescentes experienciam o relacionamento afetivo com grande intensidade
e, na maioria das vezes, a queixa depressiva se refere à experiência amorosa.
“Eu fico doida, “pirada”. Sou doente por ele.” (Mariana, 18 anos)
“Quando chego perto dele, fico com dor de barriga, tremo as pernas. Penso 24
horas nele. Não entendo o que se passa comigo.” (Mariana, 18 anos).
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A descrição a depressão por parte dos adolescentes refere-se constantemente à
idéia e às tentativas de suicídio como possibilidade de findar o sofrimento e a perda
de sentido da vida.
“Já tentei me jogar em frente de um carro por ciúmes dele.” (Mariana, 18 anos).
“Minha mãe diz que meu sofrimento é também o sofrimento dela e é por isso que
ainda não fiz besteira, não me joguei de uma ponte: primeiro, pela minha mãe, e, depois,
porque iria queimar, pretinho, no inferno.” (Rafael, 15 anos).
A experiência da percepção de si mesmo emerge das descrições da vivência da
depressão.
“Acho que sou muito agressiva. Não gosto de falar de mim. Quando não gosto
de algo, basta um olhar meu. Também tenho mania de perfeição: sou meio paranóica;
para mim, tudo tem que ser perfeito; já desisti de muita coisa por achar que não atingia
a perfeição que eu queria. Sou muito isolada: chego da aula e me tranco no meu
quarto; não tenho amigos. Acho que é por isso que minha mãe quis que eu viesse, mas
acho que não preciso de psicóloga.” (Maria,16 anos)
“Não sei. Talvez não me aceite. Sei lá! Eu sempre fui medroso”. (Pedro, 15 anos).
“É, mais ou menos. Não sei como gostaria de viver porque não sei o que um
adolescente faz, o que ele gosta de fazer, o que ele pensa...” (Pedro, 15 anos).
“Me sinto como um inseto: ninguém liga e ninguém quer saber. Às vezes até
atrapalha”. (Leonardo, 16 anos)
Os adolescentes descrevem a sua experiência com a droga como um modo de
vivenciar o mundo.
“Uma vez, não sei nem como cheguei em casa! Eles nunca notaram: minha mãe,
eu posso fumar do lado dela que ela não sente e não sabe o que é. Se, um dia, ela notar,
dou qualquer desculpas e pronto.” (Maria,16 anos)
“Uma vez, tentei contar a ele, mas ele achou que era brincadeira minha. A única
pessoa que contei foi minha amiga e ela tentou me ajudar. Há alguns meses, cheirei,
tomei comprimidos e bebi: cheguei em casa, dopada; estava muito mal; ninguém me
viu. No meio da noite, comecei a passar mal, vomitava e desmaiei. Meus pais me
levaram para o hospital. Não sei o que disseram para minha mãe, mas mandaram ela
procurar um psicólogo pra mim.” (Maria,16 anos)
A importância da formação de pares é tema constante na descrição da
experiência da depressão dos adolescentes: por um lado, como suporte para lidar
com a depressão e, por outro, como suscitador do sofrimento deles.
“Achei que ia morrer. Estou tentando me afastar desta turma, pois estava
“descendo” cada vez mais.” (Maria, 16 anos)
“Devido ao meu pai estar sempre bêbado, não levo ninguém para casa, pois
tenho vergonha e, com isto, não tenho amigos e estou me sentindo muito sozinha. Não
agüento mais esta situação.” (Luciana, 18 anos)
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A descrição do que compõe a queixa depressiva refere-se ao modo como o
adolescente lida com a experiência da adolescência.
“ Não tenho vontade de estudar nem de fazer nada.” (Luciana,18 anos)
“Não tenho amigos, e estou me sentindo muito sozinha.” (Luciana, 18 anos)
“Vou acumulando as coisas que as pessoas falam fora de casa, pois não consigo
revidar na hora, e, quando chego em casa, basta alguém falar uma coisinha de nada que
explodo e sou muito grosseira com pessoas que não têm nada a ver.” (Lia, 16 anos)
O adolescente descreve o mundo que o circunda como uma experiência de
despotencialização e de injustiça social
“Ninguém pode ficar parado, só vendo as coisas acontecerem, sem tomar
nenhuma atitude diante disso. Detesto as desigualdades sociais, o consumismo, o
capitalismo e o sistema de massificação”. (Aparecida, 17 anos)
“É mais assim como alguém que conheço, com quem converso sobre muitas
coisas que acontecem no mundo: falamos sobre dinheiro - que ele pensa muito nisso
- e que a sociedade é muito consumista etc. Não há demonstração de carinho e amor”.
(Aparecida, 17 anos)
Os resultados demonstram que a sintomatologia da queixa depressiva é
experienciada de modo similar pelos vários adolescentes, cujos sintomas, conforme a
literatura descritiva desta patologia são: agressividade, timidez, choro fácil, insegurança,
desânimo e tristeza profunda, dentre outros descritos pelos adolescentes.
Discussão
A fenomenologia da depressão está relacionada com o contexto social dos
adolescentes. A depressão na adolescência, na cultura ocidental, tem aumentado devido
ao conflito entre a sua necessidade de laços afetivos e a multiplicidade de situações de
separação e de ruptura. As exigências da sociedade e a valorização da independência
e da autonomia também contribuem para o aumento dos índices de depressão na
adolescência.
Deste modo, faz-se necessário à compreensão da relação entre: ideologia x homem
x patologia x cultura. Visto que esta relação se constitui mutuamente, não tem sentido
pensar esses fenômenos isoladamente. A psicopatologia tem tanto características
universais quanto culturais (Schumaker, 2001). Pesquisas transculturais buscam
compreender a depressão como um fenômeno mundano (Moreira, 2002, 2003c e no
prelo; Moreira & Freire, 2003; Moreira & Coelho, 2003) que se constitui mutuamente
com cada cultura específica. Entendemos que estas diferentes formas de expressão da
depressão estão relacionadas, também, com as mudanças históricas próprias culturais
de cada cultura.
Com o advento da modernidade, as tradicionais formas culturais de proteção
contra os efeitos nocivos da depressão no Brasil e especificamente no Nordeste
brasileiro, que é tradicionalmente uma cultura onde as pessoas se aconchegam, se
tocam, convivem em família, os estreitos laços afetivos interpessoais, estão sendo
60
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destruídas e tornando-se insuficientes para proteger os indivíduos de uma situação de
perdas reais importantes (Moreira, 2002). Barreto (1993) lembra que no Nordeste têm
sido abandonados os rituais que possibilitavam suporte para o sujeito lidar com as
suas perdas, como se vestir de preto, passar um período de luto. Para este autor, neste
novo contexto, o sujeito substituiu o ritual pela concretização da perda. Perder algo
significa morrer. Os rituais possibilitavam uma demarcação clara da espacialidade e da
temporalidade ao sujeito em seu se tornar adolescente, significa dizer, que o adolescente,
antes, tinha uma noção bem delineada do tempo e do lugar de experienciar a
adolescência. Para o sujeito moderno, restou o processo da adolescência como
possibilidade de lidar com o que se apresenta de novo para ele. Este processo aparece
como substituto dos rituais como os bailes de debutantes, a inserção na universidade,
as tarefas a serem cumpridas que denotavam coragem e autonomia, dentre outros.
Neste experienciar das perdas e mudanças na adolescência, restou para o sujeito a
depressão como possibilidade de organizar-se num mundo em que o “ter” é o “ser”, ou
seja, o valor atribuído ao que o sujeito tem, como aquilo que ele possui é bem mais alto
do que a preocupação com o ser do adolescente.
Numa cultura do consumo e da intolerância à dor, o adolescente busca saídas
para esta nova configuração existencial. É o que Perls (1997) denomina de autoregulação. Nesta auto–regulação o adolescente tenta lidar com o que se configura na
cultura contemporânea, o consumismo. A depressão é considerada como uma forma
de alcançar o equilíbrio no processo de auto-regulação. Como podemos perceber na
fala de uma adolescente: “Ninguém presta atenção em mim, ninguém quer saber como
estou me sentindo ou como foi o meu dia” (Ana, 16 anos), a depressão é o modo como
o adolescente consegue lidar com o seu sofrimento e com suas inquietudes da sua
existência numa tentativa de manutenção do equilíbrio, da auto-regulação.
A todas as especificidades da adolescência e de sua relação com a cultura,
somam-se, ainda, problemas familiares e socioeconômicos, tais como: crises de
separação dos pais, violência doméstica, doenças orgânicas, alcoolismo, drogas, morte
e pobreza, o que aponta algumas das possíveis causas do grande número de
adolescentes deprimidos que nossa sociedade produz. Também tensões da vida
cotidiana, os fracassos e a discriminação, a pressão para realizar inúmeras tarefas e o
luto patológico pela morte de um ente querido, pela perda de um amigo ou pelo
rompimento de uma relação amorosa são fatores que contribuem para o
desencadeamento da depressão nos adolescentes. Muitos adolescentes têm
dificuldades para lidar com essas perdas e com as expectativas que o mundo tem de
sua adaptação na cotidianidade (Ballone, 2001).
Compreendemos que pensar estas dificuldades para lidar com as experiências de
ser adolescente através das descrições da queixa depressiva aponta para a confirmação
da nossa hipótese de que a experiência da depressão entre eles é constituída mutuamente
com a cultura, sendo composta por contornos culturais, sociais e econômicos nos
quais vivem os adolescentes. As descrições da queixa depressiva trazem as experiências
que constituem o modo como eles lidam com o que se apresenta para eles. Nas falas
dos adolescentes, questões como família, condição social, corpo, drogas surgem como
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temáticas que delineiam esses contornos culturais, sociais e econômicos e que expõem
o adolescente num confrontar-se com as possibilidades e limites da sua existência.
Compreendemos, finalmente, que esta pesquisa tomou um caminho para investigar
a depressão na adolescência, embora sabendo que outros podem existir para desvendar
as experiências do sujeito adolescente. Pensamos que esta exploração da queixa
depressiva pôde nos levar a compreender melhor a experiência de ser adolescente
neste contexto sócio-cultural específico, contribuindo para uma maior fundamentação
do atendimento psicológico de adolescentes nesta região.
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Recebido em março de 2007
Aceito em agosto de 2007
Anna Karynne da Silva Melo: psicóloga; mestre em Psicologia (UNIFOR); professora do curso de Psicologia
da Universidade de Fortaleza.
Virginia Moreira: psicóloga; doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); pós-doutora em Antropologia Médica
(DSM/HARVARD).
Endereço para correspondência: [email protected]
Nota: Os autores agradecem as bolsistas de iniciação científica Sarah Fichera (Pibic/CNPq), Daniela Furlani,
Desirée Abreu, Marcela Ranier e Shimênia Oliveira (bolsistas voluntárias) por sua colaboração nesta pesquisa.
64
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.65-80, jan./jun. 2008
Projeto do futuro e identidade: um estudo com estudantes
formandos
Larissa Hery Ito
Dulce Helena Penna Soares
Resumo: Este artigo apresenta revisão teórica e estudo exploratório buscando compreender
como os jovens universitários se relacionam com o futuro a partir da elaboração de seu projeto
da vida e escolha profissional; estudando a relação deste processo com a construção da identidade. Especificamente o recorte deste estudo inclui os estudantes ao final do curso de graduação
haja vista a relevância atribuída ao nível superior como uma possível trajetória de vida para a
sociedade em geral. Na pesquisa teórica sistemática sobre o tema evidenciaram-se diferentes
abordagens sobre o conceito de identidade e escassez de estudos sobre projeto de futuro na
produção nacional. No estudo exploratório foram realizadas redações com o tema “Eu e meu
futuro” com os estudantes a fim verificar quais aspectos eram relevantes para o entendimento
de seu projeto de futuro. A análise inicial dos resultados aponta alguns eixos temáticos como:
estabilidade financeira, realização profissional, família e temporalidade (curto e longo prazo).
Palavras-chave: projeto de futuro, escolha profissional, identidade, formandos.
Project of future and identity: a study with senior college students
Abstract: This article presents theoretical revision and exploratory study that aim at to contribute
about the agreement of how college students relates with the future from the elaboration of its
project of life and professional choice; studying the relation of this process with the construction
of the identity. Specifically the clipping of this study encloses senior college students, have
seen the relevance attributed to higher education as possible form of trajectory of life for the
society in general. From the systematic theoretical research on the subject, have been detected
contradictory conceptions about identity and a scarcity of studies on the notion of project of
future in the national production. In the exploratory study, writings with the subject had been
carried through “My future and I” with the students in question in order to verify which
aspects the research could be excellent for the agreement to which if it considers, their project
of future. The first analyses of the gotten results point some thematic axles as financial stability,
professional accomplishment, family and temporality (short and long stated period).
KeyWords: Project of future, professional choice, identity, senior college students.
Introdução
Várias pesquisas sobre a relação do homem com seu futuro vêm sendo
desenvolvidas para tentar cobrir uma lacuna teórica já apontada por Bohoslavsky
(1998) sobre o tema. Segundo o autor a relação com o futuro destaca-se como
fundamental na Psicologia de Orientação Profissional, pois “um jovem que busca a
orientação vocacional demonstra estar preocupado com sua pessoa, em relação ao
seu futuro” (p.23). Entretanto, o autor evidencia a predominância de posições teóricas
que cristalizam os homens como “objetos”, e fazem da Psicologia de Orientação
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
65
Profissional uma atividade visando o ajustamento social, pressupondo uma natureza
humana pré-determinada, que objetiva colocar “o homem certo no lugar certo”. Esta
posição “constitui uma colocação psicologista, e, portanto, parcial e falaz, na análise
dos ajustamentos e desajustamentos sociais” (p.21). Como coloca o autor, “os
psicólogos estão acostumados a ver o que o adolescente é. O adolescente se preocupa
mais com o que ele pode chegar a ser” (p.23).
No Brasil existe uma carência de estudos sobre o conceito de “projeto”, em
especial, junto a estudantes de nível superior, em fase de escolhas profissionais e de
futuro. Atento a isso, o LIOP1 - Laboratório de Informação e Orientação Profissional
vem construindo desde 1997 um trabalho conjunto entre diferentes instâncias de
pesquisa, a saber: o laboratório (LIOP), o PPPG – Programa de Pós Graduação em
Psicologia da UFSC, o apoio do CNPq através de Bolsa Produtividade e PIBIC (bolsistas
IC) e outras formas de financiamento da pesquisa (CNPq e FAPESC, com a finalidade
de estudar a escolha profissional de jovens em busca de um curso superior, seus
projetos de vida e profissionais, os fatores que interferem em suas escolhas, a influência
da família, das instituições e do mercado de trabalho nestas escolhas.
O presente estudo busca aprofundar a questão do processo de elaboração do
“projeto de futuro” nos indivíduos a partir de uma amostra definida: estudantes da
Universidade Federal de Santa Catarina no final do curso de graduação. No amplo
universo de possibilidades de sujeitos de pesquisa, a escolha pelo recorte universitário
diz respeito ao status que a formação universitária representa para diversas classes
sociais, como um “modelo padrão ou ideal” a ser seguido na elaboração de um projeto
de vida. Esta idéia traz consigo de modo subjacente o caráter norteador do trabalho na
vida dos sujeitos, corroborando com diversos estudos já desenvolvidos sobre trabalho
e identidade (Ciampa, 1987; Jacques, 1996; Coutinho, Krawulski & Soares, 2007).
Ao pesquisar a produção científica sobre a noção de “projeto” no campo da
psicologia, procedeu-se a um levantamento no Banco de Teses2 mantido pela CAPES,
bem como na biblioteca eletrônica SciELO3 , teses e dissertações completas na área da
Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina entre o ano de 1991 a 2005; e
ferramenta de busca Google Acadêmico (Disponível no portal da CAPES), com resultados
de teses/dissertações de outras universidades brasileiras. Foram avaliadas obras citadas
com freqüência, principalmente livros, no material encontrado. Operacionalmente, na
busca foram utilizados os seguintes descritores (palavras-chave): identidade, profissão,
trabalho, projeto, futuro, formandos e jovens, em suas múltiplas combinações.
As informações obtidas através deste levantamento focalizaram-se em quatro
temas principais:
A) Conceito de identidade profissional e identidade de forma mais ampla, onde
encontramos um número grande de artigos, demonstrando o interesse perene sobre a
questão da constituição do ser;
1
Este laboratório faz parte do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
A CAPES só disponibiliza on-line em versão integral as teses e dissertações na área da História.
3
A sociologia demonstrou um maior número de publicações sobre a questão do significado de tempo em relação
à psicologia.
2
66
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
B) A questão da escolha profissional e suas possibilidades: observamos artigos
na área da orientação profissional/vocacional se apresentado atualmente de forma
mais crítica, enfraquecendo o enfoque vocacional de abordagem psicométrica;
C) Considerações acerca da idéia de projeto de vida, de ser, ou de futuro:
percebemos escassez na literatura nacional, mas autores franceses apresentam com
uma produção mais consistente. Freqüentemente a palavra “projeto” é utilizada sem
maiores explicações sobre a concepção que a fundamenta e predominantemente é
associada à questão profissional: projeto profissional e de carreira;
D) Caracterização do público-alvo, os formandos: encontramos poucas
publicações em psicologia sobre este momento de transição, conclusão do curso
superior e ingresso no mundo do trabalho.
A palavra identidade surgiu relacionada com palavras como: clínica, conflitual,
cultural, de gênero, de grandes grupos, de lugar, docente, negra, nacional, e diversas
outras. Por este motivo “identidade” num segundo momento, durante as buscas, foi
associada à palavra trabalho e profissão (para se aproximar mais do objetivo da
pesquisa). Os descritores “identidade” e “profissão” totalizaram 2064 registros no
banco de resumos de teses e dissertações da CAPES, a partir de 1992. Nestes resumos,
nos poucos casos em que a identidade foi associada à palavra projeto em nenhum
deles foi esclarecido o conceito utilizado para o entendimento deste termo.
Outra linha de pesquisa encontrada trata da identidade como um componente que
liga os iguais, razão pela qual alguns têm os mesmos objetivos e preferências, em geral
tratando da identidade coletiva de profissionais de uma determinada área (Barros, 2001;
Camargo, 2003; Conti, 2003; Daher, 1995; D´Azevedo, 1997; Dias, 2003; Gusmão, 2002;
Lima, 2002; Louro, 2004; Maciel, 2001; Méis, 1996; Moreno, 1996; Nascimento, 2000;
Oliveira, 2002; Vieira, 2003; Teixeira, 2004). Nesta mesma direção, no indexador Scielo,
com os mesmos descritores, foram encontrados cinco artigos completos, onde todos
tratam da identidade no seu sentido classista, identidade de uma determinada profissão
(Bock, 1999; Faria, 2006; Lüdke & Boing, 2004: Moreira, 1999a; Moreira, 1999b).
De modo geral, a identidade é difundida entre o senso comum como um traço que
define o ser, uma característica estática do psiquismo do indivíduo e nesse sentido traz
a idéia de que o ser humano pode reconhecer-se e descobrir uma essência que caracteriza
o seu verdadeiro eu. Este viés é trazido por teorias subjetivistas como a Psicanálise,
por exemplo, exemplificada na definição de identidade de Erikson (1987) como um
senso interior de igualdade e continuidade, ou seja, uma representação de si mesmo
que persiste ao longo do tempo e dá ao sujeito a certeza de saber quem ele é e para
onde vai.
Escolhemos adotar neste estudo a categoria identidade sem cair na abstração de
considerá-la como uma entidade, um produto que caracteriza indivíduo, mas ao
contrário, como uma constituição concreta, histórica e processual. É de Ciampa (1987)
a concepção da identidade como metamorfose, tanto síntese de múltiplas e distintas
4
Somente foram citados e referenciados os resumos que apresentaram alguma relação com o tema desta
pesquisa.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
67
determinações, como também, determinada pelas condições históricas, sociais, materiais
dadas, aí incluídas as condições do próprio indivíduo. Dessa maneira, a concretude da
identidade é sua temporalidade: passado, presente, futuro; e conhecer a identidade
como mesmice, como sempre igual a si mesma, exclui a temporalidade e a diferença,
deixando de ser a articulação da diferença e da igualdade.
Sobre a identidade profissional, Bohoslavsky (1983), importante teórico da
orientação profissional, faz uma análise minuciosa, separando-a em dois aspectos:
identidade profissional/ocupacional e identidade vocacional. Segundo ele a identidade
profissional é um produto da ação do contexto sócio - cultural no qual vivemos. Nela
estão atuantes as variáveis do contexto, que são de ordem objetiva: o quando, onde,
com quê, como desempenhar um papel produtivo na sociedade. Esta identidade está
determinada por fatores sócio-econômicos e tem relação direta com o significado das
ocupações, o valor social que lhe é atribuída, ou seja, o papel social das diferentes
profissões. Já a identidade vocacional segundo o autor, diz respeito às variáveis de
tipo afetivo e motivacional e tem ligação com a história real da pessoa, com as relações
com os objetos primários, como a família, por exemplo.
Em tese de doutorado Krawulski (2004) estudou a formação da identidade
profissional dos psicólogos e aponta a profissão representando muito mais do que um
conjunto de aptidões e funções; constitui também uma forma de vida a ser assumida,
pois a relação entre o trabalhador e a sua profissão é caracterizada pelo envolvimento,
pelo sentimento de identidade e de adesão aos seus objetivos e valores. Segundo a
autora, é na trajetória profissional de trabalho, quotidianamente, onde se pode localizar
a efetiva expressão dessa identidade, pois é no contexto do trabalho que se darão os
contornos e a medida entre aquilo que se queria ser e aquilo que efetivamente se
consegue ser enquanto ser humano trabalhador.
Nessa perspectiva, é inviável entender a identidade profissional a priori, como
pré-requisito para se escolher acertadamente uma profissão ou emprego. Ela é construída
e reconstruída seguindo a mesma lógica da identidade como metamorfose, sempre em
ação. O foco de interesse então vai de encontro aos desejos e expectativas de futuro
que representam a porção subjetiva da identidade dos indivíduos. Já as escolhas se
localizam dentro da concretude na qual estes se encontram, caracterizando o início da
objetivação da identidade.
Sobre a temática “projeto de futuro”, na busca por artigos com esta forma de expressão
foram encontradas 0 (zero) ocorrências5 , e com a combinação “Projeto e futuro/ projeto e
vida”, quatro ocorrências (Delory-Momberger, 2006; Guerreiro & Abrantes, 2005; Josso,
1999; Leccardi, 2005), demonstrando a escassez de trabalhos sobre o tema. Além destes
utilizamos as contribuições de Catão (2001), Boutinet (1990), Soares (1997) e a perspectiva
existencialista discutida por Schneider (2002), Ehrlich (2002), Maheirie e França (2007), que
trazem consistentes considerações sobre o tema em questão.
Guerreiro e Abrantes (2005) realizam análise de projetos/trajetos de vida, propondo
sete padrões diferenciados de transição para a vida adulta na sociedade portuguesa
5
Os casos em que o termo foi utilizado apenas de forma superficial ou citado foram desconsiderados.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
atual (transições: profissional, lúdica, experimental, progressiva, precoce, precária e
desestruturante), a partir da realização de entrevistas individuais e de grupo. Para os
autores no modelo de Transições profissionais os jovens caracterizam-se por um
investimento quase exclusivo no trabalho, nos primeiros anos, relegando os projetos
familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos longínquo. Nas Transições lúdicas
os jovens caracterizam-se por um longo período pós-adolescente destinado a viver
longos trajetos de escolaridade e inserções precárias e/ou temporárias no mercado de
trabalho, que não implicam grandes compromissos e responsabilidades. As Transições
experimentais caracterizam-se por uma sucessão de configurações de vida temporárias
e imprevisíveis, como opção de vida ou como período de experimentação antes de
“assentar” , casar e ter filhos. As Transições progressivas são formas de transição
relativamente lineares e programadas, na qual o percurso de escolaridade antecede a
progressiva integração profissional e a esta sucede a constituição de família. As
Transições precoces correspondem à passagem rápida e numa idade precoce de um
estatuto de dependência da casa dos pais, ao estatuto de trabalhador, em vida conjugal,
muitas vezes com filhos e desejavelmente (mas nem sempre) em casa própria. Nas
Transições precárias os jovens fazem parte da massa de “trabalhadores descartáveis”,
que se encontram hoje na área cinzenta entre a inserção efetiva no mercado de trabalho
e de inserção de longo prazo. O modelo de Transições desestruturantes é caracterizado
pela incapacidade para a construção de uma transição para a vida adulta e independente,
mergulhando em espirais de exclusão social, com a quebra de uma série de vínculos
sociais e, potencialmente, sentimentos de depressão aguda e/ou experiências de
marginalidade social.
Leccardi (2005), a partir de pesquisa recente realizada na Itália, aponta para uma
nova percepção de tempo sendo constituída pelos jovens em resposta às condições
adversas de futuro profissional. Segundo a autora, em uma época na qual o futuro a
médio e longo prazo não pode ser discutido sem suscitar preocupações e, com
freqüência, um sentimento de verdadeiro temor, a maior parte dos jovens, moços e
moças, encontra refúgio, sobretudo em projetos de curto ou curtíssimo prazo, e assume
o “presente estendido” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto”
com projetos que se expressam sobre arcos temporais mínimos e, por isso mesmo,
parecem extremamente maleáveis. Em geral, conforme Leccardi, os jovens se ligam á
conclusão positiva de atividades já iniciadas capazes de responder tanto à necessidade
de assenhorear-se do tempo biográfico em um ambiente veloz e incerto, como à pressão
social por resultados em curto prazo.
Delory-Momberger (2006) e Josso (1999) convergem na idéia de que através da
técnica da narrativa das histórias de vida os sujeitos poderiam melhor construir seus
projetos profissionais e de vida de forma mais ampla. A técnica do ateliê biográfico, proposta
pelas autoras, é um procedimento que inscreve a história de vida em uma dinâmica
prospectiva ligando o passado, o presente e o futuro do sujeito. Visa fazer emergir seu
projeto pessoal, considerando a dimensão do relato como construção da experiência do
sujeito e da história de vida como espaço de mudança aberto ao projeto de si.
Além destes, ainda na produção nacional, destaque para Catão (2001) que discute
o projeto a partir de três dimensões, subdivididas em oito classes de operadores: (1)
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
69
Dimensão espaço-temporal: possibilidade de realização de projetos em função dos
antecedentes sócio-ocupacionais; da mudança de vida; e das práticas institucionais
(inserções presentes possibilitadoras de inserções no tempo futuro); (2) Dimensão
sócio-afetiva: possibilidade de construção das bases psicossociais para
operacionalização do projeto de vida em função da exclusão/ inclusão social; da tríade
trabalho-educação-família; da relação com o outro e consigo; e da relação de agressão/
destruição com este projeto; (3) Dimensão sócio-cognitiva: possibilidade de elaboração
e crítica constante do projeto de vida em função do pensamento/reflexão (diálogo
consigo mesmo sobre si e sobre o mundo em relação). Cada dimensão descrita age
como fator possibilitante ou impossibilitante de um determinado comportamento do
indivíduo, no nosso caso, a escolha, o ingresso e a conclusão de um curso superior.
Boutinet (1990), autor francês, ressalta o projeto como o momento no qual se
integra asubjetividade e a objetividade, e também o momento no qual funde num
mesmo todo, o futuro previsto e o passado recordado. Através do projeto, se constrói
para si um futuro desejado, esperado. Na perspectiva operatória de Boutinet (1990), o
projeto não pode ser para um futuro longínquo nem também se limitar a ser muito
imediato. Seu caráter parcialmente determinado faz com que ele não seja jamais
totalmente realizado, sempre passível de modificações. Mais do que um plano ou um
objetivo, o projeto com sua conotação de globalidade, é destinado a ser integrado
numa história, contribuindo para modelizar o passado que é presente nele e prever o
futuro. Todo projeto, através da identificação de um futuro desejado e dos meios
próprios para fazê-lo realidade, se dá num certo horizonte temporal, no interior do qual
ele evolui. Mas o projeto não se termina no ambiente onde sua evolução é previsível.
Ele diz respeito primeiramente ao autor, que se dá uma perspectiva de um futuro
esperado.
A perspectiva existencialista em direção semelhante aponta as contribuições de
Sartre para o entendimento da noção de projeto e futuro. Segundo Schneider (2002), o
homem é presença que se lança em direção ao seu projeto, aquilo que ainda não é e
busca ser, às suas possibilidades, que nada mais são do que seu futuro. O devir é
aquilo que se persegue, se projeta, mas não se pode alcançar, pode-se desviar seu
rumo, posto que ele ainda não é. O futuro é o que ainda não se é, na busca de ser. No
entanto, a autora ressalta que ocorre uma decepção ontológica cada vez que a realidade
humana desemboca no futuro, pois ele não se deixa alcançar; quando nele chegamos
já é passado e isto quer dizer que o homem não se totaliza, não se completa, ele é
sempre uma totalização em curso, uma busca incessante de realização, um vir-a-ser.
Isto mostra que o ser do homem é uma infinidade de possibilidades. Esta autora destaca
que o homem é seu passado (que é o que é) e seu futuro (que não é ainda) enquanto
presença no mundo; e essa dinâmica temporal desenvolve-se como processo de
totalização incessante da experiência nessas três dimensões.
Ehlich (2002) com objetivo de analisar, em que medida, o “Projeto de Ser”,
incrustado na psicologia de Sartre, vem a contribuir para a superação da lacuna teórica
apontada por Bohoslavsky com respeito à relação do homem com o futuro, aponta
alguns elementos importantes a serem considerados: a “relação com o futuro” a partir
das relações com os outros, com o passado, com o contexto social, com a condição
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material real em que a pessoa se encontra; a problemática filosófica do “projeto
pessoal”; “articulação entre o individual e o social”, da possibilidade da escolha e
suas restrições, esclarecendo o homem como sujeito de suas escolhas. Neste sentido
Maheirie e França (2007) acrescentam que o projeto de ser contempla as condições
dadas e o campo dos possíveis que orienta a ação para um destino ou para outro, o
sujeito pertence a um determinado contexto sócio-econômico, o que lhe viabiliza alguns
caminhos em detrimento de outros; e mesmo aqueles caminhos que lhe são vedados,
aparecem a ele na qualidade de ausência, de empobrecimento.
Numa concepção sócio-histórica, Bock e Liebesny (2003) trazem a idéia de que
compreender o projeto de futuro dos jovens significa conhecer a sociedade brasileira em
seus valores e formas de educar a juventude, e, portanto, a sociedade também está
implicada neste estudo. Para as autoras apesar da importância de se conhecer os projetos
de vida dos jovens, poucos estudos têm sido realizados nesta direção, em decorrência
da adolescência ser pensada enquanto uma fase de incompletude e imaturidade, e isso
faz com que a sociedade adulta desvalorize seus projetos por considerá-los frutos de um
período de transição. Estas reflexões nos levam a delinear o projeto em perfis mais
consistentes, considerando sua característica temporal, dialética e social.
Finalmente, o projeto e a escolha profissional se articulam, como afirma Coutinho
(1993), pois a escolha é o momento no qual o sujeito reflete e articula seu projeto
profissional, buscando assim determinar a trajetória de sua futura relação produtiva com
o mundo. Soares (2002) ressalta a condição “multi determinada” da escolha, sendo esta
influenciada por fatores políticos, econômicos, sociais, educacionais, familiares,
psicológicos. Assim a escolha profissional não se trata de um processo linear, por envolver
uma gama de escolhas subjacentes à escolha principal, por exemplo: o retorno financeiro,
status social decorrentes do tipo de valor atribuído à atividade exercida, aspectos como
preconceitos e expectativas em relação ao gênero na profissão, tempo de dedicação que
a profissão/emprego vai demandar (o que pode ir inclusive confrontar com outros desejos
do indivíduo), as possibilidades de inserção profissional, entre outros.
Dentre as obras encontradas e categorizadas, foram analisadas e serviram de
subsídio de discussão com os resultados deste estudo as vertentes que compreendem
a concepção de identidade e processo de construção do projeto profissional à luz das
relações sociais concretas que o indivíduo estabelece em sua história de vida. Algumas
perspectivas já foram superadas, como aponta Mayorga (2006) em artigo no qual
realiza um apanhado teórico sobre as concepções psicológicas acerca da identidade e
também da adolescência (perspectiva biologicista, internalista, fenomenológica e
narrativa) trazendo uma noção de sujeito separado do mundo, com características
universais e que através do método científico, pode alcançar as verdadeiras leis da
natureza. Estas concepções, segundo a autora, compõem o quadro do paradigma dito
dominante, devendo ser superado por estudos e pesquisas que abarquem o sujeito
como ser inserido num contexto social concreto e de relações.
A fim de estudar como os estudantes formandos de uma universidade pública
articulam seu projeto de futuro com a construção de sua identidade pessoal e
profissional realizamos um estudo qualitativo, apresentado a seguir.
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Método
Participantes
Selecionamos os participantes do estudo empírico com base no critério “ser
estudante em final de curso de graduação”. Incluiu-se nessa amostra pessoas
regularmente matriculadas na disciplina optativa “Orientação e Planejamento de
Carreira”, não necessariamente no último período, mas indicando alguma preocupação
com a carreira futura. Esta disciplina é oferecida pelo Departamento de Psicologia, e
atende a todos os cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Catarina
visando estimular os alunos à reflexão na busca pelo autoconhecimento, direções e
motivações envolvidas nas suas escolhas profissionais, perspectivas de projeto de
futuro pessoal e profissional através de um planejamento de carreira.
Participaram dessa pesquisa 11 pessoas, nomeados como “formandos”, com
idade entre 23 e 37 anos. Consideramos que os estudantes em fim de curso universitário
se encontram no início da fase adulta, denominada aqui, adultez jovem. Segundo
Teixeira6 (2002) este período, é marcado pela consolidação das opções e valores
pessoais, integrados agora em um projeto de vida e profissional mais elaborado e
realista do que aquele esboçado na adolescência: (...) É o momento de transitar da
identidade de estudante para a de trabalhador, não porque para a maioria das pessoas
é vital a remuneração que o trabalho proporciona, mas também porque o trabalho é
uma forma de inserir-se na sociedade, de estar em relação com o outro e de ser
reconhecido socialmente (...).
A transição da universidade para o mercado de trabalho segundo Teixeira e
Gomes (2004, 2005) pode ser caracterizada como um período no qual o jovem investiga
as possibilidades existentes em sua profissão e procura experimentar-se em diferentes
papéis; além de implicar em uma reavaliação das escolhas realizadas, das experiências
vividas até o momento e, também, uma antecipação do que está por vir, tanto em
termos profissionais, como não profissionais.
Procedimento
Com o objetivo de recolhermos a produção subjetiva dos participantes que
permitisse uma compreensão sobre o projeto de futuro, foi solicitado a cada um dos
estudantes que escrevesse uma redação com o tema “Eu e meu futuro”. As redações
foram escritas em uma folha padronizada com um cabeçalho de identificação pessoal.
Um termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue juntamente com explicação
verbal sobre os objetivos da pesquisa.
A aplicação da redação foi feita de forma coletiva no mesmo local da Universidade
onde as aulas eram ministradas e durante um período de aula previamente cedido pelo
professor da disciplina. Antes da aplicação, os participantes receberam explicações
6
A adultez jovem pode ser entendida como um novo status (psicológico e social) ao qual o indivíduo ascende
à medida que vai cumprindo ao menos algumas das tarefas culturalmente esperada dele.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
sobre os objetivos e considerações éticas do estudo, ressaltando que se tomou o
cuidado de não mencionar palavras, termos ou expressões que pudessem influenciar
no conteúdo das redações (como projeto, identidade, futuro). No que se refere ao tema
da redação, este foi proposto de forma ampla a fim de permitir recolher os significados
sobre a escolha e projetos de futuro profissional dos formandos, livre de idéias
preconcebidas e de hipóteses preestabelecidas.
Para a análise das redações produzidas aplicamos a análise do conteúdo, método
proposto por Bardin (1977), considerando o texto como um meio de expressão
construído no processo de pesquisa. De acordo com Bardin (1977, p. 31), a análise
de conteúdo interpretativa se caracteriza como “um conjunto de técnicas de análise
das comunicações”. As narrativas foram analisadas utilizando-se um procedimento
inspirado na análise de conteúdo, seguida de uma análise temática, desenvolvida na
pesquisa de doutorado de Soares (1997): inicialmente retiram-se do texto os temas
mais significativos, depois se realiza a sua organização, a ligação entre eles, o
encadeamento dos temas no interior de uma redação, aqueles que vêm
espontaneamente, como aparecem, ligados a quais situações e como se articulam
dentro do texto, os diferentes temas.
Resultados e discussão
O perfil dos alunos da amostra é predominantemente do gênero feminino; faixa
etária entre 22 a 27 anos, com um caso de 37 anos. Outros dados obtidos através do
cabeçalho de identificação da redação demonstram que quatro estudantes são alunos
de Economia, dois de Engenharia Química, um de Engenharia Mecânica, um de
Engenharia de Produção Mecânica, um de Letras, de Serviço Social. As profissões dos
pais relatadas foram: Engenheiro Químico, Engenheiro Agrônomo, Autônomo,
Economista, do lar (três ocorrências), Caminhoneiro, Funcionário público, Doméstica,
Costureira, Motorista de ônibus, Recepcionista, Representante de vendas, Professor,
Aposentado (03 ocorrências) e ainda uma ocorrência de pai falecido e uma de pai
desconhecido.
Os dados supracitados demonstram uma heterogeneidade na amostra quanto
ao curso de graduação e também em relação a profissões dos pais, já que somente
alguns exercem atividades de ensino superior. Em relação à idade, a amostra é
relativamente homogênea e no que diz respeito à fase do curso, se encontram,
predominantemente entre oitavo e décimo semestre. Entre os estudantes oito relataram
exercer atividade remunerada entre monitoria acadêmica, auxiliar administrativo e
atendente bancário.
Nas redações propriamente ditas percebemos dois núcleos que se articulam na
produção da identidade e projeto profissional ou de futuro da amostra, cada qual com
subnúcleos: dimensão subjetiva (desejos e percepção temporal) e dimensão objetiva
(Escolha/estratégias e atitudes em relação ao futuro e aspectos contextuais/de
relacionamento).
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Eixo temático
Projeto de futuro/de vida
Atitudes e estratégias em relação ao futuro
Realização profissional
Bem-estar
Recursos Financeiros
Família
Formandos
Palavras/expressões
Modesto, desejos, expectativas, presente, longo prazo,
realização, preparação.
Especialização, mestrado, escolhas são cruciais, medo de
falhar, sorte, insegurança/incerteza.
Prazer, bom emprego, gostar de trabalhar, ganhar bem,
estabilidade, mérito, desafios, competência técnica,
valorização, recompensa.
Paz, qualidade de vida, harmonia.
Estabilidade, ganhar bem, casa própria, carro, padrão de
vida suficiente para viver.
Casar, ter uma mulher, filhos, demanda gastos.
Quadro 1 – Palavras e expressões por eixos temáticos com maior ocorrência para o grupo
de estudantes pesquisados
A seguir a ilustração em alguns dos trechos coletados:
- “Minha perspectiva para o futuro profissional é conseguir um emprego onde
eu possa ter estabilidade, enfrentar desafios e mostrar minha competência técnica”.
(Dig, 27 anos, formando, Engenharia Mecânica).
-“O futuro que busco é estar em harmonia: corpo, mente e com as pessoas.
Onde a preparação profissional consiga um trabalho que me realize, valorizandome pelo trabalho exercido e recompensada a altura”. (S@1, 23 anos formando
Economia)
-“Hoje, estou quase terminando o curso, e após ter conquistado, principalmente,
conhecimento e capacidade técnica para exercer minha profissão, vou buscar atingir
meu objetivo maior. Só que agora com idéias um pouco mais elaboradas”. (Bia, 22
anos, formanda Engenharia Química).
A partir desses relatos percebe-se que as dimensões subjetiva e objetiva aparecem
nos relatos de forma dinâmica e sem contornos que as delimitem. Aspectos como
valorização, harmonia se entrelaçam com enfrentamento de desafios, estabilidade e
exercício da profissão. Em comum a evidência de que, num futuro por vir, o exercício da
profissão escolhida surge como possibilidade de realizações pessoais e profissionais.
Com isso, percebe-se a ação como foco central para nos reconhecermos no mundo, e
ela se dá e é reconhecida principalmente através do trabalho, que representa a parte
objetiva da construção da identidade. Conforme aponta Ciampa (1987) se o
desenvolvimento da identidade dependesse apenas da subjetividade, representada
pelos desejos, ficaria menos difícil reconhecê-la, mas depende também da objetividade.
Por isso o homem é desejo, é trabalho. “O desejo o nega, enquanto dado; o trabalho é
o dar-se do homem, que assim transforma suas condições de existência, ao mesmo
tempo em que o desejo é transformado” (Ciampa, 1987, p.201).
Sobre a questão do projeto de vida e de futuro os resultados apontam que os
formandos privilegiam os frutos do trabalho, a longo prazo, como objetivo e, manifestam
desejos e expectativas positivas sobre isso (realização, tranqüilidade). Paradoxalmente
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o tempo futuro aparece como algo imprevisível, duvidoso, o presente e o futuro
desconexos, sem relação temporal causal estabelecida. Uma possível hipótese sobre
essa contradição foi apontada por Leccardi (2005) em sua pesquisa, onde aponta o
fato de que a realidade objetiva está causando aversão e medo, podendo ocasionar
nos formandos a construção de projetos de futuro em curto prazo.
- “Atualmente meu futuro é incerto, estou inseguro. Não tenho claramente os
meus objetivos, mas tenho certeza que no fim dará tudo certo, pois foi assim a minha
vida inteira. Quase tudo que faço no presente, faço pensando a longo prazo (no
futuro)”.(Kmz, 23 anos, formando em Engenharia de Produção Mecânica)
Sobre a questão de remuneração os recursos financeiros são descritos como
importantes na medida em que oferecem estabilidade, todavia o prazer de trabalhar foi
dito como mais importante do que ganhar dinheiro, e sobre isso, os formandos
descrevem em relação à constituição da sua própria família (casar, ter filhos, demanda
gastos) o quesito “condições financeiras” como sine qua non para isso.
- “Os meus planos são após me formar voltar para a Alemanha e lá fazer o
mestrado de especialização e estabelecer contatos para futuros empregos. E quando
voltar poder trabalhar e ter estabilidade financeira para então ter a minha família”
(Tat, 22 anos, Engenharia Química)
A análise das redações apontou também que os formandos mencionam a intenção
de realizar especialização (mestrado, doutorado, MBA) e se referem as “escolhas certas”
como cruciais. Apresentam elementos como insegurança e sorte como importantes
para suas vidas futuras. Sobre isso Teixeira e Gomes (2005) destacam que os formandos
puderam vivenciar a identidade profissional através de estágios e experiências, por
exemplo, e tem em seu campo de possibilidades dados que os situam na realidade
objetiva referente à profissão.
O sentimento dos indivíduos prestes a se lançarem no mercado de trabalho esta
contextualizado num país no qual se observa, segundo Druck (2001), certa epidemia da
qualificação. “O debate acerca da necessidade de qualificar a força de trabalho em
nosso país tomou conta de todos os setores da sociedade – instituições
governamentais/oficiais, ONG´s, sindicatos, empresas, universidades – enfim a
qualificação tem sido colocada como a grande solução para os problemas de desemprego
e subemprego no Brasil” (p.82). Segundo a autora, é importante perceber de forma
subjacente que o mito da qualificação e da competência trata de responsabilizar os
indivíduos que trabalham para desenvolver aptidões e habilidades requeridas pelas
mudanças tecnológicas e organizacionais que criam novas situações de trabalho a fim
de garantir produtividade e competitividade às empresas.
Segundo Coutinho, Krawulski e Soares (2007) na contemporaneidade estão
presentes as dimensões da mudança e da continuidade, requerendo dos sujeitos que
se identifiquem, a cada momento, com algo novo, e reconheçam em suas trajetórias
uma dimensão temporal, integrando passado, presente e futuro, no mundo laboral. De
um lado, os trabalhadores ainda precisam vender sua força de trabalho sob condições
que lhes são determinadas pelo capital. De outro, as mudanças nas formas de emprego
e o desemprego estrutural, entre outras, trazem exigências de novas competências,
habilidades e talentos para se manter empregado. Todas estas situações levam o sujeito
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a ter que enfrentar cotidianamente o novo e reescrever sua trajetória de vida e sua
identidade.
Os formandos, ainda não ingressaram no mundo do trabalho, mas já demonstram
a preocupação em relação às dificuldades deste ingresso, uma vez que cada vez mais
lhes é exigido qualificação, enquanto o mercado se oferece fragmentado e com altos
níveis de desemprego. Além disso, não é somente a escolha do caminho profissional
que se impõe a estes jovens, já que as escolhas são alem de mutideterminadas,
multideterminantes: ou seja, a escolha de uma profissão, especialização ou constituição
familiar se apresentam imbricadas e com reflexo uma nas outras. Desta forma as
angústias desse grupo se localizam justamente no conflito entre os desejos e a realidade
objetiva na qual se encontram.
Considerações finais
O grupo de formandos apresentou relatos com ênfase na insegurança em relação
ao futuro profissional, como se preparar para conseguir emprego, em qual área trabalhar,
como preocupações a curto e médio prazo. A estabilidade financeira foi mencionada
como pré-requisito para a constituição familiar mais a longo prazo, e ainda, o prazer no
trabalho foi considerado mais importante do que alta remuneração. Podemos relacionar
esses dados com a idéia de Ehrlich (2002) e Schneider (2002), numa perspectiva
existencialista, apontando o futuro como realidade para se chegar à plenitude ontológica,
e aparece como o que falta para ser. Assim, o futuro é o que nos faz agir, é o que
possibilita cada um de nossos atos, e aparece justamente na relação concreta com o
mundo. Isso equivale a dizer, segundo as autoras, que toda a ação remete à totalidade
do ser que projetamos ser.
Sobre os sete padrões diferenciados de transição (profissional, lúdica,
experimental, progressiva, precoce, precária e desestruturante) propostos por Guerreiro
e Abrantes (2005), pode-se perceber que os formandos aproximam-se do padrão de
transições profissionais, pois concentram seus objetivos no prolongamento dos
estudos, relegando os projetos familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos
longínquo.
Este estudo, de caráter exploratório, aponta diversos aspectos do projeto de
futuro, identidade e escolha profissional. Um deles é o contexto atual das relações de
trabalho que reforça o desejo da classe trabalhadora de superar sua condição de
exploração ao mencionarem o desejo de se especializarem, demonstrarem competência
técnica e adquirir estabilidade financeira. Há o interesse pelo ensino superior como
forma de realizar os desejos oprimidos pela condição social e a constatação ao final de
que a universidade é um espaço importante para adquirir conhecimento, por vezes,
inerte, mas não oferece as almejadas oportunidades, restando assim um prolongamento
do aperfeiçoamento profissional, dos estudos.
Os projetos de futuro aparecem carregados de idealização e de sentimentos de
insegurança e ansiedade por parte dos formandos. Eles buscam estabilidade financeira,
diante de um mercado de trabalho flexibilizado e de mudanças rápidas e também querem
paz e qualidade de vida.
76
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Como próximo passo no estudo do tema propõe-se uma pesquisa em maior escala
em relação ao número de sujeitos, e também um estudo mais aprofundado sobre
possíveis especificidades de alunos de diferentes cursos de graduação, histórico
escolar e classe social a fim de obter dados mais precisos sobre a relação das trajetórias
sócio profissionais com a elaboração de um projeto de futuro.
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Vieira, A. A. (2003). A feminização do magistério de séries iniciais da rede pública do
distrito federal {Resumo} Disponível: <http://servicos.capes.gov.br/capesdw/>
Acessado: 07/11/2006
Recebido em agosto de 2007
Aceito em fevereiro de 2008
Larissa Hery Ito: graduando em Psicologia (UFSC); bolsista de Iniciação Científica PIBIC-UFSC/CNPq,
período de 2006-2007.
Dulce Helena Penna Soares: doutora em Psicologia Clínica (Universidade Louis Pasteur, França); professora
Adjunta IV de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Endereço para correspondência: [email protected]
80
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.81-97, jan./jun. 2008
Um estudo prospectivo sobre o estresse cotidiano na 1ª série
Edna Maria Marturano
Elaine Cristina Gardinal
Resumo: Com base em uma concepção da 1ª série do ensino fundamental como transição de
vida, foram investigadas associações entre indicadores de desempenho / comportamento, na
educação infantil e na 1ª série, e o estresse cotidiano da 1ª série, tal como percebido pelas
crianças nos domínios de desempenho, relação família-escola, relacionamentos com os pares e
demandas não-acadêmicas. Participaram 110 crianças e seus professores, nos dois níveis de
ensino. Os instrumentos utilizados foram: Inventário de Estressores Escolares,Teste de Desempenho Escolar, uma sondagem de leitura e questionários para avaliação do desempenho e do
comportamento pelo professor. Nos resultados, o melhor desempenho na educação infantil ou
na 1ª série foi associado a menos estresse nos domínios do desempenho e da relação famíliaescola. Crianças com nível alto de problemas de comportamento na 1ª série relataram estresse
mais elevado em todos os domínios do cotidiano escolar, quando comparadas a crianças com
nível baixo de problemas.
Palavras-chave: estresse cotidiano, transição escolar, desempenho.
A prospective study on daily hassles in first grade
Abstract: Based on a life-transition view of first grade, this study explored associations between
achievement and behavior, measured in kindergarten and first grade, and children’s perceptions
of first grade daily hassles in four domains: achievement, family-school relation, relationships
with peers, and nonacademic demands. One hundred and ten children participated, as well as
their kindergarten and first grade teachers. The instruments used were the School Hassles
Inventory, the School Achievement Test, a reading task, the Teacher Report Form items for the
assessment of children’s achievement, and a questionnaire for the assessment of children’s
behavior. Higher achievement scores in kindergarten or first grade related to lower stress in first
grade, in the domains of achievement and family-school relation. Children with high levels of
behavior problems in first grade reported higher stress in all domains of their school daily life,
when compared with children with low levels of behavior problems.
Key words: daily hassles, school transition, school achievement.
Introdução
Experiências de vida estressantes constituem uma ameaça potencial ao
desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Eventos traumáticos agudos,
adversidade crônica, acúmulo de eventos de vida adversos e tensões cotidianas têm
sido associados, em diversos graus, a sintomas de psicopatologia (Grant, Compas,
Stuhlmacher, Turm, McMahon & Halpert, 2003). Este artigo trata de tensões cotidianas,
conhecidas na literatura científica como “daily hassles” e definidas como “exigências
ou demandas irritantes, frustrantes, perturbadoras, que em certo grau caracterizam as
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
81
transações diárias com o ambiente” (Kanner, Coyne, Schaefer & Lazarus, 1981, p. 3).
Para muitas crianças, as principais fontes de estresse se encontram em situações
recorrentes do dia a dia, como brigas entre os pais, práticas educativas inconsistentes,
gozações de colegas, cobranças na escola (Elkind, 2004; Vilela, 1996).
A escola é vista pelas crianças como uma importante fonte de estresse cotidiano,
decorrente seja de pressão por desempenho acadêmico, seja de dificuldades nos
relacionamentos, tais como rejeição e agressão pelos colegas (Barrett & Heubeck,
2000; Dell’Aglio & Hutz, 2002; Kraag & cols., 2006). Em diferentes sistemas de ensino,
as transições escolares parecem ser momentos em que as crianças estão mais
vulneráveis ao estresse (Elias, 1989; Lipp, Arantes, Buriti & Witzig, 2002), porque
essas transições envolvem, em si mesmas, diversos componentes de experiências com
alto potencial estressante, como mudanças (por exemplo, de escola), perdas (por
exemplo, por afastamento dos amigos da escola anterior), pressão (por exemplo, por
desempenho) e imprevisibilidade (por exemplo, pela quebra na rotina) (Elkind, 2004).
Este artigo trata do estresse cotidiano na transição da 1ª série. As experiências na
1ª série têm sido apontadas como decisivas na trajetória escolar das crianças, podendo
afetar seu desempenho e comportamento nas séries subseqüentes (Entwisle &
Alexander, 1998). Tais experiências podem se tornar fontes de estresse. Lipp e
colaboradores (2002) encontraram mais sintomas de estresse nos alunos da 1ª série,
em comparação com os colegas de séries mais avançadas. Rende e Plomin (1992)
verificaram que as situações apontadas pelas crianças como as mais estressantes na 1ª
série estavam ligadas aos relacionamentos com os colegas (ser alvo de agressão,
provocação ou gozação) e com o professor (não se dar bem com o professor, ser
repreendido pelo professor). Ladd, Birch e Buhs (1999), em pesquisa com alunos do
jardim de infância, verificaram que aspectos estressantes do relacionamento com os
colegas (por exemplo, rejeição) e com o professor (por exemplo, conflito), eram preditores
potentes de adaptação à escola, prejudicando o desempenho e a participação da criança
nas atividades de sala de aula. Estudos longitudinais sugerem efeitos persistentes do
modo como se resolvem essas dificuldades, não apenas nos domínios do
relacionamento com os pares (Ladd & Troop-Gordon, 2003) e com o professor (Hamre
& Pianta, 2001; Hughes & Kwok, 2006, 2007; Silver, Measelle, Armstrong & Essex,
2005), mas também no domínio do desempenho (Kwok, Hughes & Luo, 2007).
Apesar de se reconhecer a 1ª série escolar como um momento de maior
vulnerabilidade ao estresse, raros estudos investigaram a percepção das próprias
crianças sobre o estresse associado a essa transição; aqueles que o fizeram
consideraram ”estresse escolar” como um conceito unitário (por exemplo, Rende &
Plomin, 1992; Trivellato-Ferreira, 2005). No presente estudo, o estresse da 1ª série é
focalizado segundo uma perspectiva que considera a visão da criança sobre o estresse
cotidiano em diferentes domínios de sua vida escolar. O modelo é inspirado na
perspectiva de Elias (1989) sobre transições escolares como transições de vida.
Modificando a perspectiva original no sentido de atender à especificidade da
transição para o ensino fundamental, propomos que as demandas da 1ª série requerem
um trabalho de adaptação com pelo menos quatro tarefas: (a) ajustar-se às mudanças
nas definições de papéis e comportamentos esperados; (b) situar-se na rede social
82
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
ampliada; (c) adequar-se às normas e regras, explícitas e implícitas, do novo contexto;
(d) lidar com o estresse associado à imprevisibilidade e às incertezas inerentes à situação
como um todo. O processo de adaptação é visto em uma perspectiva dinâmica e
transacional: a criança traz para a escola um repertório prévio para lidar com os desafios
da transição, e esse repertório se reconstrói dia a dia no novo contexto, mediante as
interações entre a criança em desenvolvimento e as propriedades mutantes do ambiente.
As três tarefas adaptativas específicas (a, b e c) são associadas a domínios do cotidiano
escolar, conforme seu potencial gerador de estresse, possibilitando a formulação de
hipóteses quanto a fatores influentes no estresse em cada domínio.
As associações que propomos entre tarefas e domínios decorrem de nossa reflexão
sobre a natureza de cada tarefa. Assim, a tarefa de ajustar-se às mudanças nas definições
de papéis seria vinculada aos domínios do desempenho e da relação família-escola,
que envolvem situações mais diretamente implicadas na definição do papel de aluno
do ensino fundamental, com suas demandas e responsabilidades. À tarefa de situar-se
na rede social ampliada corresponde, predominantemente, o domínio do relacionamento
com os companheiros, que apresenta os principais desafios dessa tarefa. A tarefa de
adequar-se às normas e regras do novo contexto tem relação com um domínio de
demandas não acadêmicas, envolvendo questões relacionadas a horários, rotinas,
disciplina, limites e segurança.
A previsão básica é que a criança experimentará maior estresse em domínios da
vida escolar cujas demandas específicas excedem seus recursos de enfrentamento, ou
seja, diante de um evento potencialmente estressante, ela estará mais ou menos
vulnerável ao estresse, de acordo com seus recursos pessoais, suporte social
disponível, etc. Supõe-se que estão mais protegidas contra o estresse da transição
crianças que: (a) passaram pela educação infantil (Entwisle & Alexander, 1998); (b)
contam com suporte da família para lidar com a transição (Hughes & Kwok, 2007); (c)
iniciam a primeira série com recursos cognitivos, interpessoais, de auto-regulação e de
realização de tarefas escolares compatíveis com as demandas do novo contexto (Hughes
& Kwok, 2006; Hughes, Zhang & Hill, 2006; Ladd & cols., 1999).
Em pesquisa anterior, investigou-se a hipótese (a), obtendo-se a confirmação de
que as crianças que passaram pela educação infantil tendem a estar menos vulneráveis
a eventos potencialmente estressantes na 1ª série (Trivellato-Ferreira & Marturano, no
prelo). No presente estudo o foco são os recursos da criança mencionados na hipótese
(c). São exploradas associações entre o estresse da 1ª série e características da criança
apontadas como relevantes para a adaptação da criança à escola. Em relação a precursores
de estresse, as seguintes previsões são exploradas: (a) as crianças com habilidades
cognitivas específicas mais desenvolvidas, comportamento mais adaptativo e hábitos
de trabalho mais eficientes ao ingressarem na 1ª série estão mais protegidas do estresse
nos domínios do desempenho e da relação família-escola; (b) as crianças com dificuldades
prévias nos relacionamentos estão mais vulneráveis ao estresse no domínio das relações
com os pares; (c) crianças com auto-regulação pobre, expressa em dificuldades
comportamentais, estão mais vulneráveis ao estresse no domínio das demandas não
acadêmicas. Em relação às associações entre estresse e outras variáveis da 1ª série,
foram feitas previsões de correspondência entre: (a) dificuldades acadêmicas e estresse
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
83
nos domínios do desempenho e da relação família-escola; (b) dificuldades nas relações
com os colegas e estresse no domínio dos relacionamentos com os colegas.
A investigação tem dois objetivos: (a) identificar precursores de estresse escolar,
relacionados aos recursos da criança no final da educação infantil; (b) investigar
associações entre estresse em diferentes domínios do cotidiano da 1ª série e indicadores
de desempenho e comportamento da criança no final da série.
Método
Contexto e participantes
A investigação foi realizada em uma cidade do interior de São Paulo com
aproximadamente 23.000 habitantes. A cidade tem seis escolas públicas para ensino de
base, compreendendo educação infantil – EI – e fundamental – EF. São duas escolas
de EI, uma com EI e EF e três com EF apenas. Participaram do estudo 110 alunos que
freqüentavam uma das três escolas de EI no início da pesquisa, sendo 58 meninos e 52
meninas, com idades entre 5 e 7 anos. Foram incluídas no estudo somente crianças que
estavam no seu primeiro ano de experiência em EI. Com exceção de nove crianças, que
permaneceram na mesma escola, todas as demais mudaram para uma das três escolas
de EF quando ingressaram na 1ª série. Também participaram da coleta 20 professores
(oito na EI e 12 na 1ª série).
Instrumentos
Estresse cotidiano na 1ª série. Foi empregado o Inventário de Estressores Escolares
– IEE, derivado da entrevista proposta por Rende (1994), que investiga a ocorrência de
situações da vida escolar, bem como a intensidade de seus efeitos. Os itens são
apresentados oralmente e abrangem situações cotidianas em quatro domínios:
desempenho acadêmico (7 itens), relação família-escola (5), relacionamento com os
companheiros (5) e adaptação a demandas não acadêmicas do contexto escolar (13).
Exemplos de itens em cada domínio são: Não consegui terminar as lições na sala de
aula (desempenho acadêmico); A professora mandou bilhete quando eu não estava
aprendendo (relação família-escola); As crianças mais velhas me gozaram
(relacionamento com os companheiros); Eu me machuquei na escola (demandas não
acadêmicas) A criança informa se o item aconteceu com ela durante o ano e, caso tenha
acontecido, indica o quanto aquela situação a perturbou (nada, só um pouco, mais ou
menos, muito). Na avaliação das respostas, atribui-se valor zero ao item, quando este
não ocorreu, e um para resposta que indica ocorrência. A cada item ocorrido acrescentase um, dois ou três, de acordo com o grau do efeito relatado (um = perturbou um
pouco; três = perturbou muito). O escore total é a soma dos escores dos itens.
Em estudo prévio em escolas públicas de outro município, em que o IEE foi
aplicado nos meses de outubro a dezembro, a 70 alunos ingressantes na 1ª série
(Trivellato-Ferreira, 2005), verificou-se que (a) as crianças compreenderam as instruções,
dando respostas coerentes com as de suas mães (correlação significativa entre 0,48 e
0,55); (b) o escore total no IEE foi associado a sintomas de estresse.
84
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Desempenho na EI. Foi avaliado por meio de dois instrumentos. O primeiro foi a
Sondagem de Leitura proposta por Escolano (2004), feita por meio da exploração de um
livro de história infantil ilustrado. O segundo instrumento foi a Avaliação do
Desempenho pelo Professor – TRF-D, que faz parte da avaliação de competência
social do TRF (Teacher Report Form) de Achenbach (Silvares, 1998). É formada por
duas escalas de cinco pontos, onde a professora informa o nível do desempenho atual
do aluno em Português e Matemática (nível bastante baixo, nível um pouco baixo, nível
médio, nível um pouco acima da média, nível bastante acima da média).
Desempenho na 1ª série. Foi avaliado por meio de dois instrumentos: a Avaliação
do Desempenho pelo Professor – TRF-D e o Teste de Desempenho Escolar – TDE
(Stein, 1994), que fornece normas para classificação do desempenho acadêmico por
meio de três sub-testes: leitura, escrita e aritmética.
Comportamento na EI e na 1ª série. Foi avaliado com o QCDCC – Questionário
para Caracterização do Desempenho e do Comportamento da Criança no Ambiente
Escolar (Machado, Figueiredo & Selegato, 1989), preenchido pelo professor. O QCDCC
compreende itens de adjetivos bipolares que qualificam o comportamento da criança
em sala de aula (por exemplo, explosivo – controlado). Cada item é composto por uma
escala de sete pontos, variando de +3 (maior ocorrência do comportamento problema)
a –3 (maior ocorrência do comportamento não-problema). O professor deve assinalar
um dos valores, conforme avalia o comportamento do aluno. Os itens são agrupados
em três conjuntos, focalizando, respectivamente, o modo como o aluno se comporta
em relação ao professor (10 itens), aos colegas (8 itens) e à tarefa escolar (14 itens).
Nenhum dos instrumentos utilizados tem validação para amostra representativa
da população brasileira. Com exceção do TDE e do TRF-D, foram construídos para fins
de pesquisa.
Procedimento de coleta de dados
Como parte de um estudo longitudinal cujo objetivo geral era investigar, na EI,
precursores de adaptação à 1ª série, foram feitas duas coletas de dados, no segundo
semestre da EI e no segundo semestre da 1ª série. Ambas as coletas ocorreram entre os
meses de setembro e novembro. Os pais assinaram um Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido, autorizando a participação das crianças na pesquisa. A coleta foi
conduzida pela segunda autora. Na EI, os professores responderam ao QCDCC; as
crianças foram avaliadas individualmente com a Sondagem de Leitura, em sala cedida
pela escola. Na 1ª série o TDE e o IEE foram aplicados em sessão individual com cada
criança e os professores responderam ao QDCC.
Procedimento para análise dos dados
Os dados obtidos por meio do TDE e do TRF foram processados de acordo com
as respectivas instruções. Em relação ao IEE, foi computada a intensidade do efeito
atribuído pelas crianças a cada item; os escores dos itens foram somados, obtendo-se
escores de intensidade do estresse nos domínios de desempenho, relacionamento
com os colegas, relação família-escola e adaptação às demandas não acadêmicas do
contexto escolar, bem como na escala geral.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
85
Na Sondagem de Leitura, a análise foi efetivada com base na classificação em
quatro níveis, proposta por Escolano (2004): a) a criança não reconhecia nenhuma
letra; b) reconhecia pelo menos uma letra, mas não a nomeava; c) reconhecia e nomeava
alguma letra; d) lia pelo menos uma palavra corretamente; e) lia pelo menos uma frase
corretamente. As cinco categorias correspondiam a uma pontuação de zero a quatro
em uma escala ordinal.
Para análise dos dados do QCDCC, os escores dos itens foram transformados da
seguinte forma: ao pólo +3, indicativo de comportamento problema, foi atribuído o
valor 7; ao pólo –3 foi atribuído o valor 1. Os escores dos itens que compõem cada uma
das três escalas foram somados, obtendo-se escores de problemas de comportamento
em relação ao professor, aos colegas e à tarefa.
Resultados
Inicialmente, foi verificada a consistência interna das medidas para as quais não
havia essa informação na literatura. As análises foram processadas por meio do
coeficiente alfa de Cronbach. Para as escalas do IEE foram obtidos os seguintes valores
de alfa: domínio do desempenho acadêmico = 0,60; domínio da relação família-escola =
0,57; domínio do relacionamento com os companheiros = 0,73; domínio das demandas
não acadêmicas = 0,68; escala geral = 0,84. No QCDCC, o coeficiente alfa variou entre
0,91 (escala de comportamentos em relação ao professor) e 0,94 (escala de
comportamentos em relação à tarefa).
Também foi verificado se o fato de a coleta de dados ter-se estendido por três
meses afetou os resultados no IEE, já que nesse inventário a criança informa sobre
acontecimentos ocorridos cumulativamente durante o ano. A análise de variância de
Kruskal-Wallis não detectou diferença nos escores do IEE entre as crianças avaliadas
em setembro, outubro e novembro.
Como a distribuição dos dados de todas as variáveis se afastava da normalidade
(teste de Komogorv-Smirnov), foram utilizados testes não paramétricos na análise
estatística. As distribuições dos escores médios nos quatro domínios foram
comparadas, duas a duas, por meio do Teste de Wilcoxon para amostras dependentes.
Cinco dentre as seis comparações indicaram diferenças significativas. O domínio do
desempenho (M = 1,79) se mostra menos estressante que todos os demais, ao passo
que o das relações com os companheiros (M = 3,25) é mais estressante que os outros.
O domínio das demandas não acadêmicas (M = 2,9) e o da relação família-escola (M =
2,75) não diferem entre si. Os valores de Z foram significativos para p < 0,001 em todas
as diferenças detectadas.
Para investigar associações entre o estresse da 1ª série e demais variáveis, foram
calculadas correlações com o coeficiente rho de Spearman. A Tabela 1 apresenta as
correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na EI e as medidas de
estresse na 1ª série. Das 25 correlações indicadas na Tabela 1, dez são significativas,
com valores modestos.
86
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Tabela 1 – Correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na educação infanti
e estresse na 1ª série
Estresse na 1ª série
Variáveis da educação infantil
Domínios
DA
FE
Total
C
NA
Desempenho sondagem leitura
-0,20*
-0,08
-0,20*
-0,12
-0,19*
Desempenho TRF-D
-0,29**
-0,26**
-0,29**
-0,24*
-0,34**
Probl. comportamento QCDCC:
– Em relação à tarefa
-0,10
0,16
0,25**
0,10
0,18†
– Em relação ao professor
-0,06
-0,02
-0,02
-0,01
-0,04
– Em relação aos colegas
0,10
0,22*
0,17†
0,05
0,14
Nota: domínios de estresse: DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C =
companheiros; NA = demandas não acadêmicas
* p < 0,05; ** p < 0,01; † p < 0,10
Os precursores de desempenho na EI se correlacionam com a percepção de
estresse cotidiano na 1ª série. A avaliação de desempenho obtida na EI por meio do
julgamento do professor se correlaciona com a percepção de estresse em todos os
domínios do cotidiano escolar. A avaliação direta do desempenho na EI por meio da
sondagem de leitura e escrita também apresenta correlações com indicadores de estresse
no ano escolar subseqüente. Todas as correlações são negativas, indicando que,
quanto melhor o desempenho da criança na EI, menor a intensidade do estresse relatado
por ela posteriormente na 1ª série, particularmente no domínio acadêmico e no domínio
dos relacionamentos com os companheiros.
Há apenas duas correlações, ambas positivas, envolvendo problemas de
comportamento na EI e a percepção de estresse na 1ª série: problemas na relação com
os colegas se correlacionam com a percepção de estresse no domínio da relação famíliaescola, e problemas na relação com a tarefa se correlacionam com a percepção de
estresse no domínio dos relacionamentos com os companheiros.
As correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na 1ª série e
as medidas de estresse nesta série são apresentadas na Tabela 2. Dezesseis dentre as
25 correlações indicadas na tabela são significativas, com valores modestos.
Tabela 2 – Correlações entre indicadores de desempenho e comportamento na 1ª série e estresse na 1ª série
Nota: domínios de estresse: DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C =
companheiros; NA = demandas não acadêmicas
* p < 0,05; ** p < 0,01
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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As avaliações de desempenho e de problemas de comportamento em relação à
tarefa se correlacionam com indicadores de estresse nos domínios do desempenho e
da relação família-escola; problemas de comportamento em relação ao professor e aos
colegas se correlacionam com indicadores de estresse nos domínios da relação famíliaescola e das demandas não acadêmicas.
As associações entre variáveis da 1ª série foram exploradas também por meio de
comparações de grupo. Para cada medida de desempenho e comportamento, foram
contrastados os resultados de estresse de dois grupos, constituídos, respectivamente, pelas
crianças com escores situados no quartil 1 e no quartil 4 da medida em questão. Antes das
comparações, checou-se a distribuição dos alunos das diferentes escolas nos quartis, por
meio do teste X2. Não foram encontradas tendências em relação à EI; na 1ª série, duas escolas
mostraram concentração maior de alunos, em relação às demais, no Quartil 1 do TDE e no
Quartil 4 das escalas de comportamento do QCDCC em relação ao professor e à tarefa.
As comparações foram processadas com o teste U de Mann-Whitney. As tabelas
3 e 4 mostram os itens específicos, em cada domínio, que diferenciam os grupos situados
nos quartis 1 e 4 das medidas de desempenho e comportamento na 1ª série. Por economia
de espaço, apenas os itens com resultados significativos são apresentados nas tabelas.
Tabela 3 – Escores médios de estresse indicado pelas crianças situadas nos quartis 1 e 4 de desempenho e
comportamento em relação à tarefa, na 1ª série
Indicador de desempenho / situação estressora
Dom
Q1
Q4
Z
Precisava de ajuda para as atividades escolares
DA
1,30
0,59
3,085**
Tirei notas baixas
DA
1,70
0,85
2,840**
Meus pais foram conversar com a professora
FE
0,89
0,38
2,237*
Meus colegas de classe bateram em mim
C
1,39
0,44
2,632**
Alguns colegas me provocaram ...
C
1,76
0,97
2,049*
Meus colegas não me convidaram para brincar
C
1,30
0,56
2,198*
A professora me deu bronca
NA
1,52
0,74
2,186*
A professora era muito brava, gritava e...
NA
1,91
0,85
2,882**
Precisava de ajuda para as atividades escolares
DA
1,31
0,50
2,842**
Tirei notas baixas
DA
1,67
0,96
2,195*
A professora falou que eu tenho que melhorar
DA
1,38
1,14
2,746**
Desempenho TDE
Desempenho TRF-D
Meus pais foram conversar com a professora
FE
0,87
0,14
2,983**
A professora me deu bronca
NA
1,54
0,71
1,986*
Precisava de ajuda para as atividades escolares
DA
0,48
1,26
2,709**
Tirei notas baixas
DA
0,89
1,63
2,175*
Não consegui terminar as lições na sala de aula
DA
0,44
1,07
2,009*
Probl. comportamento em relação à tarefa QCDCC
Prof. mandou bilhete ...não estava aprendendo
FE
0,26
0,78
1,967*
A professora me deu bronca
NA
0,56
1,44
2,083*
Nota: teste U de Mann-Whitney. Q = quartil; Dom = domínio; DA = desempenho acadêmico; FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas
* p < 0,05; ** p < 0,01
88
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Tabela 4 – Escores médios de estresse indicado pelas crianças situadas nos quartis 1 e 4 de problemas de
relacionamento, na 1ª série
Indicador de comportamento / situação estressora
Dom
Q1
Q4
Z
Precisava de ajuda para as atividades escolares
DA
0,59
1,07
2,058*
Tirei notas baixas
DA
0,62
1,61
2,809**
Meus colegas não me convidaram para brincar
C
0,48
1,21
2,024*
Fiquei chateado por ficar longe da minha mãe
NA
0,90
2,11
2,741**
A professora me deu bronca
NA
0,62
1,54
2,338*
A professora era muito brava, gritava e...
NA
0,90
2,18
2,842**
Precisava de ajuda para as atividades escolares
DA
0,50
1,11
2,349*
Tirei notas baixas
DA
0,54
1,67
3,188**
Probl.comportamento relação professor QCDCC
Probl. comportamento relação colegas QCDCC
Prof. mandou bilhete ...não estava aprendendo
FE
0,11
0,74
2,094*
Meus pais foram conversar com a professora
FE
0,36
1,04
2,367*
3,366**
Meus colegas de classe bateram em mim
C
0,21
1,56
Alguns colegas me provocaram ...
C
0,82
1,78
2,094*
Fiquei chateado por ficar longe da minha mãe
NA
0,82
2,07
2,779**
A professora era muito brava, gritava e...
NA
1,04
2,11
2,449*
Nota: teste U de Mann-Whitney. Q = quartil; Dom = domínio; DA = desempenho acadêmico;
FE = relação família-escola; C = companheiros; NA = demandas não acadêmicas
* p < 0,05; ** p < 0,01
O exame das tabelas permite identificar as situações específicas, em cada domínio
do cotidiano escolar, indicadas como mais estressantes pelas crianças que estão
apresentando maiores dificuldades na 1ª série. Dos 30 itens do IEE, apenas 12 diferenciam
os grupos. Alguns itens discriminam os grupos em todas ou em quase todas as
comparações efetuadas: Precisava de ajuda para as atividades escolares, Tirei notas
baixas, A professora me deu bronca, Meus colegas de classe bateram em mim.
As crianças com maior dificuldade relacionada ao desempenho relatam, além das
situações específicas do domínio acadêmico, estressores interpessoais como ser
agredido, ser provocado, ser excluído das brincadeiras e levar bronca do professor. As
crianças com mais problemas de comportamento em relação aos companheiros relatam
experiências generalizadas de estresse, incluindo, no domínio das demandas não
acadêmicas, dificuldades no relacionamento com o professor. A relação com o professor
também aparece como fonte de estresse quando o critério para composição dos grupos
é a presença de problemas de comportamento em relação ao professor.
Os resultados das comparações referentes aos escores totais nos domínios, não
apresentados nas tabelas, confirmam as correlações apresentadas na Tabela 2, com
uma associação a mais: os grupos formados com base nos problemas de comportamento
em relação aos colegas diferem nos níveis de estresse em todos os domínios, inclusive
o da relação com os companheiros. As crianças avaliadas pelo professor com mais
problemas nas relações com os pares (quartil 4) relatam maior estresse em todos os
domínios da sua vida escolar.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
89
Discussão
Este estudo sobre o estresse da 1ª série teve como objetivos identificar precursores
do estresse escolar relacionados a recursos da criança, assim como explorar associações
entre percepção de estresse em diferentes domínios e indicadores de desempenho e
comportamento na 1ª série. A pesquisa foi guiada por uma concepção da 1ª série como
uma transição de vida, apresentando para a criança tarefas adaptativas que podem
gerar estresse em domínios do cotidiano escolar cujas demandas específicas excedem
seus recursos de enfrentamento. Previsões foram feitas em relação a três dentre as
quatro tarefas propostas no modelo teórico. Os resultados são discutidos com referência
a essas previsões.
De acordo com o modelo conceitual, o estresse no domínio acadêmico e no
domínio da relação família-escola reflete dificuldade na tarefa de adaptar-se às mudanças
nas definições de papéis e comportamentos esperados. Os resultados apontaram esses
dois domínios como menos estressantes que os demais, sugerindo que a tarefa
relacionada aos papéis esperados é percebida como a menos exigente. Rende e Plomin
(1992) encontraram resultados semelhantes na 1ª série, ao passo que em séries mais
avançadas as crianças relatam o domínio do desempenho como um dos mais
estressantes (Kraag & cols., 2006). Essa aparente discrepância pode estar relacionada
a mudanças desenvolvimentais, constituindo um tema de pesquisa a ser explorado.
Foi previsto que as crianças mais protegidas do estresse nos domínios do
desempenho e da relação família-escola são aquelas que apresentam, ao ingressarem
na 1ª série, um repertório de habilidades específicas e hábitos de trabalho eficientes.
As previsões foram confirmadas em relação às habilidades prévias, mas não em relação
aos hábitos de trabalho. Crianças com melhor avaliação acadêmica na educação infantil
relataram menos estresse nesses domínios durante a 1ª série. Porém hábitos de trabalho
na educação infantil, avaliados por meio da escala de comportamentos em relação à
tarefa, do QCDCC, não foram associados à percepção de estresse nos domínios
previstos, durante a 1ª série. O sentido deste e de outros resultados não congruentes
com as previsões é discutido adiante.
A tarefa de situar-se na rede social ampliada, que foi conceitualmente associada
ao estresse no domínio das relações com os companheiros, parece ser a que mais
sobrecarrega as crianças, já que o domínio das situações cotidianas que lhe
correspondem foi avaliado como o mais estressante de todos os domínios investigados.
A média encontrada para o domínio dos relacionamentos com os companheiros indicou
uma intensidade de estresse entre moderada e alta, confirmando a importância das
relações com os pares como fonte de estresse, apontada em estudos feitos seja na 1ª
série (Rende & Plomin, 1992) ou em outros níveis escolares (Ladd & cols., 1999; Lisboa
& cols., 2002; Raimundo & Pinto, 2006).
Em relação a este domínio, não foi plenamente confirmada a previsão de que as
crianças com dificuldades prévias nos relacionamentos estariam mais vulneráveis;
obteve-se uma correlação apenas marginalmente significativa entre problemas em
relação aos colegas, avaliados na educação infantil, e estresse no domínio das relações
com companheiros, avaliado na 1ª série. Por outro lado, correlações não previstas
90
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
foram encontradas entre o estresse com os companheiros, na 1ª série, e indicadores de
desempenho e de problemas de comportamento em relação à tarefa, na EI. As correlações
entre medidas de desempenho e de problemas de comportamento em relação à tarefa,
obtidas na EI, e a posterior percepção de estresse com os companheiros estão de
acordo com achados de que as crianças que entram na escola com menos recursos de
letramento e habilidades de trabalho menos desenvolvidas estão mais expostas a
estressores interpessoais (Hughes & Kwok, 2006; Hughes, Zhang &. Hill, 2006; Ladd
& cols., 1999).
O domínio das demandas não acadêmicas, relacionado teoricamente à tarefa de
adequar-se às normas e regras do novo contexto, foi o segundo mais estressante na
avaliação das crianças. Porém não foi associado a dificuldades prévias de
comportamento, como previsto no modelo. Esses resultados sugerem que o estresse
derivado da necessidade de adequar-se às normas do novo contexto talvez dependa
mais da mudança de ambiente em si, pela exposição generalizada das crianças a situações
que elas não conseguem prever e sobre as quais não têm controle (Kraag & cols.,
2006).
Dentre as previsões de correspondência entre estresse e outras variáveis da 1ª
série, confirmou-se a associação entre dificuldades acadêmicas e estresse nos domínios
do desempenho e da relação família-escola. Essa associação foi consistente, repetindose com as duas medidas de desempenho e a medida de problemas de comportamento
em relação à tarefa escolar. Já a dificuldade nas relações com os pares não se
correlacionou com estresse no domínio correspondente; apenas na comparação entre
grupos situados nos quartis inferior e superior de problemas nas relações com os
pares é que foram detectadas diferenças nos níveis de estresse no domínio dos
companheiros. Este é um resultado interessante, em face de alguns dados da literatura.
Embora não haja estudos prévios sobre a associação entre problemas relacionais e
percepção de estresse cotidiano na 1ª série, pesquisas em outras áreas mostram que
nos anos iniciais do ensino fundamental as crianças socialmente competentes estão
menos expostas à rejeição e vitimização pelos pares, enquanto as agressivas e as
retraídas estão em maior risco de se tornarem alvo de maus tratos (Buhs, Ladd &
Herald, 2006; Garner & Lemerise, 2007). Segundo Ladd e Troop-Gordon (2003), a rota
entre a agressividade precoce e os problemas adaptativos posteriores passa pela
experiência com estressores relacionais, como rejeição e vitimização, nas séries iniciais
do ensino básico. A presente investigação identificou um grupo de risco para a
exposição ao estresse, constituído pelas crianças com níveis extremos de problemas
nas relações interpessoais. Essas crianças relatam maior estresse em todos os domínios
do cotidiano escolar.
A análise exploratória feita neste estudo deu algum suporte à visão da 1ª série
como uma transição de vida (Elias, 1989), em que os desafios decorrentes das tarefas
adaptativas da transição são fontes de estresse cotidiano. Medidas de desempenho e
comportamento, fornecidas pelo professor, mostraram associação com o nível de
estresse atribuído pela criança a situações do seu cotidiano escolar, de acordo com as
previsões feitas. Por outro lado, os resultados não se ajustaram perfeitamente ao
modelo, apontando para a necessidade de reformulação, principalmente no que se
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
91
refere à previsão de especificidade de associação entre o grau de sucesso em
determinada tarefa adaptativa e o nível de estresse relatado pela criança no domínio
correspondente de experiências cotidianas. Os resultados mostraram associações
específicas, mas também relações cruzadas entre tarefas e domínios de estresse. Por
exemplo, crianças com desempenho pobre relataram situações de estresse no domínio
das relações com os companheiros, ao passo que crianças com problemas de
comportamento em relação aos colegas relataram situações de estresse no domínio do
desempenho. A conexão entre os domínios do desempenho e dos relacionamentos
parece estar refletindo o fato de que esses domínios da experiência escolar são
interdependentes. Com efeito, Welsh, Parke, Widaman e O’Neil (2001), em seu estudo
longitudinal sobre competência social e acadêmica em alunos da 1ª à 3ª série,
demonstraram influências transacionais entre os dois domínios.
O ajuste não perfeito entre os resultados e o modelo teórico decorre não só do
surgimento de novas associações, mas também da não confirmação de associações
previstas. Dado que todas as previsões não confirmadas, com exceção de uma, envolvem
comportamentos avaliados pelo QCDCC, pode-se pensar em um possível limite do
instrumento. Parece, entretanto, que a explicação é mais complexa, visto que diversas
medidas obtidas com o QCDCC na 1ª série se correlacionaram com estresse na direção
prevista, ao passo que nenhuma correlação significativa foi encontrada com medidas
obtidas na EI. Nessa divergência entre resultados envolvendo variáveis da EI e da 1ª
série tanto podem estar implicados limites do instrumento (por exemplo, baixa
estabilidade), como vieses dos professores (por exemplo, diferença no nível de exigência
para “bom” comportamento na EI e na 1ª série). Associar à avaliação do professor o
julgamento de observadores independentes poderá ajudar a esclarecer o problema em
pesquisas futuras.
Um aspecto não contemplado na formulação teórica e que se mostrou relevante
para a compreensão da relação entre estresse e dificuldades adaptativas na 1ª série foi
o da relação professor-aluno, apontada na literatura como fonte de experiências
aversivas percebidas pelas crianças como incontroláveis (Lisboa & cols., 2002). A
importância desse aspecto só se revelou na análise das situações estressoras
específicas, visto que, no instrumento de avaliação do estresse, os itens representativos
da relação professor-aluno estão incluídos no domínio das demandas não acadêmicas.
As comparações de grupo apontam para a relação professor-aluno como um desafio à
parte para as crianças, com potencial para gerar estresse em situações específicas de
desempenho e relações com os pares. Nessa direção, pesquisas realizadas no contexto
da educação infantil e do ensino fundamental indicam que os alunos cujas relações
com os professores são conflituosas estão mais sujeitos a dificuldades acadêmicas
persistentes e rejeição por parte dos companheiros (Hamre & Pianta, 2001; Ladd &
cols., 1999; Silver, Measelle, Armstrong & Essex, 2005). Essas considerações justificam
a inclusão de um domínio à parte no modelo, representando o estresse da relação
professor-aluno.
A investigação do estresse em tal domínio poderá ser feita por meio de instrumento
semelhante ao IEE, ou com o próprio IEE, ampliado e reorganizado para incluir itens
representativos de eventos potencialmente estressantes na relação professor-aluno,
92
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
de modo a garantir a representatividade dos itens. Pesquisas realizadas no ensino
fundamental indicam como fontes de estresse para os alunos as agressões verbais do
professor em forma de insultos, humilhação, críticas e ironias, assim como certos
comportamentos em resposta a condutas dos alunos, tais como ameaças, bilhetes para
os pais e repreensões orais em sala de aula (Lisboa & cols., 2002; Piekarska, 2000).
Os resultados devem ser interpretados no contexto das limitações da pesquisa,
algumas das quais, relativas a instrumentos, já foram comentadas. A não inclusão de
um domínio de estresse na relação professor-aluno obstou a análise em separado
desse aspecto relevante da transição. As análises ficaram restritas a testes não
paramétricos de correlação e comparação de grupos, devido à característica não normal
da distribuição dos dados, quando idealmente as previsões deveriam ser testadas por
meio de análises multivariadas, verificando-se o peso relativo de cada variável na
predição dos resultados de estresse. A distribuição das crianças nos quartis de
desempenho e comportamento não foi aleatória em relação à escola de origem no
ensino fundamental, o que pode ter afetado os resultados das comparações de grupo;
no entanto, os resultados de tais comparações foram, em geral, coerentes com a
literatura. De todo modo, pesquisas futuras que contornem as limitações apontadas
são necessárias para confirmar ou refutar os resultados obtidos.
Apesar das limitações, a pesquisa trouxe contribuição teórico-metodológica e
prática. Do ponto de vista teórico-metodológico, é importante assinalar que este é o
primeiro estudo prospectivo na literatura a focalizar a transição da 1ª série sob a
perspectiva do estresse cotidiano; portanto, constituem uma contribuição original ao
campo do conhecimento os seus resultados, mesmo aqueles aparentemente óbvios
pelo fato de convergirem com a evidência empírica produzida em outras áreas de
investigação. São resultados robustos, por se apoiarem no cruzamento de informações
fornecidas por fontes independentes: a própria criança, o professor e avaliações
objetivas.
O estudo também contribui com novas pistas a respeito do estresse vivenciado
pelas crianças na transição da 1ª série, que podem guiar pesquisas futuras, como, por
exemplo: (a) crianças vistas pelo professor da EI como academicamente mais competentes
foram mais protegidas contra o estresse em todos os domínios do seu cotidiano na 1ª
série e, aparentemente, a avaliação acadêmica do professor anterior contou mais que a
do professor atual; (b) na transição da 1ª série, o domínio do desempenho foi o menos
estressante e um dos mais associados a dificuldades atuais, ao passo que o domínio da
relação com os pares foi o mais estressante e o que apresentou mais associações com
dificuldades anteriores, manifestadas na EI; (c) o domínio das demandas não acadêmicas
tem componentes situacionais potentes de geração de estresse, aparentemente com
pouca influência do repertório de entrada da criança.
Do ponto de vista prático, a pesquisa contribuiu com informações sobre a vivência
das crianças na transição da 1ª série. Em relação ao seu papel de estudante, que deve
responder a expectativas de bom desempenho, observa-se que nesse momento inicial
as crianças não se sentem particularmente mobilizadas frente à dificuldade de
aprendizagem em si. No entanto, seu desempenho está associado a situações
perturbadoras envolvendo a família e o professor, o que provavelmente vai contribuir,
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
93
ao longo do tempo, para que elas identifiquem o domínio do desempenho como uma
importante fonte de estresse, como tem sido observado em alunos de séries mais
avançadas (Kraag & cols., 2006).
Embora o estudo não investigue a temática dos relacionamentos agressivos
entre diferentes atores presentes no contexto escolar, a pesquisa também levantou
informações relacionadas ao problema da agressão nas escolas. Incidentes de agressão
física e verbal são cada vez mais comuns nas escolas de ensino fundamental (Woods
& Wolke, 2004). Pelo relato das crianças do presente estudo, eles fazem parte do
cotidiano escolar desde muito cedo e constituem uma potente fonte de estresse. As
crianças com problemas de comportamento são as mais expostas a esse gênero de
experiência, o que denota reciprocidade, e as interações aversivas não se circunscrevem
ao relacionamento com os colegas, ocorrendo também na relação com o professor, tal
como foi constatado por Lisboa e colaboradores (2002).
As informações de interesse prático ressaltam a importância de intervenções
para o manejo de situações geradoras de estresse no ambiente escolar. Sendo o domínio
dos relacionamentos com os colegas a principal fonte de estresse, a convivência entre
as crianças pode ser melhorada por meio de procedimentos com foco no dia a dia da 1ª
série. Por exemplo, conflitos entre as crianças podem ser reduzidos e relações de
amizade podem ser fomentadas e fortalecidas se o horário do recreio for aproveitado
com a oferta de atividades lúdicas acompanhadas por um adulto (Emmel, 1996). É
possível ensinar as crianças a lidarem com o estresse dos relacionamentos por meio de
técnicas de relaxamento, habilidades de solução de problemas interpessoais e
aprendizado da auto-regulação emocional (Del Prette & Del Prette, 2005; Kraag &
cols., 2006; Shure, 2006). Dada a interdependência entre domínios, demonstrada no
presente estudo, pode-se esperar que intervenções incidindo sobre os relacionamentos
contribuam para a atenuação do estresse em outros domínios, por meio de mecanismos
que envolvem , entre outros, aumento da participação em atividades escolares e redução
dos problemas de comportamento (Ladd & cols., 1999).
O domínio das demandas não acadêmicas, o segundo mais estressante para as
crianças, parece ser o mais representativo do estresse da mudança de escola e/ou de
nível. Estratégias para suavizar a transição podem ser implementadas, tais como visitas
dos alunos da educação infantil à sua futura escola, informações aos pais sobre o
funcionamento da 1ª série, um programa de acolhimento nas primeiras semanas de aula
e a comunicação freqüente e amigável com a família ao longo do ano (Kagan & Neuman,
1998). Atenção individualizada deve ser dada às crianças vulneráveis, como as que já
na educação infantil apresentaram problemas de comportamento e aprendizagem. De
acordo com os princípios de promoção/prevenção do desenvolvimento infantil, há
que analisar os recursos pessoais da criança, a rede de apoio social disponível, entre
outros, de modo a subsidiar, em cada caso, um planejamento específico de intervenção
psicológica e/ou psicossocial.
Três comentários devem ser adicionados a esta discussão. Em primeiro lugar, há
necessidade de apoio e supervisão ao professor, muitas vezes também estressado, de
modo a ajudá-lo a estabelecer e manter com seus alunos uma convivência respeitosa.
Segundo, há medidas práticas que dependem de capacitação. Por fim, deve ficar claro
94
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
que, se o professor pode implementar, por sua iniciativa, estratégias como as listadas
nos parágrafos precedentes, a manutenção delas ao longo do tempo depende do
compromisso institucional da escola e de políticas públicas direcionadas para melhorar
a qualidade de vida das crianças no espaço escolar.
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Recebido em maio de 2007
Aceito em dezembro de 2007
Edna Maria Marturano: psicóloga; doutora em Ciências – Psicologia; professora titular na Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Elaine Cristina Gardinal: mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; psicóloga do Departamento de
Educação da Prefeitura Municipal de Dois Córregos.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
97
Aletheia 27(1), p.98-110, jan./jun. 2008
Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do
ciclo vital da família
Ivanilza Etelvina dos Santos
Cristina Maria de Souza Brito Dias
Resumo: A presente pesquisa teve como objetivo geral investigar a vivência de papéis desempenhados por idosos durante o Ciclo de Vida Familiar. Participaram 12 homens, sendo que seis
pertenciam ao Grupo Reviver, da Universidade Aberta à terceira idade, de uma faculdade situada
em Paulo Afonso; e seis não participavam do referido projeto. Todos os participantes são da
camada média e moradores da área urbana. Eles foram entrevistados individualmente, tendo sido
as entrevistas analisadas a partir dos seguintes temas: fase de aquisição, criação e desenvolvimento dos filhos, saída dos filhos de casa, fase última, percepção do tratamento dispensado ao idoso
ao longo do tempo e o que gostaria de mudar em sua vida. Pode-se concluir que os idosos que
fazem parte do Grupo Reviver mostraram-se mais otimistas, com planos para o futuro e vida
social ativa, o que não ocorreu com o outro grupo. Espera-se que este trabalho possa contribuir
para os profissionais que lidam com as questões da velhice e da família.
Palavras-chave: idoso, família, Teoria do Ciclo Vital da Família.
Elderly man: experiencing of roles played during family vital cycle
Abstract: The present research had as main objective to investigate the experiencing of roles
played by elderly man during family vital cycle. Twelve men participated in the research, six of
those were participants of the Reviver Group, from the Open University for Third Age, in a
Paulo Afonso´s college, and six were not in that project. They were individually interviewed
and after the analysis of interviews content six predominant themes were focused: acquisition
phase, raising and development of children, departure of children from home, last phase,
perception of elderly-directed treatment through time and what would they like to change in
their lives. It can be concluded that the elderly who participate in the Reviver group showed
themselves to be more optimistic, with plans for the future and active social life, what did not
occur with the other elderly. It is expected that this work can contribute to those interested in
oldness and family issues.
Key words: Elderly, family, Family Vital Cycle Theory.
Introdução
O século passado foi caracterizado por profundas transformações históricoculturais e, entre elas, algumas ocorreram nos âmbitos da família e da velhice. Hoje não
podemos falar na família como um único modelo, como também a velhice se apresenta
de forma multifacetada. Mudou a família, que se caracteriza mais do que nunca pela
diversidade de arranjos, constituindo “famílias”; por sua vez, podemos falar de
“velhices”, uma vez que esta fase da vida é vivida de forma bastante peculiar, de
acordo com as características pessoais, familiares e culturais que influenciam o idoso.
98
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Nos últimos anos, as etapas da vida relacionadas à infância, adolescência e
juventude tornaram-se supervalorizadas. O desafio atual é permanecer jovem o maior
tempo possível, nem que para isso tenhamos que viver em busca de cirurgias,
cosméticos, estilos de vida e roupas que nos tornem “juvenis”. Chega-se até a infantilizar
o adulto como uma maneira de não aceitar seu envelhecimento. Por outro lado, verificase que os idosos têm dado uma importante contribuição social, pois muitos continuam
sendo os chefes e provedores de sua família e tomam conta das gerações mais jovens.
Constata-se, atualmente, que uma parcela expressiva de filhos, netos e bisnetos
estão morando junto com seus pais e avós, fenômeno denominado “co-residência”
(Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999). Os referidos autores apontam
que este é um fenômeno mundial e os fatores que têm levado a esse tipo de organização
familiar são: o prolongamento da permanência dos filhos em casa devido à necessidade
de investimento em sua formação para enfrentar um mercado de trabalho bastante
competitivo, a instabilidade deste e a inconsistência das relações afetivas, que ocasiona
o retorno dos filhos à família de origem, por ocasião de uma separação. Acrescente-se
que nos países onde a prevalência do HIV/Aids é elevada, os idosos têm tido um papel
preponderante no cuidado dos doentes e dos netos.
Camarano e El Ghouri (2003) estabeleceram uma distinção entre as famílias de
idosos, onde o idoso é chefe ou cônjuge, e as famílias com idosos, onde o idoso mora
na condição de parente do chefe. Para as referidas autoras, as primeiras se caracterizam
por serem formadas por idosos mais jovens e seus filhos, serem mais freqüentes (86%
dos lares onde residem idosos são chefiadas pelos idosos), possuindo residência
própria e uma renda mais elevada do que as segundas. Portanto, há idosos que cuidam
e os que são cuidados.
Ao mesmo tempo em que esses arranjos podem acarretar apoio recíproco, propiciam
também conflitos e dificuldades. Entre os ganhos desse tipo de família estão a maior
escolarização dos filhos e netos, a redução do trabalho infantil e a ajuda que os avós dão
na criação dos netos. Porém, os conflitos podem surgir devido ao referencial diferente de
padrões sociais e culturais entre as gerações, interferências dos avós na criação dada
pelos filhos, confusão acerca de quem detém a autoridade por parte dos netos (Camarano
& El Ghaouri, 2003; Falcão, Dias, Bucher-Maluschke & Salomão, 2006).
Assim, além de contribuírem no aspecto financeiro, cada vez mais, os idosos
estão cuidando das gerações mais novas, como os filhos, os netos e até mesmo os
bisnetos, devido às dificuldades pelas quais as famílias vêm passando: mães que
trabalham fora e deixam os filhos com os avós, pais que se separam, filhos com
dificuldades de inserção no mercado de trabalho ou necessitando se preparar melhor
para enfrentá-lo, entre outros. Sua contribuição é evidente, especialmente junto às
crianças, para as quais transmitem a história da família e do país, valores e afeto. Quem
poderia dimensionar suaimportância?
Segundo Dias e Silva (1999), em geral, os avós são o porto seguro nos momentos
de crise; os transmissores da história familiar, firmando a identidade do grupo; os
mediadores e fontes de apoio emocional nas relações interpessoais intempestivas
vividas pelos filhos, e, para os netos, representam o equilíbrio necessário nos momentos
de desânimo e depreciação de si mesmos.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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De acordo com Moragas (1997), já existem estudos enfocando a velhice, tanto no
âmbito físico, como social e psicológico; no entanto, existe uma carência de pesquisas
que a relacionem com a família. Para o referido autor, isso é necessário, pois em épocas
anteriores não houve um contato tão longo e intenso entre as várias gerações de uma
mesma família como na atualidade.
Não há como negar que a velhice apresenta uma forte componente de gênero,
atingindo especialmente as mulheres, embora isto não seja universal (Camarano, 2004).
Por isto nosso foco se voltou para o homem. O objetivo geral deste estudo, portanto,
foi investigar a vivência que o homem idoso, ou seja, com idade acima de 60 anos, tem
dos papéis desempenhados ao longo do ciclo de vida familiar. Especificamente,
buscamos averiguar ainda a percepção que ele tem do tratamento dispensado aos
idosos, através dos tempos, e suas perspectivas de mudanças.
É nossa expectativa que o estudo das relações estabelecidas pelo idoso com a
família possa contribuir para os profissionais que lidam com eles, bem como para
favorecer estratégias de enfrentamento a tais questões. Para subsidiar teoricamente a
pesquisa buscamos respaldo na Teoria do Ciclo Vital da Família.
Família e ciclo vital
Para Cerveny (1997), ciclo vital familiar é um conjunto de etapas ou fases definidas
segundo alguns critérios (idade dos pais, dos filhos, tempo de união de um casal, entre
outros) pelos quais as famílias passam, desde o início da sua constituição em uma
geração, até a morte de um dos indivíduos que a iniciaram.
Cerveny e Berthoud (1997) propõem uma nova caracterização de ciclo vital
diferente da disponível até o momento, proposta esta decorrente de pesquisa
desenvolvida nos anos 1996 e 1997, com 1105 famílias da classe média paulistana. Essa
caracterização coloca a família, ao longo do seu ciclo vital, em quatro etapas, porém as
autoras chamam a atenção para a não rigidez das fases:
1. Família na Fase de Aquisição: engloba a escolha do(a) parceiro(a), o nascimento
da família pela união formal ou informal do casal; a preocupação em adquirir bens; a
chegada dos filhos e a vida com filhos pequenos. É uma fase que se caracteriza pela
aquisição em todos os sentidos: material, emocional, psicológico (Berthoud & Bergami,
1997).
2. Família na Fase Adolescente: caracteriza-se pelo momento específico em que
os filhos experimentam a adolescência em direção à idade adulta. Ela mobiliza bastante
os pais, que se encontram na faixa dos quarenta aos cinqüenta anos, porque eles
passam a rever sua própria adolescência e os aspectos que podem ser resgatados de
uma juventude ainda presente diante de si. É uma fase que pode propiciar muitos
conflitos e questionamentos, tanto por parte dos filhos, como dos pais (Luisi & Cangelli
Filho, 1997).
3. Família na Fase Madura: nela estão inseridos os filhos adultos jovens e pais
em plena maturidade, cuja idade estende-se dos cinqüenta a meados dos sessenta. As
características dessa família envolvem mudanças como: saída de casa e/ou casamento
dos filhos; inclusão da terceira geração e parentes por afinidades; cuidados com a
geração mais velha, entre outras. É considerada uma fase difícil, porque o casal se
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
depara com duas gerações precisando de amparo: a dos filhos que estão se preparando
para ter sua própria família, e os pais em processo de envelhecimento (Carbone &
Coelho, 1997).
4. Família na Fase Última: depende muito de como foram vividas as fases
anteriores. É uma etapa que tem se estendido bastante, dada a maior longevidade
humana. Ela é marcada pela reestruturação de papéis, com a saída física de alguns
membros do núcleo familiar e a inserção de novos membros (noras, genros e netos). O
luto pela perda de amigos e parentes trará forçosamente à tona a velhice como a fase
que se aproxima da finitude pessoal e da idéia inevitável da viuvez. Nessa fase, há um
fechamento de ciclo (Silva, Alves & Coelho, 1997).
Como o presente estudo enfoca o idoso, nos deteremos na última fase do ciclo
vital. Segundo Silva e cols. (1997), a família na fase última se caracteriza ainda pela
aposentadoria de um ou de ambos os cônjuges, a perda de autonomia e a fragilidade
física. O casal volta a ficar sozinho, depois da saída dos filhos, e, dependendo do
relacionamento estabelecido, isso pode ser uma oportunidade de encontro ou de solidão
compartilhada sob o mesmo teto. A aposentadoria significa a parada de desempenho
de uma atividade formal que foi realizada durante 30 anos ou mais e que pode gerar
uma crise.
Em alguns casos, mesmo com os filhos criados, surge uma nova demanda: os
filhos que, por dificuldade financeira ou por estarem descasados, retornam com seus
filhos e mulheres/maridos (noras ou genros). Cerveny e Berthoud (1997) denominaram
este movimento de “pais estendidos”, significando cuidar dos filhos e dos netos.
Nessa direção, Peixoto (2004) afirmou:
Muitos filhos divorciados retornam à casa dos pais solicitando um apoio –
financeiro ou moral – para educar seus filhos. Esta é uma prática comum no
Brasil, pois, como dissemos, as políticas familiares são restritas e o sistema
público escolar é ineficaz. São poucas as creches e as escolas maternais da
rede pública, e as escolas do ensino fundamental funcionam somente meio
período, obrigando os pais que trabalham a lançar mão de sistemas informais
de guarda das crianças, como as babás e as empregadas domésticas ou, ainda,
seus pais aposentados. (p. 77)
Quando sós, ou por separações ou por falecimento dos cônjuges, os idosos
passam a residir sozinhos ou com os filhos, tendo que se incorporar a outro ritmo de
vida. Essa situação é mais complicada para o homem idoso, tendo em vista vir de uma
cultura em que sua preocupação principal era a de provedor, não tendo se acostumado
com os afazeres domésticos (Nolasco, 1995). Somam-se a essas dificuldades, a saúde
precária e o ter que se cuidar sozinho tendo, muitas vezes, que administrar várias
medicações, com dosagens e horários diferentes, e o fato de depender dos outros o
leva a perder sua autonomia. Sobre esse aspecto, Warner (1998) ressalta: “As decisões
a respeito das pessoas idosas, muitas vezes, não são tomadas por elas, mas por outros
que decidem por elas. Então elas se acomodam, renunciam ao direito de decidir sua
própria vida, pois acham que não têm capacidade e, assim, passam a viver em estado
de não-participação, viver um sentimento de impotência” (p. 53).
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Diante dessas reflexões, podemos perceber as transformações que a família passa
ao longo do tempo como também o papel do idoso no contexto familiar. Vimos uma
nova relação inter e transgeracional que se afigura a partir da longevidade humana e
do contexto sócio-econômico. Além de sua importância natural, com as aposentadorias
e pensões que recebem, muitos idosos resgataram seu poder como provedores diante
das situações financeiras difíceis vividas por seus filhos e netos, além de serem pessoas
disponíveis nos momentos de crises vividos pelas famílias.
Devido ao fato da primeira autora coordenar um grupo de idosos pertencente a
uma faculdade na qual trabalha, houve o interesse em pesquisar como homens idosos,
participando ou não de um grupo de terceira idade, vivenciaram os papéis que
desempenharam ao longo de suas vidas. Igualmente, houve o interesse em verificar a
adequação da Teoria do Ciclo Vital aos referidos grupos.
Método
Foram entrevistados doze homens, sendo que seis freqüentavam o Grupo Reviver
(Universidade Aberta à Terceira Idade), de uma faculdade localizada em Paulo Afonso,
e seis não o freqüentavam. Eles se encontravam na faixa etária compreendida entre 61
a 80 anos e, em geral, gozavam de boa saúde. A maioria era casada, havendo dois
viúvos. Apenas um destes morava sozinho, sendo assistido pela filha que residia
perto. Todos chegaram de cidades vizinhas para trabalhar como operários na Companhia
Hidroelétrica do São Francisco. A escolaridade predominante correspondia ao antigo
curso primário, havendo um que possui curso superior de Engenharia. A religião católica
foi prevalente nos dois grupos. Todos são aposentados e possuem uma renda média
equivalente a dois salários e meio. Todos referiram possuir: casa própria (saneada com
água e luz), tv, som, geladeira e ventiladores. Alguns possuem ainda: automóvel (6),
máquina de lavar (5), computador (4), ar condicionado (2), máquina de costura (1),
pequeno comércio (1), propriedades na terra natal (1). Suas esposas, por sua vez,
desempenharam as seguintes profissões: costureira (3), comerciante (1), funcionária
da CHESF (1) e professora (1). Assim, face à comunidade na qual estão inseridos,
podem ser considerados como pertencendo à classe média. Para Oliveira (2004), entre
a burguesia e o proletariado encontram-se outros grupos que se movem entre as duas
camadas fundamentais. Alguns desses grupos são chamados genericamente de classes
médias, ou pequena burguesia. “A pequena burguesia constitui um setor muito
numeroso, que abrange desde o dono de um pequeno armazém até os pequenos e
médios proprietários de terra, passando por todos os assalariados que trabalham em
escritórios, funcionários públicos e profissionais liberais” (p. 126).
Quanto ao critério de escolha dos participantes, utilizamos a amostragem
proposital, que também é denominada intencional ou deliberada. Por esse critério, o
pesquisador escolhe deliberadamente os participantes que comporão o estudo, de
acordo com os objetivos do trabalho, desde que possam fornecer as informações
referentes ao mesmo (Turato, 2003). Eles responderam a uma entrevista composta de
questões relacionadas aos seguintes temas: fase inicial do casamento; chegada dos
filhos; criação e desenvolvimento dos filhos; saída dos filhos; vivência da fase atual;
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
tratamento dispensado aos idosos pela família e sociedade; mudanças que gostaria de
fazer. Além disso, foram preenchidos os dados sócio demográficos. Eles foram
entrevistados individualmente, em uma sala apropriada (em suas casas ou na associação
de idosos). As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Vale ressaltar
que eles assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo sido a
pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, e
que foram dados nomes fictícios aos participantes para preservar sua identidade.
As entrevistas foram submetidas a uma Análise de Conteúdo, especificamente à
Análise Temática, a qual “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem
uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo
analítico visado” (Minayo, 2004, p. 209).
Análise e discussão dos resultados
Seis temas principais nortearam a análise dos dados obtidos através das entrevistas:
1. Fase de aquisição
A fase inicial do casamento se caracterizou pela preocupação do casal em adquirir
bens e se estruturar financeiramente para a chegada dos filhos. Todos os participantes
se viram como responsáveis pelo sustento da casa, mesmo que tivessem de trabalhar
em outra cidade, em turnos desgastantes ou até em atividades insalubres, se foi somente
este tipo de trabalho que apareceu. O papel do homem continuou sendo para os
nossos entrevistados, o de provedor e dono de casa. A mulher, em geral, ficou
responsável pelos cuidados domésticos e criação dos filhos.
Observamos, nos dois grupos pesquisados, o seguimento das normas sociais e
o cumprimento dos papéis ditados socialmente, ao casarem, de acordo com o
estabelecido. Os casais procuraram viver juntos e criar seus filhos. Referiram-se aos
próprios pais como muito tradicionais, autoritários e representantes máximos da família,
não permitindo espaço para o diálogo. Notamos a reprodução desse lugar nas famílias
por eles constituídas, mesmo quando questionaram seus pais. No início enfrentaram
dificuldades financeiras e, em alguns casos, foi necessário passar um tempo nas casas
de parentes e amigos até adquirirem uma estrutura mais estável. Eles se preocuparam
em conseguir casa, móveis e estabilidade econômica, principalmente quando surgiram
os filhos. Tudo isso confirma as tarefas da fase de aquisição, conforme a Teoria do
Ciclo Vital (Berthoud & Bergami, 1997). Os recortes que seguem testemunham bem a
fase inicial do casamento e a nova demanda para criar os filhos, tornando visíveis os
papéis de ambos os cônjuges:
(...) “com a vinda dos filhos pesou mais. Tive que sair da cidade para poder
criar eles. Meus filhos quem criou mais foi minha esposa. Eu não tinha tempo
para eles”. (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver).
“Quando os filhos chegaram foi meio difícil. Pagava aluguel e na época eu
ganhava pouco. A vida era dura no início. Ainda hoje eu lembro quando casei.
Nem televisão tinha. Depois a gente saiu do sufoco. Eu fiz de tudo e comprei
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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uma. Hoje não, está tudo mais fácil, mas há vinte tantos anos atrás... E também
a cidade tava iniciando, era tudo mais difícil naquela época.” (Sr. Lucas, 62
anos, Idoso da Comunidade).
2. Criação e desenvolvimento dos filhos
Constatamos, durante a educação dos filhos, uma reprodução da postura de
seus antepassados. Alguns chegaram a bater nos filhos, mesmo quando admitiram
não ter dado certo. Outros só aconselhavam, até porque não concordavam com a
educação dos próprios pais, que era de bater. Houve, ainda, os que deixaram para as
mulheres essa tarefa, inclusive passando a autoridade para a professora na escola. A
aproximação com os filhos se dava, principalmente, quando brincavam ou iam buscálos na escola, quando podiam.
“Quando fazia coisa errada eu sentava e conversava com eles. Nunca bati,
isso era com a mãe” (Sr. Euclides, 73 anos, Grupo Reviver).
“Dava um castigozinho, mas era mais conselho. Apesar de que filho hoje não é
essa grande coisa não. É diferente do outro tempo. No outro tempo bastava o pai
olhar e eles já mudavam de sentido, mas hoje eles já querem reagir. Mas a
maioria é errado e não se conforma” (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade).
Alguns desses idosos não praticaram o diálogo e o relacionamento distante
dificultou um maior contato com os filhos, a ponto de alguns entrevistados mostrarem
uma insatisfação, atualmente, em relação a eles. Daí questionarmos: como poderiam
exercer um relacionamento aberto, amoroso e afetuoso se não tiveram um referencial?
Vieram de uma época em que o pai adotava uma postura distante e “bastava um olhar”
para intimidar a criança. Desse modo, não houve espaço para o diálogo nas suas
vivências na família de origem e eles continuaram reproduzindo esse modelo.
3. Saída dos filhos de casa
Com o crescimento dos filhos, outras preocupações surgiram: a escolaridade, o
casamento e a inserção deles no mercado de trabalho. Constatamos os sentimentos de
solidão, de saudade e muita luta para ajudar os filhos a se profissionalizarem. Um deles
chegou a sacrificar seu bem-estar e até parar a construção da casa, para priorizar o
sustento do filho fora de casa, até que este conseguisse se firmar como profissional.
“Quando ele saiu de casa era muita saudade, né? E um pouco de despesa
também, porque nessa época a gente tava construindo aqui também. Aí eu não
ia deixar ele passar fome fora, né? Paramos a construção da casa pra ele
terminar os estudos. A gente morava em Jatobá, aí começamos a deixar ele
morando sozinho na casa” (Sr. José, 64 anos, Grupo Reviver).
“Quando ela (filha) saiu de casa foi um horror. Porque eu fiquei só, né? (Sr.
Valdemar, 75 anos, Idoso da Comunidade).
Um fato importante que pode ocorrer é a perda da companheira. Motta (2004)
comentou que estudar a velhice é se deparar constantemente com a viuvez, que é uma
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condição social peculiar, já que é inesperada, não planejada e modificadora imediata da
vida das pessoas. A viuvez representa também um rompimento inesperado do equilíbrio
nas relações familiares e a urgência do estabelecimento de novos arranjos no grupo. A
elaboração desse acontecimento, em geral, é muito difícil.
“Não mudou muito, só comecei a fazer as coisas em casa. E gostei porque pude
cuidar da saúde de minha esposa, apesar de ter sido em vão, pois ela veio a
falecer e fiquei muito triste e só. Foram 53 anos de muito amor e sem discussão”
(Sr. Anchieta, 80 anos, Idoso da Comunidade).
Notamos, em alguns casos, como a proximidade geográfica com os filhos atenua
os sentimentos de tristeza e de isolamento do idoso.
“Com a saída dos filhos não senti muito porque moram perto. Tem um filho que
mora tão perto de mim que eu faço o café e levo pra ele e a mulher” (Sr. Jair, 70
anos, Grupo Reviver).
4. Fase última
Nessa fase, com os filhos criados, pode surgir uma nova situação que diz respeito
aos filhos separados, os quais voltam ao lar paterno com seus próprios filhos. Cerveny
e Berthoud (1997) denominaram esse movimento de “pais estendidos”, como já foi
referido. Às vezes, devido também à dificuldade financeira, há um regresso dos filhos,
com seus filhos e mulheres/maridos (noras ou genros), à família de origem, confirmando
a existência da “co-residência” (Camarano & El Ghaouri, 2003; Pebley & Rudkin, 1999)
ou “ninho recheio” (Peixoto, 2004; Warner, 1998).
“Moro com a esposa e minha filha que voltou. Não deu certo seu casamento.
Uma neta, dois netos e uma bisneta” (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade).
“Moro com esposa, filha e um filho que casou, separou-se e voltou para casa”
(Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).
“Ela (filha) vivia com a gente em casa e saiu. A gente não achou bom. Mas
depois voltou” (Sr. Josias, 65 anos, Idoso da Comunidade).
Constatamos que vários participantes da pesquisa constituem a denominada
família de idosos. Essa configuração talvez não seja interessante para nenhuma
das partes envolvidas, já que vários adultos jovens gostariam de ter sua
independência e a geração mais velha deseja, nessa fase de vida, paz, sossego e
usufruir dos seus rendimentos em benefício próprio. Concordamos com Camarano
e El Ghaouri (2003) ao concluírem que a co-residência traz mais benefícios para as
gerações mais novas do que para os idosos. Para estes ela parece refletir mais uma
ausência de opção.
A saída dos filhos geralmente coincide com a aposentadoria e as conseqüências
advindas do processo de envelhecimento. O sentimento reinante é de falta e vazio.
Eles sentem saudades e expressaram um “vazio existencial” em que, apesar do sentido
do dever cumprido, não resta muito a fazer nessa fase de vida.
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Para Zimerman (2000), nossa sociedade limita a pessoa com a aposentadoria, o que
pode causar transtornos que levam ao surgimento de doenças, exclusão, isolamento e
depressão. Ela ocasiona o afastamento dos colegas, a perda da identidade como
trabalhador e a rotina diária, além de acarretar um rebaixamento nos rendimentos do
idoso. Porém não podemos esquecer que outros a esperam como um evento desejado,
que vai lhes propiciar realizações. Desse modo, “a aposentadoria é um determinante da
diferenciação dos papéis adotados na velhice” (Tavares, Néri & Cupertino, 2004, p. 105).
“Com a aposentadoria a gente fica impaciente. Parado. Só em casa, mas aí a
gente falta a paciência, aí eu vou procurar andar, né? Aí, eu ficar em casa só
parado, não é boa coisa” (Sr. Antonio, 71 anos, Idoso da Comunidade).
“Com a aposentadoria mudou o dinheiro, que ficou pouco e a saúde que está
fraca” (Sr. Geraldo, 72 anos, Grupo Reviver).
Os aposentados sentem falta dos amigos e dos papéis desempenhados no
trabalho. Procuram se ocupar em casa, ajudando nas tarefas domésticas e a convivência
com a família pode gerar conflitos. E quando estão sentindo muita falta dos contatos
sociais, “dão uma volta”. Os idosos que participam do Grupo Reviver preenchem seu
tempo com atividades socializantes, o que contribui para reativar amizades e interesses.
“Fiquei muito em casa acomodado. Já tive até depressão, depois que me
aposentei. Mas agora eu participo do Projeto Reviver e estou bem. Quero
continuar ativo” (Sr. Ivanildo, 63 anos, Grupo Reviver).
A referida fala nos remete à Teoria da Continuidade, que mostra a importância da
manutenção dos papéis e dos laços afetivos e afirma que aqueles idosos que não buscarem
formas de se manter ativos, tendem ao isolamento e à depressão (Neri, 2002). Também a
relacionamos com a questão de gênero, pois se constata que as mulheres participam
mais de atividades extradomésticas, de organizações e movimentos sociais, fazem mais
cursos, viagens e trabalhos temporários do que os homens (Camarano, 2004).
Apesar de tudo, verificamos em alguns o orgulho por terem sobrevivido, possuir
casa própria, ter sua aposentadoria e conseguir criar os filhos. O sentimento é de dever
cumprido e sentem-se vitoriosos por ter chegado aonde chegaram.
“Está bom. Saúde piorou e os amigos eram mais. Antes o dinheiro rendia mais.
Hoje é tudo muito caro. Mas deu pra criar os filhos e tenho minha casa.” (Sr.
Lucas, 62 anos, idoso da Comunidade).
“Eu nunca pensei em minha vida chegar no ponto que eu estou hoje. Ter minha
casa própria, ajudar meus filhos e netos. E nunca deixei de ajudar minha mãe“
(Sr. Jair, 70 anos, Grupo Reviver).
A última fala revela o que fora colocado por Carbone e Coelho (1997), no sentido
de que a geração do meio, além de cuidar dos próprios filhos e netos, também presta
assistência aos pais em processo de envelhecimento.
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5. Percepção do tratamento dispensado aos idosos, ao longo do tempo
Nas entrevistas ficou evidenciado como o idoso era tratado antigamente, ou
seja, com respeito e consideração, mesmo quando os participantes admitiram a
inexistência de uma rede de proteção e assistência social. Hoje, quando “as coisas”
estão melhores nos aspectos de saúde e de previdência social, a família e a sociedade
não respeitam nem consideram seus idosos, como fica evidente nas falas:
“Família respeitava o idoso, Naquele tempo, médico era difícil. Assistência
Social, não tinha. Hoje está melhor”. (Sr. André, 61 anos, Grupo Reviver).
“A família tratava o idoso melhor. Tinha mais respeito. Hoje não. Os pais
criam os filhos e quando os pais ficam de idade eles não querem cuidar mais.
Joga para o asilo. Na minha época não tinha filho que fizesse isso não. Hoje o
idoso não pode nem sair pra receber seu dinheiro. Os cabras vão e toma, não
tem nem respeito. Hoje tá fraco. Na época que eu era criança, o idoso sofria
muito. Não tinha benefício nenhum. Depois veio essa aposentadoria do Funrural,
aí melhorou cem por cento para o idoso. Hoje tá melhor. Os idosos no meu
tempo sofriam muito na roça”. (Sr. Lucas, 62 anos, Idoso da Comunidade).
Quando nos referimos à forma como os idosos eram tratados antigamente, todos
foram unânimes em afirmar o respeito, a consideração por parte dos filhos e dos familiares
para com os idosos, mesmo quando não tinham conforto e os serviços de saúde/
assistência social eram precários. Atualmente, afirmam que alguns filhos não têm
respeito pelos seus idosos e alguns até querem se livrar deles. Referiram-se também à
violência que caracteriza nossa época e que os deixa inseguros.
6. O que gostariam de mudar em suas vidas
Mesmo com os filhos criados e tendo saído de casa, os idosos participantes
desta pesquisa se sentiam responsáveis e se preocupavam com eles. A preocupação
maior era que os filhos estivessem com saúde, empregados e vivendo bem com seus
cônjuges. Percebemos, por parte de alguns, insatisfação com os filhos, no que diz
respeito ao relacionamento familiar não ser tão harmonioso, como eles gostariam,
havendo queixas quanto ao alcoolismo de alguns deles.
“Não sei o que mudaria. Tem coisas que não tem como falar, pois o meu desejo
não será realizado” (Sr. João, 65 anos, idoso da Comunidade).
“Pra meus filhos não beberem muito, principalmente o mais novo” (Sr. Jair, 70
anos, Grupo Reviver).
Os idosos, especialmente os do projeto, ao responderem a essa questão, mostraram
que continuam preocupados com os filhos e a família. Sonhavam em conseguir emprego
para todos, em uni-los, em resolver algum problema existente. Tiraram o foco de si
mesmos e sempre falavam da família. Viveram tanto em função dos outros que
esqueceram seus projetos pessoais. Pode ser que alguns estejam reproduzindo e
aceitando os estereótipos culturais de que o idoso não tem projetos nem sonhos
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pessoais (Warner, 1998). Por outro lado, pode ocorrer que as demandas provenientes
dos filhos e dos netos não lhes possibilitem dedicar-se aos interesses pessoais.
Considerações finais
Constatamos que todos os entrevistados chegaram há muito tempo na cidade de
Paulo Afonso. Vieram de outras cidades, na época da implantação da CHESF, inclusive
de estados diversos – Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. A maioria possuía
baixa escolaridade, ao contrário da maioria de seus filhos, que tiveram acesso à
universidade. Provavelmente a baixa escolaridade se deve ao fato de terem chegado
jovens, na época da fundação da cidade, em busca de emprego. Quando conseguiram,
não tiveram motivação, nem infra-estrutura adequada para continuar a estudar. Seu
objetivo maior foi obtido com o emprego e a possibilidade de constituir família.
Com esta pesquisa pudemos constatar que os idosos têm importância fundamental
na família, seja através da transmissão de valores e de seu papel como conciliador e
agregador, como também do suporte financeiro. Entre todos, o papel como provedor
foi o mais enfatizado. Assim, reproduziram o modelo adquirido de suas famílias de
origem e também o que prevalecia na época. Ao mesmo tempo em que questionaram o
papel dos próprios pais, não souberam exercê-lo de forma diferente do aprendido.
Quando os filhos cresceram, a percepção que os idosos tiveram foi do “dever
cumprido”, mesmo quando os filhos apresentaram dificuldades e retornaram ao lar,
devido à falta de emprego ou por separações. Esse retorno ao lar foi facilitado pela
disponibilidade dos idosos em acolhê-los, não só afetiva como economicamente, já
que têm a aposentadoria, uma renda certa para manter a todos, ainda que precariamente.
A vivência dos entrevistados, quanto ao bem-estar subjetivo, fundamentou-se
nos seguintes fatos: terem onde morar, os filhos estarem criados, terem o que comer,
estarem relativamente saudáveis (não acamados), terem sobrevivido às adversidades
da vida e chegado ao estágio atual. Todos demonstraram satisfação com a chegada
dos filhos, mesmo quando admitiram a dificuldade para conseguir o sustento e terem
que se deslocar para outras cidades, a fim de conseguir mantê-los bem. O objetivo de
tê-los criado apareceu em todos os entrevistados.
A dificuldade enfrentada pelos jovens para ingressar no mercado de trabalho que
proporcione independência e o fato de o idoso ter sua aposentadoria ou benefício são
fatores que explicam a incidência de co-residência para uma boa parte dos entrevistados.
A partir dessas afirmativas, podemos dizer que o idoso passou a ser revalorizado dentro
da família, possibilitando uma troca de cuidados entre as gerações, embora a co-residência
também possa ser fonte de conflitos. Foram enfatizados, por todos, a preocupação com
os filhos e os netos, e o investimento nos estudos objetivando oportunizar uma melhor
qualificação profissional e facilidade no ingresso ao mercado de trabalho.
Os entrevistados também se referiram ao tratamento dispensado aos idosos,
antigamente, como de muito respeito, mas reconheceram que, nessa época, eles não
eram assistidos pelos serviços de saúde, assistência social nem pela Previdência.
Segundo a maioria, antigamente o idoso era valorizado na família e na comunidade.
Mas, atualmente, acham que eles não detêm o mesmo respeito nesses âmbitos. Todavia,
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admitiram a evolução nas políticas sociais e previdenciárias, que vieram dar um melhor
suporte ao idoso enfatizando a aposentadoria como uma conquista alcançada.
Quando comparamos os dois grupos pesquisados, notamos algumas diferenças. Os
idosos que estão participando do Grupo Reviver mantinham-se mais ativos, dinâmicos,
desenvolviam atividades, criavam laços, tinham projetos. Os idosos não participantes, que
se aposentaram e permaneceram em casa, sentiam-se ociosos e apresentavam mais queixas
somáticas. Isto pode ser devido a se restringirem ao ambiente doméstico e, assim, reduzirem
os espaços de discussão, informação e conscientização de seus direitos e conquistas.
A nosso ver, esses idosos estão se familiarizando com as transformações sociais,
familiares, econômicas e nas relações estabelecidas entre as gerações. Ressentem-se
de alguns aspectos do passado que não permaneceram, ao mesmo tempo em que
querem conquistas novas, próprias do momento atual. Gostariam do “respeito antigo”,
porém, com as facilidades e alguma estabilidade financeira de que desfrutam atualmente.
Estão disponíveis para ajudar seus filhos, mas não querem abrir mão do seu papel de
“chefe de família” e norteador do comportamento familiar. No entanto, apesar desses
conflitos, vislumbramos flexibilidade ao aceitarem os novos arranjos e configurações
familiares de seus filhos e estarem disponíveis nos momentos de crises, tanto
econômicas quanto conjugais.
Vale a pena notar que se trata de uma parcela da população nordestina, com
valores e cultura próprios, diferentes, portanto, de outras regiões do Brasil. Nesse
sentido, sugerimos que diferentes investigações, em contextos distintos, podem trazer
mais conhecimentos sobre o tema. É fundamental que os profissionais da área divulguem
e realizem projetos que levem a sociedade a refletir, informando-a sobre esse novo
contexto, até para o próprio idoso se conscientizar de sua importância social e familiar.
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Recebido em agosto de 2007
Aceito em janeiro de 2008
Ivanilza Etelvina dos Santos: psicóloga; mestre em Psicologia Clínica (UCP); professora da Faculdade Sete
de Setembro de Paulo Afonso.
Cristina Maria de Souza Brito Dias: psicóloga; mestre e doutora em Psicologia (UnB); professora e
pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco.
Endereço para correspondência: [email protected]
*Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada “Homem idoso: vivência de papéis durante o ciclo
vital da família”, elaborada pela primeira autora, sob orientação da segunda.
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Aletheia 27(1), p.111-125, jan./jun. 2008
Imagem corporal em crianças institucionalizadas
e em crianças não institucionalizadas
Lorena Emilia Zortéa
Carla Meira Kreutz
Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann
Resumo: O presente estudo investigou, por meio de desenhos da figura humana e de entrevistas, a imagem corporal e as idéias sobre si mesmas de crianças institucionalizadas e não
institucionalizadas, de ambos os sexos e com idade entre cinco e sete anos. A produção gráfica
investigou a imagem corporal e foi avaliada pela Escala de Indicadores Emocionais de Koppitz
(1966). As entrevistas visaram examinar as idéias que as crianças tinham sobre si mesmas e
foram analisadas através da análise de conteúdo de Bardin (1977). Os resultados do Estudo I
apresentaram um número de indicadores emocionais muito semelhantes entre os dois grupos,
possivelmente devido a qualidade do atendimento oferecido às crianças institucionalizadas e a
pouca atenção e tipo de cuidados oferecidos às crianças não institucionalizadas. Os resultados
do Estudo II sugerem que as crianças de ambos os grupos mostram semelhanças em seus
relatos. Uma particularidade do grupo das crianças institucionalizadas é uma insegurança quanto às suas qualidades.
Palavras-chave: imagem corporal, autoconceito, institucionalização.
Physical image in institutionalized children and non
institututionalized children
Abstract: The study in question investigated, through human figure drawings and interviews,
the body image and self-concept in institutionalized and non institutionalized children, of both
genders and age between five and seven years old. The graphic production aimed to investigate
the physical image and it was evaluated by the emotional indicators scale, of Koppitz (1966).
The interviews targeted to examine the self-concept and were analyzed by content analysis, of
Bardin (1977). The results of the study 1 show a few significant differences between the two
groups, proving that non institutionalized children, the ones living with their parents, show a
number of emotional indicators that are very similar to the institutionalized children, probably
because they are receiving quality attention at the institution. The results of the study II
suggest that children in both groups show similarities in their accounts. A peculiarity of the
institutionalized children group is insecurity when it comes to their qualities.
Key words: Physical image, self-concept, institutionalization.
Introdução
Uma das formas de se analisar o desenvolvimento emocional tem sido o estudo
da imagem corporal do indivíduo. Num sentido amplo, a imagem corporal refere-se à
experiência psicológica relacionada ao corpo, portanto está interligada a sentimentos
e atitudes do indivíduo (Pasian & Jacquemin, 1999).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
111
A imagem corporal é constituída a partir da integração entre ego e id, num interjogo
contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais. Para Capisiano (1992) a
estrutura do modelo de corpo é resultante da reunião de representações de várias
procedências, o que resume as diferenças em um só conhecimento: o corpo. Diz ainda
o autor que a imagem do corpo não é estática, e sim, passível de tranformações
vinculadas à modificação contínua do psiquismo.
Uma das formas de conhecer a imagem corporal do indivíduo é através do desenho
da figura humana, onde ele projeta o conceito de si mesmo (Vankolck, 1984). As crianças
fazem os desenhos de figuras humanas refletindo a imagem mental que possuem de
seu corpo. Dessa forma, projetam formas isoladas e desconexas, de acordo com sua
capacidade criativa, motora, intelectual e da própria visão de si, incluindo em sua
formação desde contribuições anatômicas, fisiológicas, neurológicas até aspectos
sociológicos (Capisiano, 1992).
Em torno de 5 a 7 anos, uma criança é capaz de dar uma descrição bastante completa
de si mesma em uma série de dimensões (Bee, 1997). Através de seu relato verbal, “a
criança expressa produtos de percepções, sua representatividade psíquica em sua forma,
distúrbios, funções e seu próprio desenvolvimento” (Capisiano, 1992, p.182).
Assim, utilizando o desenho da figura humana e entrevistas, o presente estudo
visa identificar o papel dos pais na construção da imagem corporal e idéias sobre si
mesmas em crianças de cinco a sete anos, comparando crianças institucionalizadas e
não institucionalizadas. Foram investigadas eventuais diferenças e similaridades na
imagem corporal entre crianças que convivem com os pais desde o nascimento e
crianças que vivem em instituição durante parte de sua vida, visando identificar
similaridades e eventuais particularidades quanto às idéias de si mesmo, ou seja, o
autoconceito, entre os dois grupos pesquisados.
O desenvolvimento da imagem corporal
Segundo Schilder (1999), a imagem corporal é uma experiência básica na vida de
qualquer um, uma experiência vital, lábil e mutável. O autor diz tratar-se de uma
reconstrução constante daquilo que o indivíduo percebe de si e das determinações
inconscientes que ele traz de seu diálogo com o mundo. Todas as experiências
vivenciadas estão marcadas no corpo/história do homem, e elas estão presentes e
sendo desveladas nas inter-relações estabelecidas com os outros e com o meio
(Kleinubing & Kleinubing, 2002).
Inúmeras condições sociais e psicológicas influenciam positiva ou negativamente
o desenvolvimento de uma criança. Ela necessita que os pais supram suas necessidades
básicas, tais como alimentação, calor, abrigo e proteção, e, em segundo, que
proporcionem um ambiente no qual possa desenvolver ao máximo suas capacidades
físicas, mentais e sociais. Para Bowlby (1988), uma atmosfera de afeição e segurança
na vida inicial do indivíduo por parte das figuras parentais é fundamental. É esse clima
de segurança que vai possibilitar a formação de um apego seguro. Moretti (1992)
assinala que para o bebê ter uma imagem saudável de seu corpo, deve passar por
estímulos sensoriais sob a forma de afagos, toques, embalos, massagens e brincadeiras
na água. No princípio, a criança não conhece seu corpo, tem sensações físicas de
112
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
conforto, desconforto, raiva, dor, tem uma dependência da figura materna, só
conseguindo por volta de um ano de vida diferenciar a sua imagem corporal do corpo
da mãe e dos outros (Blaesing & Brockhaus, citados por Moretti,1992).
De acordo com Blaesing e Brockhaus (citado por Moretti, 1992), a criança, no
decorrer do crescimento e do desenvolvimento interpessoal, cria um conceito de seu
próprio corpo como resultado das suas experiências sensoriais e afetivas, da maneira
como vê o mundo e seu domínio do mesmo. Por ter uma imagem corporal plástica, o
indivíduo organiza e adapta seus limites corporais de acordo com sua interação com o
meio ambiente, podendo ser identificada nos seus valores e sentimentos a respeito de
si mesma, do seu grau de organização, da personalidade e força do ego.
Nesse sentido, Mahler (1993) destaca que os três primeiros anos de vida são
determinados por dois fatores. O primeiro deles, a dotação genética, que o impulsiona
para o vínculo com o meio ambiente, permite perceber e aceitar os cuidados
proporcionados pela mãe. O segundo fator é a maternagem, ou seja, a presença de uma
mãe que proporcione verdadeiramente estes cuidados. Bowlby (1984) refere que
crianças seguramente apegadas, aos seis anos, são aquelas que tratam seus pais de
uma forma relaxada e amigável, que estabelecem uma intimidade de forma mais fácil e
sutil. Em idade escolar, segundo Bee (1997), a autopercepção de uma criança também
está ligada às características visíveis, como sua aparência, o quê ou com quem joga,
onde mora, o que sabe fazer bem ou não, ao invés das qualidades mais internas,
constantes como traços de personalidade.
Crianças institucionalizadas
Segundo Loos, Ferreira e Vasconcellos (2002), a violência dentro das famílias e
as situações de risco são apontadas como causas principais que promovem a
institucionalização infantil. Subtraídos do lar, há um rompimento brusco com seus
vínculos anteriores que, mesmo perturbados, serviam de referencial para a criança.
Para os autores, crianças com seqüelas sociais e emocionais apresentam características
de atitudes defensivas contra ambientes ameaçadores, desconfiança básica,
agressividade, sentimentos de culpa, baixa auto-estima.
Silveira (2002) refere que, no processo de institucionalização, meninos chegam
com pertences individuais e outros objetos significativos, buscando, de alguma forma,
preservar relíquias particulares para não perder pedaços de sua história e subjetividade.
Para a autora, o sistema institucional, ao mesmo tempo em que ampara e protege,
desrespeita o eu digno da criança, pois o convívio em coletividade delimita a identidade
individual.
Os vínculos são um referencial primordial na elaboração da concepção de si e
do mundo. Laços afetivos conturbados trazem conseqüências futuras para o
repertório comportamental dos indivíduos, inclusive para sua auto-estima, que pode
definir sua forma de relacionamento com o outro e com o mundo em geral (Weber &
Kossobudzki, 1996).
A impossibilidade de manter e formar vínculo numa instituição de internamento
é determinada por vários fatores, tais como: o elevado número de crianças, o tratamento
massificado e despersonalizante, a rotatividade de funcionários, as transferências dos
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internos para outras instituições e o desligamento da criança de sua família e
comunidade, dentre outros (Weber, 1999).
Lewis e Wolkmar (1993) comentam que bebês criados em instituições apresentam,
com maior freqüência, o hábito de agarrar-se a alguém e/ou o comportamento de seguir
uma pessoa, mostrando-se menos capazes de manter relações duradouras, profundas e
menos vinculadas do que as crianças de quatro anos de idade criadas em família. Para
Costa (1993), crianças institucionalizadas são crianças tristes, deprimidas, angustiadas,
de futuro incerto, sempre à procura de migalhas de amor e ternura. Muitas crianças vão
a óbito, não só por deficiência de cuidados, mas, sobretudo pela baixa resistência
imunológica, provocada pela carência afetiva das crianças abrigadas na instituição.
Método
Participantes
Participaram do estudo 24 crianças na faixa etária de 5 a 7 anos. O grupo não
institucionalizado foi composto por 13 crianças, com escolaridade contínua de 3 anos
na educação infantil de uma escola estadual de ensino fundamental da capital do
estado, que atende uma população em situação econômica desfavorável. Moravam
com a família nuclear, freqüentavam um turno na escola e desenvolviam atividades
preestabelecidas para a faixa etária, ligadas ao desenvolvimento das áreas socioafetivas,
linguagem, psicomotora, participando também de passeios, gincanas e festas.
O grupo institucionalizado foi composto por 11 crianças, com escolaridade entre
1 e 3 anos na escola infantil, internas em fundação não-governamental de abrigo de
menores. Os pais perderam o poder familiar em função de maus tratos físicos,
psicológicos, negligências com a saúde, alimentação, educação, envolvimento com
drogas, abuso sexual, não tendo nenhum contato com as crianças. O atendimento da
instituição era feito em duas unidades. Uma na capital do estado, onde as crianças
eram abrigadas em apartamentos, divididos por sexo, compreendendo um total de 20
crianças de diferentes idades. Na outra unidade, localizada em uma cidade próxima da
capital, as crianças eram agrupadas em casas, possibilitando que irmãos permanecessem
juntos, totalizando 22 crianças, onde havia a organização de agendas pessoais.
Freqüentavam escolas públicas e seguiam uma rotina de atividades ligadas à faixa
etária, tais como passeios pela quadra e praças públicas. Havia crianças em atendimento
psicológico, fonoaudiólogo e dentário.
Instrumentos
Foram utilizados os seguintes instrumentos e materiais: Termo de Consentimento
Informado entregue e assinado pelos pais e pela responsável técnica da instituição.
Na escola foi feito uma reunião, com a presença da direção e do SOE, visando clarificar
os objetivos da pesquisa e sigilo. Também foram utilizados o desenho da figura humana,
folhas de papel branco, lápis preto e borracha, bem como uma entrevista semiestruturada composta por sete questões, na qual utilizamos gravador e fita cassete.
114
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Procedimentos
Foi utilizado o delineamento de grupos contrastantes (Nachmias & Nachmias,
1996). Os participantes foram contatados somente quando confirmados os critérios de
inclusão para participar da pesquisa. Foram marcadas as entrevistas com a coordenação
das instituições e escola, onde foram coletados dados relativos à população atendida,
serviços e atividades oferecidas. Em uma nova visita, após breve interação com as
crianças, foram realizadas as entrevistas e o desenho da figura humana, individualmente
com cada criança, em uma sala reservada especialmente para a coleta de dados da
pesquisa.
O desenho da figura humana foi avaliado quanto à freqüência dos 30 indicadores
emocionais de Braile (1973), cuja autora realizou uma adaptação dos indicadores
emocionais de Koppitz (1966) para a América do Sul. As entrevistas foram gravadas e
transcritas posteriormente. Realizou-se a análise de conteúdo desse material, buscando
investigar as idéias sobre si mesmas das crianças entrevistadas (Bardin, 1977).
Estudo I
A imagem corporal – Produção gráfica
Apresentação e discussão dos resultados – desenho da figura humana
O grupo de crianças institucionalizadas, que não vivem com os pais, está
identificado com a sigla “CI”, e o grupo de crianças que vivem com suas famílias está
identificado como “CF”. A tabela abaixo descreve o número de componentes de cada
grupo de amostra “CI” e “CF”, indicando também o número de meninas e meninos que
participaram.
Tabela 1 – Distribuição dos participantes dos grupos
Sexo
Masculino
Feminino
Total
Grupo (nº de crianças)
CI
8
3
11
CF
5
8
13
Geral
13
11
24
A média de idade das crianças institucionalizadas é de 6,3 anos (DP=0,83) e das
crianças não institucionalizadas é de 6,5 anos (DP=0,32).
A tabela seguinte indica a freqüência das classes dos indicadores emocionais de
Koppitz nos desenhos das crianças institucionalizadas (n=11) e crianças que vivem
com suas famílias (n=13).
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115
Tabela 2 – Freqüência das classes dos indicadores emocionais
Indicadores emocionais
Grupo
CI
N
%
16 48,5
13 39,4
4 12,1
33 100,0
Qualidade
Psicopatologia
Omissão
Total
CF
n
11
27
3
41
%
26,8
65,9
7,3
100,0
A freqüência das crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que vivem
com suas famílias (n=13), em função de total de indicadores emocionais de Koppitz,
detectados em seus desenhos da figura humana é demonstrada na tabela 3.
Tabela 3 – Total de indicadores emocionais
Total de indicadores
emocionais
Grupo (nº de crianças)
CI
0
0
6
1
2
2
0
Zero
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
CF
2
0
3
1
4
2
1
A tabela 4 aponta o número médio de indicadores emocionais detectados nos
desenhos de figura humana das crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que
vivem com suas famílias (n=13).
Tabela 4 – Número médio de indicadores emocionais por grupo
Índice
Média dos Indicadores Emocionais (por grupo)
CI
Esc. Ind. Emocionais
Qualidade
Psicopatologia
Omissão
M
3,00
1,45
1,18
0,36
p
CF
DP
1,26
0,93
0,98
0,67
M
3,15
0,85
2,08
0,23
DP
1,86
0,99
1,26
0,44
0,819
0,137
0,068
0,567
Nota: p = nível mínimo de significância do teste t
Através do teste t, ao nível de significância de 5%, verificou-se não haver diferença
significativa do número médio de sinais da escala de indicadores emocionais e de suas
subescalas em relação à variável Grupo. Assim, para a escala de indicadores emocionais
e para a dimensão Psicopatologia, o grupo institucionalizado apresentou um número
médio de sinais menor do que o grupo não institucionalizado. Para as dimensões
Qualidade e Omissão, o grupo institucionalizado apresentou um número médio de
116
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
sinais maior do que o grupo não institucionalizado, porém, estas diferenças não foram
significativas através do teste t ao nível de significância de 5%.
Os indicadores emocionais discutidos a seguir estão definidos como aqueles
que refletem ansiedades e preocupações não esperados para o desenvolvimento típico.
Segundo Koppitz (1968), para que estes sinais realmente se configurem como
indicadores de problema emocional é preciso que obedeçam a alguns critérios, dentre
os quais está a exigência de que o item não seja usual, isto é, deve ocorrer com
freqüência reduzida (inferior a 16%) em crianças com desenvolvimento típico.
Não apareceram os itens emocionais 4 (sombreamento das mãos e/ou pescoço),
8 (figura grande), 20 (monstro ou figura grotesca), 21 (desenho de três ou mais figuras),
24 (omissão dos olhos), 26 (omissão do corpo), 27 (omissão dos braços) e 30 (omissão
do pescoço) como sinalizadores de dificuldades afetivas nas crianças dos dois grupos.
A tabela aponta a distribuição de freqüência simples dos sinais de transtorno
emocional (indicadores emocionais de Koppitz) nos desenhos da figura humana das
crianças institucionalizadas (n=11) e das crianças que vivem com suas famílias (n=13).
Tabela 5 – Detalhamento dos indicadores emocionais
Freqüência dos Indicadores
Emocionais (por grupo)
Indicadores Emocionais
Qualidade: 1 a 9
Psicopatologia: 10 a 22
Omissão: 23 a 30
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
Base
Integração pobre de partes da figura
Sombreamento do Rosto
Sombreamento do corpo e/ ou membros
Sombreamento mãos e/ou pescoço
Assimetria grosseira de Membros
Figura inclinada
Figura pequena
Figura grande
Transparências
Cabeça pequena/grande
Olhos vesgos
Dentes
Braços curtos
Braços compridos
Braços agarrados ao corpo
Mãos grandes
Mãos omitidas
Pernas juntas
Genitais
Monstro ou figura grotesca
Desenho de três ou mais figuras
Nuvens
Omissão do nariz
Omissão olhos
Omissão da boca
Omissão do corpo
Omissão dos braços
Omissão das pernas
Omissão dos pés
Omissão do pescoço
CI
CF
2
2
1
0
5
0
2
0
4
4
0
0
1
1
1
0
2
2
2
0
0
0
1
0
2
0
0
0
1
0
11
0
3
1
0
0
2
2
0
3
0
2
3
4
3
1
6
1
1
1
0
0
5
2
0
0
0
0
1
0
0
13
Geral
p
2
5
2
0
5
2
4
0
7
4
2
3
5
4
2
6
3
3
3
0
0
5
3
0
2
0
0
1
1
0
24
0,199
0,585
0,717
0,011
0,283
0,637
0,395
0,031
0,283
0,141
0,215
0,363
0,717
0,013
0,435
0,435
0,357
0,030
0,565
0,199
0,542
0,458
-
Nota: p = nível mínimo de significância do teste Exato de Fisher
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
117
Através do Teste Exato de Fisher, ao nível de significância de 5%, verificou-se,
em geral, não haver associação significativa entre a presença dos indicadores e a
variável grupo com exceção dos indicadores “Assimetria grosseira de membros” e
“Cabeça pequena/grande”, em que a presença destes indicadores está associada ao
grupo institucionalizado e da presença dos indicadores “Mãos grandes” e “Nuvens”
estar associada ao grupo não institucionalizado.
O indicador emocional 1 (integração das partes de figura), apareceu em 02 crianças
institucionalizadas, sugerindo sérias perturbações emocionais, personalidade
pobremente integrada, dificuldade de coordenação ou impulsividade. Porém, de modo
geral, pode-se dizer que não houve diferenças significativas entre os grupos deste
estudo quanto a sua imagem corporal.
Em ambos os grupos, apareceram dois indicadores emocionais que sugerem
dificuldades socioafetivas. O primeiro, assimetria grosseira de membros (indicador
emocional 5), revela dificuldades de coordenação e impulsividade, indícios de disfunção
neurológica, falta de coordenação, controle muscular fino, sentimentos de desequilíbrio
com lateralidade e inadequação física encontrado em 5 crianças do grupo
institucionalizado. Um segundo indicador emocional que apareceu foi o de número 10
(cabeça pequena/grande), o qual tem sido associado ao esforço intelectual/imaturidade,
agressão, retardo mental e preocupação com o rendimento escolar, encontrado em 4
crianças do grupo institucionalizado.
Já o indicador emocional 9 (transparências) pode sugerir, em função de sua
freqüência, uma imaturidade, agressividade, impulsividade e conduta atuadora. Detectase através desse indicador uma angústia, conflito, medo muito intenso com respeito a
aspectos sexuais do nascimento ou mutilação corporal, estando presente no grupo
institucionalizado (04 crianças) e não institucionalizado (03 crianças).
O indicador emocional 12 (dentes) sugere agressividade manifesta e foi encontrado
somente no grupo de crianças que vivem com os pais (03 crianças). Por outro lado, o
indicador 13 (braços curtos) apareceu fortemente no grupo das crianças não
institucionalizadas (04 crianças), o que poderia indicar dificuldades de relacionamento
com o meio ambiente e com outras pessoas, tendências ao retraimento, timidez, falta de
agressividade e inibição dos impulsos. O indicador emocional 16 (mãos grandes) foi
detectado somente em crianças não institucionalizadas e está associado à conduta
agressiva e atuadora.
Outro indicador emocional que foi encontrado no grupo de crianças não
institucionalizadas é o 22 (nuvens, chuva ou neve), que revela dificuldade de adaptação
e ansiedade por doenças psicossomáticas. Há um sentimento de ameaça pelo mundo
adulto, especialmente pelas figuras parentais.
Conduta tímida e retraída, ausência de agressividade manifesta, pouco interesse
social, pouca capacidade de progredir e avançar com segurança, tendência ao
retraimento por timidez, às vezes, culpa por masturbação são sentimentos que podem
ser encontrados no item 23 (omissão do nariz) e foi encontrado em 2 crianças do grupo
de não institucionalizados, número superior ao grupo de institucionalizados.
Este estudo evidencia, portanto, que, mesmo em crianças possuidoras de
uma família, com pai e mãe vivendo juntos e com escolaridade média de três anos,
118
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
podem existir dificuldades em suas relações socioafetivas e na construção de sua
imagem corporal.
A influência dos diferentes contextos sobre o processo de desenvolvimento
infantil merece destaque e importância. Piaget (1993) refere que as influências do meio
e da hereditariedade são recíprocas. Vicente (1998) reforça qu a criança, nos primeiros
anos de vida, depende de ligações afetivas para crescer, carece de cuidados com o
corpo, com a alimentação e com a aprendizagem, mas nada disso é suficiente para um
desenvolvimento saudável se ela não encontrar um ambiente de acolhimento e afeto.
A realidade atual descrita por Silveira (2002) sobre as famílias originais, na qual
muitos pais privam-se de convivência e passam distantes dos filhos buscando o
sustento, pode estar evidenciando uma inversão de papéis. Dessa maneira, muitas
vezes, os cuidados da casa e dos filhos, antes feitos pela mãe, hoje são delegados a
outros cuidadores, fragilizando as relações entre os membros da família. Essa poderia
ser uma explicação possível para justificar a presença de tantos indicadores emocionais
nas crianças que vivem com suas famílias.
A família é o centro natural da afeição, conforto, cuidado e segurança de que a
criança necessita para que possa crescer e se desenvolver integralmente. Pode-se
pensar que, mais do que a presença dos pais, é importante o tipo de atenção e cuidados
oferecidos. Este é outro fator que poderia explicar a ausência de diferenças significativas
no presente estudo, onde parece que a qualidade dos serviços da instituição
contribuiram no sentido de diminuir os possíveis efeitos negativos do ambiente inicial
dessas crianças.
Estudo II
As idéias sobre si mesmas através das falas de crianças
Apresentação e discussão dos resultados – entrevistas sobre idéias a respeito de si
mesmas.
Utilizou-se a análise de conteúdo (Bardin, 1977) a fim de examinar as respostas
obtidas das crianças. Foram geradas três categorias, apresentadas a seguir. As crianças
institucionalizadas, que não vivem com os pais, estão identificadas com a sigla “CI”, e as
crianças que vivem com sua família estão identificadas como “CF”. Após a caracterização
de cada tema, as respostas das crianças institucionalizadas e não institucionalizadas são
comparadas, examinando-se eventuais semelhanças e particularidades.
1- Percepção de si mesmo – características emocionais e físicas
Esta categoria refere-se as características emocionais e físicas relatadas pelos
participantes da pesquisa, que mostraram através de seus relatos como se percebiam.
Apareceram relatos desde uma percepção positiva de si e de acordo com seu próprio
corpo até uma percepção ambivalente sobre si, com dúvidas sobre o quanto o seu jeito
e o seu corpo agradam ao outro. Abaixo seguem alguns exemplos das falas das crianças
sobre esta temática.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
119
“Eu sou bonito, sou magro.”(CI4)
“Eu se vejo bem. Às vezes eu me olho no espelho, tem gente que me acha feia,
mas eu não e daí eu chamo a tia e pergunto: eu sou bonita? Às vezes ela me fala que
sim.” (CI12)
“Bem legal, bonita, amiga e gostosa.” (CF21)
“Essa daí é difícil... Eu me acho bastante magro, meus pais também, alto e isso
e só.” (CF15)
Os relatos apontam que várias crianças dos dois grupos pesquisados se percebem
de forma positiva e saudável, descrevendo-se como pessoas legais, charmosas e
bonitas, evidenciando assim uma satisfação consigo mesmas. Ambos grupos definiramse apontando mais características físicas concretas do que características emocionais,
o que já era esperado para esta faixa etária.
No entanto, algumas crianças institucionalizadas referiram um sentimento de
insegurança sobre as suas qualidades, não sabendo se os outros gostam de seu corpo
ou de seu jeito (CI4), ou necessitando perguntar para a professora se é realmente
bonita (CI12), ou ainda utilizando formas comparativas (CF15), em que o participante
usa o elemento de comparação para a construção de sua imagem corporal e idéia sobre
si mesmo. É possível que a ausência parental no dia-a-dia da criança seja um fator que
influencie na sua valorização, insegurança e potencialidade.
O fato das crianças descreverem suas impressões sobre si mesmas baseadas nas
características de seu próprio corpo corroboram a literatura, no que diz respeito à
importância do corpo no desenvolvimento da imagem corporal e idéias de si (Vankolck,
1984; Moretti, 1992). Somente algumas crianças deste estudo apresentaram idéias
negativas sobre si, podendo retirar-se do ambiente, o que se poderia esperar, uma vez
que tiveram experiências familiares negativas anteriormente.
Loos, Ferreira e Vasconcellos (2002) referem que crianças institucionalizadas, ou
vivendo em ambientes ameaçadores, apresentam características defensivas, tais como
desconfiança básica, agressividade, baixa auto-estima e sentimento de culpa. Costa
(1993) refere que crianças institucionalizadas são tristes, deprimidas e angustiadas,
que estão sempre à procura de afeto e ternura. Estes aspectos referidos pelos autores
acima citados também foram identificados de maneira pouco intensa nos participantes
desse estudo. A busca de afeto e ternura apareceu na fala de algumas crianças
institucionalizadas quando essas pareciam necessitar uma confirmação das suas
qualidades, buscando possivelmente saber, assim, se são valorizadas e amadas. No
entanto, essa característica não está ausente nas crianças não institucionalizadas.
Moretti (1992) realiza uma revisão bibliográfica na qual conclui que a imagem
corporal está calcada nas experiências e atitudes positivas dos pais ou dos cuidadores,
os quais devem proporcionar um sentimento de segurança e confiança fundamentais
para passar pelas outras fases e aprender a enfrentar os desafios do ambiente. Parece
que a semelhança entre os grupos de crianças não institucionalizadas e as crianças
institucionalizadas pode ser devido ao cuidado adequado que os cuidadores lhes
prestam. É possível que, apesar de algumas crianças institucionalizadas mostrarem
insegurança quanto a suas qualidades, elas tenham apresentado uma percepção positiva
de si mesmas por terem essa assistência adequada das instituições.
120
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Os resultados apresentados sugerem que a instituição, através do seu trabalho,
parece estar conseguindo minimizar os efeitos negativos da ausência dos pais, auxiliando
de forma positiva no desenvolvimento dessas crianças, oferecendo a possibilidade de
desenvolver modelos internos mais satisfatórios de funcionamento. Dentro do contexto
observado, uma possível explicação para os resultados obtidos no estudo diz respeito
às condições da instituição, pois esta se caracteriza por um padrão elevado de
atendimento, diferenciando-se de muitas outras. O novo ambiente proporcionado pela
instituição caracteriza-se por amplos espaços, boa alimentação, melhor qualidade das
relações sociais, presença de cuidadores, atendimento médico, odontológico e
psicológico, entre outros, parecendo agir no sentido de diminuir os possíveis efeitos
do ambiente em que viviam anteriormente.
Para Vicente (2000), a família é a primeira e mais importante rede de apoio social,
a qual pode apoiar a criança através de seus cuidados e compreensão. Porém, Neder e
Kaloustian (2000) referem que o atual quadro das famílias enfrentando dificuldades
econômicas, pais buscando trabalho num mercado capitalista competitivo, bem como
a inserção/exclusão das mulheres neste contexto, produzem efeitos sobre a estrutura
familiar e prejudicam a manutenção dos vínculos. Esta realidade pode ser agravada
pela pouca disponibilidade, pela qualidade das interações familiares, pela falta de
diálogo, autoritarismo e instabilidade vivida pelos pais. Isto também pode explicar as
semelhanças encontradas nos relatos das crianças institucionalizadas e das crianças
que vivem com as famílias, uma vez que as famílias podem estar deixando a desejar nas
relações interpessoais com os filhos.
Por outro lado, o principal continente complementar é a escola, onde o vínculo
pode ser estabelecido com outras pessoas que se ocupam das necessidades básicas
da criança, sendo o espaço escolar uma importante oportunidade de resgate e superação
das inúmeras carências do contexto familiar (Vicente, 2000).
2- Percepção de si mesmo – habilidades sociais
Esta categoria refere-se às habilidades sociais das crianças que se mostram através
de suas brincadeiras, jogos e atividades de grupo de forma geral.
As crianças entrevistadas relataram sentimentos positivos em relação a suas
habilidades sociais, a seus relacionamentos, suas trocas de experiências, mesmo diante
de condição institucional imposta, interagindo e evidenciando satisfações pessoais,
ora aparecendo sentimentos ambivalentes. Aparecem relatos de uma integração sadia,
feliz, alegre, bem como uma percepção ambivalente sobre si, com manifestações de
insegurança e agressividade frente a pequenos conflitos. Abaixo, alguns relatos dos
participantes.
“Eu brinco com eles... de pega-pega, de não atirei o pau no gato, de viuvinha,
canto musiquinhas com eles, brinco com eles de balanço, de pega-pega, de
comidinha.” (CI1)
“Eu brinco de quem dá em mim eu dô.” (CI4)
“Bem,ah! eu não bato muito neles. Quando eles me batem, eu conto prá profe.
Eu gosto muito de brincar com eles e só!.” (CF15)
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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“Sim, eu sou capaz de virar estrelinha, dar cambalhota. Ah! brincar de olhar
para o céu, olhar para o chão.Aã... chutar a bola e mais nada.” (CF20)
Os relatos acima exemplificam as habilidades sociais, a forma de brincar e interagir
com os colegas presentes na rotina dos participantes deste estudo. Diante da
realidade tão diversa vivenciada pelos dois grupos, encontram-se semelhanças nos
relatos das crianças (CI1 e CF20), podendo-se pensar em uma interação sadia e
satisfatória com o meio.
No grupo de crianças institucionalizadas, aparece uma particularidade em especial,
apontada através do relato de CI4. Através de sua fala, apresenta manifestações
agressivas ao interagir com seu grupo, que pode estar demonstrando dificuldades
oriundas da vivência de abandono familiar, uma vez que as crianças podem ter
necessitado de brincadeiras mais agressivas para se defenderem das ameaças do mundo
de maneira solitária.
Segundo Benjamin (1984), ao brincar, as crianças recriam e repensam os
acontecimentos que lhes deram origem. Sabendo que estão brincando, seus
conhecimentos provêm da imitação de alguém ou de algo conhecido, da experiência
vivida na família ou em outros ambientes, relatos de colegas ou cenas assistidas na
televisão. É no ato de brincar que a criança estabelece os diferentes vínculos entre as
características do papel assumido, suas competências e as relações que possuem com
os outros papéis.
De modo geral, as crianças institucionalizadas demonstraram uma interação
positiva com seus colegas. Neste sentido, o trabalho desenvolvido na instituição
parece favorecer um ambiente físico e social, onde as crianças se sentem protegidas e
acolhidas e, ao mesmo tempo, sentem-se seguras para arriscar e vencer desafios.
3- Percepção de si mesmo – organização e autonomia
Esta categoria refere-se às características de organização e autonomia relatada
pelos participantes da pesquisa que mostram, através de suas falas, como se percebem
em sua organização e responsabilidade. Abaixo, seguem alguns exemplos das falas
das crianças sobre a temática.
“... o que as tias mandam fazê eu faço. De noite arrumo prateleira, arrumo o
bidê dos meus calçados, arrumo as camas de manhã, varro as casas às vezes.” (CI8)
“Eu sei ir no banheiro, eu sei ir pro quarto, eu sei lavar a louça, sei varrer a
casa, eu sei limpar as mesas, eu sei arrumar a casa e limpar o pátio, só.” (CI 12)
“A eu limpo muito meus dentes ,eu lavo o meu rosto sempre na hora quando
acordo de manha, depois vou tomar café. E ... eu sou muito legal.” (CF16)
Percebe-se, nestes relatos, a capacidades de organização e cumprimento das
tarefas que são solicitadas às crianças de ambos os grupos, não tendo sido encontradas
particularidades quanto à forma de organização e autonomia para com as tarefas dessas
crianças.
No grupo de crianças institucionalizadas, apareceu a possibilidade de organização
e de autonomia. Portanto, os dados do presente estudo contradizem a literatura (Wagner,
2002), que aponta a institucionalização como produzindo historicamente crianças sem
perspectiva de vida autônoma. Os dados sugerem que uma experiência de
122
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
institucionalização, na qual a criança pode vivenciar relações mais positivas do que
aquelas que vinham tendo dentro de seu ambiente familiar desfavorável, pode não
trazer prejuízos tão severos ao desenvolvimento. Dessa forma, uma instituição com um
atendimento adequado, no qual a criança dispõe de figuras cuidadoras que podem
prover pelo menos algumas experiências gratificantes, apesar de distintas e não tão
intensas como em um ambiente familiar continente, pode contribuir com o
desenvolvimento da criança que antes estava em situação adversa, apesar de estar
com sua família.
Considerações finais
O presente estudo aponta para a importância do trabalho realizado pelas escolas,
com o objetivo de auxiliar pais e professores. O trabalho desenvolvido pelos cuidadores
na instituição é fundamental para favorecer o desenvolvimento da imagem corporal e
de aspectos socioafetivos. As idéias sobre si também podem ser mais positivas, ou
seja, as crianças podem se enxergar hábeis, autônomas e com possibilidades de uma
adequada interação social quando os cuidadores, ainda que em uma instituição,
mostram-se disponíveis. Portanto, o trabalho de uma instituição que esteja atenta aos
diversos aspectos do desenvolvimento infantil contribuirá para minimizar efeitos
negativos de situações adversas relacionadas à falta parental. Além disso, o estudo
contribui para que haja um questionamento sobre a forma como as famílias têm se
colocado disponíveis para seus filhos.
O presente estudo aponta para a necessidade de intervenções nas escolas que
visem aproximar as famílias dos seus filhos, uma vez que as semelhanças entre os
grupos apontados por este estudo podem estar indicando não somente o fato de as
instituições de acolhida serem adequadas, mas também o fato de as famílias estarem
pouco ocupadas com seus filhos.
Limitações podem ser apontadas. O pequeno número de entrevistas e de
participantes, além do fato de se ter comparado somente duas instituições, impedem
que se possam realizar afirmações mais conclusivas.
Os instrumentos utilizados podem não ter sido suficientemente sensíveis às
dificuldades que se esperava encontrar nas crianças institucionalizadas. Também não
foi realizada avaliação do funcionamento familiar das crianças não institucionalizadas.
Estudos que envolvam diferentes instituições com menos recursos do que a incluída
nessa pesquisa poderiam contribuir para explicar os achados.
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Recebido em julho de 2006
Aceito em outubro de 2007
Lorena Emilia Zortéa: psicóloga graduada pelo Curso de Psicologia da ULBRA/Gravataí.
Carla Meira Kreutz: psicóloga; doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); professora do curso
de Psicologia da ULBRA/Gravataí e do Pós-Graduação em Transtornos do Desenvolvimento (UFRGS).
Rejane Lúcia Veiga Oliveira Johann: psicóloga; doutora em Psicologia (PUCRS); professora do curso de
Psicologia da ULBRA/Gravataí.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
125
Aletheia 27(1), p.126-138, jan./jun. 2008
Habilidades Sociais Educativas Parentais e problemas de
comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares
Alessandra Turini Bolsoni-Silva
Edna Maria Marturano
Resumo: Práticas educativas parentais podem contribuir para a instalação de problemas de
comportamento em crianças. O objetivo deste estudo foi comparar Habilidades Sociais
Educativas Parentais (HSE-P) entre pais de pré-escolares com problemas de comportamento e
pais de pré-escolares com comportamentos socialmente habilidosos. Adicionalmente, compararam-se as HSP-E de pais e mães. Participaram 48 casais, dos quais 24 tinham um(a) filho(a)
com comportamentos socialmente habilidosos segundo o professor (Grupo CSA) e 24, um
filho com problemas de comportamento (Grupo PC). Pais e mães responderam a um roteiro de
entrevista que avalia HSE-P. Verificou-se no Grupo CSA uma tendência a avaliar mais positivamente suas HSP-E: demonstrar carinho, concordar com cônjuge, cumprir promessas. As mães
se consideraram mais habilidosas que os pais. As HSP-E que mais diferenciaram os grupos
foram aquelas relacionadas a consistência e afeto positivo.
Palavras-chave: habilidades sociais, práticas parentais, avaliação de comportamentos sociais.
Parental Social Educational Skills and behavior problem:
comparing fathers and mothers of preschoolers
Abstract: Parental bringing-up practices can give rise to behavior problems in children. The aim
of this study was to compare Parental Social Educational Skills (PSES) between two groups of
parents: parents of preschoolers with behavior problems and parents of preschoolers with
socially adequate behaviors. Mothers and fathers were also compared as to their PSES. Fortyeight couples participated. Twenty-four had a child with behavior problems at school (BP
Group), and 24 had a child with good behavior (GB Group). Fathers and mothers answered an
interview route assessing PSES. Parents of GB children tended to evaluate their own PSES
more positively than parents of BP children: physical affection, agreement with the other
parent, dependability. The mothers evaluated themselves as more skilled than the fathers did.
The PSES which best discriminated the two groups were those related to consistency and
positive affection.
Key words: Social skills, parental practices, assessment of social behaviors.
Introdução
As habilidades dos pais, ao interagirem e educarem seus filhos parecem ser
cruciais à promoção de habilidades sociais e sua falta pode contribuir para problemas
de comportamento. Analisando a literatura sobre problemas de comportamento podese dizer que: a) problemas de comportamento são tidos prioritariamente como
comportamentos externalizantes, que teriam a função de contra-controlar, isto é, são
efetivos para reduzir comportamentos aversivos de familiares (Patterson, Reid &
126
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Dishion, 2002); b) são comportamentos multideterminados, à medida que variáveis
como história de vida familiar (Patterson & cols., 2002), práticas parentais (Patterson,
DeBaryshe & Ramsey, 1989; Patterson & cols. 2002; Webster-Stratton, 1997), condição
sócio-ecônomica (Patterson & cols. 2002), eventos extressantes (Patterson & cols.
2002; Webster-Stratton, 1997), conflitos conjugais (Patterson & cols., 2002; Pawlak &
Klein, 1997), hereditariedade dos pais e da criança (Gomide, 2001; Patterson & cols.,
2002), patologia parental (Bugental & Johnston, 2000; Hoffman & Youngblade, 1998;
Patterson & cols., 2002), características da criança (Gomide, 2001; Patterson & cols.,
2002) e da escola (Patterson & cols., 2002; Webster-Stratton, 1997), podem influenciar
o surgimento e/ou manutenção de tais comportamentos, sendo que a operacionalização
destas variáveis constitui desafio para pesquisadores e profissionais da área; c) parece
que problemas de comportamento ocorrem com mais freqüência e intensidade quanto
mais fatores de risco estiverem combinados e/ou acumulados (Kinard, 1995; Patterson
& cols., 2002).
Desta forma, percebe-se que o relacionamento entre pais e filhos envolvido nas
práticas parentais é uma das variáveis preditivas de problemas de comportamento.
Para diversos pesquisadores (Del Prette & Del Prette, 1999; Kaplan, Sadock & Grebb,
1997; Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccinini & Hutz, 2005; Patterson & cols., 1989;
Sidman, 1995; Webster-Stratton, 1997), haveria uma ligação entre práticas parentais e
problemas de comportamento dos filhos, no sentido de que as famílias estimulariam
tais repertórios por meio de disciplina inconsistente, pouca interação positiva, pouco
monitoramento e supervisão insuficiente das atividades da criança. Os pais tenderiam
a ser não contingentes no uso de reforçamento positivo para comportamentos prósociais (ignorando-os ou respondendo de forma inapropriada), bem como no uso de
punições efetivas para comportamentos problema.
Diante destas considerações, é possível supor que comportamentos coercitivos
sejam diretamente reforçados pelos membros da família, levando a criança a utilizá-los,
possivelmente, para sobreviver neste sistema social aversivo. Além disso, os filhos
expostos à violência por longos períodos, freqüentemente comportam-se de forma
agressiva (Sidman, 1995, Skinner, 1953/1993); quando são criados em condições
negligentes tornam-se pouco tolerantes à frustração, relativamente imunes ao remorso e
com pouca motivação para seguirem normas sociais (Pacheco, Teixeira & Gomes, 1999).
Patterson e cols. (2002) afirmam encontrar que práticas parentais positivas podem
evitar o surgimento e/ou a manutenção de problemas de comportamento e, por outro
lado, as negativas podem aumentar a probabilidade de sua ocorrência. Gomide (2006)
as define:
As chamadas práticas educativas positivas são a monitoria positiva, que envolve
o uso adequado da atenção e a distribuição de privilégios, o adequado
estabelecimento de regras, a distribuição contínua e segura do afeto, o
acompanhamento e a supervisão das atividades escolares e de lazer; e o
comportamento moral [...]. As práticas educativas negativas envolvem
negligência, ausência de atenção e de afeto; o abuso físico e psicológico,
caracterizado pela disciplina através de práticas corporais negativas, ameaça
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
127
e chantagem de abandono e de humilhação do filho; [...]; e a monitoria negativa,
caracterizada pelo excesso de instruções independente de seu cumprimento e,
conseqüentemente, pela geração de um ambiente de convivência hostil” (p.8)
Interações sociais positivas estabelecidas entre pais e filhos, são em primeiro
lugar relacionamentos interpessoais que podem ser qualificados como positivos ou
negativos. O Campo teórico-prático do Treinamento em Habilidades Sociais (THS)
pode auxiliar no entendimento destas interações no que diz respeito a identificar quais
habilidades sociais podem estar envolvidas nas práticas parentais. Del Prette e Del
Prette (2001) descrevem que as Habilidades Sociais Educativas (HSE) são aquelas
intencionalmente voltadas para a promoção do desenvolvimento e da aprendizagem
do outro, em situação formal ou informal. Silva (2000) descreve o termo Habilidades
Sociais Educativas Parentais (HSE-P) como sendo o conjunto de habilidades sociais
dos pais, aplicáveis à prática parental e exemplifica que a Habilidade Social Educativa
de estabelecer limites e/ou regras pode envolver outras habilidades sociais, tais como
dizer não e solicitar mudança de comportamento, as quais poderiam ser consideradas
práticas parentais positivas.
Tais relações já foram investigadas por outros pesquisadores: Silva (2000);
Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) e Bolsoni-Silva, Del Prette e Oishi (2003). De forma
geral, estas pesquisas confirmaram a hipótese de que pais socialmente mais
competentes conseguiam resolver problemas encontrados na prática educativa dos
filhos, de forma mais efetiva e positiva. Em relação às habilidades sociais educativas
parentais foi possível verificar que os filhos com habilidades sociais viviam em famílias
melhor estruturadas (família nuclear e trabalho) e com maior consistência em sua
educação, havendo maior entendimento do casal e maior participação do progenitor
masculino na divisão de tarefas e educação do filho. No entanto, tais resultados foram
obtidos a partir de amostras pequenas, o que limita conclusões e generalizações.
Silva (2000) descobriu que, segundo relatos de homens e de mulheres, as mães
foram consideradas mais participativas na educação dos filhos que os pais, e conforme
os achados de Costa, Teixeira e Gomes (2000) elas parecem emitir mais comportamentos
que funcionalmente parecem prevenir o surgimento de problemas de comportamento,
isto é, exigência e responsividade. Adicionalmente, Bolsoni-Silva e Del Prette (2002)
encontraram que mães conversam mais com os filhos, bem como expressam mais
sentimentos e opiniões, além de estabelecer limites e elogiar comportamentos
adequados. Esses achados são concordantes com estudos prévios nos quais se
verificou que as mães conversam mais e qualitativamente melhor que os pais (Bellinger
& Gleason, 1982; Malone & Guy, 1982; Reese & Eivush, 1993).
Em estudo transcultural (Estados Unidos, Coréia, Rússia, Estônia e Kênia) Tudge
e cols. (2000) afirmam que: a) pais estavam ativamente envolvidos com seus filhos,
mas menos freqüentemente que as mães, isto porque eles ficavam pouco tempo com as
crianças; b) os pais brincavam mais com seus filhos que as mães; c) as mães ficavam
mais tempo com seus filhos; d) na presença das mães, os filhos envolviam-se em
outras atividades, tais como lição, conversação e trabalho. Novamente, os resultados
apontam para a maior participação materna na educação dos filhos, especialmente em
128
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atividades que envolvem monitoramento, com tarefas escolares, por exemplo, as quais
são consideradas por Gomide (2006) como práticas positivas.
Com base no exposto, a presente investigação retomou o tema das relações entre
HSE-P e problemas de comportamento em pré-escolares, focalizando duas questões
que têm norteado a pesquisa nesse campo: a) as HSE-P de genitores que têm filhos
com problemas de comportamento são diferentes das HSE-P de genitores cujos filhos
mostram comportamentos socialmente habilidosos? b) as habilidades sociais educativas
(HSE-P) de pais são semelhantes ou diferentes das HSE-P de mães?
Com vistas a um maior entendimento das relações estabelecidas entre pais e
filhos, o objetivo principal da investigação foi comparar as HSE-P de pais (mãe/
pai) de filhos com indicativos escolares de problemas de comportamento x pais
(mãe/pai) de filhos com indicativos escolares de comportamentos socialmente
habilidosos. Adicionalmente, compararam-se as HSE-P de pais e mães dentro de
cada grupo.
Método
Participantes
Participaram do estudo 96 pais biológicos de crianças com idade entre cinco e
sete anos, matriculadas em 13 Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIS),
distribuídas geograficamente por uma cidade do interior de São Paulo, organizados em
dois grupos: (a) 48 pais (24 mães e 24 pais) de crianças com indicação escolar de
problemas de comportamento (PC); (b) 48 pais (24 mães e 24 pais) de crianças com
indicação escolar de comportamentos socialmente adequados (CSA).
No grupo PC havia oito meninas e 16 meninos; a idade média das crianças era de
cinco anos e nove meses. No grupo CSA, havia 17 meninas e sete meninos, com idade
média de cinco anos e 11 meses. A distribuição por gênero apresentou diferença
estatisticamente significativa entre os grupos (÷2 = 6,76; p < 0,01). Os grupos eram
equivalentes quanto à escolaridade dos pais (PC, média 9,35anos; CSA, média 9,42
anos), à renda familiar (PC, média R$ 870,00; CSA, média R$ 1.292,00), ao status
ocupacional e à jornada de trabalho.
Instrumentos
Para composição dos grupos, com base nas indicações das professoras, foram
utilizados dois instrumentos: O Questionário de Respostas Socialmente Habilidosas,
versão para professores (QRSH-P), baseado em Silva (2000) e a Escala Comportamental
Infantil para professores (ECI-B, Rutter, 1967; Santos, 2002).
O QRSH-P é composto por uma lista de 24 itens, com respostas socialmente
habilidosas apresentados por crianças, no qual as professoras devem responder se
um item se aplica (escore 2), se aplica em parte (escore 1) ou não se aplica (escore 0). Os
escores são somados, permitindo o escore total da criança avaliada. O instrumento
apresentou elevada consistência interna (alfa = 0,92) na amostra deste estudo.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
129
A ECI-B é composta por 26 itens que apresentam descrições de respostas
indicativas de problema. Cada item tem três alternativas de resposta: aplica-se (escore
2), aplica-se em parte (escore 1) ou não se aplica (escore 0) à criança. A escala tem
ponto de corte para o escore total (igual ou superior a nove), acima do qual se considera
que a criança tem problemas de comportamento. O índice de consistência interna
obtido para a ECI-B foi igual a 0,83 (coeficiente alfa de Cronbach).
Para investigar as Habilidades Sociais Educativas Parentais (HSE-P) foi utilizado o
Roteiro de Entrevista de Habilidades Sociais Educativas Parentais (RE-HSE-P),
apresentado oralmente aos pais. Esse instrumento foi construído para a presente
investigação e focaliza as seguintes HSE-P: manter conversação; fazer perguntas;
perguntar sobre sexualidade; expressar sentimentos positivos e negativos; demonstrar
carinho; brincar com o filho; expressar opiniões; estabelecer limites; cumprir promessas;
concordar com cônjuge; auto-avaliar-se quanto a “erros” na forma de educar; discriminar
e conseqüenciar comportamentos adequados dos filhos. Cada tópico é introduzido com
uma questão aberta. Para cada opção de resposta à questão aberta são solicitadas
informações adicionais, como a freqüência com que aparece o comportamento mencionado
(freqüentemente; às vezes; nunca/quase nunca) e reações dos filhos. Neste trabalho são
apresentadas as análises referentes à freqüência com que os participantes relataram
emitir as HSE-P investigadas. Na cotação das respostas ao RE-HSE-P, atribuiu-se o
escore 0 (zero) para a resposta “nunca/quase nunca”, o escore 1 (um), para a resposta
“algumas vezes” e o escore 2 (dois) para a resposta “freqüentemente”.
Para verificar a fidedignidade do RE-HSE-P foram coletados dados com 12 pais e
12 mães, cujas medidas foram obtidas com um mês de distanciamento. A fidedignidade
teste-reteste foi avaliada por meio do coeficiente de correlação de Spearman, obtendose as seguintes correlações significativas: a) RE-HSE-P mães – correlação igual a 0,76
(p < 0,05); b) RE-HSE-P pais – correlação igual a 0,89 (p < 0,01).
Embora com índices de fidedignidade satisfatórios nas análises feitas sobre os
dados do presente estudo, os instrumentos não têm, evidências de validade
estabelecidas para o Brasil.
Procedimentos
Seleção dos participantes
Para compor a amostra foram visitadas 13 EMEIS, após a permissão concedida pela
Secretaria Municipal de Educação Infantil. Em seguida, foi solicitada à direção das EMEIS
permissão para que suas professoras participassem da pesquisa. A cada professora,
após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, solicitou-se que
indicasse, entre seus alunos, os três que apresentavam mais problemas de comportamento
e os três com maiores indicativos de comportamentos socialmente habilidosos. Em
seguida, a professora respondia, para cada criança indicada, a ECI-B e o QRSH-P.
Foram critérios de inclusão na pesquisa: (a) a criança morar com ambos os pais
biológicos, o que foi verificado por meio de consultas à escola ou aos próprios pais;
(b) as crianças PC, apenas e necessariamente, atingirem a pontuação da ECI-B para
problemas de comportamento; ( b) incluir o mesmo número de crianças PC e CSA para
130
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
cada professor, o que implicava que se uma criança indicada não preenchesse os
critérios, excluía automaticamente o seu par correspondente.
Coleta de dados
Os passos de coleta de dados junto aos pais / mães foram: a) contato, por telefone ou
pessoalmente para verificar o interesse em participar da pesquisa e adequação quanto aos
critérios para entrar na amostra e para agendar a aplicação do instrumento, nas residências
dos participantes; b) visitas às residências, onde foram explicitados novamente os objetivos
do trabalho, solicitando-se o consentimento e a assinatura do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido; c) aplicação do RE-HSE-P. O instrumento era aplicado pela primeira
autora ou por alunos de iniciação científica previamente treinados. As perguntas eram
formuladas oralmente e as respostas anotadas pelo entrevistador no protocolo do REHSE-P. As entrevistas tiveram duração média de 46 minutos para os pais PC, de 47 minutos
para as mães PC, de 47 minutos para os pais CSA e de 50 minutos para as mães CSA.
Resultados
Esta seção apresenta os resultados de cada uma das habilidades sociais educativas
parentais avaliadas na comparação entre os grupos, bem como, dentro de cada grupo,
entre mães e pais.
Os dados foram tratados estatisticamente (SPSS, versão 12.0) a fim de verificar
diferenças entre os Grupos PC e CSA (Teste t ), entre os relatos de pais e mães em cada
grupo (Teste de Wilcoxon) e entre pais / mães dos dois grupos (Teste U de MannWhitney). A Tabela 1 mostra resultados das comparações entre os grupos PC e CSA.
Tabela 1 – Habilidades sociais educativas parentais: Comparações entre os Grupos PC e CSA.
Habilidades sociais educativas parentais
PC
CSA
média
dp
média
dp
t
Manter conversação
1,71
0,50
1,85
0,36
1,64
Fazer perguntar
1,52
0,62
1,56
0,58
0,34
Ouvir perguntas sobre sexualidade
0,56
0,71
0,65
0,67
0,59
Expressar sentimentos positivos
1,58
0,68
1,58
0,71
0
Expressar sentimentos negativos
0,71
0,77
0,60
0,68
0,70
Demonstrar carinho
1,77
0,42
1,98
0,14
3,22**
Brincar com o filho
1,48
0,54
1,48
0,50
0
Expressar opiniões
1,31
0,72
1,42
0,77
0,69
Estabelecer limites
1,75
0,43
1,79
0,46
0,45
Cumprir promessas
1,68
0,56
1,94
0,25
2,88**
1,84
Dificuldade em cumprir promessas
0,79
0,72
0,53
0,62
Concordar com cônjuge
1,33
0,66
1,69
0,55
2,84**
Auto-avaliar-se quanto a “erros” na forma de educar
0,77
0,51
0,88
0,49
1,02
Discriminar comportamentos adequados dos filhos
1,56
0,50
1,81
0,39
2,71**
Total
18,60
3,02
19,71
2,47
1,96*
Nota: n = 48 em cada grupo. Valores expressos em médias.
* p = 0,053
**p < 0,01
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
131
Diferenças estatísticas foram encontradas em quatro das quatorze habilidades
investigadas: “demonstrar carinho”, “cumprir promessas”, “concordar com cônjuge”
e “discriminar comportamentos adequados”. Em todas as comparações com diferença
significativa, o Grupo CSA apresentou médias maiores. Também no escore total se
observou a mesma tendência (p = 0,053). Nota-se que as diferenças se referem a
habilidades que envolvem consistência (“cumprir promessas”, “concordar com
cônjuge”) e afetividade (“demonstrar carinho”, “discriminar comportamentos
adequados”). Destaca-se que os demais itens, sem diferença estatística, contribuíram
para obter a diferença na comparação dos escores totais. Os resultados da comparação
entre pais e mães dentro de cada grupo encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 – Habilidades sociais educativas parentais: Comparações entre Mães e Pais PC
e entre Mães e Pais CSA.
Habilidades sociais educativas
parentais
CSA
PC
mães
pais
p
Mães
pais
p
Manter conversação
1,79
1,62
-
1,96
1,75
Fazer perguntar
1,67
1,38
-
1,71
1,42
0,025
-
Ouvir perguntas sobre sexualidade
0,75
0,38
0,048
0,83
0,46
0,048
Expressar sentimentos positivos
1,75
1,42
0,046
1,75
1,42
-
Expressar sentimentos negativos
0,88
0,54
-
0,83
0,38
0,022
Demonstrar carinho
1,87
1,67
-
2,00
1,96
-
Brincar com o filho
1,38
1,58
-
1,42
1,54
-
Expressar opiniões
1,54
1,08
0,016
1,54
1,29
-
Estabelecer limites
1,83
1,67
-
1,67
1,92
-
Cumprir promessas
1,75
1,61
-
1,96
1,91
-
Dificuldade em cumprir promessas
0,83
0,74
-
0,58
0,48
-
Concordar com cônjuge
1,17
1,50
-
1,62
1,75
-
-
0,96
0,79
-
-
1,79
1,83
-
0,002
20,63
18,79
0,011
Auto-avaliar-se quanto a “erros” na
forma de educar
0,83
0,71
Discriminar comportamentos
adequados dos filhos
1,71
1,42
Total
20,00
17,21
Nota: N = 24 em cada grupo. Valores expressos em médias. Teste de Wilcoxon.
Pela Tabela 2 observa-se que para a maioria das habilidades não há diferenças
entre os relatos de pais e de mães do Grupo PC, entretanto, o escore total de HSE-P e
as categorias “ouvir perguntas sobre sexualidade”, “expressar sentimentos positivos”
e “expressar opiniões” apresentaram diferenças significativas nas comparações entre
pais e mães. As médias sinalizam que as mães relatam emitir um número maior de
habilidades sociais que os pais, uma tendência confirmada pela diferença significativa
no escore total de HSE-P.
Nas comparações entre mães e pais do Grupo CSA, ocorreram diferenças nas
habilidades “manter conversação”, “ouvir perguntas sobre sexualidade”, “expressar
sentimentos negativos” e no escore total. Em todas as comparações, o relato das mães
indica maior freqüência de HSE-P.
132
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
A partir dos dados da Tabela 2, foram feitas comparações entre mães PC e mães
CSA, bem como entre pais PC e pais CSA (Teste U de Mann-Whitney). As comparações
entre mães PC e CSA indicaram diferenças nas categorias “demonstrar carinho” e
“concordar com cônjuge” nas quais as mães CSA obtiveram médias maiores. Entre os
pais, foram encontradas diferenças em três categorias, todas com médias maiores no
Grupo CSA: “estabelecer limites”, “cumprir promessas” e “identificar comportamentos
adequados”.
Discussão
As análises globais apontam diferenças entre os grupos. O Grupo CSA e as mães
alcançam escores mais elevados, concordando com outros estudos (Bolsoni-Silva &
Del Prette, 2002, Bolsoni-Silva & cols., 2003).
Quanto às categorias investigadas, as comparações identificaram ser as mães quem
mais relataram habilidades que envolviam comunicação e expressividade, o que é
respaldado pela literatura da área (Reese & Eivush, 1993; Silva, 2000). Já as comparações
entre os grupos PC e CSA sinalizaram diferenças para quatro dentre as 14 HSE-P
investigadas; trata-se de habilidades de consistência (“cumprir promessas”, “concordar
com cônjuge”) e afetividade (“demonstrar carinho”, “discriminar comportamentos
adequados”), o que também concorda com estudiosos do tema problemas de
comportamento, que apontam que a falta de consistência, de punição não contingente e
de reforçamento para comportamentos desejados são preditores de problemas (Bugental
& Johnston, 2000; Pacheco & cols., 2005; Webster-Stratton, 1997).
Com base nesses resultados, pode-se hipotetizar que as mães, especialmente as
CSA, utilizam-se de habilidades de comunicação tanto para expressar afeto como para
estabelecer limites, oferecendo, assim, mais modelos e modelagem para habilidades
sociais e, talvez, sendo mais efetivas na forma de solicitar mudança de comportamento
(Bolsoni-Silva & Marturano, 2002).
Um aspecto importante dos resultados refere-se às habilidades de “demonstrar
carinhos” e “identificar comportamentos positivos”, mais freqüentes para o Grupo
CSA; tais respostas podem colaborar, pelo menos em parte, para o atendimento das
necessidades da criança, o que pode ser relacionado a um estilo parental denominado
de autoritativo por Maccoby e Martin (1983, citado por Pacheco & cols., 1999).
Quanto à sexualidade, as crianças procuravam mais freqüentemente pelas mães;
o fato de as crianças procurarem mais pelas mães para tratarem de assuntos relativos
à sexualidade é um indicativo de aproximação; pode-se supor que as mães se mostram
responsivas às necessidades dos filhos. Esta habilidade não discriminou os grupos
PC e CSA, um resultado discordante em relação aos de Bolsoni-Silva e Del Prette
(2002); estas autoras encontraram que os participantes CSA tinham menos dificuldade
em conversar sobre sexualidade quando comparados aos PC.
Quanto à HSE-P “expressar opiniões” chama atenção que pais e mães relataram
comportarem-se de forma diferente; as mães PC expressariam mais opiniões que os
pais. Tais informações sugerem maior participação das mães na prática educativa dos
filhos, estabelecendo limites, ensinando regras sociais sobre o certo e o errado, o que
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
133
concorda com a literatura da área (Bolsoni-Silva & Del Prette 2002; Costa & cols.,
2000). Entretanto, ainda que Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) tenham encontrado que
a expressão de opiniões era mais freqüente em grupos de crianças socialmente
habilidosas, o mesmo não pode ser afirmado neste trabalho, em que os grupos PC e
CSA não diferiram quanto a esta HSE-P.
Ao analisar o “expressar carinhos” observam-se semelhanças entre os padrões
materno e paterno, sinalizando consistência. No entanto, os participantes CSA parecem
demonstrar carinhos com maior freqüência. Com base nestes resultados é possível
hipotetizar que o Grupo CSA deva ser mais afetivo, mais carinhoso com seus filhos.
Esta HSE-P é essencial para a promoção de comportamentos socialmente habilidosos
nas crianças, pois a demonstração de afeto ajuda a criança a se sentir aceita, amada,
contribuindo para maior auto-estima. Os pais, ao serem carinhosos com seus filhos,
estão contribuindo para a melhoria do relacionamento e fornecendo modelos de
interação social satisfatória. Assim, é possível que os filhos sejam menos resistentes
a cooperar com seus pais, além de mais afetivos. Problemas de comportamento podem
ser instalados e mantidos por reforço social; portanto, se os pais e as mães são capazes
de oferecer esta atenção para outros comportamentos, é possível que se reduza a
probabilidade do surgimento de problemas de comportamento.
A habilidade de “concordar com cônjuge” também foi mais freqüente entre os
participantes CSA; ao concordarem mais com seus cônjuges, fazem com que fique
claro para a criança quais comportamentos são permitidos por ambos os pais, evitando
o surgimento de comportamentos de birra, por exemplo. A concordância conjugal e a
demonstração de carinho parecem ser HSE-P preventivas ao surgimento de problemas
de comportamento. Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) encontraram os mesmos resultados
quanto à concordância conjugal.
Chama atenção que os pais CSA, quando comparados aos PC, discriminam melhor
os comportamentos desejados dos filhos (Bugental & Johnston, 2000; Pacheco &
cols., 2005; Webster-Stratton, 1997). Os resultados reiteram a hipótese de que observar
e também conseqüenciar respostas socialmente habilidosas pode evitar o surgimento
de problemas de comportamento. Bolsoni-Silva e Del Prette (2002) e Bolsoni-Silva e
cols. (2003) encontraram que mães CSA eram capazes de identificar e conseqüenciar
mais freqüentemente respostas socialmente habilidosas dos filhos. No presente estudo,
foram os pais CSA que demonstraram maior habilidade.
As comparações entre PC e CSA, considerando pais e mães separadamente,
sugerem algumas reflexões. As médias indicam que os pais CSA são mais envolvidos
que os PC na educação dos filhos, estabelecendo mais limites e se empenhando mais
em cumprir promessas e reforçar comportamentos positivos, o que pode favorecer
maior consistência entre as práticas parentais. Esses resultados sugerem maior apoio
à esposa nos cuidados com a criança, tarefa que, tradicionalmente e em diferentes
culturas, tem sido atribuída às mães (Paquette, 2004). Como as mães CSA, mais que as
PC, concordam com o cônjuge na forma de educar os filhos, pode-se supor que esse
apoio é efetivo.
A partir dos resultados deste estudo, percebe-se que para resolver problemas de
comportamento de filhos, em geral birras e agressividades, não bastaria apenas treinar
134
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
manejo de comportamentos, o que geralmente é realizado (Brestan, Jacobs, Rayfield, &
Eyberg, 1999; Jouriles, McDonald, Spiller, Norwood, Swank, Stephens, N., Ware &
Buzy, 2001; Ruma, Burke, & Thompson, 1996; Sanders, Markie-Dadds, Tully, & Bor,
2000). Um programa para pais de crianças com problemas de comportamento deveria
também incluir o treino de habilidades sociais educativas que parecem preventivas de
problemas, possivelmente porque com tais habilidades os pais consigam resolver
problemas e dar atenção aos filhos, os quais, por sua vez, também poderiam observar
modelos e ter seus comportamentos modelados em diversas habilidades sociais
(comunicação, expressividade), sem precisarem exibir comportamentos problemáticos
para obter reforçadores (Goldiamond, 1974/2002).
Conclusão
De maneira geral foi possível perceber que o Grupo CSA emite com maior freqüência
Habilidades Sociais Educativas Parentais, especialmente as referentes a consistência e
afetividade. As mães e os pais apresentam HSE-P distintas e são as mães quem mais parece
participar da educação e emitir habilidades que envolvem comunicação e expressividade.
Esta pesquisa pôde contribuir para um maior entendimento acerca das relações
estabelecidas entre pais / mães e filhos, avançando em relação ao estudo de Silva
(2000). Os resultados obtidos são valorizados pelo fato de incluírem respostas de
mães e pais, o que é pouco usual, uma vez que geralmente são as mães que participam
de pesquisas desta natureza.
Outra contribuição refere-se à elaboração de instrumentos de coleta de dados
(Questionário de Habilidades Sociais Educativas Parentais e Questionário de Respostas
Socialmente Habilidosas), pois na literatura brasileira ainda há uma carência de
instrumentos que possam colaborar para a compreensão das habilidades sociais
educativas envolvidas nas práticas educativas parentais.
Tais instrumentos podem ser utilizados por outros estudos, seja de levantamento,
seja de pesquisa-intervenção. Um aspecto do instrumento que o recomenda para uso
em estudos de levantamento é seu formato de entrevista com questões abertas e
registro das respostas pelo entrevistador, mediante o uso de uma checklist. Esse formato
previne a indução de respostas do entrevistado, ao mesmo tempo em que proporciona
ao pesquisador um procedimento ágil para registro e posterior cotação dos dados.
Uma limitação do estudo é que os dados foram obtidos a partir do relato verbal
de pais e de mães e não necessariamente as HSE-P que afirmaram possuir correspondem
com o que realmente fazem na prática educativa com os filhos, por pelo menos dois
motivos. Primeiro, porque podem não ter habilidades suficientes para observar o que
fazem e o efeito que produzem; segundo, pela possibilidade de seu comportamento ser
influenciado, durante a entrevista, por fatores relacionados à chamada desejabilidade
social, que pode ser considerada uma variável estranha, possivelmente interferindo
nos resultados obtidos; pesquisas que acrescentem metodologia observacional
poderiam suprir tal dificuldade. Acrescenta-se que os instrumentos utilizados na coleta
de dados (RE-HSE-P e QRSH-P) carecem de estudos que testem todas as suas
propriedades psicométricas.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
135
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Recebido em agosto de 2007
Aceito em janeiro de 2008
Alessandra Turini Bolsoni-Silva: doutora em Ciências: Psicologia (USP); professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Bauru).
Edna Maria Marturano: doutora em Ciências: Psicologia (USP); professora da Universidade São Paulo
(Ribeirão Preto).
Endereço para correspondência: [email protected]
Nota: este trabalho é parte da Tese de Doutorado da primeira autora, sob a orientação da segunda, cujo título
é “Habilidades Sociais Educativas, variáveis contextuais e problemas de comportamento: comparando pais e
mães de pré-escolares”, defendida na FFCL da USP-RP.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.139-156, jan./jun. 2008
O movimento de João de Santo Cristo no mundo: a via-crúcis
de uma identidade
Andresa Jaqueline Toassi
Michele Caroline Stolf
Maria Chalfin Coutinho
Dulce Helena Penna Soares
Resumo: O conceito de identidade é polissêmico e paradoxal, contemplando uma série de
sentidos e significados. Na Psicologia Social, considera-se o sujeito como sendo ao mesmo
tempo singular e plural, ao constituir sua identidade atrelada ao âmbito social, do qual também
é constituinte. Assim, o artigo busca contribuir para a análise deste pressuposto, a partir do
estudo da trajetória de vida do personagem da música “Faroeste Caboclo”, caracterizada como
uma produção cultural, ao estar repleta de significações. Sendo o trabalho categoria fundante do
ser humano, o qual por sua capacidade de planejamento elabora projetos, busca-se compreender a identidade humana inserida nesse contexto de produção entre homem e realidade, destacando seus aspectos e seu modo de constituição, através do movimento de um personagem que,
apesar de fictício, abrange características comuns à coletividade. Trata-se, assim de um ensaio
teórico, no qual é realizada uma análise da trajetória do personagem a luz de três categorias
teóricas: projeto, identidade e trabalho.
Palavras-chave: identidade, trabalho, projeto.
The movement of João de Santo Cristo in the world: the via-crucis
of an identity
Abstract: The identity concept is polysemyc and paradoxical, contemplating several meanings.
In Social Psychology, we consider the person as singular and plural at the same time, constituting
himself intensively linked to the social environment, which is also built by the man. Here we
try to contribute to analysis of this presupposed, studying the life trajectory of the main
character in the song “Faroeste Caboclo”. The song is a cultural production, once it’s full of
individual and general meanings. The work is a basic category of the human being, who develops
projects and advances the future through his planning capacity. Based on this, we try to
understand the human identity inserted in a context of uninterrupted production between men
and society, emphasizing its features and the way it constitutes, through the movement of a
character, who is imaginary, but contains features that are common to the community group.
This way, the article is a theoretical trial to analyze the trajectory of the character under three
theoretical categories: project, identity and work.
Key words: Identity, work, project.
Introdução
Uma das principais características do homem é seu caráter relacional, pois se
constitui em contextos sociais distintos, nos quais estabelece contatos com o mundo no
decorrer de toda sua história. O sujeito não é totalmente determinado pelo meio, pois
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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atua sobre a realidade, o que resulta em produções variadas, dialeticamente implicadas
sobre suas construções, sua maneira de ser e estar no mundo (Zanella, 2004).
O indivíduo necessita do convívio social, repleto de regras e normas culturais,
pois o que possui de fisiológico, não lhe basta à sobrevivência. Toda produção cultural
é construída pelos sujeitos durante a transformação da natureza para satisfazer suas
necessidades primordiais, no processo de trabalho, durante o qual cria a si mesmo, ao
agir sobre a realidade existente (Marx, 1982). Deste modo, o homem tem a possibilidade
de questionar conceitos e refazê-los, numa dialética constante e ininterrupta entre
constituição do sujeito e produção cultural.
De acordo com Guareschi (2003), produção cultural caracteriza-se por ações,
atos e discursos, não referindo-se apenas ao âmbito material, mas também ao movimento
do sujeito no mundo, constituindo-se como formas de vida aliadas a práticas culturais.
Conforme Geertz, (1989, p.61) “sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de
forma semelhante e muito significativa, sem cultura não haveria homem”.
Hall (2005) afirma que a cultura constitui-se como sendo solo real das
representações, das práticas, costumes e línguas de sociedades específicas. Caracterizase também como maneiras contraditórias de senso-comum, as quais encontram-se
enraizadas na vida popular, produzindo modos de vida.
A música, neste sentido, pode ser compreendida como produção cultural, pois
freqüentemente relata vivências do cotidiano das pessoas, conta suas histórias,
referindo-se à sua realidade. Além disso, ela constitui-se como uma forma de linguagem
e meio de estabelecer comunicação, ao estar prenhe de significados, produzindo
sentidos e ultrapassando limites temporais. De acordo com o contexto onde se
apresenta, ela pode também concretizar emoções, sentimentos e pensamentos ao
ordená-los de forma compreensível aos outros (Maheirie, 2002).
O artigo busca então, tecer considerações acerca da vida do personagem quasefictício João de Santo Cristo, da canção “Faroeste Caboclo” composta por Renato
Russo, realizando elucubrações teóricas e articulando os conceitos identidade, projeto
e trabalho, a partir da análise da trajetória do personagem. O termo quase-fictício é
utilizado por Andriani (2002), em uma análise de sujeito feita a partir de um poema, para
designar uma personagem que apesar de imaginária, contempla características reais
constituintes de uma coletividade. Neste sentido, João de Santo Cristo não possui
materialidade, mas sua história, apesar de ter sido composta no ano de 1979, ainda
representa a vida de outros sujeitos, que como ele são negros, pobres, moradores do
sertão nordestino e migram para os grandes centros urbanos, vivenciando uma realidade
de discriminação e exclusão social.
O termo via-crúcis, utilizado no título, para o cristianismo refere-se ao percurso
de Cristo rumo à sua crucificação. Na música, o autor utiliza essa expressão, para
designar a trajetória de vida do personagem, a qual foi marcada, à exemplo da viacrúcis de Jesus, pelo sofrimento, dor, luta e tristeza. Aqui ele é utilizado como uma
analogia à constituição da identidade do sujeito, um processo repleto de tropeços,
dores e sofrimentos.
A proposta é analisar o movimento de Santo Cristo em seu âmbito cultural e
histórico e a construção concomitante de sua identidade, com base nos pressupostos
140
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da Psicologia Social, enfocando seu projeto de vida e suas relações com o âmbito do
trabalho, fator constituinte do sujeito em vários aspectos1 . Deste modo, buscar-se-á
esboçar uma análise teórico conceitual articulando concepções contemporâneas de
projeto, identidade e trabalho com as vivências do personagem, sob um olhar mais
atual e em consonância com o contexto vigente.
Projeto, identidade e trabalho: um esboço teórico-conceitual
Em sua obra Ciampa (1987) problematiza o conceito de identidade, ao defini-la
como metamorfose, levando-a a ser compreendida como um movimento contínuo do
homem em sua concretude real. De acordo com o autor, cada sujeito contém em si
características dos outros indivíduos de seu meio social, assim sua identidade contempla
as dos demais e vice-versa.
A identidade de cada sujeito é decorrência de seu contexto, porém não é igual a
nenhuma outra, pois apesar de conter a genericidade do meio, possui aspectos
singulares. Assim, ela configura-se por “uma totalidade contraditória, múltipla e mutável,
no entanto una” (Ciampa, 1981, p.61). Durante todo o decorrer da vida do indivíduo,
esse movimento de constituição identitária vai se consubstanciando nos diversos
grupos sociais com o qual convive, através das ações concretas, realizadas
principalmente no trabalho.
Para Ciampa (1981) o sujeito é aquilo que faz, assim ele se hominiza de modo
progressivo e contínuo, ao atuar sobre a natureza buscando a satisfação de suas
necessidades básicas. Marx (1982) afirma que isto constitui o processo de trabalho,
através do qual o homem diferencia-se dos animais por sua intencionalidade, ao planejar
e vislumbrar os resultados de suas ações antes mesmo de iniciá-las. O trabalho é,
portanto, essencialmente constituinte do ser humano, pois para existir ele precisa agir,
produzindo seu meio social e a si mesmo nesse processo.
Coutinho, Krawulski e Soares (2007) afirmam que o trabalho é uma categoria
fundamental na sociedade, pois esta depende dos resultados do processo de
transformação da natureza pelo homem para sua construção e manutenção.
Paralelamente, o indivíduo precisa trabalhar para constituir-se como membro do seu
meio social e ter acesso aos produtos necessários à sua sobrevivência. Deste modo,
desde os primórdios de sua existência ele é orientado para o trabalho, no qual utiliza a
capacidade de planejar e antecipar as conseqüências de seus atos. Esta habilidade é
essencial na elaboração de projetos para o futuro, através dos quais o sujeito formula
planos de atuação sobre a realidade, visando alcançar objetivos específicos.
De acordo com Soares (2002), o projeto constitui-se em uma síntese entre
objetividade e subjetividade, pois o sujeito planeja inserido em determinado espaço
social e histórico, com base nas relações e situações vivenciadas, que influenciam na
construção e manutenção de seus objetivos, os quais são definidos individualmente.
1
A obra de Ciampa (1987) intitulada “A estória do Severino e a história da Severina”, já discutia o conceito de
identidade com base no personagem de um poema e na história de vida de uma mulher, mostrando as
similaridades entre ficção e realidade.
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O projeto compreende assim, o futuro desejado e o passado vivido, sendo modificado
ao longo da existência do indivíduo, de acordo com a realidade na qual insere-se no
decorrer de sua história. Velho (2003) também traz contribuições a esta temática ao
estabelecer ligações entre os conceitos de projeto e metamorfose, enfatizando o
movimento contínuo do projeto na vida do sujeito.
Com base nestes princípios, procurar-se-á compreender o personagem João de
Santo Cristo abordando seu processo de constituição como um ser em constante
movimento e contradição, o qual encontra-se inserido numa coletividade, contendo
estes aspectos em sua singularidade, produzindo sentidos e significados que são
constituintes de sua identidade. Busca-se ainda, enfatizar a construção da identidade
deste sujeito a partir da elaboração de seu projeto e de suas relações com o universo
do trabalho, procurando articular estes conceitos na análise da trajetória percorrida ao
longo de sua vida, bem como de seus modos de ser e agir no mundo.
A construção de uma identidade: o movimento de João de Santo Cristo
no mundo contemporâneo
João de Santo Cristo nasceu em uma fazenda do interior nordestino e desde a
infância vivenciou uma realidade de discriminação e exclusão social, em função de sua
cor e por pertencer a uma classe economicamente desfavorecida. “Quando criança só
pensava em ser bandido ainda mais quando com tiro de soldado o pai morreu”2 .
Desta forma, o personagem, que já vinha se construindo em um contexto marcado pela
pobreza e violência, inicia a elaboração de um projeto de futuro, realizando uma série
de ações visando o alcance daquilo que planejou, pois “ia pra igreja só pra roubar o
dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar”.
Para compreender a construção do projeto do personagem, utiliza-se a concepção
de Soares (2002, p.76) “o projeto é (...) o momento que funde, num mesmo todo, o
futuro previsto e o passado recordado. Pelo projeto, se constrói para si um futuro
desejado, esperado”. Neste sentido, o personagem inicia a construção de sua identidade
através de seu projeto, baseando-se nos fatos vivenciados e na realidade apresentada,
não percebendo para si outras possibilidades de futuro. É importante destacar que o
projeto se constitui na articulação entre fatores individuais e sociais, sob a ação da
dinâmica temporal, implicando sobre a forma como o indivíduo se relaciona consigo
mesmo e com o mundo.
Com base nestas concepções, observa-se o quanto os aspectos pessoais e sociais
encontram-se interligados na construção do projeto de João de Santo Cristo. Assim,
ao vivenciar um fato individual (a morte de seu pai) aliado a condições sociais
excludentes e incompreensíveis para ele, que “não entendia como a vida funcionava,
a discriminação por causa da sua classe, sua cor”; elaborou como objetivo de vida
aquilo que julgava ser a maneira mais eficaz de lutar contra a situação imposta e ao
mesmo tempo “vingar-se” da discriminação e exclusão vivenciadas.
2
Ao longo do texto, os itens formatados em itálico e entre aspas, referem-se a trechos copiados na íntegra da
letra da música Faroeste Caboclo. Ver letra completa desta música ao final deste texto.
142
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De acordo com Soares (2002), a execução de todo projeto apresenta resultados,
assim as conseqüências de suas ações criminosas conduziram Santo Cristo ao reformatório
com 15 anos de idade, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”. Este fato
contribuiu para alterações em seu projeto, levando-o a tentar a vida na cidade grande.
Esta decisão reflete aspectos da realidade social que implicam em suas escolhas pessoais
e demonstra os múltiplos fatores constituintes da identidade humana (Ciampa, 1998).
Segundo Coutinho (1999, p. 32), “a configuração da identidade supõe,
contraditória e simultaneamente, igualdade e diferença”. O sujeito elenca, portanto,
características que o tornam diferente dos demais indivíduos de seu grupo social e
outras que o igualam. Santo Cristo, no início de sua história, constituía-se mais pela
diferença, pois “sentia mesmo que era mesmo diferente, sentia que aquilo ali não era
seu lugar. Ele queria sair para ver o mar e as coisas que ele via na televisão, juntou
dinheiro para poder viajar, de escolha própria escolheu a solidão”. Ele não
identificava-se com a realidade na qual vivia, pois seu projeto apontava para outras
direções, não contempladas por aquele contexto.
Ciampa (1987) aponta que a identidade do sujeito sempre apresenta nuanças dos
pólos objetivos e subjetivos, os quais são indissociáveis, uma vez que o subjetivo se
constrói nas relações com o objetivo e a objetividade é resultado de ações singulares
do ser humano. A este respeito Dubar (1998) destaca que a objetividade compreende a
materialidade, o mundo objetivo do sujeito. Já a subjetividade engloba sua esfera mais
particular, seus sentidos, sua individualidade. Assim, o sujeito, apesar de encontrar-se
envolto por aspectos objetivos variados, por significados construídos no decorrer da
história, através dos quais elabora seus projetos e direciona sua vida (Sawaia, 1999),
conota sentidos subjetivos às vivências, construindo seu contexto e seu projeto na
interface do pessoal com o social.
O movimento constante entre subjetividade e objetividade é perceptível na
construção da identidade e no decorrer da história do personagem João de Santo
Cristo, que, apesar de singular, segue o exemplo de milhares de sertanejos que vão em
busca de melhores oportunidades na cidade grande. Este local passa a ser uma fonte
de novas relações, pois ao chegar ele afirma: “Meu Deus, mais que cidade linda, no
Ano Novo eu começo a trabalhar. Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”. Assim,
ele vislumbra outras possibilidades de atuação no mundo, começando a projetar sua
vida de forma diferente, através do trabalho como carpinteiro.
O sistema capitalista, no qual o personagem encontra-se inserido, caracteriza-se
pela exploração da mão-de-obra assalariada e concentração de capital nas mãos de
grupos minoritários que possuem poder de decisão sobre o desenvolvimento
tecnológico, leis, normas, conceitos, cultura, serviços e mercadorias utilizadas pela
sociedade (Marx, 1982). O personagem, ao inserir-se efetivamente neste modo de
produção como força de trabalho, vivencia uma realidade de exploração, alienação e
pobreza, pois “até a morte trabalhava, mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”.
Sobre alienação, Marx (1983) afirma que esta acontece quando o trabalhador
produz bens aos quais dificilmente terá acesso. Neste sentido, “o produto do trabalho
não pertence ao trabalhador, mas o enfrenta como uma força estranha, isso só pode
acontecer porque pertence a um outro homem que não o trabalhador” (p. 98). Santo
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Cristo, portanto, era alienado do produto resultante de seu trabalho como carpinteiro,
uma vez que suas condições financeiras não lhe possibilitavam sequer o acesso à
satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência. Nesta relação, cada “homem
é alienado por outros homens” (p. 97), o que os torna concorrentes e adversários no
processo capitalista de produção.
Castells (2000) aponta que a lógica do desenvolvimento capitalista engloba a
competição e a ausência de sistemas reguladores e éticos, podendo levar a sociedade
tanto ao progresso ilimitado como também ao fracasso total, ao imperar o individualismo,
o liberalismo econômico e a valorização de sucessos individuais. O momento
contemporâneo, apesar de ser regido pela lógica do capital, encontra-se estruturado e
opera de modo diferenciado de épocas anteriores. Desde o final do século passado, a
esfera global encontrar-se marcada por intensas transformações, rupturas e quebra de
paradigmas, o que conduz a alterações em vários âmbitos da vida humana, bem como
no modo de produção vigente.
De acordo com Tolfo, Coutinho, Almeida, Baasch e Cugnier (2005), até o final do
século XX, houve a predominância hegemônica da forma de ordenação dos processos
de trabalho, caracterizada pela verticalidade empresarial e por modelos de produção
em série, quando mudanças reestruturativas nos meios e modo de produção, aliadas
ao processo de globalização e ao desenvolvimento tecnológico e informacional,
começam a tecer alterações nesse cenário. Através das maneiras diferenciadas de
organização do processo produtivo, novas configurações de emprego e trabalho vão
surgindo, o que conduz ao aparecimento de elementos inéditos nas relações
estabelecidas entre os sujeitos e seu ofício, marcadas pela complexidade e diversificação.
Os autores citados afirmam ainda, que as formas inéditas de estruturação do
capitalismo, com modelos mais flexibilizados, globalizados e informatizados, conduzem
ao surgimento de modos de trabalho diversificados. Estas situações, caracterizadas
pela pluralidade e efemeridade, levam os trabalhadores a questionamentos e dúvidas,
devido à perda de referenciais norteadores e éticos, o que altera suas relações com o
universo do trabalho.
De acordo com Hall (2005), essas mudanças estruturais vêm transformando as
sociedades, o que fragmenta as referências culturais de classe, sexualidade, gênero,
nacionalidade e até mesmo de trabalho. Com isso, “estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados” (2005, p. 9). Desta forma, o autor aponta que as identidades estão em
constante mudança, podendo ser caracterizadas como “posições” que o sujeito assume
de acordo com os contextos e situações que vivencia.
Frente a esse cenário, por não conseguir vislumbrar alternativas de melhorias em
suas condições econômicas e sociais, o personagem perde a confiança no sistema
político do país, pois “ouvia às sete horas o noticiário que sempre dizia que o seu
ministro ia ajudar. Mas ele não queria mais conversa e decidiu que como Pablo ele
ia se virar”. Deste modo, ele volta à criminalidade, tornando-se traficante, como seu
amigo Pablo e posteriormente, ladrão. Neste momento, ele retorna ao seu projeto inicial,
percebendo esta como a única opção de alterar sua situação e ascender economicamente.
A escolha do personagem ilustra assim, a afirmação de Soares (2002, p.40) sobre como
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
“o homem pode escolher dentro de um leque de opções oferecidas pelo sistema
econômico e delimitadas pela classe social a qual pertence”.
Para a autora citada toda escolha implica em perda, pois ao escolher é preciso
abdicar de algo. Desta forma, a opção do personagem pelo crime trouxe uma série de
conseqüências à sua vida, pois “ficou rico e acabou com todos traficantes dali. Fez
amigos, freqüentava a Asa Norte, ia pra festa de rock pra se libertar. Mas de repente
sob uma má influência dos boyzinhos da cidade começou a roubar. Já no primeiro
roubo ele dançou”. Ser preso levou Santo Cristo a uma revolta ainda maior contra o
sistema e a sociedade. As situações de violência vivenciadas na cadeia foram uma
forte mediação consolidando sua trajetória na vida criminal, implicando sobre sua
constituição como “bandido destemido e temido no Distrito Federal”.
No decorrer da história de João percebe-se no movimento constante de idas e
vindas, pois quando criança ele inicia sua constituição como bandido, modifica esta
condição ao tornar-se carpinteiro e posteriormente retorna à criminalidade. Este
processo contempla o sentido de identidade como metamorfose, descrito por Ciampa
(1998), a qual constitui-se através de mudanças e alterações constantes. O autor afirma
que a identidade do sujeito nunca cristaliza-se, mas caracteriza-se por um contínuo
“vir-a-ser”, onde aspectos novos e antigos convivem em simultaneidade.
O caráter de metamorfose da identidade humana é novamente perceptível na
história do personagem, no momento em que ele conheceu Maria Lúcia e “de todos os
seus pecados ele se arrependeu”, retornando ao seu antigo ofício de carpinteiro e
almejando a constituição de uma família. Aqui observa-se o processo paradoxal existente
na constituição do sujeito, caracterizado por um constante “ir e vir”, onde não há
linearidade, mas movimentos espirais contínuos. Destaca-se ainda a ambigüidade
presente na construção da identidade do personagem, a qual representa a “síntese
inacabada de contrários” (Maheirie, 2002, p.41).
O relacionamento entre João de Santo Cristo e Maria Lúcia foi constituinte de
suas identidades, determinando em diversos momentos as ações executadas pelo
personagem. Para Codo, Hitomi e Sampaio (1993) é no horizonte destas relações com
os outros, das relações com o corpo, com as coisas e a natureza, com o passado e com
o futuro, que o homem se objetiva, que se constitui numa identidade, e é também
nestas relações que ele se complica, realiza-se e aliena-se (p.118).
Ao receber uma proposta de “um senhor de alta classe com dinheiro na mão”
João sente-se revoltado com o tipo de atividade solicitada e nega-se a aceitá-la,
afirmando: “não boto bomba em banca de jornal e em colégio de criança, isso eu não
faço não!”. Esta resposta resulta em uma grave discussão, na qual “antes de sair com
ódio no olhar, o velho disse: Você perdeu a sua vida, meu irmão!”. O personagem,
diante dessa afirmação, se apropria do sentido dado às palavras do homem, sentindose ameaçado ao acreditar que “essas palavras vão entrar no coração, eu vou sofrer as
conseqüências como um cão”. Em decorrência disso ele fica preocupado e “não foi
trabalhar, se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro
trabalhando em seu lugar”.
Pinheiro (2000) descreve a linguagem como um instrumento pelo qual as pessoas
estabelecem relações com as coisas que as cercam, produzindo sentidos para as
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
145
circunstâncias que vivenciam. Berger e Luckmann (1985) também apontam a importância
da linguagem na produção de sentidos, afirmando que “a linguagem usada na vida
cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem
em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim”
(1985, p. 38). Assim, o personagem deu um sentido ao que ouviu e passou a agir a partir
das significações elaboradas.
Segundo Spink e Medrado (2000), a produção de sentidos não é intra-individual,
nem segue modelos, é um fenômeno sociolingüístico, onde os sentidos são construídos
quando duas ou mais vozes se confrontam. A produção de sentidos se processa no
contexto da ação social, pois ao desempenhar qualquer função as pessoas produzem
sentidos sobre o mundo. Berger e Luckmann (2004) também indicam as experiências
vivenciadas como produtoras de sentidos, afirmando que cada fato vivido é relacionado
com as outras experiências que estão armazenadas no conhecimento subjetivo ou no
acervo social.
O homem encontra-se assim, inserido objetivamente em um sistema social repleto
de valores, significados, ideologias, o qual possui uma organização econômica e política.
Assim, ao trabalhar e lançar-se neste mundo ele é também definido pela sociedade, ao
mesmo tempo em que a supera e a constitui através de sua práxis, de seus atos,
condições e possibilidades (Codo & cols, 1993). Isto ocorre pela realização de cada
projeto, onde o indivíduo movimenta-se de acordo com as condições ofertadas e
disponibilizadas pelo meio. Pela condição histórica e lugar que o sujeito ocupa em um
determinado contexto social, o modo como ele significa e é significado pelos outros,
resulta em ações que são características não apenas de um sujeito, mas contém em si
a própria história da humanidade.
Santo Cristo estava significando-se através do trabalho e projetava seu futuro
neste contexto, mas com a nova condição de desempregado ele começa a procurar
alternativas dentro de sua realidade e da posição que passou a ocupar no universo
social. Assim, a volta ao tráfico apresentou-se como a opção mais viável naquele
momento, pois já possuía conhecimentos acerca desse meio e vislumbrava garantias
de retorno financeiro. Então, “falou com Pablo que queria um parceiro e também
tinha dinheiro e queria se armar”.
Em decorrência do cenário de trabalho contemporâneo altamente competitivo,
excludente, seletivo e instável, marcado pela complexidade, diversidade e multiplicidade,
muitos trabalhadores, assim como Santo Cristo, não conseguem inserir-se ou manterse ativos no mercado de trabalho, fato que contribui sobremaneira para a realização de
atividades informais, precarização das condições trabalhistas e inclusive, ao aumento
da criminalidade (Tolfo & cols., 2005). E esta foi a solução encontrada por João ao
almejar sua sobrevivência, pois frente ao cenário de trabalho, decidiu ser novamente
bandido, optando pela vida no universo do crime em detrimento da busca pela inserção
no âmbito do trabalho.
Santo Cristo vê o porte de uma arma como possibilidade de atuação no mundo e
sobre as condições que ameaçavam sua integridade física e moral. Para ele a arma
representava um meio de alterar sua realidade e agir contra as situações impostas
socialmente, rompendo com a resignação e impotência. Como até mesmo o universo
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do crime encontra-se permeado pela realidade contemporânea de concorrência e
competitividade, o personagem João de Santo Cristo precisa lidar então com a presença
do concorrente Jeremias, “traficante de renome” que “apareceu por lá” e “decidiu
que com João ele ia acabar”, o que reafirma a sua necessidade de armar-se e prepararse para uma disputa de poder.
Ao analisar o papel das relações sociais cotidianas na constituição dos
processos identitários, Coutinho (1999) aponta a participação do poder neste
processo, pois cada indivíduo possui e apresenta-o, em maior ou menor grau, de
acordo com o local assumido na esfera social, utilizando-o “para se impor como
diferente na relação com o outro” (Coutinho, 1999, p.33-34). Santo Cristo procurava
colocar-se como diferente de seu rival, devido ao papel e às ações que cada um
exercia naquele contexto, onde Jeremias era considerado “maconheiro semvergonha” e “desvirginava mocinhas inocentes e dizia que era crente, mas não
sabia rezar”.
Apesar de viver na criminalidade, João evitava determinados aspectos dessa
identidade, uma vez que não almejava tornar-se um assassino, pois mesmo quando
“Pablo trouxe uma Winchester 22 e Santo Cristo já sabia atirar”, ele “decidiu
usar a arma só depois que Jeremias começasse a brigar”. Neste sentido, cabe
observar que, mesmo na criminalidade, João não abria mão de certos valores, usando
a arma dentro de critérios, considerados justos por ele. Porém, a arma não perde
seu caráter de objeto de poder, sendo que mesmo sem utilizá-la, ela pode representar
uma ameaça ou ferramenta de coerção, auxiliando-o na diferenciação e supremacia
sobre os demais.
O poder, portanto, é considerado uma prática social, construída histórica e
culturalmente, pela multiplicidade e variedade, não estando restrito a uma área apenas,
mas abrangendo de forma dinâmica e não linear, todos os sujeitos e âmbitos sociais.
(Foucault, 1979). Deste modo, ele rompe fronteiras de tempo e espaço, tende a assumir
várias faces e integrar grupos variados, intervindo nas relações de modo substancial.
O grau de poder que o sujeito apresenta, portanto, encontra-se em consonância com
uma série de aspectos, entre eles a função e a posição que o indivíduo ocupa na rede
organizacional, bem como o contexto onde encontra-se inserido, o que implica de
forma abissal sobre o desenvolvimento de sua identidade.
As relações de poder e as implicações da objetividade para a subjetividade e
construção da identidade, aparecem novamente e de modo decisivo na história de
Santo Cristo quando ele descobre que “com Maria Lúcia Jeremias se casou e um filho
nela ele fez”. Em decorrência disso, sua identidade sofre transformações marcantes,
que podem ser observadas no momento em que “chegando em casa então ele chorou”
e “Santo Cristo era só ódio por dentro”. De acordo com Ciampa (1987), há uma
coexistência dialética entre permanência e transformação, mesmice e “vir a ser”,
igualdade e diferença, uno e múltiplo, onde estes pólos contrários convivem e compõem
um mesmo sujeito de modo contínuo. Os fatores paradoxais constituintes da identidade
podem ser percebidos nesta etapa da vida do personagem, pois devido à situação
vivenciada ele modifica-se, mas não deixa de contemplar as características construídas
ao longo de sua história.
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147
A participação que a coletividade exerce neste processo é acentuada, pois há um
significado atribuído socialmente à traição, o qual pressupõe a necessidade de vingança,
de “lavar a honra”, o que faz com que Santo Cristo busque uma retaliação, quando “Jeremias
pra um duelo ele chamou”. Este fato aponta o aspecto uno e múltiplo da identidade, uma
vez que o personagem, em sua singularidade, segue padrões ditados pelo seu contexto.
A emoção também exerce papel fundamental nesse processo de constituição
identitária, ao fazer parte do ser humano, englobando-o como um todo e implicando
sobre o desenvolvimento de suas ações, de acordo com o sentido que atribui aos
acontecimentos (Maheirie, 2002). Assim, devido ao significado social da traição aliado
ao seu sofrimento pessoal, o personagem age tomado pela raiva e pela tristeza, buscando
alterar sua situação através do duelo e não refletindo sobre outras possibilidades de
atuação. Este fato modifica seu projeto e altera novamente sua identidade, uma vez
que ele precisa lidar com os resultados de suas atitudes.
A proposta do duelo, portanto, foi feita em um momento onde a emoção permeava
fortemente as decisões de João. Mas ao perceber as possíveis conseqüências desse
ato, ele sente-se confuso, pois isso vai contra a identidade construída até então, na
qual ele evitava tornar-se um assassino. No momento do duelo, João e Jeremias – “um
homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo e começou a sorrir” –,
exemplificam como os valores e julgamentos sociais encontram-se presentes nas ações
desempenhadas pelos sujeitos, que se apropriam de modo singular destas regras,
apresentando comportamentos diferentes nas mesmas situações. Assim, ao duelar,
Santo Cristo seguiu as normas culturais relacionadas à coragem, honra e honestidade,
ao passo que Jeremias desconsiderou estes pressupostos, procurando salvar a si
mesmo, sem preocupar-se com opiniões alheias.
Um dos aspectos constituintes da identidade é a questão de gênero, a qual
atribui socialmente características que os sujeitos de cada sexo devem ser apresentar,
de acordo com as diferentes culturas (Lago, 1999). Deste modo, os conceitos de
masculino e feminino são definidos a partir de valores, padrões e funções diferenciados.
As palavras de Santo Cristo refletem esta concepção, ao afirmar “– Jeremias eu sou
homem coisa que você não é e não atiro pelas costas não”. Percebe-se aqui a atribuição
de valores morais ao gênero masculino, os quais ditam regras específicas que definem
os atributos necessários para ser considerado homem, relacionando-os à coragem,
força, honra, honestidade e bravura.
O caráter paradoxal da identidade destaca-se na relação de Santo Cristo com as
regras impostas socialmente, pois ao entrar na criminalidade, ele vai contra as normas
estabelecidas pelo meio, mas concomitantemente procura seguir alguns valores e
padrões ditados por este âmbito. Isto é perceptível em vários momentos, na sua postura
ao rejeitar a proposta do “senhor de alta classe”, ao procurar exercer uma profissão
considerada honesta, querer casar-se e constituir uma família, bem como durante o
duelo. A identidade contempla assim, conceitos opostos e iguais, sendo dialeticamente
construída no conflito e no consenso.
De acordo com Ciampa (1981), a identidade constitui-se por uma miríade de
‘modos de ser’, pois em função do momento, do local e daquilo que o sujeito realiza ao
atuar no mundo, ele se posiciona e se identifica de maneiras diferentes. Assim, Santo
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Cristo era filho, bandido, carpinteiro, traficante, amigo, presidiário, namorado, pois
embora constitua uma totalidade, ele irá manifestar-se de determinada forma tendo em
vista os aspectos múltiplos que compõem sua realidade e seu modo de ser e estar no
mundo. Desta forma, ora certas nuances da sua identidade são mais perceptíveis, ora
outras adquirem ênfase especial.
Momentos antes de sua morte, João “se lembrou de quando era uma criança e
de tudo que vivera até ali, e decidiu entrar de vez naquela dança. – Se a via-crúcis
virou circo estou aqui”. Neste instante ele resgata sua trajetória de vida, os vários
‘modos de ser’ que assumiu neste processo, o sofrimento vivenciado (via-crúcis) e
seu movimento no mundo até o presente, no qual sua morte iminente era observada e
alardeada como um espetáculo.
Ciampa (1987, p.198) afirma que “a concretude da identidade é a sua temporalidade:
passado, presente e futuro”. Assim, João concretiza a sua identidade ao contemplar seu
passado, tudo que vivenciou até chegar o momento presente, percebendo o havia feito
no decorrer de sua vida e o futuro que o aguardava, onde depois de tanta luta, a morte era
inevitável. Então decidiu matar Jeremias, constituindo-se finalmente como um assassino,
pois não tinha mais nada a perder e nenhum objetivo pelo qual lutar. De acordo com o
autor, os sujeitos identificam-se em função dos atos realizados concretamente, deste
modo, “Santo Cristo com a Winchester-22 deu cinco tiros no bandido traidor, Maria
Lúcia se arrependeu depois e morreu junto com João, seu protetor”.
Esse desfecho da história, bem como toda a trajetória do personagem, apesar de
fictício, contempla o final de muitas histórias reais, nas quais os sujeitos vivenciam uma
situação de exclusão, miséria, sofrimento e morte, não conseguindo atuar sobre as suas
condições de existência, desenvolver sua identidade de modo diferenciado e muito
menos alcançar os objetivos de seu projeto. Santo Cristo ilustra essa realidade, pois no
final da música aparece mais declaradamente seu objetivo não alcançado, o que conduziu
sua vinda para a cidade grande, embasado naquilo que vivenciou durante sua trajetória,
afinal, “João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter.
Ele queria era falar pro presidente, pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”.
Considerações finais
A análise introdutória e ensaística do personagem João de Santo Cristo permite
uma compreensão mais ampla do tema identidade, abrangendo também os conceitos
trabalho e projeto, e sua relação. A discussão desses tópicos, embasada na história de
vida do personagem, possibilita uma visualização de como esses pressupostos teóricos
concretizam-se na vida cotidiana dos sujeitos, através de atos, vivências e relações,
demonstrando o movimento do indivíduo no decorrer de sua história e seus modos de
constituição nesse processo.
A música Faroeste Caboclo constitui-se como uma produção cultural que
apresenta uma trajetória de vida cujas características são similares às vivenciadas
cotidianamente no contexto contemporâneo. Deste modo, a relação indissociável entre
objetividade e subjetividade no desenvolvimento da identidade humana é claramente
perceptível no movimento do personagem, constituindo uma espiral dinâmica,
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ininterrupta, construída e reconstruída, unificando a sociedade, a cultura e o sujeito
em um processo de mútua edificação. A identidade contempla assim, visões e caráter
antagônicos, paradoxais, possuindo duplas dimensões entre unidade/pluralidade,
transformação/permanência, igualdade/diferença, sendo que um aspecto não anula o
outro, pois não são excludentes, mas complementares e simultâneos. Ela não pode,
portanto, ser dicotomizada, pois concomitante ao seu movimento de transformação há
a afirmação e manutenção de determinados modos de ser e estar no mundo.
A importância e a abrangência do trabalho no desenvolvimento da identidade
apresentam-se também de maneira freqüente ao longo da vida de Santo Cristo, pois
cada atividade realizada lhe conferia um modo diferente de ser. Assim, ele buscava
alterações em sua realidade, movendo-se em direção aos seus projetos de acordo com
as possibilidades que percebia, constituindo-se nesse processo de atuação. Pela
elaboração do projeto, ele traçava metas para sua vida e praticava ações nesse sentido,
contemplando a estreita relação entre sujeito, trabalho e sociedade.
Considerando que o sujeito está inserido em uma realidade dialeticamente
construída, constituindo-se também desta forma, a identidade passa a ser considerada,
como a intersecção entre a objetividade e aspectos subjetivos, resultando assim, em
uma síntese inacabada entre estes dois âmbitos (Maheirie, 2002). No decorrer da vida
do personagem é possível identificar esse movimento, pois percebe-se o quanto a
concretude vivenciada é constituinte de sua singularidade, pois o produto desse
processo abrange aquilo que ele é e faz de modo contínuo, ao tornar-se também autor
de sua própria existência.
O cenário contemporâneo e as condições de vida e trabalho por ele ofertadas,
também são desenvolvidas neste processo analítico, tendo em vista a amplitude de
suas implicações sobre o projeto do sujeito e sobre a constituição de sua identidade,
uma vez que trazem em seu bojo mudanças profundas e significativas, resultantes em
adaptações e vivências diferenciadas às novas formas e modos de trabalhar e produzir
sua existência. Assim, à luz das teorias que tratam do assunto, buscou-se verificar
como Santo Cristo constituía sua identidade inserido neste contexto distinto, marcado
pela complexidade, multiplicidade e diversidade.
O sentido de identidade como metamorfose descrita por Ciampa (1987) em sua
análise anterior sobre o tema, é, portanto, contemplado nesse esboço e em suas
considerações, articulando-o com os conceitos de trabalho e projeto, os quais são
profundamente constituintes da identidade do sujeito. Destaca-se, porém, que a
complexidade existente no conceito de identidade aponta a necessidade de estudos e
análises contínuos e abrangentes, visando à compreensão da constituição do sujeito
nesse movimento constante, caracterizado pela unidade entre pólos opostos, o que
resulta em um eterno paradoxo.
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Anexo
Letra da Música
Faroeste Caboclo
Legião Urbana
Composição: Renato Russo
- Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,
Era o que todos diziam quando ele se perdeu.
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.
Quando criança só pensava em ser bandido,
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da sercania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu.
Ia pra igreja só prá roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
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E de escolha própria, escolheu a solidão
Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor.
Aos quinze, foi mandado para o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.
Não entendia como a vida funcionava –
Descriminação por causa da sua classe ou sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.
E lá chegando foi tomar um cafezinho
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar.
Dizia ele: – Estou indo pra Brasília,
Neste país lugar melhor não há.
Estou precisando visitar a minha filha
Então fico aqui e você vai no meu lugar.
E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal.
- Meu Deus,mas que cidade linda,
No ano-novo eu começo a trabalhar.
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.
Na sexta feira ia pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisavô:
Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar.
E Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa e decidiu que,
Como Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
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E, sem ser crucificado, a plantação foi começar.
Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade:
- Tem bagulho bom ai!
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali.
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
E ia prá festa de rock, prá se libertar
Mas de repente
Sob uma má influência dos boyzinho da cidade
Começou a roubar.
Já no primeiro roubo ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.
Agora Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal.
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, playboy ou general.
Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu.
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele
Pra ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
- Maria Lúcia pra sempre eu vou te amar
E um filho com você eu quero ter.
O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com dinheiro na mão
E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta.
Uma resposta de João:
- Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança
Isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas, que fica atrás da mesa
Com o cú na mão.
E é melhor o senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião.
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
- Você perdeu a sua vida, meu irmão.
Você perdeu a sua vida meu irmão. Você perdeu a sua vida meu irmão
Essas palavras vão entrar no coração
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E eu vou sofrer as conseqüências como um cão.
Não é que o Santo Cristo estava certo
E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro
Trabalhando em seu lugar
Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina.
Mas acontece que um tal de Jeremias, traficante de renome,
Apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que, com João ele ia acabar.
Mas Pablo trouxe uma Winchester-22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que o Jeremias começasse a brigar.
(O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha
E fez todo mundo dançar.)
Desvirginava mocinhas inocentes
E dizia que era crente mas não sabia rezar.
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
- Eu vou embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já está em tempo da gente se casar.
Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez.
Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor
Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter da televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora o local e a razão.
No sábado então, às duas horas, todo o povo
Sem demora foi lá só para assistir
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Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo
Começou a sorrir.
Sentindo o sangue na garganta,
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali.
E se lembrou de quando era uma criança e de tudo o que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
- Se a via-crucis virou circo, estou aqui.
E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu.
Ela trazia a Winchester-22
A arma que seu primo Pablo lhe deu.
- Jeremias, eu sou homem. coisa que você não é.
E não atiro pelas costas não.
Olha pra cá filha-da-puta, sem-vergonha,
Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o teu perdão.
E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.
E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles viram na TV
E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente,
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz sofrer
Recebido em julho de 2007
Aceito em janeiro de 2008
Andresa Jaqueline Toassi: psicóloga; mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
Michele Caroline Stolf: psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
Maria Chalfin Coutinho: psicóloga; doutora em Ciências Sociais (Unicamp); professora do Departamento e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Dulce Helena Penna Soares: doutora em Psicologia Clínica (Universidade Louis Pasteur, França); professora
Adjunta IV de graduação e pós- graduação da Universidade Federal de Santa Catarina; coordenadora do
Laboratório de Informação Profissional LIOP/UFSC.
Endereço para correspondência [email protected]
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.157-172, jan./jun. 2008
Vínculos familiares na adolescência: nuances e vicissitudes
na clínica psicanalítica com adolescentes
Aline Bedin Jordão
Resumo: O presente trabalho aborda o processo adolescente e os vínculos familiares a partir
do viés psicanalítico, articulando questões teóricas com situações clínicas. A partir de uma
revisão de literatura, e apresentação de fragmentos de casos clínicos atendidos em consultório
particular, apresentam-se algumas questões referentes a este momento evolutivo, apontadas
por vários autores, relacionadas principalmente ao movimento de individuação do adolescente,
suas desidentificações, neoidentificações, remodelamentos subjetivos e aspectos narcisistas
que transitam na relação do adolescente com seus pais. A construção de seus próprios projetos
e seus próprios ideais apresenta-se como uma missão desafiante e dolorosa, porém necessária
para a tão desejada e temida autonomia. Discute-se, ainda, o lugar e a posição ocupados pelo
analista no tratamento de adolescentes, e a contribuição da psicanálise para estes pacientes e
suas famílias.
Palavras-chaves: adolescência, vínculos familiares, psicanálise de adolescentes.
Family bonds in adolescence: nuance and vicissitude
in psychoanalytical clinic with teenagers
Abstract: This paper approaches the teenager process from a psychoanalytical view, articulating
theoretical matters with clinical situations. Starting from a literature revision and its articulation
with clinical cases seen in private psychology’s office, some issues related to this changing
moment are shown, pointed out by several authors, related mostly to the teenagers separationindividuation movement, their unidentifications, neoidentifications, subjective readapting and
narcissistic aspects that transit in the teenagers’ relationship with their parents. The construction
of their own projects and ideals is seen as a challenging and painful “mission”, however necessary
to the soul requested and feared autonomy. It has still been argued, the place and the position
of the analyst in the teenagers’ treatment, and the psychoanalysis´ contribution for these
patients and their families.
Key words: Adolescence, family bonds, Adolescent Psychoanalysis.
Introdução
Aos filhos só podemos dar duas coisas: asas e raízes
(Provérbio chinês)
Processo adolescente e vínculos familiares: ilustrações de fragmentos clínicos
A adolescência constitui-se em uma vivência fundamental na constituição
identitária, permeada por mudanças, remodelamentos subjetivos, ressignificações de
diversas ordens. O adolescente necessita reeditar sentimentos e vínculos primários
em relação às figuras parentais, revisando, assim, seus objetos internos e sua identidade.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
157
Para os pais, trata-se também de um processo angustiante e confuso, já que
necessariamente irão se deparar com questões referentes à separação, diferenciação,
finitude, alterações de lugares e papéis na dinâmica familiar, além de inevitáveis
frustrações decorrentes do crescimento e das escolhas dos filhos.
Na adolescência o suposto equilíbrio da latência e a imagem corporal relativamente
estabilizada são colocados em questão. Reordenamentos identificatórios, atribuições
de novos sentidos às experiências, rompimentos e buscas de ideais, enfim, todo um
(re)desenvolvimento da vida subjetiva apresenta-se com confusões e conflitos,
mostrando-se na clínica com um espectro bastante vasto.
Millonschik (2004), ao tratar do sofrimento psíquico na adolescência, pontua
que é como se o adolescente tivesse perdido uma casca e ainda não houvesse
reconstruído outra, o que o torna muito vulnerável do ponto de vista emocional. Essa
maior suscetibilidade pode ocasionar sentimentos de vazio, desamparo e
despersonalização. O relato de uma paciente1 (M., 18 anos) ilustra esta sensação: “Tô
muito perdida, numa confusão só... Parece que não sei mais quem eu sou, nem o que
quero, nem para onde vou... Que horror isso... Se tu perguntar pra uma criancinha o
que ela quer, ela vai te dizer alguma coisa, e eu parece que nem sei o que quero (...)”.
Além da difusão de identidade, percebida na fala desta adolescente, outra questão
central deste período é a fratura da onisciência atribuída aos pais ao longo da latência,
com a conseqüente desilusão. Tal fato acarreta confusões e questionamentos diversos:
quem detém o conhecimento? Quem sou? O que sou? (Levy, 1996). Soma-se a isso
toda a questão dos ideais projetados pelas figuras parentais, geralmente associados
aos narcisismos materno e paterno, bem como com os “sonhos de ouro” não vividos
pelos mesmos.
A história do adolescente nasce antes do seu nascimento biológico. Existe uma
ordem simbólica, ordem lógica que precedeu seu nascimento cronológico. Esta
ordem é o lugar que ocupa o filho na fantasmática individual em cada um dos
progenitores e no casal, lugar que estará determinado em relação com o sistema
narcisista, e que se plasmará em uma representação: será o representante
narcisista primário do desejo inconsciente da mãe e do desejo inconsciente do
pai, e assim se manterá a homeostase narcisista da situação do meio familiar
(...). (Kancyper, 1999, p. 85-86)
Kancyper (1999) refere que muitas vezes o adolescente fica aprisionado a esse
narcisismo parental, através de uma identificação alienante aos desejos dos pais,
anulando as diferenças geracionais. Este submetimento pode decorrer do temor à
perda de amor e a falta de reconhecimento por parte dos objetos primários. Ou seja,
submete-se como forma de garantir um lugar na dinâmica familiar.
Ainda relacionado às questões familiares, Leivi (1995) traz o tema da historização,
referindo que a construção da história do sujeito não se dá simplesmente pelo seu
1
Os pacientes utilizados neste trabalho não foram identificados pelos seus nomes reais, sendo omitida
qualquer informação que denunciasse sua identidade.
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passado, e sim pela historização deste passado no presente. Trata-se, portanto, de
uma construção simbólica. O autor ainda refere que em toda história sempre existirão
brechas, não-ditos, situações silenciadas, que possivelmente aparecerão na vida do
sujeito através de repetições e sintomas. Ou seja, o sujeito sempre será atravessado
pela sua história familiar, com suas sombras e fantasmas silenciosos operando efeitos
na subjetivação.
Diante disso, destaca-se a importância da agressividade como componente
necessário para conseguir desalienar-se, diferenciar-se e elaborar os ideais narcísicos
dos pais e conquistar uma maior autonomia. Observa-se, assim, a importância de uma
reorganização e reconstrução desta historicidade, revisando permanentemente seu
universo simbólico de significações (Leivi, 1995). Neste sentido, Kancyper (1999) refere
que o representante narcisista operará como uma referência constante, e que, a partir
disso, “o adolescente necessitará efetuar um trabalho diário de reelaboração para
conquistar sua condição subjetiva de ser vivo com existência própria” (p.85).
A paciente M. aponta estas situações na seguinte fala:
Eu sei que o pai quer que eu fique lá na loja, que eu continue o projeto dele, que
ele batalhou pra conseguir tudo o que tem... Por mais que eles me deixem livres
pra escolher o que quero, é isso que eles dizem ao menos, eles estão o tempo
todo me mostrando que é melhor ficar lá, que vou me dar melhor lá... Então é
difícil... Porque eu queria descobrir bem o que eu quero e poder ficar bem, e que
eles ficassem bem também, que me apoiassem... Queria poder construir as
minhas coisas sem “matar” ninguém com isso.
A culpa, o ressentimento e o medo são fatores que geralmente contribuem para
essa dificuldade do adolescente em assumir seu próprio desejo e construir seu projeto
a partir de suas escolhas. Diferenciar-se das expectativas dos pais desperta sentimentos
e angústias difíceis de serem elaborados. A perda da dependência infantil traduz-se
como ameaça ao adolescente, colocando à prova a estabilidade dos sistemas narcisistas
do filho e dos pais (Kancyper, 1999). Isto decorre da necessária separação daquilo que
até então se apresentou como um porto seguro para o adolescente, do distanciamento
das referências parentais. A construção de seus próprios projetos e seus próprios
ideais apresenta-se como uma missão desafiante e dolorosa, porém necessária para a
tão desejada e temida autonomia.
Diante de tais colocações percebe-se quão imprescindível se faz a revisão dos
padrões até então estabelecidos, através de uma atitude questionadora e crítica, afim
de que se possam construir idéias, ideais, opiniões, escolhas próprias, auto-imagem,
etc. Com efeito, Kancyper (1999) aponta as conseqüências do referido processo: “A
morte do infans reanima sentimentos de desamparo pela perda da fantasia que
reassegura a ilusão de alcançar, por meio da fusão, o amor eterno e imutável” (p.103).
Todavia, não se pode esquecer que para que estas mudanças e reorganizações
ocorram de forma saudável e tranqüila faz-se necessário que o desenvolvimento
psicológico prévio tenha se dado satisfatoriamente. Pode-se pensar nas situações
desenvolvimentais propostas por Mahler (1982), ou seja, na importância do bebê ter
experienciado uma boa fase simbiótica com a mãe, e que essencialmente tenha podido
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estabelecer a partir daí uma expectativa confiante, uma segurança básica. Se isso não
ocorre, se a criança é precocemente direcionada a ver a mãe como alguém separado,
externo a dela. Possivelmente tal vivência tenha reverberações nos relacionamentos
futuros, através de muita insegurança e sensação de que as coisas não vão dar certo.
A paciente M. coloca esta problemática em sua fala:
Não entendo como as pessoas podem gostar de mim... Fico muito mal com isso.
Sou muito insegura, muito desconfiada... Não entendo como as pessoas lembram
de mim, me chamam pelo nome, mesmo ficando tempos sem me ver... Às vezes
tu diz coisas que eu falei aqui e fico pensando como que tu pode lembrar, se às
vezes nem eu lembro... Odeio falar e as pessoas não prestarem atenção, não me
olharem... Seguido acontece isso com o pai, eu to lá ajudando ele na loja,
mexendo nos papéis dele, e ai eu falo com ele e ele ta desligado, ou lendo o
jornal, ou se levanta e nem ouviu o que eu falei... Eu fico possuída de braba...
Com o namorado também... Eu sempre fui difícil, nunca fui de ligar, de correr
atrás, e ele reclama disso, mas tenho medo de ligar e ele não poder me atender
ou não falar direito comigo... Porque isso me irrita muito.
Analisando a história de vida de M. pode-se entender algumas questões trazidas
por ela. Primeiramente a mãe engravidou ainda solteira, com 18 anos, situação que assustou
bastante seus pais. A mãe relata ter vivido uma gestação muito boa e que “isso foi a
melhor coisa que lhe aconteceu” (sic). Logo após seu nascimento, o pai adoece de uma
patologia bastante rara, deslocando para si a atenção materna. Assim, na provável fase
simbiótica mãe-bebê, o investimento necessário na filha neste período não pôde ser
realizado, e o pai, de certa forma, competiu em relação ao olhar e cuidados da mãe.
Depois disso o pai recebe proposta de trabalho em outra cidade, e aí se segue
uma fase de muitas mudanças na família – troca de cidades, dificuldade de adaptação
nos apartamentos, saída de M. do quarto dos pais e logo a vinda de um outro bebê,
situação que M. lidou muito mal, saindo de casa e indo morar um tempo com a avó
materna, recusando a mãe e regredindo bastante em seu desenvolvimento, voltando a
usar chupeta e fraldas e dormindo na cama dos pais. Os efeitos das referidas experiências
apresentam-se nas dificuldades de M:
Eu já abri mão de muita coisa por causa do meu pai... Eu tive proposta pra ser
modelo... Eles acabaram me convencendo que aquilo não era pra mim. Quando
os outros perguntavam se eu gostava disso, de ser modelo, desfilar, posar, se
eu ficava meio quieta a mãe já dizia: ‘acho que não gosta né M.?’, aí eu ficava
meio assim, e meio que concordava com aquilo... Em relação aos namorados
também... Nunca nenhum era pra mim na visão do meu pai... Ninguém serve...
A mesma coisa com a escolha do curso pro vestibular... O pai sempre quer me
convencer de que o melhor pra mim é a área das exatas pra eu continuar a loja
dele (...).
Verifica-se, assim, as questões transgeracionais que circulam na relação
adolescente - pais. Diante das tentativas de individuação da filha, os pais assumem o
lugar de quem direcionam suas escolhas e desejos. Assim, a adolescente sente-se sem
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espaço para poder construir sua própria trajetória. Kancyper (1999) trata do assunto,
referindo que muitas vezes não se permite uma confrontação entre as gerações,
anulando-se as diferenças e produzindo alienações. Sabe-se que os pais também
precisam promover elaborações psíquicas complexas, já que o crescimento dos filhos
reativa sua própria história, fazendo-se necessária a ressignificação de sua própria
adolescência.
O pai de M. revela algumas questões interessantes a esse respeito. Diz ele:
Batalhei muito pra ter o que tenho hoje... Vim de uma família muito pobre, sem
condições... Então hoje a gente tem um bem muito importante sabe (a loja)...
Mas claro que eu não obrigo os filhos a seguirem isso, mas não vou negar que
eu me orgulharia muito... O que eu faço é aconselhar, eu digo pra M. que a
minha opinião é de que os cursos na área técnica seriam bons pra ela, já que
conseguiria trabalho mais rápido, ganharia melhor e ainda poderia aliar a
teoria com a prática, na loja no caso, né. Só que se ela não quer... Agora ela
trancou a faculdade de administração né.. Não vou negar que fiquei
decepcionado, frustrado... Mas tudo bem (...).
Na fala pai aparece o aspecto narcisista relacionado ao interesse de que a filha
se identifique com o seu projeto, que seja uma extensão dele, negando a possibilidade
de diferenciação subjetiva e alimentando o desenvolvimento de um processo
alienatório. Isto leva a crer que as mensagens contraditórias e paradoxais dos pais
causam dificuldades e confusões significativas para o filho adolescente. M. traz esta
sensação de ambivalência dos pais ao dizer que: “eles falam que me soltam. Na
verdade soltam a cordinha, mas ficam segurando, até o alcance das vistas deles (...)
Pros outros dizem que lá (cidade que moram) não tem futuro nem perspectivas, mas
estão sempre mostrando que o meu futuro é lá”. Nesta dinâmica M. não parece ser
reconhecida como sujeito e sim como objeto significado e caracterizado pelos pais
(Leivi, 1995).
Bloss (1988) refere que na adolescência ocorre um segundo momento do processo
de separação-individuação. O autor fala da importância da criança ter adquirido a
constância objetal e da essencial disponibilidade dos pais para permitir a separação,
diferenciação e individuação do filho.
O afastamento do adolescente em relação ao discurso, opiniões e ideais dos pais
evoca, muitas vezes, sentimentos de ameaça, frustração e de inutilidade nos pais.
Todos os envolvidos neste processo precisam elaborar os lutos decorrentes daí,
desfazendo-se dos aspectos mais infantis e imaturos. Knobel e Aberastury (1992),
assim como Levisky (1998), assinalam que a “adolescência normal” necessariamente
implicaria no luto pelo corpo infantil perdido, pelo papel e identidade infantil, pelos
pais da infância e pela bissexualidade infantil. Assim, caracteriza-se uma dinâmica de
desestruturações e reestruturações no psiquismo, na busca de auto-afirmação e
consolidação de uma identidade, tanto por parte dos pais quanto dos filhos.
J., um adolescente de 15 anos, traz estas questões em seu tratamento. Certo dia
chegou na terapia dizendo que o pai pediu que ele tratasse de dois assuntos, os quais
traz anotados em um papel: “Eu em primeiro lugar” e “conceito de família”:
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Eles (pai e madrasta) não entendem que cresci... Que chega de ficarem me
protegendo... Eu quero bater a cabeça, quero aprender sozinho... Chega de
quererem me preservar, de resolver por mim, o pai sempre dá um jeito quando
eu me enrosco com alguma coisa... Eu to sentindo necessidade de assumir
sozinho as coisas, sei que as conseqüências vêm, mas é só assim que eu vou
crescer eu acho, aprender, mudar... Porque pra mim tá muito cômodo: ganho
tudo pronto, faço o que quiser e ele dá um jeitinho... Eles me acham egoísta
porque dou mais valor às jantas com minha turma ou à minha namorada do
que os programas deles... Mas é óbvio né?.
O afastamento da proteção parental e o enfrentamento das situações muitas
vezes são recebidos contraditoriamente pela família dos adolescentes. De um lado,
estimula-se a independência, a autonomia, o comprometimento maior. De outro, resistese à perda da dependência. As ambivalências são constantes. Situações infantis
mesclam-se com posicionamentos e posturas adultas, num processo de progressões e
regressões freqüentes. Aparece o desejo de autonomia e liberdade fundidos com os
temores e inseguranças decorrentes daí.
A paciente M. refere esta problemática: “Parece que eu sou uma bonequinha de
porcelana... Se todo mundo tá ai quebrando a cara, lutando pelo que quer, mesmo que
tenha que sofrer, cair, porque eu não posso? Eu não sou tão frágil assim como eles
pensam” (M. 18 anos). Por outro lado, M. demonstra bastante insegurança e dificuldade
de abrir mão do lugar até então ocupado na dinâmica familiar:
Falei com o pai sobre o curso que quero fazer... Ele aceitou bem, disse que se é
isso mesmo que eu quero então é pra eu ir atrás, batalhar... Ai, mas me deu um
medo! Uma confusão na minha cabeça... Sair de casa, ir pra outra cidade, ficar
sozinha... Eu comigo mesma... Aiaiai, não sei se consigo... Às vezes dá vontade
de desistir.
O novo, o desconhecido, os desafios inerentes a essa etapa trazem consigo
temores e angústias importantes. Os pais muitas vezes apropriam-se desta insegurança
e ambivalência dos filhos para justificar e manter a dependência. O pai de M. aponta
esta situação em seu discurso:
A verdade não é que eu não deixo ela sair e escolher o que quer. O que eu não
aceito é largar ela em outra cidade sem ela nem saber o que quer, falta ter um
ideal, um objetivo, aí eu apoiaria. Teve um dia que ela me jogou na cara que
não foi modelo e não foi pra São Paulo por causa minha, que eu não permiti, ai
eu falei pra ela nunca mais repetir aquilo, porque se não deu certo foi por culpa
dela, por ela não ter se mostrado nem um pouco preparada, não ter tido
persistência, nem lutado pelo que queria. Era a mãe que tinha que fazer tudo
por ela: ligar para as pessoas, falar, se informar, ir pra São Paulo. Ela queria,
mas por outro lado mostrava o tempo inteiro um despreparo total e uma falta
de convicção. Eu, com 15 anos saí de casa pra estudar... Saí brigado com meu
pai, foi um horror. E na minha família já tinha tido outras brigas, o meu pai e
meu avô nem se falavam, brigaram feio (...).
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Por conhecer a história paterna, M. parece carregar um medo intenso da repetição
destas rupturas. Deseja construir seu próprio projeto sem promover conflitos e
rompimentos, quer diferenciar-se da história do pai. Torna-se claro, assim, que a emergência
do filho questionador, pensante e desejante provoca rupturas nos ideais parentais e,
dependendo da forma que for conduzida, pode levar a conseqüências negativas.
Os processos de desidentificação comovem e produzem um certo vazio, que é
vivido como perigoso (...) Ao desidentificar-se parcialmente dos pais, o ego se
vê sem apoio, circunstância que promove novas identificações substitutas, que
podem interromper o processo de mudança, dirigi-lo a situações deteriorantes
ou destrutivas (como quando se identificam com um líder psicopático ou adicto),
ou a um futuro que fortaleça um narcisismo trófico e promova um enriquecimento
vital para o sujeito” (Urribari, 2004, p. 46).
Nesse contexto, o autor traz como desafios para a dissolução do processo
adolescente a reaproximação de seu corpo, a reapropriação de sua história, podendo
desgarrar-se do passado, afastar-se do projeto idealizado pelos pais, do narcisismo
primário e, assim, assumir a direção da sua própria vida. A mãe de M. refere que “cria os
filhos para o mundo” (sic) e que sabe o quanto faria bem para a filha sair de casa, ter
seu espaço e poder decidir com tranqüilidade o caminho a seguir. Comenta, ainda, o
quanto gostaria que M. fosse mais próxima dela: “Qualquer coisa que a gente pergunta
ela se irrita... Ela já te olha e vira as costas sem dizer nada...”. Trata-se de uma situação
muito freqüente vivida entre pais e filhos. Os “por quês”, “para quês” parecem perturbar
o adolescente, geralmente em função deles próprios não possuírem muitas respostas
e certezas neste período.
Outra questão relevante no processo adolescente é o “grupo de iguais”, que
aparece como uma das vicissitudes do movimento de desidentificações e
neoidentificações, já que a homogeneização presente e as características específicas
do grupo – tatuagens, jargões, itens de consumo, etc., possibilitam no real, no concreto,
a diferenciação, a originalidade, a conquista de um espaço subjetivo próprio e de
reconhecimento especular2 . O grupo funcionaria, portanto, como um espaço necessário
para o adolescente desfazer-se temporariamente dos modelos identificatórios primários,
através de pessoas que funcionem como espelho, permitindo dessa forma que o sujeito
possa se reconhecer e perceber quem é (Seewald, 1995).
O paciente J., 15 anos, coloca esta situação na seguinte fala:
Meus amigos são tão família quanto o meu pai, ou até mais eu diria... Eu
sempre me apoiei neles, confio em alguns, são parceria mesmo... Nunca tive
família estruturada, é aquela história - quando precisei não tavam lá, agora
não quero e ficam me cobrando que ando muito com os guris, que priorizo eles
ou a namorada do que a família... Isso me irrita, querem me mimar... A D.
2
Pode-se concluir que a “turma” do adolescente funciona como um “eco-ego”, já que os “outros” permitem a
percepção de sua própria dinâmica, suas próprias questões, conflitos e sentimentos,
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(madrasta) é medieval, conservadora, quer mimar demais, ‘meu gurizinho pra
cá, meu gurizinho pra lá’. Sai fora! Não quero saber disso, quero me virar, não
quero que ninguém faça as coisas por mim, não sou uma anta... E com a
gurizada a gente se diverte, toma os tragos, toca guitarra, é óbvio que vou
preferir ficar com eles.
M.,18 anos, também traz o grupo de amigas como um espaço no qual consegue
se reconhecer, testar seus limites e funcionar por complementaridade:
Eu sou muito impulsiva – já me dei mal por isso – mas tenho uma amiga que
é o oposto: pensava demais antes de agir, acabava não vivendo até... A
gente se completava: Eu empurrava um pouco ela e ela me travava... Eu
ensinei ela a não pensar tanto em algumas situações, e ela me ensinou a
pensar mais em outras.
Fonagy e Target (2004) referem que muitas vezes os colapsos emocionais advindos
na adolescência surgem da consolidação inadequada da capacidade de simbolização
dos vazios e lutos inerentes a essa fase. Portanto, faz-se fundamental elaborar e
simbolizar a separação dos pais, o corpo infantil e a mudança de representação dos
objetos internos. Usualmente os adolescentes utilizam defesas onipotentes e maníacas
para lidar com ansiedades depressivas, paranóides ou confusionais. Assim, criam um
espaço mental, marcado por fantasias inconscientes idealizadas, muitas vezes dominado
pela destrutividade e pelo isolamento (Levy, 1996).
As atuações também se apresentam com destaque neste estágio evolutivo, já que
é usual o uso da comunicação não-verbal e de expressão dos impulsos e fantasias por
via da ação. O paciente J. traz em seu discurso aspectos bastante destrutivos, brutos,
idealizando situações perigosas, mostrando-se, muitas vezes, arrogante e onipotente:
Eu sou muito forte pra bebida... Tomo um litro de whisky e não me faz nem
cócegas... Sou bagual mesmo! (...) Eu adoro as coisas de Gaúcho – facão,
palheiro, cachaça... Esses dias tirei o chapéu de ver a forma que um gaúcho
encarou uns 5-6 índios em cima dele, só com o facão. (...) Quero fazer várias
tatuagens: diabinho “descendo” no peito, um de cada lado, fogo nos braços,
caveira tocando guitarra, e na perna uma fumaça com os rostos das pessoas
que gosto (...) Quando eu ando de moto eu me possuo... Enlouqueço, faço e
aconteço... Me sinto livre (...) Na cidade é foda encontrar alguém que toque
guitarra como eu... Nunca fiz aula, mas toco muito melhor que vários famosinhos
da cidade aí.
A grandiosidade ilustrada nestas colocações pode ser entendida como “refúgios
narcísicos” diante das situações que se apresentam neste período evolutivo. As defesas
narcisistas ocupam um lugar de destaque na psicodinâmica adolescente, cumprindo a
função de negar a consciência de separação do objeto pela dor depressiva e sentimentos
de solidão em relação à dependência, buscando alternativas mágicas e onipotentes
para lidar com a frustração, o sofrimento e o vazio.
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O self libidinal, em situações de desamparo e fragilidade, pode entregar-se ao
self destrutivo, pois este, disfarçando a sua natureza mortífera, apresenta-se
como forte e acena com soluções ideais, rápidas e onipotentes. Apresenta-se
especialmente protetor contra o sofrimento inerente à boa dependência que
levaria ao crescimento. (Levy, 1996, p. 226)
A partir de todas as questões discutidas, fica claro o quanto o processo
adolescente apresenta-se com conflitivas e angústias específicas do momento, as
quais necessitam ser “metabolizadas” pelo adolescente e sua família para que o
desenvolvimento rume satisfatoriamente a uma maior estruturação psíquica. Faz-se
fundamental, portanto, ressignificar os lugares e papéis até então ocupados, reformularse subjetivamente para que se possa adquirir uma identidade própria, condizente com
seu desejo, e não alienada ou subordinada às figuras parentais.
As nuances da adolescência na clínica: questões técnicas
Os desafios na análise de adolescentes são muitos. Os pais reais ainda estão
muito presentes, o que necessariamente implica a inclusão destes no tratamento.
Assim como os pais que, ao se defrontarem com a adolescência dos filhos precisam
ressignificar a sua passagem por essa etapa e elaborar suas angústias, o analista
também precisa estar disposto e aberto à intrusão de aspectos de sua adolescência
no percurso do tratamento. Questões transferenciais e contratransferenciais precisam
ser trabalhadas de forma a não serem atuadas no tratamento, interferindo
negativamente no mesmo.
Por meio do trabalho analítico, o analista ressignifica sua própria criança ou
adolescente em relação com os pais de sua história pessoal, ao mesmo tempo
que a relação vincular no par analítico (filho – analisando com o analista)
ressignifica aquelas situações narcisistas e edípicas não-resolvidas da história
individual de cada um dos progenitores e do par conjugal, e exerce neles
contínuas reestruturações que, por sua vez, incidem nas vicissitudes do processo
analítico do filho. (Kancyper, 1999, p. 113)
Jack Novick (2004) trabalha a questão da aliança terapêutica como condição
necessária para que se estabeleça um tratamento eficaz. Segundo o autor, é
responsabilidade do analista criar e manter essa aliança terapêutica –– entre pais e
terapeuta, adolescentes e os pais, terapeuta e adolescente, e entre os pais: “A
transformação da relação com o self, com os outros e com a realidade externa é, para
nós, a maior tarefa do desenvolvimento adolescente” (p. 287).
Pode-se pensar no tratamento analítico como uma possibilidade do adolescente
reaproximar-se de forma diferente de sua própria história, constituindo pontes entre o
passado e o presente, podendo passar da repetição à recordação (Rubinstein, 1998).
Neste contexto, a posição do analista seria de auxiliar o adolescente e sua família em
seus processos identificatórios e desidentificatórios, acolhendo as angústias e
sofrimentos inerentes da condição de surgimento de uma subjetividade autêntica.
Kancyper (1999) indica: “É função do analista de crianças e adolescentes liberar os
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pais e analisando do cativeiro narcisista no qual participam e padecem, com a participação
do filho ou sem ela – segundo a singularidade de cada caso (...)” (p.116).
No discurso da paciente M. e de seu pai aparecem estas questões narcísicas e,
principalmente, os aspectos geracionais envolvidos na relação pais-adolescentes. A
ambivalência e as flutuações progressivas e regressivas apresentam-se constantemente:
Falei com o pai sobre a minha vontade de ir para a outra cidade, fazer
cursinho, agora no fim do ano... Me encorajei e fui falar com ele, só que ele fica
me enchendo de minhocas na cabeça... Fica me perguntando: “vai trabalhar?”
“Como vai pagar o teu aluguel a tua faculdade?” E mais um monte de
atucanações... Eu me irritei e disse: “pai, quando tu saiu de casa tu saiu
pensando nisso tudo?”. Só que aí ele fica dizendo que é diferente: “Sabe quantos
anos eu demorei pra pagar a pensão onde fiquei na cidade?... Demorei três
anos depois de ter saído de lá pra pagar tudo”. Ele acha que eu tenho que fazer
a mesma coisa parece (...). Às vezes até penso em parar com tudo isso e ficar lá
mesmo. Mas sei que não vou ficar bem... Vou só contentar o pai, agradar ele e
não seguir o que eu realmente quero e penso que é melhor pra mim.
A partir do relato da paciente pode-se perceber a dificuldade do pai de visualizar
a diferença de gerações existente entre ele e a filha, e as resistências e temores dela em
assumir suas próprias escolhas. O pai apropria-se das inseguranças de M. para alimentar
uma maior dependência, não favorecendo a diferenciação. Cabe ressaltar, neste sentido,
que o relato de M. e as idéias de seu pai despertam na terapeuta um receio de que o pai,
por se mostrar possessivo, controlador e possuir uma atitude autoritária, possa interferir
no tratamento, boicotando as melhoras e o crescimento da filha, não permitindo que
ela possa sustentar e assumir seu desejo. A paciente já alerta sobre isso, na primeira
sessão: “nunca ninguém vai entender a relação que existe entre eu e meu pai”.
Em outra sessão, M. demonstra a ambivalência vivenciada tanto por ela quanto
pelo seu pai em relação ao processo de separação e diferenciação. Traz o desejo de sair
de uma posição mais dependente contraposto com uma total insegurança e dificuldade
de encarar a necessária frustração decorrente de sua diferenciação, temendo perder o
lugar da “bonequinha de porcelana do papai” e mantendo o vinculo infantil:
Pedi pro pai pra ir pra X (cidade do namorado) e ele deixou, bem na boa...
Depois eu disse: ‘quero te pedir uma outra coisa agora... Posso ir na quinta ao
invés de sexta?’ O pai não respondia, ficava mudo, se fazia de surdo.... Não
entendo isso, me irrita... Perguntei pra mãe por que ele não respondia nada...
Então que dissesse de uma vez: ‘não vai guria, para de incomodar’, mas não
dizia nada... Demorou um dia pra responder e aí disse numa naturalidade: “tá,
vai”, E sabe que no fundo eu nem queria ir quinta mesmo (...) Me surpreendi...
Na verdade não gostei muito do pai ter deixado assim. Tava preparada pra
brigar, discutir, chorar.
Todas essas mudanças na dinâmica familiar acarretam receios e angústias
importantes. Sobre isso, Marchevskyd (1985) comenta que o adolescente “normal”
apresenta conflitos neuróticos e até mesmo momentos psicóticos de forma ocasional,
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passageira. A presença acolhedora de alguém neste período traduz-se como
imprescindível para que ocorra uma maior estruturação psíquica.
Jack Novick (2004), baseando-se na teoria winnicottiana, aponta que o
adolescente precisa desenvolver a “capacidade de estar só”, de valorizar-se a si mesmo
e envolver-se em relacionamentos de confiança mútua com os outros: “Atribuindo
significado e ordem ao caos, transformando fantasias em objetivos realistas, queixas
externas e explicações circunstanciais em significações internas, motivações e conflitos,
sentimento de desamparo em competência, desesperança em esperança” (p.287).
É inegável que os pais precisam ser acolhidos e trabalhados pela terapia,
possibilitando um espaço de escuta e um repensar acerca do processo adolescente do
filho. A aliança terapêutica estende-se à família do adolescente, permitindo uma atitude
reflexiva e elaborando ressignificações necessárias. Kerry Novick (2004) refere que
para que realmente aconteça a psicanálise precisa-se abrir um espaço para os pais, já
que “sem os pais internos para nos manter a salvo é muito difícil envelhecer” (p.320).
O terapeuta precisa ser continente das histórias de vida dos pais, ajudando-os a
permitir a necessária diferenciação e confrontação entre as gerações:
Compreender e aceitar que a diferença entre pais e filhos e entre irmãos não é
negativa e que, pelo contrário, constitui o fundamento que preserva o sujeito da
alienação tanta parental-filial como fraterna, tem uma conotação afirmativa –
e incontestável - para plasmar a identidade e poder mantê-la em todas as
etapas da vida (Kancyper, 1999, p. 197).
A contratransferência do terapeuta em relação aos pais também é uma questão
técnica fundamental. Marchevskyd (1985) aponta que não estamos a serviço dos pais
para transformar o adolescente no filho ideal que eles almejam. Além disso, é
fundamental estarmos cientes de nossas posturas frente aos pacientes, cuidando para
não nos identificarmos demasiadamente com eles, podendo chegar ao extremo de criar
conluios inconscientes contra os pais.
Além disso, pode-se correr o risco de anular a função terapêutica e ocupar um
papel de cuidador, provedor, gratificando a necessidade neurótica do paciente, ou ainda
criar identificações reativas, tratando o paciente de modo oposto aos objetos originais.
Assim, o analista corre o risco de idealizar o adolescente e unir-se à sua crença de
onipotência (Bernstein & Glenn, 1991). Daí a importância da auto-análise e das supervisões
psicanalíticas para que se compreendam as reações emocionais do terapeuta e preservese a postura analítica no tratamento dos adolescentes e seus pais.
Numa sessão conjunta de J. e seu pai, o pai apresentou-se intolerante, radical,
mostrando-se indisposto ao diálogo: “A partir de hoje não tem mais acordos, nem
flexibilidade, vai ser do meu jeito, vai cortar os cabelos, se sobrar tempo vai namorar, não
vai sair final de semana, nem tocar guitarra...”. Diante disto, a terapeuta procurou conduzir
para uma possível negociação entre pai e filho, mostrando a importância do diálogo entre
ambos e fazendo-os pensar nas conseqüências de tais atitudes inflexíveis e radicais, mas
o pai ignora quaisquer colocações e continua: “Eu sou o prefeito e ele o vereador... Ele
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pode tomar as decisões dele desde que não interfiram no meu governo (...) Já que ele
criou o mundo dele, eu vou fazer o mesmo, ser tão individualista quanto ele”.
Tal postura do pai provocou na terapeuta um certo rechaço e uma identificação
e empatia com J. Ao dar-se conta dos sentimentos despertados pela intolerância do pai
a tudo que diz respeito ao processo adolescente do filho: roupas, turma de amigos,
namorada, estilo próprio, linguagem, etc., pôde-se trabalhar a dificuldade do pai em
relação à diferenciação do filho, já que os dois mantiveram por muito tempo uma
relação bastante fusionada, indiscriminada (inclusive apresentam o mesmo nome inicial).
Diante disso, o pai precisou repensar até onde vai o seu comando, selecionando
esferas em que teria este direito e outras em que estava sendo intrusivo demais, inclusive
tentando governar o tratamento.
A vinheta clínica apresentada sugere o quanto o filho pode ser visto como uma
extensão narcísica dos pais. No caso de J., seu pai sente-se no direito de impor a forma
de ser, de se vestir, num desejo de transformar o filho no seu modelo ideal, negando as
diferenças e as singularidades. Sabe-se que, de fato, o adolescente e seus pais criam
mundos diferentes, o que para algumas famílias acaba se tornando fator de conflitos.
Na sessão posterior J. estava muito indignado com a postura do pai: “Ele perdeu
toda a moral comigo... Logo ele que é todo das negociações e diálogos por ser
empresário... Moral de cueca! Fiquei puto da cara”.
Apesar das dificuldades no vínculo entre pai e filho, o pai parece ser a figura que
representa cuidado, suporte, limites. Isto se explica pelo fato de J. referir que depois da
separação dos pais optou por ficar com o pai, já que a experiência que teve morando
com a mãe foi desastrosa, sem nenhum limite, traduzindo-se numa sensação de
abandono e indiferença:
Quando morei com a mãe foi uma época que fiquei vadiozão... Matava aula
todo dia, só bebia, fumava, fui muito mal no colégio, quase rodei, fazia de
tudo... Ela não tava nem aí mesmo, uma indiferença total... Podia sumir de
casa uns dias que ela nem telefonava pra saber o que acontecia... Então
óbvio que sei que é importante o limite, não quero que o pai seja como a
mãe, que me largue, mas também tem que ter algumas aberturas, senão não
dá... Tem coisas que sei que tô errado, em relação aos gastos, volume da
guitarra, por exemplo, sei que às vezes excedo. Acho até certo se o pai
resolver passar meu celular pra cartão, nesse caso não vou nem ‘chiar’...
Mas ele não vai poder me proibir de sair, nem mudar meu cabelo, nem
minhas roupas, nem namorar... Se ele se meter nisso vai ter guerra... Não
vou mais ficar sempre cedendo, sempre me adaptando ao jeito dele... Ele
disse que não podia fazer tatuagem por causa da imagem dele que ia ficar
comprometida... Que ridículo! E a minha imagem própria? Quando vou
poder ter então? Vou ter que ser sempre a sombra dele? E quando ele vai
deixar de olhar só pra opinião e julgamento dos outros e olhar pros dele?.
Auxiliar aos adolescentes e seus pais nesse processo de diferenciações é uma
das tarefas fundamentais da análise. Oferecer um espaço de escuta e possibilidades de
ressignificações torna-se fundamental neste processo.
168
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Em relação à técnica psicanalítica de adolescente não se pode deixar de citar
outra questão relevante: a interferência do narcisismo do terapeuta no tratamento.
Sabe-se que os aspectos narcisistas do analista podem afetar prejudicialmente o
percurso da análise, caso não estejam adequadamente trabalhados. Nesse sentido,
Bernstein e Glenn (1991) referem que o analista pode representar o paciente como uma
extensão de si, em função da identificação com o adolescente ou a partir de uma
transferência estabelecida com os pais do adolescente, os quais acabam sendo
equiparados com os pais do analista. Em função disso, ressalta-se a importância das
reações emocionais do terapeuta, tanto no sentido de constituírem-se como ferramentas
fundamentais para a compreensão psicodinâmica dos pacientes, como no sentido do
risco potencial de produzirem pontos cegos perigosos, podendo traduzir-se em
comportamentos antiterapêuticos (Bernstein & Glenn,1991).
Faimberg (2004) mostra que é através do entendimento e interpretação das
situações transferenciais que se tornam possíveis os processos de deslocamento, de
repetição e a oportunidade de elaboração e visualização de novas soluções para os
conflitos. Leivi (1995) reafirma esta idéia, outorgando ao espaço analítico o lugar por
excelência da reconstrução subjetiva, em que o paciente precisa colocar em primeira
pessoa a sua história, suas lembranças e a sua identidade.
É fato a importância do vínculo estabelecido entre o terapeuta e o paciente como
fator primordial para que se possa trabalhar as questões do paciente e o tratamento
surtir efeitos positivos. O paciente J., já bastante vinculado ao tratamento, refere:
Eu sinto que aqui na terapia eu consigo clarear a cabeça... Discriminar as
idéias... Sei que quando fumo, por exemplo, tô tapando o sol com a peneira, sem
realmente pensar... Mas quando venho aqui ou quando toco minha guitarra,
parece que abre a cabeça.
O tratamento de adolescentes também pode auxiliá-los no sentido de percorrer o
caminho necessário até a internalização de objetos continentes e cuidadores. Com
isso, emerge a possibilidade de enfrentar a dor e as frustrações sem ter que se utilizar
soluções mágicas e onipotentes (Levy, 1996). Na medida em que se possibilita a
simbolização, ou seja, a representação em palavras das vivências, dos sentimentos e
daquilo que foi excluído da “história oficial”, os não-ditos, o silenciado, o desmentido,
os acting outs perdem seu lugar de destaque na dinâmica do adolescente (Leivi, 1995).
Zimerman (2004) coloca que o papel do terapeuta não é de “conselheiro”, nem de
“juiz”, e sim de “conciliador”. Segundo o autor o terapeuta deve “exercer a função de
assinalar os transtornos de comunicação, a ocupação dos lugares, o desempenho dos
papéis, o respeito pelas diferenças” (p. 362).
Percebe-se, portanto, a necessidade do analista de adolescente possuir condições
pessoais para lidar com questões primitivas, tais como funcionamentos fusionais,
intrusivos, sentimentos de vazio, abandono, angústias persecutórias, etc. Torna-se
indispensável, por parte do terapeuta, a capacidade de suportar descargas emocionais
intensas e a tomada de consciência dos aspectos contratransferenciais evocados.
Ressalta-se, mais uma vez, a importância da análise pessoal e a busca de supervisões,
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
169
para que se possa clarear os pontos cegos eventualmente presentes, e conduzir de
forma mais eficiente o tratamento.
Considerações finais
A adolescência apresenta-se como um processo repleto de mudanças, angústias,
temores e desafios. Seewald (1995) refere que neste período evolutivo ocorre um
movimento constante de “ir” e “vir” entre o mundo infantil e o mundo adulto,
caracterizando um estágio transicional:
(...) Poderiam ser comparados a pseudópodes que ora assumem a forma de
atividades delinqüências, ora perversas, ora esquizóides (...) Ao mesmo tempo
tudo pode se interromper como se o psiquismo fosse colocado em ‘off ’,
lembrando, legitimamente, o efeito de ‘conchas autísticas’ proposto por Tustin
(...) (p. 76)
Desta forma, o tratamento efetiva-se a partir de oscilações permanentes entre
refúgios e saídas, e objetiva favorecer identificações estruturantes, ou seja, auxiliar o
adolescente na construção de uma identidade própria, autêntica, íntegra e não mais
existir através de identificações alienantes. Através desta subjetivação genuína, o
sujeito tem a possibilidade de romper com a posição de condicionar a vida em função
do outro, podendo passar do ego infantil ao ideal de ego adulto.
A psicanálise colabora no sentido de oferecer um espaço de escuta para o
adolescente e sua família, a fim de que se possa elaborar as vicissitudes relativas a este
processo, assumindo suas incompletudes narcísicas, e podendo vivenciar os lutos
necessários nesta etapa. Faz-se fundamental que se possa atentar às projeções parentais
e aos conseqüentes alienamentos subjetivos, facilitando a individuação e a
diferenciação do adolescente.
O terapeuta necessita avaliar suas possíveis identificações e contraidentificações,
tanto com aspectos dos pais (do adolescente e/ou de seus próprios pais) como com
questões de sua própria adolescência. A compreensão dos sentimentos advindos de
tais situações permite a preservação do setting terapêutico, evitando atuações. As
reações emocionais do terapeuta podem, assim, serem utilizadas como um valioso
instrumento no tratamento de adolescentes.
Mannoni (1980) refere que “uma consulta psicanalítica somente tem sentido se
os pais estiverem prontos para retirar as máscaras, para reconhecer a inadequação do
seu pedido e para, de certa maneira, se questionarem” (p.104). Assim, faz-se relevante
possibilitar ao adolescente e sua família um trabalho de ressignificação e reorganização
simbólica de suas subjetividades e de suas histórias. Nesta linha de pensamento, Leivi
(1995) coloca que o desafio do tratamento é tornar o adolescente sujeito de sua própria
história. Assim, ressalta-se a importância de perceber as resistências relacionadas ao
movimento de crescimento, em função das necessidades simbióticas existentes entre
pais e filhos e das ilusões decorrente daí. Trata-se de permitir que o adolescente possa
construir seu próprio chão, sua própria base, sem que isso promova rupturas e quebras.
170
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Poder ter o porto seguro na família, como referência e segurança, mas não ter que ficar
aprisionado e alienado a este porto – eis o desafio do processo adolescente.
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Recebido em março de 2007
Aceito em agosto de 2007
Aline Bedin Jordão: psicóloga, especialista em Psicoterapia Psicanalítica de crianças, adolescentes e
adultos pelo Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinariedade (ICPT-POA/RS), mestranda em
Psicologia Clínica (UNISINOS), professora do Curso de Psicologia da ULBRA – Santa Maria.
Endereço para correspondência: [email protected]
172
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.173-187, jan./jun. 2008
Psicoterapia de casal: modelos e perspectivas
Terezinha Féres-Carneiro
Orestes Diniz Neto
Resumo: Discute-se, neste trabalho, o surgimento e a articulação de modelos de psicoterapia de
casal, emergentes no final do século XX e início do século XXI. Para tanto foram utilizados
artigos de revisão sobre psicoterapia de casal publicados e indexados ao Psiclit, de 1980 até
agosto de 2006, sob as palavras-chave: review, marital therapy e couple therapy. São focadas
diferentes propostas de articulação de modelos de diversas abordagens, discutindo-se,
metodologicamente, questões técnicas e/ou teóricas. Propostas de integração de diferentes
áreas com a psicoterapia de casal tais como, psicoterapia breve, terapia sexual, psiquiatria são
discutidas. Implicações para novas direções de estudo são indicadas.
Palavras chave: terapia de casal, modelos, metodologia.
Couple psychotherapy: Models and perspectives
Abstract: This paper aims to discuss the origin and articulation between models of couple
therapy in the end of the XX century and beginning of the XXI century. For such, revision
articles about couple psychotherapy that were published and indexed to the Psiclit, from 1980
to7 august 2006, under the keywords: review, marital therapy and couple therapy were used.
The focus is on different proposals for the articulation of models from different approaches,
which are discussed methodologically in their technical and/or theoretical contributions.
Proposals of integration between different perspectives for couple psychotherapy such as
brief psychotherapy, sexual therapy, and psychiatry are discussed. The implications for new
directions of study are indicated.
Key words: Couple therapy, models, methodology.
Introdução
O objetivo deste trabalho é realizar uma revisão da construção e da articulação
de modelos de psicoterapia de casal do final do século XX início do século XXI. Para
tanto foram utilizados artigos de revisão sobre psicoterapia de casal publicados e
indexados ao Psiclit, de 1980 até agosto de 2006, sob as palavras-chave: review, marital
therapy e couple therapy. Estes artigos apontam convergências na importância dada
ao surgimento de modelos e metodologias de diferentes orientações, como respostas
a críticas e desenvolvimentos metodológicos. Uma abordagem compreensiva e
comparativa é utilizada para delinear a visão predominante desses revisores sobre a
psicoterapia de casal em relação ao surgimento de alguns dos principais modelos e
suas possíveis articulações.
Diversos autores de revisões sobre história da terapia de casal, quando
examinados em conjunto, parecem concordar que predominaram, na história conceitual,
pelo menos quatro fases metodológicas e conceituais (Gurman & Fraenkel, 2002; Gurman
& Jacobson 1995; Johnson & Lebow, 2000). A primeira fase começa com a abordagem
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
173
do aconselhamento matrimonial, que se orientava por teorias psicológicas ecléticas e
indiferenciadas durando da década de trinta até aproximadamente a década de sessenta.
A segunda fase caracterizou-se pela aplicação do método e de teorias psicanalíticas à
terapia de casal, sobrepondo-se parcialmente à primeira fase e influenciando fortemente
o pensamento dos teóricos de aconselhamento de casal, da década de quarenta ao
final dos anos sessenta. Já a terceira fase foi marcada pela introdução do enfoque
sistêmico familiar na década de sessenta e o seu predomínio na abordagem de casais e
famílias até a metade da década de oitenta. E na quarta fase, com a diversificação de
modelos e abordagens, ocorreu o aparecimento de esforços de articulação entre os
diferentes enfoques (Gurman & Fraenkel, 2002).
Novos modelos e articulações
Muitas das abordagens teóricas que orientaram o campo da psicoterapia
demonstraram a eficácia de seus modelos durante a década de 1970 e 1980 (Garsk &
Lynn, 1985; Smith, Glass & Miller, 1980a). Assim, diversos autores, de modo mais
confiante, procuraram expandir suas propostas para outras situações, para além da
terapia individual, gerando novos modelos de tratamento. Alguns, dos mais
significativos, de acordo com algumas das principais revisões sobre o desenvolvimento
da psicoterapia de casal serão abordados a seguir apenas em suas contribuições e
relevância para o campo (Ferés-Carneiro, 1996; Johnson & Lebow, 2000).
O enfoque comportamental
A terapia conjugal comportamental, mais do que qualquer outra abordagem no
campo da terapia de casal, procura fundamentar-se fortemente em pesquisas empíricas.
Em uma primeira fase, podemos observar a aplicação quase ingênua, de princípios
comportamentais. Duas estratégias terapêuticas marcam esta etapa: a mudança
terapêutica do padrão de trocas, e o desenvolvimento de habilidades. Em um primeiro
momento foi proposta uma simples mudança na “troca de comportamentos” entre os
cônjuges que, como método de intervenção, supostamente alteraria o padrão conjugal.
No processo terapêutico, a ênfase estava na identificação de mudanças desejáveis
para a interação e, então, em treinar estes comportamentos, em uma altamente
estruturada seqüência de reforçamento mútuo (Stuart, 1969). Esse estilo de
remanejamento da interação conjugal foi substituído, à medida que seus resultados
foram pouco animadores, por uma proposta de um “contrato de boa fé”, no qual os
comportamentos não seriam especificados e trocados de forma pareada, de um modo
quase comercial, mas deveriam ocorrer de forma unilateral, e, de preferência,
simultaneamente (Weiss, Bircher & Vincent, 1974). Uma das razões desta mudança de
ênfase reside no fato de que os primeiros terapeutas comportamentais de casal não
compreenderam adequadamente o conceito de quid pro quo (Laderer & Jackson,
1966). Interpretaram-no mais como um sistema de trocas ponto a ponto do que como,
de uma perspectiva mais ampla, os parceiros definem-se a si-mesmos na relação.
Partindo do enfoque de desenvolvimento de habilidades, a terapia comportamental
de casais colocou ênfase no ensino de habilidades comunicacionais e na solução de
174
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
problemas dos casais, que supostamente envolveriam padrões saudáveis de
casamentos satisfatórios. Estas habilidades seriam ensinadas aos casais em módulos,
em uma seqüência pré-estabelecida. Curiosamente, a característica fundamental das
abordagens comportamentais em terapia, incluindo a terapia comportamental de casais,
a análise funcional parece ter sido desconsiderada. Desta forma, usualmente falhavam
em uma importante distinção funcional comportamental; entre um problema de aquisição
de uma habilidade e de sua performance, isto é, na diferença entre a aprendizagem e o
uso de uma habilidade já adquirida, mas não exercida, suficientemente, em um
relacionamento (Gurman & Fraenkel, 2002).
Uma segunda fase na terapia comportamental de casais foi marcada pelo
desenvolvimento do modelo que Jacobson e Christesen (1996) chamaram de terapia
comportamental integrativa de casais, e que foi considerada uma evolução significativa.
Essa e outras contribuições indicaram uma mudança na estratégia terapêutica, ou seja,
do foco em mudanças comportamentais para a busca do aumento de aceitação mútua
entre os cônjuges. Este desdobramento deveu-se a vários fatores, dentre eles a
necessidade de desenvolver métodos para lidar com aspectos não abordáveis pelo
treinamento de habilidades, e que levavam casais a permanecerem debatendo-se ao
redor de questões insolúveis.
Um outro fator foi desencadeado pela necessidade de implementar novas formas
de terapia, que contornassem a aparente paralisação da evolução do nível de eficácia
da terapia comportamental de casais (Jacobson & Adis, 1993). Esta nova fase foi
marcada por um aumento na melhora dos resultados terapêuticos e pela descoberta de
que “... a nomenclatura de traços psicológicos é útil para compreender nossos clientes,
tal como é útil para nos entendermos na vida do dia a dia.” (Hamburg, 1996, p. 56).
Tal compreensão revela-se, por exemplo, no trabalho de Jacobson e Christensen
(1996) que passou a enfocar e descrever temas recorrentes de dificuldades conjugais,
em uma linguagem comportamental, como classes de resposta, ao invés de
comportamentos específicos. A fase mais recente da terapia comportamental de casais
foca aspectos da auto-regulação, como, por exemplo, o trabalho de Halford (1998), que
envolve estratégias de mudança do comportamento do outro cônjuge, a partir de
mudanças nos comportamentos conjugais do outro membro do casal.
Gurman e Fraenkel (2002) apontam que a aplicação de estratégias de autocontrole
para mudança nas relações conjugais trouxe uma importante dimensão ao foco da
terapia comportamental de casal, acrescentando múltiplos níveis de comportamento
humano relevante. Curiosamente, abordagens comportamentais do autocontrole e de
suas implicações para a terapia (Franks, 1969) já estavam disponíveis na década de
1960 quando aparece a primeira fase da terapia comportamental de casal.
A aplicação destas novas abordagens na terapia comportamental de casal, bem
como a exploração da resposta fisiológica dos cônjuges à interação (Gottman, 1998),
colocaram a possibilidade de que importantes resultados no tratamento possam ser
alcançados nos próximos anos (Gurman & Fraenkel, 2002). Cabe notar, contudo, que a
terapia comportamental de casal tem dado pouca atenção a fatores familiares e
intergeracionais no conflito conjugal, o que talvez se constitua em uma importante
lacuna no seu desenvolvimento teórico e na prática clínica correspondente.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
175
Abordagens experienciais
Outros modelos foram desenvolvidos influenciados pela visão humanística, mas
integrando contribuições de outras abordagens. Este é o caso da escola de terapia de
casal focada na emoção, que é a primeira grande reaproximação entre a tradição de
terapia de família e casal e a abordagem humanística e experiencial, propostas por
grandes autores como Carl Rogers (1970), Fritz Pearls (1977), seguindo uma perspectiva
inicialmente desenvolvida por Virginia Satir (1964). Trata-se também de uma escola
com grande base empírica e de importância histórica (Gurman & Fraenkel, 2002).
A premissa fundamental da terapia de casal focada na emoção postula que seres
humanos têm uma necessidade inata para contatos emocionais consistentes, seguros
e íntimos. Assim, o conflito conjugal é visto como dependente da maneira como a
necessidade de ligação afetiva é expressa e satisfeita emocionalmente. Teoricamente,
a terapia de casal focada na emoção fundamenta-se nas teorias de relação de objeto,
no entanto, seus métodos e técnicas diferem daqueles que prezam a interpretação
terapêutica (Johnson, Husley, Greenberg & Schindler, 1999). Contrastando com as
abordagens estratégica e comportamental, a terapia de casal focada na emoção vê a
emoção como o organizador primário da experiência íntima, influenciando
significativamente os padrões interacionais, percepções e atribuições de significado
das interações. Assim, os objetivos terapêuticos são dois: explorar a visão que cada
parceiro tem sobre si-mesmo e sobre o outro, como organizada pela experiência afetiva
imediata; e auxiliar os cônjuges a acessar os sentimentos não reconhecidos em si
mesmo e no parceiro, criando meios para sua expressão na sessão terapêutica.
A capacidade de solução de problemas é alcançada de modo não intencional,
evitando-se o treinamento de métodos específicos, como em outros modelos, como na
terapia comportamental de casal. Assim, espera-se que ocorra espontaneamente, a
partir do desenvolvimento da capacidade de comunicação emocional, o
desenvolvimento de novas formas de se relacionar. Diversas técnicas foram descritas
(Johnson & Greenberg, 1995), tais como o “ciclo de desescalação”, no qual o terapeuta
cria uma aliança com o casal, delineando núcleos do conflito, mapeando situações
problemáticas recorrentes e os padrões de interação insatisfatórios, acessando e
facilitando a expressão de sentimentos não reconhecidos, e re-enquadrando os
problemas à luz destes sentimentos. Outra técnica proposta refere-se à “mudança de
posições interacionais”, na qual os parceiros são convidados a se identificar com as
necessidades do outro, encorajando a aceitação da experiência emocional e
explicitando, de modo claro, as necessidades emocionais de cada cônjuge. E ainda a
técnica de “consolidação e integração”, na qual se desenvolvem novas soluções para
velhos problemas, consolidando posições e padrões de ligação afetiva emergentes
(Johnson, 1999).
O foco central da terapia é a expressão emocional, assim, o terapeuta não se
preocupa em explorar o passado, interpretar motivações, desejos ou conflitos
inconscientes, ou ensinar habilidades interpessoais e comunicacionais. A terapia de
casal focada na emoção tem encontrado bases empíricas para sua prática e, mais do
que outras abordagens de terapia de casal, tem apontado o lugar relevante do si –
176
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
mesmo de cada cônjuge, respeitando sua fenomenologia e subjetividade, mantendo
ainda uma visão do casal como sistema. Como notam Schwartz e Johnson (2000): “...o
campo da terapia de casal está lentamente retomando aquele ‘pega-toca’ visionário de
Virginia Satir e se livrando de sua herança não emocional.”( p. 29).
Outra contribuição significativa é o trabalho de Snyder (1999), que postulou a
terapia de casal orientada para o insight, apresentando estudos e pesquisas sobre o
seu desenvolvimento, bem como demonstrando a sua eficácia a longo prazo. Embora
as raízes da abordagem da terapia de casal orientada para o insight remontem aos
métodos psicodinâmicos da década de 1960, ela é, até o presente, o método com as
bases empíricas mais relevantes para a fundamentação deste enfoque e para a reemergência dos procedimentos da abordagem psicodinâmica de casais daquele período.
Contudo, a terapia de casal orientada para o insight não é uma abordagem
psicanalítica ou mesmo uma abordagem puramente de relações objetais. Ela enfatiza as
disposições relacionais do indivíduo e seus núcleos temáticos individuais associados,
gerados nas relações íntimas, incluindo a família de origem. Dois núcleos teóricos
sustentam este modelo: a teoria dos papéis interpessoais (Anchin & Kiesler, 1982), e a
teoria de esquema (Young, 1994) de orientação cognitivista. Porém, a teoria é
psicodinâmica coincidindo com aspectos de modelos baseados na teoria de apego
(Bolwby, 1985).
A terapia de casal orientada para o insight reconhece os processos e conflitos
interpessoais e intrapessoais como reais e significativos para a qualidade da relação
conjugal. As contradições e incongruências entre indivíduos, sobre suas expectativas
e necessidades na relação, marcam a forma como o casal se organizará ao redor do que
Snyder (1999) se refere como uma manutenção inadvertida dos parceiros de padrões
mal-adaptativos de relacionamento. O terapeuta tem, como técnica central, a
interpretação do comportamento, sentimento e cognições dos cônjuges, tanto no
contexto atual como na história de vida do casal. Assim, da mesma forma que nas
primeiras abordagens de terapia psicanalítica de casal (Gurman & Fraenkel, 2002), a
terapia de casal orientada para o insight também reconhece a presença, como
clinicamente significativos, de elementos colusivos, ou seja, da identificação projetiva
recíproca, que ocorre entre os membros do casal.
A terapia de casal orientada para o insight pode ser vista como um quadro de
referência para a organização de intervenções e o seqüenciamento do uso de técnicas
interpretativas, cognitivas, experiênciais e comportamentais. A busca pelo insight,
como meio de compreensão e modificação, é mediada pela interação terapêutica que,
na fase de “reconstrução afetiva”, o principal momento da terapia, buscará a
compreensão de temas mal-adaptados, tais como sua origem desenvolvimental, as
conexões com as primeiras experiências, os medos e dificuldades atuais (Gurman &
Fraenkel, 2002). Da mesma forma que a terapia de casal focada na emoção, a terapia de
casal orientada para o insight representa a re-introdução de questões relacionadas ao
“si-mesmo”, no contexto da terapia de casal. Para estes autores essa é uma importante
tendência e, provavelmente, representa a retomada de um tema relevante, que foi,
indevidamente, relegado ao segundo plano.
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177
Abordagens psicodinâmicas
Gurman e Fraenkel (2002) consideram que o interesse na abordagem psicodinâmica
re-emergiu na década de oitenta, facilitado por três importantes eventos. O primeiro
ocorreu na medida em que pesquisadores de terapia de casal contribuíram
significativamente para o refinamento de técnicas e a construção de manuais de
tratamento que orientariam a prática terapêutica. Isto permitiu seu uso em estudos de
resultados de eficácia. O segundo deveu-se ao surgimento de um grande número de
modelos de terapia integrativos, com elementos psicodinâmicos. E, o terceiro, ocorrido
na década de 1980, está relacionado ao grande número de clínicos, que trabalhando
independentemente, publicaram estudos nos quais procuram desenvolver e explorar
teorias, fundamentadas nas relações objetais, e técnicas para terapia de casal, refinando
intervenções e estratégias (Bader & Pearson, 1988; Naldelson, 1978; Sharff & Scharff,
1991; Siegel, 1992, Solomon, 1989; Willi, 1982).
Outros autores, como Ruffiot (1981), Eiguer (1984) e Lemaire (1988)
desenvolveram, a partir da psicanálise de grupo, modelos psicanalíticos de atendimento
a casais. Estes estudos objetivaram facilitar a individuação, modificar as defesas
diádicas e individuais, tornando-as mais flexíveis, e aumentar as capacidades dos
membros do casal de suportar e apoiar as dificuldades emocionais do parceiro (FéresCarneiro, 1996; Gurman & Fraenkel, 2002).
Todos os métodos de terapia psicodinâmica de casal atribuem importância central
à comunicação inconsciente e aos processos de manutenção de relações que
caracterizam a conjugalidade. Embora muitos destes métodos utilizem diferentes
técnicas e intervenções, todos parecem estar em débito com as contribuições de Dicks
(1967) sobre as relações objetais na cena conjugal. Entre os conceitos centrais desta
abordagem estão: a identificação projetiva, o splitting, a colusão, o holding e a
contenção (Cathedrall, 1992). Assim parece que, como colocam Gurman e Fraenkel
(2002), “quaisquer que sejam as explicações para o renovado interesse na psicodinâmica
do casal, no nascimento deste milênio, parece que este interesse voltou contribuindo
para o enriquecimento do campo” (p. 227).
Campos de diálogo e articulação
O campo da terapia de casal tem assistido, na sua quarta fase, a importantes
diálogos e relacionamentos sinérgicos entre diferentes perspectivas, levando à
integração e ao enriquecimento de modelos (Gurman & Fraenkel, 2002). Tendências e
focos, anteriormente vistos como estanques, passaram a ser explorados conjuntamente,
criando espaços interdisciplinares e transdisciplinares. Quatro campos de diálogo
parecem mais relevantes, pelo seu potencial e por já possuírem uma história
consubstanciada. O primeiro campo refere-se à articulação de diferentes abordagens
de terapia de casal, no qual diferentes escolas têm participado. O segundo trata da
exploração das contribuições recíprocas entre a abordagem da terapia de casal e as
contribuições da terapia breve. E, em terceiro lugar, parecem relevantes as discussões
entre o campo da terapia de casal e o da terapia sexual. E, finalmente, têm ocorrido
tentativas de articulação com a teoria do apego desenvolvida por Bowlby (1989).
178
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Quanto ao primeiro campo, diversos autores procuram integrar modelos
ressaltando as vantagens dos aspectos mais salientes de cada abordagem,
desenvolvendo uma visão mais articulada da terapia de casal, combinando diferentes
formatos de tratamento e modalidades. Os modelos propostos tendem a se agrupar
epistemologicamente em dois grupos, sendo um pólo mais eclético, menos preocupado
com a sua fundamentação teórica, enquanto em outro pólo outros modelos refletem
uma busca de consistência epistemológica. Quanto ao primeiro pólo, alguns modelos
destacam-se como a terapia integrada de múltiplos níveis, desenvolvida por Feldman
(1985, 1992), um exemplo característico, que procura focar os aspectos comportamentais,
psicodinâmicos, sistêmicos e biológicos do relacionamento conjugal. Feldman (1992)
advoga o uso adequado de sessões individuais e conjuntas, em um desenho apropriado
para cada caso.
Já a terapia integrativa centrada no problema, desenvolvida por Pinsof (1983,
1995), utiliza um enquadre teórico que permite tanto escolher o foco adequado a um
certo caso clínico como avaliar a pertinência do uso de um certo modelo, baseado em
princípios teóricos diferentes e o uso de intervenções. No modelo de Pinsof (1995), o
terapeuta move-se no processo combinando intervenções de diferentes abordagens,
de acordo com um plano de tratamento claramente delineado, que toma a forma de uma
árvore de decisões. Assim, é possível escolher, com critério e a cada momento, modelos
focados no presente, como o cognitivo, o comportamental ou estrutural, até modelos
focados na historicidade, como o de relações objetais ou o modelo boweniano. Aspectos
biológicos são também considerados nesta abordagem, levando a intervenções
biológicas e farmacológicas.
A paleta terapêutica é outro método integrativo, desenvolvido por Fraenkel (1997),
que procura, de modo similar aos modelos anteriores, oferecer um conjunto de princípios
para a escolha de uma teoria em detrimento de outra, em diferentes momentos da
psicoterapia. Estes autores parecem seguir as observações de Martim (1976, p.8), que
asseverou: “aqueles que preferem ter de escolher entre apenas os aspectos do
intrapessoal ou do interpessoal limitam a si-mesmos. Esta separação é artificial e não
ocorre na natureza do ser humano”.
Esta observação tem levado diferentes autores a enfatizar ambos os aspectos,
intrapessoal e interpessoal, combinando diferentes abordagens, como Sager (1981)
que, no seu modelo de contrato conjugal, dirigi-se tanto a aspectos verbalizados e
conscientes de expectativas do laço conjugal, como a aspectos não verbalizados ou
contratos inconscientes, fundamentando-se na teoria psicanalítica, mas ainda assim,
fazendo uso seletivo de trocas comportamentais ponto a ponto. Nichols (1988), em seu
modelo integrativo, fundamenta-se nas teorias de desenvolvimento e das relações
objetais, mas também utiliza intervenções de trocas comportamentais, de treinamento
comunicacional e de solução de problemas. A abordagem de sistemas internos de
famílias de Schwartz (1995) combina o reconhecimento da experiência intrapsíquica,
baseada na história e representação internalizadas de partes do si-mesmo, e os modos
como esta influencia e é influenciada pela interação em andamento.
No pólo cujos modelos refletem uma preocupação com a consistência teórica e
epistemológica, destacam-se várias propostas integrativas que procuram articular os
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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aspectos intrapsíquicos e os interpessoais. Uma abordagem deste tipo foi proposta
por Bagarozzi e Giddings (1983), que procuraram apresentar uma análise cognitivoatribuicional de como parceiros reforçam e punem, mutuamente, os seus
comportamentos, a partir de sua adequação, ou não, aos seus modelos representacionais
internos. Deste modo, os cônjuges engajam-se em um padrão de escultura recíproca
de seus modelos e comportamentos, mantendo uma conjunção emocional, através do
processo projetivo. Para estes autores, tanto as dimensões conscientes como as
inconscientes deveriam ser exploradas na terapia de casal.
Outra proposta significativa foi o modelo intersistêmico de Berman, Lief e Williams
(1981), que combina uma teoria de contrato com a teoria de relações objetas a teoria de
sistemas multigeracional, a teoria do desenvolvimento adulto, e a teoria de aprendizagem
social. Este modelo foca, simultaneamente, o individual, o interacional em seu aspecto
conjugal e o sistema intergeracional, delineando um conjunto de intervenções
originárias de diferentes tradições terapêuticas.
O modelo de terapia de casal de abordagem combinada psicodinâmicacomportamental de Seagraves (1982) e a terapia de casal breve integrativa de
comportamento profundo (Gurman, 2002) buscam modificar os modelos
representacionais internos e interpessoais, tanto através de intervenções diretas
comportamentais como através de meios interpretativos. Ambos os modelos vêem os
diversos aspectos da personalidade dos cônjuges, como delineados e mantidos através
de interações significativas. Assim, os autores concordam que intervenções diretivas
e comportamentais podem servir como poderosos meios de mudança intrapsíquica.
Outras abordagens integrativas têm surgido a partir de modelos bem diversos
como a abordagem sistêmica e a psicanalítica, em especial em aplicações a família como
advoga Gutal (1983), que propõe uma aproximação entre a abordagem lacaniana e a
abordagem sistêmica. Féres-Carneiro (1996) considera tal integração possível e desejável,
e propõe a articulação dos enfoques sistêmicos e psicanalíticos, no atendimento a família
e casais, a partir de uma tríplice chave de leitura que contempla o intrapsíquico, o
interacional, o social, tal como foi também ressaltado por Lemaire (1988).
Diferentes modelos, que derivam da aplicação de diferentes abordagens, têm
obtido, desde as décadas de 1970 e 1980, resultados comparáveis em termos de eficácia
terapêutica. E, neste sentido, a pretensão de superioridade de uma abordagem sobre
as demais, ainda está por se estabelecer, sendo considerada, atualmente, como
improvável (Cordioli, 2002; Garsk & Lynn, 1985; Miller & cols., 1995; Pinsof & Wynne,
2002; Smith, Glass & Miller, 1980).
Por outro lado, diversas perspectivas têm convidado à criação de diferentes
intervenções que parecem mais se complementar do que se opor. Porém, estes resultados
indicam importantes questões que apontam para problemas epistemológicos básicos
do campo da psicoterapia, envolvendo o que pode ser compreendido como uma crise
paradigmática, no sentido kuhniano (Diniz-Neto, 1997; Diniz-Neto & Féres-Carneiro,
2005a). Estas tentativas de integração e cooperação devem ser entendidas como
importantes contribuições para a superação de velhas rixas metodológicas e, um passo
na direção de questões paradigmáticas fundamentais do campo da psicoterapia, em
geral, e de casal, em particular.
180
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
O segundo campo de diálogo dá-se entre a psicoterapia de casal e a psicoterapia
breve. Gurman (2001) observa que, comparativamente a intervenções psicoterapêuticas
individuais, os modelos de terapia de casal tendem a ser breves, organizados de 15 a 20
sessões, em média. Tal tendência reflete um posicionamento basicamente orientado
por atitudes comuns, tais como: parcimônia clínica, orientação desenvolvimentista
centrada na emergência do problema em um momento específico, ênfase nas
potencialidades do cliente, importância da indução de mudanças tanto fora como
dentro do enquadre da terapia e foco centrado no presente. A essas características,
soma-se a presença do cônjuge, estabelecendo uma relação potencialmente de maior
influência que a relação terapeuta-cliente, como o enfatizado nas formas mais tradicionais
de psicoterapia. Para Gurman (2001), quatro fatores técnicos comuns aos diversos
modelos de terapia de casal também estão presentes na terapia breve.
Em primeiro lugar, destaca-se o significado e o uso do tempo, como recurso,
assim como intervenção, incluindo o engajamento em uma perspectiva
desenvolvimentista do aparecimento e da formação do problema, intervenções
precoces, e uma flexibilidade na duração do tratamento. Em segundo lugar, a relação
terapeuta-cliente (casal), em ambas as formas, exige uma postura mais ativa do terapeuta
que deve intervir mais do que, usualmente o faz, em terapias individuais. Em terceiro
lugar, as técnicas de tratamento, em terapia de casal e terapia breve, tendem a incluir
tanto mudanças dentro do contexto da sessão de terapia como fora. E, em quarto lugar,
a abordagem focal no tratamento dos sintomas, a pedra de toque da terapia breve, está
presente também na terapia de casal. Assim, Gurman (2001) coloca que a questão da
integração, entre terapia de casal e terapia breve, é muito mais de reconhecimento de
similitudes e aproximações do que de criar um espaço teórico comum.
O terceiro campo de diálogo se estabelece entre a terapia de casal e terapia
sexual, e tem sido objeto de controvérsia, praticamente, desde o surgimento quase
simultâneo de ambas as abordagens. Esforços têm sido feitos na direção de um diálogo,
e a existência do periódico Journal of Sexual e Marital Therapy indica esta tendência.
Tal empenho é apoiado por importantes razões clínicas. Socialmente, a relação conjugal
continua sendo a única instância, plenamente sancionada, na qual se espera a existência
de vínculo e prática sexual. Do ponto de vista clínico, predominam, na prática terapêutica
com casais, situações nas quais o casal experiencia dificuldades na esfera sexual,
primariamente ou em consonância com outras dificuldades. Quase sempre, todos os
casos envolvem pelo menos alguma discussão sobre a dimensão sexual do casal.
Contudo, os campos da terapia de casal e terapia sexual são vistos ainda como
separados e sem conexão.
Esta divergência parece ter origem em uma pressuposição que predominou, no
campo de terapia de casal, qual seja, que a disfunção sexual é apenas um sintoma de
uma outra dificuldade do casal, como medo de intimidade, jogos de poder, tentativas
de desqualificação, dentre outras. Como resultado, o campo da terapia de casal não
tem dado suficiente atenção à dimensão da sexualidade e das disfunções sexuais.
Outra questão a ser considerada está relacionada ao fato de as técnicas de terapia
sexual terem sido desenvolvidas em um foco comportamental, sendo carregadas das
implicações desta abordagem.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
181
Por outro lado, grande parte dos terapeutas de casal revela ter uma formação,
primariamente, orientada pelas abordagens psicodinâmica e sistêmica, criando uma
forte barreira ao diálogo (MacCarthy, 2002). Ao mesmo tempo em que terapeutas de
casal defendem a integração e o diálogo mais sistemático de modelos com a terapia
sexual, esta parece estar em declínio. Não por razões teóricas e metodológicas ou por
ausência de resultados, pois alguns são realmente impressionantes, como os
alcançados pelo método de Master e Jonhson (1990), mas por pressão de companhias
de seguro, e ausência de reconhecimento da profissão. Como notam Gurman e Fraenkel
(2002, p. 240):“Se houver uma substantiva e significativa integração do campo da
terapia sexual e terapia de casal, novos líderes devem surgir com capacidade em ambos
os domínios clínicos, e com um respeito equilibrado para a complementaridade, e os
atributos potencialmente sinérgicos de ambos os domínios.”
O quarto campo de diálogo refere-se à tentativa de articulação que vem ocorrendo
entre a teoria de casal e a teoria do apego de Bowlby (1989) desenvolvida a partir de
questões relacionadas ao estabelecimento dos vínculos iniciais entre a criança e sua
mãe, ou quem exercer o seu papel. Sua abordagem partiu de uma visão psicanalítica,
mas, ao incorporar métodos e modelos da etologia, da psicologia cognitiva e da teoria
comunicacional, diferenciou-se, tornando-se uma contribuição original.
A teoria do apego descreve como, a partir do relacionamento com figuras
significativas ao longo do desenvolvimento, é construído o modelo de apego, e este
pode ser inferido pela maneira como o indivíduo sente-se, comporta-se e interage com
pessoas significativas na sua vida atual. Uma importante conclusão a que Bowlby
(1989, p. 24) chega é que “podemos seguramente concluir que os bebês humanos,
como de outras espécies, são pré-programados para se desenvolverem de uma forma
socialmente cooperativa; se isto ocorre ou não, depende do modo como são tratados”.
Assim, três modelos básicos podem se desenvolver: o modelo seguro, o ansioso e o
evitativo. A teoria do apego considera a propensão para estabelecer laços emocionais
íntimos com indivíduos especiais como um componente básico da natureza humana, já
presente no neonato em forma germinal, e que continua na vida adulta e na velhice. O
modelo de apego não é visto como pronto e acabado, mas em constante processo de
elaboração, tanto para melhor quanto para pior, dependendo dos padrões de relação
experimentados.
Nas últimas décadas, muitos estudos têm buscado identificar os fatores
relacionados com a qualidade do relacionamento conjugal. E um dos mais promissores
e examinados fatores tem sido o padrão de apego individual (Feeney, 1999). Esses
estudos apoiam-se em uma relação de causalidade, na qual o modelo de apego,
construído nas relações com figuras de apego significativas, é o antecedente para a
formação do vínculo conjugal, emprestando estabilidade ou instabilidade e satisfação
ou insatisfação. Contudo, como ressaltam Mikulinger e cols. (2002), as evidências
produzidas por estes estudos não permitem a inferência de uma relação causal simples.
De fato, as pesquisas envolvendo expectativas e crenças e satisfação conjugal
encontraram que sujeitos com modelos seguros de apego tendem a acreditar no amor
romântico e que o sentimento de enamoramento inicial pode, em alguns casos, nunca
desaparecer (Hazan & Shaver, 1987). São também mais otimistas em relação ao casamento
182
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
e relações amorosas (Carnelley & Janoff-Bulman, 1992). Além disto, sujeitos com
modelos de apego seguro tendem a avaliar de modo mais positivo os diversos aspectos
das relações conjugais (Feeney & Noller, 1992).
Estudos sobre modelos de apego também têm consistemente revelado que pessoas
com diferentes estilos de modelos de apegos também diferem igualmente em relação à
manutenção de relações conjugais de longo termo e ao grau de vulnerabilidade destas
ao rompimento (Kirkipatrick & Davis, 1994). Pessoas seguras tendem a continuar seus
relacionamentos e a suportar melhor as dificuldades nos mesmos e, conseqüentemente,
exibem menores taxas de divórcio (Hill, Yong & North, 1994).
Contudo, estudos que procuram comparar estilos de medidas de apego globais
e orientações específicas na conjugalidade encontram uma relação significativa entre
relatos de apego seguro e de satisfação conjugal, mas, curiosamente, não demonstram
relação entre estilo de apego global e satisfação com o relacionamento atual (Cowan &
Cowan, 2001). Parece que o apego seguro em uma relação especifica é mais relevante
para a satisfação com esta do que o estilo global de apego dos membros do casal.
Esses resultados levaram diversos autores a propor uma articulação entre o
modelo sistêmico de relacionamento conjugal, e os aspectos intrapsíquicos do modelo
de apego (Milkulinger & cols., 2002). Tal diálogo parece promissor ao fornecer um
quadro de referência integrado, no qual aspectos de um modelo sistêmico não só são
propostos sobre uma base de evidências empíricas, mas, também, propiciam um nível
de articulação entre experiências individuais e interacionais. Articulações entre a teoria
de apego e psicoterapia de casal tornam-se, assim, possíveis. Os desdobramentos
desta empreitada poderão render importantes resultados nos anos vindouros.
Considerações finais
Na história do movimento da terapia de casal e de seus desdobramentos recentes,
alguns pontos ressaltam-se como significativos. Em primeiro lugar, tem ocorrido a
emergência de um renovado interesse do individual-no-casal, com estudos sobre a
importância do papel do campo emocional, e do cognitivo, não só no estabelecimento
de padrões atribuicionais, mas também na construção de campos de interpretação da
interação conjugal. Além disso, tem-se apontado para a importância da capacidade
dos cônjuges de influenciar o relacionamento do casal através de sua auto-regulação.
Esses pontos têm levado ao equivalente de uma nova introdução do si-mesmo no
sistema (Nichols, 1987).
Em segundo lugar, relacionado com a percepção da importância do individual no
sistema conjugal, tem ocorrido uma reconsideração sobre o impacto dos transtornos
psiquiátricos na vida do casal e do indivíduo. Modelos excessivamente simplistas,
que colocam, ora na dimensão psíquica individual, ora na dimensão unicamente
biológica, a origem e direção da evolução destes transtornos, têm-se revelado limitados.
Os modelos com maior sucesso no tratamento de transtornos psiquiátricos têm focado
a interação complexa de diversos fatores, tanto de ordem biológica, genética, ontológica,
quanto sócio-cultural e econômica. Tais modelos têm incluído, também, fatores e efeitos
de injunções sobre o indivíduo, suas relações e possibilidades de resposta, que geram
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
183
sua experiência psíquica única em sua especificidade. Tratamentos multidisciplinares
têm, em diversos estudos, alcançado resultados superiores a tratamento unidisciplinares
(Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005b; Gurman & Fraenkel, 2002).
Em terceiro lugar, as raízes históricas da terapia de casal revelam-se múltiplas,
apesar das pretensões de afiliação a uma única abordagem afirmadas por alguns autores
como Haley (1984). Assim, para uma avaliação criteriosa do seu desenvolvimento e
tendências atuais, é fundamental que se compreenda a multiplicidade de olhares e
investigações que moldaram tendências e revelaram potenciais, desde o movimento
preventivo, derivado do ingênuo aconselhamento matrimonial, até a contribuição das
visões psicanalíticas, humanistas ou derivadas da psicologia social, e não somente de
teorias puramente sistêmicas. O diálogo entre essas diferentes perspectivas tem-se
revelado fecundo. Podemos concordar com Gurman e Fraenkel (2002) quando afirmam
que “ironicamente, apesar de sua longa história de lutas, marginalização e desmobilização
profissional, a terapia de casal, no final do milênio, tem emergido como uma das mais
vibrantes forças no domínio da terapia de família e psicoterapia em geral.” (p. 248).
E, em quarto lugar, o desenvolvimento da terapia de casal e os estudos sobre sua
eficácia têm demonstrado que nenhum outro método de intervenção possui um efeito
clínico significativo em tantas e diferentes esferas da experiência humana. Assim,
torna-se, cada vez mais, necessário o exame crítico dos resultados destes estudos e
das diferentes direções que apontam.
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Recebido em maio de 2007
Aceito em novembro de 2007
Terezinha Féres-Carneiro: psicóloga; doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP); pós-doutora em Terapia de
Casal e Família (Universidade de Paris 5, Sorbonne); professora Titular do Departamento de Psicologia da
PUC-Rio.
Orestes Diniz Neto: psicólogo; doutor em Psicologia Clínica (PUC-Rio); professor do Departamento de
Psicologia da FAFICH/UFMG.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
187
Aletheia 27(1), p.188-197, jan./jun. 2008
Compreender a gestão a partir do cotidiano de trabalho
Leny Sato
Fábio de Oliveira
Resumo: O artigo tece considerações sobre a relação entre psicologia e gestão, apresentando a
contribuição que a leitura sobre o cotidiano oferece para compreender o trabalho, os processos
que o organizam e, conseqüentemente, a sua gestão. Ilustra suas considerações com a análise de
um episódio ocorrido em uma situação real de trabalho marcada pela assimetria de poder. Sugere
que a contribuição da psicologia para a gestão está em favorecer o reconhecimento da complexidade do cotidiano de trabalho e conclui que gerir o trabalho revela-se, não como simples
prescrição e obediência, mas como a produção de uma existência negociada entre os diferentes
atores envolvidos com a atividade de trabalho.
Palavras-chaves: psicologia social, psicologia do trabalho, cotidiano, gestão.
Understanding management from everyday work life
Abstract: This paper discusses the relation between psychology and management, showing
the contribution that the reading of the daily routine offers to understand the work, the organising
processes and, consequently its management. It illustrates the considerations made through the
analysis of an episode which happened in a real work situation based on assymetry of power.
It suggests that psychology’s contribution to people management rests in favouring the
acknowledgement of the complexity of everyday work life, and it conclude that managing work
reveals not only simple prescription or obedience, but also as the creation of an existence
negotiated between the different actors involved in the work activity.
Key words: Social psychology, work psychology, everyday life, management.
Introdução
A relação entre psicologia e gestão pode ser abordada a partir de várias
perspectivas: de sua história, de suas práticas, do papel da psicologia para o tema,
dentre muitas outras. O objetivo deste ensaio é compreender a gestão a partir do que
ocorre no cotidiano de trabalho. Ou seja, ao resgatar as abordagens do trabalho que
analisam o que os trabalhadores fazem em seu dia-a-dia, afirmaremos que há um
gerenciamento do trabalho por parte daquelas pessoas que, como muitas vezes
costuma-se supor, não atuariam como gestoras e tão somente executariam o que foi
planejado por outrem. Com isso, busca-se sugerir um outro lugar para a psicologia
nessa discussão.
Se lembrarmos qual foi a vertente preferencial adotada pela psicologia como
ciência, veremos que a leitura positivista foi importante no sentido de operar a separação
entre o espaço de construção do conhecimento e o espaço de sua “aplicação”1 . Isso
1
A esse respeito ver: Spink (1996).
188
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
aconteceu em diversas áreas da psicologia e não foi exceção para a área de psicologia
do trabalho e das organizações.
Essa separação entre espaço de construção de conhecimento e espaço de
aplicação forjou a convicção de que não seria a partir dos contextos de trabalho que os
conhecimentos deveriam ser construídos, pois lá eles deveriam tão somente ser
aplicados após sua verificação e validação em contextos controlados. Isso deixou de
lado, por um bom tempo, o que realmente ocorria no dia-a-dia de trabalho no interior
das organizações e dificultou o questionamento de práticas e de concepções moldadas
por essa tradição dualista.
Por esse caminho a psicologia também foi levada a construir diversas tecnologias
de gestão, que respondiam sobretudo aos problemas enfrentados pelos gestores no
exercício de suas atividades. Esse foi o caso, por exemplo, dos testes de avaliação
psicológica, os quais – como afirmou Sigmar Malvezzi (1995) em entrevista concedida
há mais de uma década – estão superados há muito tempo como meio para tomar a
decisão sobre a seleção de pessoas para o trabalho.2
Em O fator humano, Christophe Dejours afirma que sua motivação para escrever
esse livro foi o fato de profissionais de diferentes disciplinas (engenharia, administração,
medicina etc.), ao encontrarem-se no papel de gestores de organizações diversas,
sentirem-se obrigados a lançar mão de alguma noção sobre o que é o “fator humano”
para conseguirem lidar com as pessoas. Afirma Dejours (1997) que, dada essa
necessidade, esses profissionais acabam por adotar leituras de uma “psicologia do
senso comum” – ou, como afirmou Arakcy Martins Rodrigues (2005), criam uma
“psicologia home made”. Efetivamente, o humano não é um “fator” que possa ser
tratado a partir de controle de variáveis. Visando ofertar elementos para que os gestores
conheçam a complexidade do fenômeno humano, Dejours dedica-se, nesse livro, a
explicitar a complexa dinâmica processada no dia-a-dia de trabalho, tomando como
ponto de partida as noções de “trabalho prescrito” e de “trabalho real” formuladas
pela ergonomia de linha francesa, como em Daniellou, Laville e Teiger (1989).
Outro autor que também se tornou bastante conhecido entre nós é Jean-François
Chanlat, que aponta para a necessidade de nos voltarmos para as “dimensões
esquecidas” da relação indivíduo-organização e, dentre elas, aponta: a dimensão do
tempo no trabalho, o poder, o sofrimento, os usos e a interdição da fala no trabalho
(Chanlat, 1991).
Argumento no mesmo sentido foi apresentado por Ivar Oddone, psicólogo
italiano, no final da década de 60. Em seu livro Redécouvrir l’expérience ouvrière –
vers um autre psychologie du travail, Oddone e seus colegas Re e Briante (Oddone,
Re & Brainte, 1981) apresentam elementos para afirmar a existência de uma “psicologia
do trabalho escrita” e uma “psicologia do trabalho não escrita”. A segunda é a que diz
respeito ao universo do dia-a-dia de trabalho que toma por base o conhecimento
prático construído pelos trabalhadores e que foi ignorado pela psicologia por muito
tempo, não merecendo ser “escrita”.
2
Para uma crítica da psicometria, ver Patto (1997).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
189
Antes de Dejours, de Chanlat e de Oddone,3 os teóricos da escola sociotécnica
(Trist, 1976; Kelly, 1978,) haviam apresentado críticas às leituras sobre a relação homemtrabalho que eram orientadas pela abordagem tecnicista (taylorismo-fordismo) e pela
leitura humanista (escola das relações humanas). Sua análise de situações de trabalho
considerou o que, efetivamente, os trabalhadores faziam. E faziam muito mais do que
executar prescrições: avaliavam, interpretavam, discutiam e realizavam o trabalho
segundo outras regras e lógicas, enfim, os trabalhadores concretamente gerenciavam
seu trabalho através dessas ações.
Esses são alguns dos argumentos, provenientes de diversos países e motivados
por inquietações diferentes, que mostram que a psicologia pode contribuir para o
debate e para a reflexão acerca do gerenciamento das pessoas em situações de trabalho.
Como diz Spink (1982a, 1982b), a psicologia tem muito a contribuir para o tema, mas
não da forma como em boa parte de sua história aconteceu – isto é, oferecendo pretensas
tecnologias de avaliação, de controle e tomando decisões –, mas, sim, desvelando o
trabalho e os processos que o organizam tal qual se apresentam e se conformam para
e pelas pessoas que compõem o “grupo primário”, isto é, as próprias pessoas que
realizam as atividades.
Psicologia e cotidiano de trabalho
Encontremos então os elementos que podem nos ajudar a compreender as
entranhas do trabalho. A começar pela definição de seu locus, o cotidiano, assim
definido por Tedesco (1999, p.27): “o cotidiano é a esfera das atividades corriqueiras,
comezinhas, é constituído de pequenos episódios, dos fatos ‘sem prestígio’. São os
pequenos fazeres, as diversas tomadas de decisão, são as interações simbólicas e o
locus no qual as representações, os discursos, as práticas são apropriadas e
reproduzidas”.
Configurar a esfera do cotidiano como âmbito a partir do qual a psicologia pode
contribuir para os temas do trabalho e das organizações implica em tomar como ponto
de partida: “...o sujeito enquanto ser particular-individual, suas relações próximas,
regulares, intensivas, adesivas, fixas e mutáveis. Porém, não significa que os grandes
dispositivos sociais, as macroteorias (sistemas, classes organizadas...) não possam se
apresentar” (Tedesco, 1999, p. 29).
Com essa perspectiva, é a leitura da psicologia social que apresentamos para
contribuir para o tema da gestão e não, por exemplo, a psicologia diferencial, que
norteou a construção de instrumentos de avaliação psicológica nos primórdios da
psicologia industrial.
Voltar-se para a esfera do cotidiano é estar disposto a movimentar-se num amplo
universo de fenômenos e problemas. Considerando-se essa amplitude, foi necessário,
para os fins deste texto, tomar uma questão específica e situá-la em um contexto
também específico de trabalho. Assim, optamos por dedicar esta reflexão a contextos
3
E ainda poderia ser citado Le Guillant (Lima, 2006).
190
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
de trabalho nos quais a estrutura fosse hierarquizada em termos da amplitude do poder
formalmente definido para as pessoas que ocupam os diversos cargos ou desempenham
as diversas funções em uma empresa.
Ainda que modelos atuais de gestão do trabalho estejam influenciando mudanças
nas concepções sobre a gestão de recursos humanos, é fato que modelos de gestão
antigos e já extensamente criticados continuam a ser utilizados, inclusive em ocupações
relativamente novas, como é o caso do ramo de teleatendimento (ou telemarketing),
que claramente segue velhos preceitos do taylorismo-fordismo (Ramalho, Arruda, Sato
& Hamilton, no prelo).
Considerando-se situações dessa natureza, uma questão se apresenta: como as
pessoas lidam com contextos de trabalho em que a heterogestão é a realidade com a
qual devem conviver?
Definido assim o tipo de contexto de trabalho que pretendemos tomar como
objeto para dar continuidade a esta reflexão, devemos agora recorrer a formulações
que nos possibilitem situar o cotidiano de trabalho dentro desta condição específica:
a de clara assimetria de poder e de controle na tomada de decisões sobre o trabalho e
sobre o fazer das pessoas.
É Michel de Certeau (1994) que, em A invenção do cotidiano, oferece-nos
elementos que podem ser transpostos para os contextos de trabalho acima
caracterizados.
Focalizando o consumo de produtos culturais, Certeau (1994) delimita como
objeto o que denomina de “politização das práticas”. Reconhecendo a situação de
assimetria de poder entre os que produzem os bens culturais e aqueles que os
“consomem”, o autor se pergunta: o que ocorre, por exemplo, durante as horas que as
pessoas passam defronte a televisão? E nós poderíamos perguntar: o que os
trabalhadores fazem com aquilo que lhes é prescrito por aqueles que planejam o seu
trabalho? Suas respostas para interrogações como essas consideram tanto a
perspectiva estruturalista, oferecida, por exemplo, pela discussão de Michel Foucault
(1996) sobre o poder disciplinar, como a perspectiva construtivista, para a qual as
pessoas em interação interpretam e fazem usos diferentes do que lhes é ofertado, para
isso recorre, por exemplo, a Erving Goffman (1985) e Harold Garfinkel (1994).
Certeau (1994) sugere que o consumo de regras definidas de modo heterônomo
– e aqui podemos acrescentar aquelas relativas ao trabalho –, dá-se por meio da
astúcia, pois, ainda que consumidores sejam dominados, eles não são passivos e, para
melhor definir essa relação de consumo, afirma que as pessoas não “consomem”, mas
“fazem com”, enfatizando a construção de usos diferentes daqueles que os produtores
desses bens poderiam supor. Uma afirmação do autor que possibilita sintetizar essa
compreensão é a de que os consumidores “escapam ao poder sem deixá-lo”.
A politização das práticas envolve a possibilidade de utilização de táticas e do
que Certeau chama de a “arte do fraco”. Na verdade, é justamente essa engenhosidade
dos mais fracos para fazerem valer seus interesses que possibilita a politização das
práticas. Nas palavras de Certeau (1994), referindo-se às táticas de consumo: “As
táticas de consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão
desembocar em uma politização das práticas cotidianas” (p. 45).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
191
Um episódio envolvendo o discurso da qualidade
Os elementos acima apresentados sobre a “politização das práticas” são, a nosso
ver, suficientes para compreendermos muitos episódios ocorridos em situações reais
de trabalho, incluindo alguns que foram registrados por um dos autores em uma de
suas pesquisas (Sato, 1997). A referida pesquisa consistiu de um estudo etnográfico
realizado em uma empresa do ramo alimentício, do qual extrairemos um episódio a ser
discutido a seguir para ilustrar a discussão precedente.
O cenário amplo desse episódio é uma fábrica de sorvetes situada na cidade de
São Paulo que produz em grande escala, distribuindo, junto com mais duas outras
unidades, os produtos para todo o território nacional. A organização do processo de
trabalho é orientada segundo o modelo taylorista-fordista, diversas linhas de produção
contam com operadores de máquinas, embaladores e auxiliares de embalagem. O ritmo
de trabalho é intenso, as tarefas são repetitivas e monótonas, as lesões por esforços
repetitivos atingem número significativo de trabalhadores. De modo geral, os
trabalhadores mantêm-se fixos em uma linha de produção e a rotatividade entre postos
de trabalho não representa mudanças significativas em termos de aumento da latitude
de decisão ou de redução de monotonia e repetitividade.
Para interrogar as possibilidades de contribuição da psicologia para a gestão,
apresentamos um caso atravessado pelo largamente difundido discurso da qualidade.
O cenário específico do episódio analisado é o almoxarifado da fábrica. De lá são
despachados diversos tipos de embalagens para a produção (vasilhames, envelopes,
tampas, etiquetas etc.). Há uma sala e, de resto, uma ampla área na qual são depositados
diversos tipos de embalagens. Por situar-se no subsolo da fábrica, o ambiente é privado
de iluminação natural e é abafado no verão, sofre o barulho de motores e, a depender
do volume de produção, oferece pouco espaço para o trânsito de pessoas. Essas
características representam para Paulo4 , o almoxarife, e para seus colegas (que fazem a
preparação e a distribuição das embalagens) condições inadequadas de conforto,
higiene e segurança. Queixas sobre o desconforto são referidas pelos trabalhadores
em suas conversas de bastidores, mas, como diziam, “pra mudar alguma coisa é
difícil”. Comparado com o setor de fabricação propriamente dita, o almoxarifado é
bastante diferente. No setor de fabricação, as paredes são brancas, há iluminação
natural, é possível ver as árvores plantadas no pátio e de lá saem os produtos com a
marca da empresa. É ao setor de fabricação que os visitantes são levados. É ele que,
enfim, carrega a imagem da empresa.
Como em várias empresas, o discurso da qualidade norteava a implementação de
diversas atividades e a padronização de procedimentos. Houve uma ocasião em que a
fábrica se preparava para receber uma auditoria de qualidade. Nosso depoente foi chamado
a colaborar na implementação de algumas medidas que diziam respeito ao seu setor e viu
aí a oportunidade para alcançar o que era “difícil”. Junto ao supervisor de fábrica, Paulo
“sugeriu” que mudanças nas condições de conforto, higiene e segurança fossem
implementadas e reproduziu no relato de sua história o argumento utilizado na ocasião:
4
Pseudônimo de um dos entrevistados da pesquisa acima referida.
192
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eu disse pra ele [o supervisor] que ele podia melhorar a qualidade de algumas
coisas lá embaixo, que ficaria bom pra ele frente a auditoria de qualidade. Eu
achei que podiam pintar essas paredes de branco. Esse cinza aí deixa o lugar
mais escuro. Disse que deviam pôr um bebedouro desses que refrigera a água.
Esse aqui, no calor, quando a gente vai beber a água parece que tá tomando
uma sopa. Pedi pra eles riscarem umas marcas no chão pra definir o lugar pra
gente passar. Tem dia aí que tem tanta mercadoria que não dá pra andar. Uns
ventiladores dizem que vêm também...
Sua tática foi a de empregar o argumento da “qualidade” para alcançar interesses
seus e de seus colegas, aproveitando-se da circunstância que se apresentava: a
auditoria de qualidade. Paulo, astuciosamente, empregou termos de um discurso que
lhe permitia ser ouvido. Não apresentou “reivindicações” de melhoria para os
trabalhadores, mas, empregando eufemismos, ofereceu “sugestões” de melhoria,
considerando o interesse que, naquele momento, era relevante do ponto de vista
gerencial, afinal, o trabalho dos supervisores também era alvo da auditoria. “A gente
sabe que aqui na fábrica a gente tem que falar a mesma língua. Eles, agora, não
querem que a gente leve problema. Eles querem que a gente apresente solução!”. A
pesquisadora perguntou-lhe, posteriormente, se não era possível pedir outras coisas
que melhorassem o trabalho. A isso Paulo respondeu que, muito embora estivesse
vigorando a política de “portas abertas”, “café com o presidente”, de modo a facilitar
a aproximação e a apresentação de idéias e de pontos de vista dos operários para
pessoas alocadas em cargos de nível hierárquico superior, ele afirmou: “Eles falam
que é pra gente falar, mas eu não falo. Eu não sou louco! Eu sei que a corda só
arrebenta do lado mais fraco, no caso, o nosso”. Ao final, o setor de almoxarifado
conseguiu algumas melhorias nas condições e aguardavam-se outras.
Esse episódio é um exemplo dos processos que podem ser vivenciados no
cotidiano e ilustra como os trabalhadores “fazem coisas com” os discursos que recebem,
mesmo em relações de assimetria de poder. Eles reconhecem a presença do discurso da
qualidade, sabem que ele faz parte de uma política de gestão da produção e dos
trabalhadores, sabem que com ele têm que conviver. No entanto, convivem de modo
relativamente crítico e, quando as circunstâncias permitem, abrem-se possibilidades
para que esse discurso possa ser interpretado para fazer contemplar interesses que
poderiam mostrar-se conflitantes com os interesses da empresa. É claro que esses
processos são marcados pela ambigüidade (Sato, 1997).
A “arte do fraco”, como designa Certeau (1994), evidencia a politização das
práticas, quando se aproveitam as oportunidades que as circunstâncias oferecem,
dando-se golpes em território alheio, característicos dos movimentos táticos.
Considerações finais
Ao transformar trabalhadores em recursos – isto é, em “objetos” que podem ser
dispostos no espaço físico e na estrutura organizacional ao gosto daqueles que
planejam o trabalho –, a ideologia gerencial opera um distanciamento da realidade
vivida no trabalho e daquilo que as pessoas são. Os supostos “recursos” humanos,
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193
no entanto, não se comportam como o esperado pela gestão: sentem cansaço, adoecem,
sabotam, protestam, fazem greve, resistem às políticas de recursos humanos, enfim,
trazem para negociação outros interesses que não apenas os da produção. Já em
Taylor (1990) essa inadequação dos recursos humanos ao que deles era esperado
constituía-se como fonte de irritação com o que o “pai” da administração científica do
trabalho chamava de “preguiça” dos operários. Esses “pontos-cegos”, as variáveis
“mal comportadas” que não se encaixam na lógica mecânica da administração e da
engenharia, foram todos acomodados na categoria “fator humano”. Dessa
incompreensão do fenômeno humano derivam muitos dos problemas dos gestores
aos quais a psicologia aplicada tentou responder de modo instrumental e é justamente
por essa razão que a idéia de “fator humano” é inconsistente para compreender as
atividades humanas no trabalho.
Como ilustra situação de trabalho brevemente analisada acima, mesmo em situações
de heterogestão, os interesses, os pontos de vista e os limites subjetivos5 buscam
espaços de expressão, ainda que de forma tática e astuciosa. Os trabalhadores procuram
gerenciar o dia-a-dia de trabalho segundo a interpretação de regras, segundo suas
próprias avaliações e buscam resolver os problemas que se apresentam dia após dia.
As prescrições, as regras e os discursos são interpretados e não meramente executados
ou seguidos mecanicamente. Assim, problemas que habitualmente são atribuídos à
comunicação entre setores e pessoas (como a ineficiência da divulgação formal de
informações, por exemplo), podem ser lidos de outra forma: não se trataria da não
adequação do sistema de informação apenas, mas de diferenças de pontos de vista
(modos de interpretação) entre os diferentes atores.
Deve-se reconhecer, ainda, que há limites nessas formas astuciosas de lidar com
um ambiente sobre o qual se tem pouco poder e pequena margem de controle para
interferir. Também são reconhecidos os problemas de saúde dos trabalhadores, dentre
eles, o sofrimento, com diversas evidências nesse sentido (Dejours, 1984; Sato, 1993;
Seligmann-Silva, 1994; Spink, 1982a, 1982b), bem como a rotatividade e o absenteísmo,
outras duas decorrências notáveis dessa conformação da organização do processo de
trabalho.
A contribuição relevante da psicologia para a gestão é, portanto, não apenas o
que tem produzido ao debruçar-se sobre aquilo que é o objeto da gestão, mas o fato
tomar a própria gestão como parte do acontecer do trabalho. Essa contribuição
implica justamente em mostrar, para além da ideologia gerencial dos “recursos
humanos” e do “fator humano”, o fenômeno do trabalho em sua complexidade, não
fazendo do trabalho, nas palavras de Spink (1996), uma “fonte de problemas”, mas o
encarando como “um fenômeno que precisa ser compreendido e problematizado” (p.
176). Não se trata, portanto, de instrumentalizar o gestor a resolver as situações que
se apresentam a ele como problema, mas favorecer o reconhecimento da complexidade
do dia-a-dia de trabalho, para justamente reposicionar a discussão sobre a dimensão
intersubjetiva do trabalho.
5
Sobre os limites subjetivos ver Sato (1993).
194
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Ao recusar-se a ser uma disciplina aplicada e fornecedora de tecnologias, a
psicologia social do trabalho problematiza a própria idéia de gestão, configurando os
gestores e os psicólogos das empresas como atores que fazem parte do fenômeno
estudado.
Tampouco são os gestores os destinatários exclusivos desse conhecimento. Ao
contrário, ele interessa também aos trabalhadores, na medida em que busca elucidar a
gestão como um processo interativo e simbólico (Sato, 2002a, 2002b, 2002c) e como um
dos vários processos que compõem a trama intersubjetiva do trabalho da qual os
trabalhadores também são protagonistas.
Nesse aspecto, a contribuição da psicologia para a gestão – ao tomar o cotidiano
de trabalho como objeto de sua análise, na perspectiva de uma psicologia social crítica
– é chamar a atenção para o fato de que a gestão do trabalho não é feita apenas por
aqueles que são reconhecidos como gestores (Schwartz, 2004; Spink, 1996) e para a
constatação de que há, afinal, várias “gestões” que negociam entre si (Borges, 2004).
O que, na situação de trabalho analisada acima, aparece no modo tático como o depoente
lança mão dos recursos que tem (a “arte do fraco”) para conseguir mudanças de
interesse do grupo de trabalhadores.
O que a análise do cotidiano de trabalho revela é que a gestão é em si mesma um
processo interativo e não apenas a aplicação de prescrições sobre outros. Na verdade,
se considerarmos aquilo que as pesquisas em psicologia social do trabalho têm
apontado, gerir o trabalho revela-se, não como simples prescrição e obediência, mas
como a produção de uma existência negociada.
Ao fazer isso, desmascaram-se as falsas promessas das tecnologias de gestão.
Elas podem e continuarão a ser usadas, mas ficam claros aqui os seus limites: as
estratégias de controle têm continuamente como contraponto a astúcia daqueles que
são seu objeto. Essa “politização das práticas” a que se refere Certeau (1994) esclarecese no exemplo acima protagonizado pelo almoxarife Paulo.
Uma psicologia social que se dedica a estudar o trabalho deve, afinal, ser um
tanto subversiva: ao estudar a gestão, cabe-lhe revelar os mecanismos do poder; ao
estudar os trabalhadores, mostrar seu papel ativo no trabalho e suas formas de
resistência.
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Recebido em junho de 2007
Aceito em novembro de 2007
Leny Sato: livre docente de Psicologia pela Universidade de São Paulo; docente do Departamento de
Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Fábio de Oliveira: doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; docente
do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Psicólogo do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo.
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
197
Aletheia 27(1), p.198-209, jan./jun. 2008
A seca enquanto um hazard e um desastre:
uma revisão teórica
Eveline Favero
Vivien Diesel
Resumo: Pretende-se situar através da revisão da literatura atual o fenômeno seca na discussão
mais ampla sobre riscos, hazards e desastres, salientando sua relevância na perspectiva dos
teóricos da mudança climática. A partir da classificação do fenômeno como um hazard e um
desastre, apresentam-se suas características fundamentais do ponto de vista físico, diferenciando-o de escassez hídrica. A guisa de conclusão, faz-se indicações de possíveis desenvolvimentos teórico-práticos objetivando contribuir com a temática, a qual transpõe os aspectos da
descrição física, uma vez se encontra diretamente relacionada ao fator humano. Desse modo, o
desastre seca é do interesse também do campo da Psicologia, especialmente na área de atuação
em desastres.
Palavras-chave: seca, hazards, desastres.
The drought while a hazard and a disaster: a theoretical review
Abstract: We intend to place through the review of the current literature the drought phenomenon
in the wide discussion toward the risks, hazards and disasters, standing out their importance on
the perspective of the climate changes theoretical. From the phenomena classification like
hazards and disasters, we show their fundamental characteristics on the physical point of view,
differentiating them from the water shortage. As a conclusion, there are indications of possible
theoretical-practical developments being aimed to contribute to this subject development that
leads to aspects of a physical description, being directly related to the human factor. This way,
the drought disaster is of the Psychology camp interest too especially in areas where these
disasters happen.
Key words: drought, hazards, disasters.
Introdução
Atualmente, tanto no âmbito social quanto científico, há uma crescente
preocupação em relação aos impactos negativos dos desastres “naturais”1 e, dentre
eles, a seca. Estudos atuais projetam cenários de maior ocorrência de extremos climáticos
e de eventos intensos como secas, veranicos, vendavais, tempestades severas,
1
De modo a diferenciar quanto à sua origem, pode-se denominar como desastres naturais aqueles resultantes
da ocorrência de hazards, ou seja, eventos físicos perigosos (fenômenos naturais como secas, tornados,
furacões, etc.) em áreas de interesse humano. No entanto, nem todos os desastres são naturais. Muitos deles
são originados pela ação humana no ambiente, como os desastres tecnológicos, por exemplo, que ao afetar o
ecossistema (plantas, animais incluindo os humanos, e demais recursos naturais) são denominados de
desastres ambientais. Vale lembrar que, mesmo quando considerados naturais, muitos desastres só chegam
à proporção de uma catástrofe devido à intervenção humana inadequada no ambiente, o que torna este mais
vulnerável a eventos danosos.
198
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
inundações, etc., para as próximas décadas. De acordo com o documento do Núcleo de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE, 2005), a base destas
projeções encontra-se na mudança do clima que tem se manifestado nas últimas décadas
por meio de um destacado aquecimento global2 .
O mesmo documento refere que os países em desenvolvimento como o Brasil
encontram-se mais vulneráveis à mudança do clima, em função de terem historicamente
menor capacidade de responder a sua variabilidade natural:
O Brasil é, indubitavelmente, um dos países que podem ser duramente atingidos
pelos efeitos adversos das mudanças climáticas futuras, já que tem uma economia
fortemente dependente de recursos naturais diretamente ligados ao clima na
agricultura e na geração de energia hidroelétrica. Também, a variabilidade
climática afeta vastos setores das populações de menor renda como os habitantes
do semi-árido nordestino ou as populações vivendo em área de risco de
deslizamentos em encostas, enxurradas e inundações nos grandes centros
urbanos. (NAE, 2005, p. 18)
No entanto, é importante salientar as ponderações que constam no Guia de
Informações sobre Mudanças Climáticas (Mudanças Climáticas, 2002), ou seja, de que
ainda não é possível quantificar com precisão os prováveis impactos futuros da mudança
climática sobre qualquer sistema particular em tal e tal lugar. Isso se deve ao fato de que
as projeções de mudança do clima em âmbito regional são incertas e o conhecimento dos
atuais processos naturais e socioeconômicos são geralmente limitados, além de que
muitos sistemas estão sujeitos a diferentes pressões interdependentes.
Porém, mesmo diante de um cenário de incertezas, autores como Yamin, Rahman
e Huq (2005) referem que algumas conclusões preliminares recomendam um alto nível
de atenção política para a mudança climática. Os autores entendem que tal mudança
configura-se numa séria ameaça em curso para o bem-estar global e para o
desenvolvimento, e que, especialmente, sobrecarrega o fardo daqueles que já são
pobres e vulneráveis.
Em face dessas considerações, o presente artigo propõe-se, inicialmente, a situar a
temática da seca no horizonte amplo de discussão teórica sobre riscos, hazards e desastres.
Discute-se, então, a relevância da temática para o campo da Psicologia, uma vez que, a
questão dos desastres envolve necessariamente a relação do homem com seu ambiente.
Riscos, hazards e desastres
A temática dos riscos, na literatura sobre desenvolvimento social, é abordada em
diferentes trabalhos do Banco Mundial. Autores como Heitzmann, Canagarajah e Siegel
2
A temperatura média global do planeta elevou-se 0,6 a 0,7 graus Celsius (ºC) nos últimos 100 anos, com
acentuada elevação desde a década 1960-70. Há um razoável consenso de que o aquecimento global observado
nos últimos 100 anos é provavelmente explicado principalmente pelas emissões antropogênicas dos Gases de
Efeito Estufa (GEE) e não por eventual variabilidade natural do clima (Houghton e cols., in NAE, 2005).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
199
(2002), Holzmann, Sherburne-Bens e Tesliuc (2003) e Hoogeveen, Tesliuc e Vakis (2005),
por exemplo, em seus trabalhos partem do reconhecimento de que existe uma série de
eventos de origem diversa, que podem ameaçar indivíduos, grupos ou até sociedades
inteiras. Consideram que tais fatores, denominados riscos, necessitam ser mais bem
conhecidos para que medidas apropriadas sejam tomadas, a fim de evitar a sua
ocorrência, reduzir ou, ao menos, amenizar seus impactos sociais negativos.
Tais autores mencionam a existência de diferentes tipos de riscos: riscos naturais,
riscos à saúde, riscos do ciclo-vital, riscos sociais, riscos econômicos, riscos políticos
e riscos ambientais, classificando a seca enquanto um risco natural.
Para Hoogeveen e cols. (2005), os riscos diferem quanto a sua origem, podendo
ser naturais (como inundações) ou resultantes da atividade humana (como os conflitos).
Podem afetar indivíduos de maneira isolada ou não, nos âmbitos regional, nacional ou
até internacionalmente, além de apresentarem-se com freqüência variável. Diferem ainda
por seus impactos no bem-estar, podendo atingir dimensões catastróficas. Além disso,
nem sempre é possível identificar qual é o evento de risco principal presente em
determinado contexto, pois eles costumam acontecer concomitantemente.
O fenômeno seca enquanto risco natural é tradicionalmente estudado pela
geografia. No entanto, atualmente vem ganhando a atenção crescente das ciências
sociais bem como de outras áreas do conhecimento devido à relevância da temática.
De acordo com Marandola e Hogan (2004), para os geógrafos, “risco” refere-se
a uma situação que está no futuro e que traz incerteza e insegurança. Assim, há regiões
de risco ou regiões em risco. Já, hazard é um evento natural socialmente danoso, o
fenômeno em si, que surge do contínuo processo de ajustamento entre o sistema
humano e eventos naturais. Então, estar em risco é estar suscetível à ocorrência de um
hazard, de um evento com potencial para danos sociais (Marandola & Hogan, 2004).
Embora a Teoria dos Hazards, desenvolvida do ponto de vista geográfico, enfatize
seus aspectos naturais, o modelo de análise sistêmico derivado da Ecologia Humana,
reconhece que os hazards são elementos do ambiente físico, prejudiciais para o homem:
“Um hazard constitui uma ameaça para a sociedade. Pode-se dizer que um hazard
existe somente porque as atividades humanas se encontram expostas a forças naturais.
Portanto, um hazard é composto de uma dimensão natural e uma dimensão social”
(Mattedi & Butzke, 2001, p. 09).
Para Mattedi e Butzke (2001), os hazards, na perspectiva física e humana, podem
ser definidos como uma complexa rede de fatores físicos que interagem com a realidade
cultural, política e econômica da sociedade. Eles têm sido classificados e ordenados
de acordo com processos desencadeadores: meteorológicos, hidrológicos e
geológicos. Porém, mesmo agrupados, possuem pouca similaridade entre si. Por
exemplo, seca e inundação são da mesma categoria (hazards hidrológicos), no entanto,
suas origens, formas de manifestação e impactos são bastante diferenciados.
Os estudos dos hazards nos remetem à temática dos desastres. A Teoria dos
Desastres enfatiza especialmente os aspectos sociais, no que diz respeito aos efeitos
da ocorrência de um hazard. De acordo com Mattedi e Butzke (2001), por desastre
entende-se a realização de um hazard, ou seja, um desastre é o acontecimento de um
evento danoso, o qual pode ser súbito, inesperado ou extraordinário. Em termos
200
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
sociológicos, o termo reporta-se a um acontecimento, ou a uma série de acontecimentos,
que alteram o modo de funcionamento rotineiro de uma sociedade.3 No que diz respeito
aos aspectos teóricos “o estudo dos hazards refere-se à análise dos efeitos potenciais
provocados pela interação de fatores físicos e humanos, enquanto a Teoria dos
Desastres resulta da análise dos efeitos reais provocados pela eclosão do fenômeno”
(Mattedi & Butzke, 2001, p. 15).
A importância dos estudos dos desastres não está apenas em sua dimensão
natural, mas principalmente por suas conseqüências num contexto social específico,
uma vez que, quando um mesmo fenômeno ocorre em contextos sociais diferenciados
acaba por ocasionar também diferentes resultados (catastróficos ou não). Assim, “um
desastre exprime, invariavelmente, a ‘materialização da vulnerabilidade social’ em
desastres, por isso o agente desastre não pode ser considerado como um fator externo
ou independente do contexto social” (Pelanda, citado por Mattedi & Butzke, 2001, p.
13). Outros autores também enfatizam este aspecto:
O aumento do número de desastres nos últimos anos, face a condições geofísicas
relativamente estáveis, indica que o aumento da vulnerabilidade está intimamente
conectado com o crescente processo de subdesenvolvimento e de marginalização
social: desastre é visto como resultado da interface de uma população
marginalizada e um ambiente físico deteriorado. (Susman & cols., citados por
Mattedi & Butzke, 2001, p. 14)
Vale salientar que, um evento geofísico extremo quando não afeta atividades
humanas, não constitui, de acordo com Mattedi e Butzke (2001), um hazard. O que o
caracteriza é, especialmente, seu potencial para causar danos no contexto social. Sendo
assim, as teorias dos hazards e desastres buscam explicar a relação de interdependência
que se estabelece quando um evento físico potencialmente destrutivo (dimensão
natural) atinge um contexto social vulnerável (dimensão social).
A seca enquanto um hazard e um desastre
Primeiramente cabe diferenciar seca e escassez hídrica. Esta última pode ser
ocasionada pela seca, no entanto, ao contrário desta, pode ser também artificialmente
criada. A escassez é, segundo Pereira, Cordery e Iacovides (2002), um desequilíbrio
temporário da oferta de água, que pode ser devido à sobre-exploração de águas
profundas e superficiais, à degradação da qualidade da água associada, freqüentemente,
com o inadequado uso do solo e com o comprometimento da capacidade de
armazenamento de água do ecossistema.
A escassez hídrica é comumente definida como uma situação na qual a
disponibilidade de água em um país ou em uma região está abaixo de 1000 m3 por
pessoa por ano (Pereira & cols., 2002). No entanto, segundo os autores, muitas regiões
3
O desastre como fator de alteração dos ritos de uma sociedade é abordado em trabalho recente de Thornburg,
Knottnerus e Webb (2007).
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201
no mundo experimentam escassez muito mais severa, vivendo com menos de 500 m3
por pessoa por ano. Porém, uma disponibilidade de 2000 m3 por pessoa por ano já pode
indicar que uma região está com estresse hídrico, desde que sob essas condições as
populações enfrentem grandes problemas quando uma seca ocorre (escassez natural)
ou quando a escassez é artificialmente produzida (desertificação e problemas de gestão
de recursos hídricos). Ainda, a escassez não se refere apenas à quantidade, mas também
a indisponibilidade devida à qualidade da água.
A seca, por sua vez, é um desequilíbrio temporário na disponibilidade de água.
Porém, o desequilíbrio causado pela seca é sempre natural, embora a ação do homem
possa intensificá-lo.
Conceitualmente, a seca,
[...] consiste numa persistente precipitação abaixo da média, com freqüência,
duração e severidade incertas, devido à imprevisibilidade ou dificuldade de se
prever sua ocorrência, resultando na diminuição da disponibilidade de água e
na redução da capacidade de armazenamento do ecossistema. (Pereira & cols.,
2002, p. 06)
Pereira e cols. (2002) reconhecem que é difícil adotar um conceito que descreva
bem o fenômeno seca. Alguns autores preferem adotar uma definição operacional para
distinguir entre secas hidrológicas, agrícolas e meteorológicas, o qual focaliza,
usualmente, num indicador variável de interesse primário, que pode ser a precipitação
(seca meteorológica), umidade do solo (seca agrícola), desempenho do fluxo dos rios
ou níveis de água do solo (seca hidrológica e seca da água do solo). Assim, é comum
que os agrônomos usem a palavra seca para definir uma condição de estresse hídrico
que afeta o crescimento e o rendimento de cultivos agrícolas.
Outras características deste hazard são importantes de serem salientadas.
Segundo Pereira e cols. (2002), as secas caracterizam-se por seu início lento e são
usualmente reconhecidas somente quando estão totalmente estabelecidas. Costumam
ser de longa duração e afetar grandes áreas. Tais características geralmente têm
implicações importantes, pois dificultam a implantação de estratégias de minimização
de seus impactos.
A seca é um hazard porque é um evento natural socialmente danoso, de ocorrência
imprevisível quanto ao seu início e seu término bem como quanto a sua severidade e
de recorrência reconhecida. Ela é considerada um desastre porque corresponde à
falência no regime de precipitação, causando perturbação no abastecimento do
ecossistema agrícola e natural, bem como em outras atividades humanas (Pereira &
cols., 2002).
Os impactos sociais da seca podem ser diversos e podem lhe dar a proporção de
um desastre, além de que seu início lento e final indefinido tornam difícil selecionar
medidas defensivas e ações reparadoras. Pereira e cols. (2002) colocam que quando
uma enchente ocorre muitos sinais são óbvios e medidas oportunas podem ser tomadas,
usualmente com o suporte da opinião pública, pois o desastre é facilmente reconhecido
por todos. No caso de uma seca os elementos do desastre tornam-se evidentes muito
202
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
tarde, somente quando o fenômeno já está instalado. Além disso, tais impactos
perduram por um longo tempo após a seca ter terminado, particularmente quando há
despreparo para lidar com ela, podendo levar o desastre a tomar a dimensão de uma
catástrofe (calamidade).
Desse modo, um melhor conhecimento deste hazard hidrológico torna-se
essencial para o desenvolvimento de ferramentas que possam prever seu início e fim e
planejar, de maneira oportuna e apropriada, medidas para se lidar com ele.
A psicologia e o estudo dos desastres
O estudo dos desastres pela psicologia está atualmente situado nos campos da
Psicologia Ambiental e, mais especificamente, da Psicologia das Emergências e dos
Desastres.
A Psicologia Ambiental enquanto disciplina, vêm buscando enfatizar teoricamente
a influência do ambiente nas pessoas, bem como a influência destas no ambiente, seja
este último construído ou natural (Bell, Greene, Fisher & Baum, 2001). Desse modo, no
que tange aos desastres a relação homem x ambiente é de fundamental importância,
uma vez que existe entre ambos uma relação de reciprocidade.
A Psicologia dos Desastres, por sua vez, envolve as diferentes esferas de atuação
do psicólogo nas situações de ocorrência de emergências e desastres, no estudo dos
seus impactos psicológicos nos indivíduos e grupos, bem como, no trabalho de
prevenção a desastres e no auxílio às vítimas de modo a reconstruir suas vidas no pósdesastre. Enquanto área do conhecimento, embora recente no Brasil, contempla uma
ampla bagagem de investigações e construtos teóricos que datam desde princípios do
século XX, e que evoluíram de estudos descritivos e individuais para trabalhos de
corte sociológico e estatisticamente significativos, até propostas de técnicas
específicas de intervenção (Álamo, 2007).
Embora possam ser encontrados na literatura trabalhos na área dos desastres
datando do início do século XX, foi nos anos 50 que surgiram os primeiros estudos de
enfoque sociológico e psicossocial. Tais pesquisas têm tratado no âmbito individual e
social, das conseqüências psicológicas relativas às calamidades, demonstrando que
os desastres podem causar estresse emocional, dentre outras conseqüências negativas
na saúde mental dos afetados (Coêlho, 1997). Para Vitaliano e cols., citados por Coelho
(1997), os desastres deveriam ser interpretados como estressores coletivos devido ao
número de envolvidos nas conseqüências dos seus impactos.4
Por desastre, na perspectiva psicológica, compreende-se “um transtorno grave,
ecológico e psicológico, que excede a capacidade da comunidade afetada para enfrentar
o evento” (World Health Organization, WHO, citada por Coêlho, 1997, p. 64). Estas
considerações indicam que ao se avaliar a exposição a estressores como os desastres,
4
É importante mencionar que autores como Bell e cols. (2001) colocam que as “conseqüências” de médio e
longo prazo de um desastre nem sempre são negativas na medida em que sua ocorrência pode determinar o
aumento da solidariedade social, por exemplo. Entende-se que tais observações tornam o estudo dos desastres especialmente instigante.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
203
deve-se levar em conta tanto o trauma individual baseado em perdas pessoais, quanto
a extensão em que uma comunidade foi destruída ou afetada.
Embora, prevaleça de um modo geral no estudo dos desastres a sua dimensão
física, ou seja, os impactos sociais decorrentes da magnitude de um evento, teóricos
como Bell e cols. (2001) destacam que as conseqüências de um desastre, especialmente
as psicológicas, estão estreitamente relacionadas à percepção dos indivíduos e grupos,
relativa ao evento em si. Isso não significa que o estresse gerado por um desastre não
esteja relacionado às restrições impostas por este, bem como às dificuldades de
convivência e adaptação ao problema, mas que para que o processo de estresse se
inicie é necessário ocorrer uma percepção cognitiva de que há uma ameaça, sendo esta
suficiente para desencadear uma resposta de estresse mesmo que o evento físico
nunca aconteça (Bell & cols., 2001). Assim, um dado evento ambiental pode ou não ser
um estressor em todas as circunstâncias, e em iguais circunstâncias ele pode ser um
estressor para um determinado indivíduo enquanto para outros não.
Para Bell e cols. (2001), existem três formas de avaliar cognitivamente um desastre,
as quais determinam o modo como indivíduos e grupos reagem a ele: a avaliação pode
ter seu foco nas perdas - em geral perda rápida de recursos está relacionada com
estresse traumático, de acordo com Hobfoll, citado por Bell e cols. (2001), -, ou dizer
respeito a perigos futuros (a disponibilidade para antecipar dificuldades potenciais
permite prevenir sua ocorrência, mas pode causar uma experiência antecipatória de
estresse), ou ainda a avaliação poderá considerar o estressor como um desafio, o que
levará o indivíduo a manter o foco na superação deste.
Desse modo, a forma de perceber um fenômeno e reagir a ele depende de fatores
psicológicos individuais (recursos intelectuais, motivações, experiências prévias), de
aspectos cognitivos relativos ao fenômeno em si (percepção sobre a possibilidade de
controle sobre o estímulo, previsibilidade, intervalo de tempo até a manifestação do
impacto), de variáveis ambientais e sociais, entre outras (Bell & cols., 2001).
Destaca-se ainda que a percepção de possibilidade de controle é um importante
moderador do estresse, possibilitando um sentimento de capacidade de reagir
adequadamente, prever eventos e determinar o que irá ocorrer. A informação prévia
sobre o evento, por sua vez, aumenta a percepção de controle deste e reduz a avaliação
de ameaça feita quando o estressor é experimentado (Bell & cols., 2001).
No que diz respeito às respostas psicossociais frente aos desastres, Coêlho
(1997) coloca que algumas investigações têm mostrado que uma multiplicidade de
variáveis estão envolvidas no êxito com o qual os indivíduos e grupos enfrentam os
estressores resultantes dos desastres, tais como a exposição a estressores, a
vulnerabilidade e os recursos psicológicos e sociais que possuem.
Variáveis como as citadas anteriormente são apresentadas no modelo psicoepidemiológico descrito por Vitaliano e cols., citados por Coelho (1997), no qual o
estresse é definido como uma resposta biopsicossocial relacionada à exposição a
estressores, assim como a fatores moderadores. Quanto a estes últimos, na exposição
aos desastres dois grupos de variáveis têm sido identificados: vulnerabilidade, ou
seja, características individuais e sociais que fazem os indivíduos mais susceptíveis a
incidentes estressantes e ao estresse, (como, por exemplo, herança genética e pertencer
204
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
a algum grupo de risco) e recursos, tais como, suporte social e coping5 , de acordo com
Coêlho (1997). A autora destaca que o suporte social, do ponto de vista de diferentes
teóricos, pode modificar a relação entre estressores e estresse. Se ele for adequado,
possui propriedades preventivas, enquanto que se ele for inadequado, pode ser um
fator de risco para enfermidades. Os estudos têm evidenciado, também, que as redes
de apoio social podem funcionar como fonte de informação e mediação de modo a
facilitar o processo de gerenciar desastres, já que, de acordo com Freitas e Montero
(2003) nelas se produz o intercâmbio contínuo de idéias, serviços e modos de fazer, de
maneira que as pessoas encontram nelas apoio e refúgio além de recursos, o que pode
ser de grande relevância no enfrentamento de situações extremas como desastres.
Já, os recursos psicológicos referem-se aos estilos psicológicos e cognitivos
individuais e às respostas de comportamento. O coping é considerado entre os
investigadores como um grupo de ações usadas para lidar com o estresse, que inclui
tanto a avaliação da situação, quanto a avaliação dos recursos disponíveis para lidar
com ela. A nova tendência das investigações é de analisar coping como um processo
que se modifica de situação para situação, muito mais do que como uma característica
estática (Coêlho, 1997).
No Brasil, estudos como os de Coêlho, Adair e Mocellin (2004), além de Favero
(2006) e Krum (2007) evidenciam que indivíduos e grupos afetados por desastres
naturais acabam por desenvolver algum tipo de resposta psicológica. O primeiro,
realizado no Estado do Paraíba, encontrou níveis significativamente mais elevados de
ansiedade e estresse emocional nos indivíduos residentes na área da seca em
comparação com os que habitam em área não afetada pelo desastre (Coêlho & cols.,
2004). No entanto, não houve incidência de estresse pós-traumático na população
afetada pela seca, como os autores já presumiam.
O segundo estudo, realizado na zona rural do município de Frederico WestphalenRS, identificou a vivência de sentimentos de desproteção, impotência e insegurança
pelas famílias afetadas pelas freqüentes secas, originados pelo despreparo e a falta de
recursos para lidar com as inúmeras perdas ocasionadas pelo fenômeno (Favero, 2006).
É importante salientar que as famílias estudadas consideraram a ajuda de familiares,
vizinhos e do próprio Estado como um importante fator de amenização para os impactos
da seca, ou seja, o suporte social é evidenciado como um aspecto favorável no
enfrentamento do desastre.
Na mesma direção, o terceiro estudo, relativo às respostas emocionais de
indivíduos de uma comunidade gaúcha afetados por um tornado, resultou no
estabelecimento de categorias de coping que incluíram busca por suporte social,
resolução de problemas, evitação, apoio na religião e busca por significado diante da
experiência do evento, fatores estes considerados fundamentais na amenização do
sofrimento vivenciado pelos sobreviventes do desastre (Krum, 2007).
5
Autores como Antoniazi, Dell’Aglio e Bandeira (1998) e Yunes (2003) colocam que a palavra coping é geralmente
utilizada no original em inglês para referir-se a esforços cognitivos e comportamentais para lidar com demandas
específicas de situações adversas e avaliadas como sobrecarregando ou excedendo os recursos pessoais. A
palavra é geralmente mantida em seu original em inglês, pelo fato de não ser encontrada outra que ofereça o
mesmo sentido em português. Coping pode significar “lidar com”, “enfrentar” ou “adaptar-se a”.
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205
Somando-se aos estudos mencionados, encontram-se na literatura sobre desastres
pesquisas relativas a desastres ambientais induzidos pela ação humana, como os
desastres tecnológicos, por exemplo. Dentre eles, destaca-se um estudo de caso de
vazamento de óleo que trouxe conseqüências significativas e de longa duração a
nativos e pescadores comerciais do Alasca, ao que Gill (2007) denominou de “impactos
sociais de natureza crônica” (p. 01). Tal denominação se deve ao fato de que dezessete
anos após o desastre que ocorreu em 1989, ainda persistiam danos ecológicos
combinados com impactos crônicos de cunho cultural, psicológico, social e econômico
e que continuavam a afetar a comunidade que dependia diretamente dos recursos
naturais danificados pelo vazamento de óleo, ou seja, da atividade de pesca. Dentre as
conseqüências mais significativas do desastre estão os altos níveis de estresse nos
indivíduos afetados e a fragmentação social da comunidade quando comparados a
outros grupos que habitam a mesma região e que não tiveram suas atividades afetadas
pelo vazamento. Tais resultados se devem especialmente ao declínio das condições
econômicas das famílias pela perda de recursos e a demora do Estado em liberar dinheiro
para indenizar a vítima (Gill, 2007).
Embora, estudos revelem que a ocorrência de um desastre de qualquer natureza
e em qualquer situação seja suficientemente significativa para gerar instabilidade na
vida das pessoas, pelo fato de perturbar diretamente suas atividades cotidianas
(Thornburg & cols., 2007), é comum que indivíduos ou comunidades afetados declaremse despreparados frente à ocorrência de um evento dessa magnitude, de modo que
suas conseqüências acabam sendo geralmente graves a ponto de se tornarem crônicas,
vindo a afetar diferentes esferas da vida das famílias como a psicológica, a social, a
econômica e a cultural, por exemplo.
Cabe observar que muitas das pesquisas relativas às reações psicológicas aos
desastres referem-se às situações de grande impacto social. No que diz respeito à
seca, por suas características de lentidão ao se instalar, as respostas psicológicas dos
indivíduos a ela, bem como as atitudes sociais, acabam por se diferenciar em relação
aos outros desastres. Nesse sentido, necessita-se ainda de estudos que possam
demarcar tais diferenciações, de modo que as intervenções no campo da psicologia em
situações de desastres possam também se dar de modo diferenciado.
Para compreender melhor a situação dos indivíduos expostos a seca, faz-se
necessário considerar que o grau de estresse efetivamente vivenciado e sua persistência
resultará não apenas do evento em si, mas de uma combinação de fatores que inclui a
vida pessoal e social, bem como o grau de dependência das condições climáticas para
o desenvolvimento de suas atividades econômicas e rotineiras. Bosch (2004) salienta
que a agricultura (natural), por si só, é uma ocupação estressante devido a fatores
como a dificuldade de controlar as condições climáticas, podendo ainda o seu potencial
estressor ser elevado pelas condições de seca.
Em um estudo realizado no Nebraska (EUA) por Bosch (2004) ficou constatado
que durante períodos de secas prolongadas ocorrem mudanças na relação entre os
casais de agricultores, especialmente no que diz respeito à comunicação. O homem
passa a conversar menos com sua esposa e surgem sintomas de estresse e depressão
principalmente naquele indivíduo que é o chefe da família. As secas forçam as famílias
206
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a tomarem decisões como abandonar plantações, migrar ou fazer empréstimos. As
gerações mais novas têm mais dificuldades financeiras para enfrentar períodos
prolongados de seca, o que faz com que comumente migrem para buscar trabalho nas
grandes cidades.
Tais dados ilustram que os desastres como a seca podem afetar a condição
psicológica dos agricultores, trazendo conseqüências em sua vida pessoal e social, o
que justifica que a psicologia venha a dedicar-se ao estudo não apenas daqueles
desastres de grande impacto social, mas também daqueles que se instalam lenta e
silenciosamente como a seca, e que nem por isso são menos devastadores.
Considerações finais
A partir do que foi exposto, ao se tratar da temática da seca, adentra-se
necessariamente na discussão sobre riscos, hazards e desastres. Nesse contexto, são
encontrados estudos que descrevem tanto as características físicas dos riscos naturais,
bem como enfatizam o potencial danoso dos hazards ao interagirem com o ambiente
social, como a perspectiva dos geógrafos. Somando-se a eles, a Teorias dos Desastres,
desenvolvida do ponto de vista sociológico, trata dos impactos reais da ocorrência de
um hazard em determinado contexto social, sendo que tais impactos sociais não
dependem apenas das características físicas do fenômeno (como intensidade, duração
e freqüência), mas também da vulnerabilidade do contexto social em que eles ocorrem.
Já, outro conjunto de estudos chama a atenção para os fatores psicológicos que
se encontram envolvidos nos desastres, o que faz desta temática também de interesse
para o campo da psicologia.
Apesar da importância da temática da seca para a psicologia, uma vez que esta
pode infligir sofrimento psicológico nos indivíduos e grupos expostos ao fenômeno,
especialmente os mais vulneráveis, ainda não se encontra vasta discussão na literatura,
em relação aos outros desastres. Tais achados talvez possam ser explicados pelo que
Pereira e cols. (2003) destacam, de que por ser um desastre que se instala lentamente,
a seca acaba por não causar tanto impacto social como uma enchente, por exemplo.
Desse modo, a atenção ao desastre fica mais restrita a esfera econômica, já que as
perdas agrícolas são as que adquirem maior saliência durante e após a ocorrência do
evento. No entanto, a seca é um desastre que resulta em uma cadeia de privações para
os afetados, e conseqüentemente, em intenso sofrimento psicológico.
Acredita-se que com o surgimento da área da psicologia das emergências e dos
desastres no Brasil, tais estudos venham a ser estimulados, de modo a contribuir com
o desenvolvimento da mesma e a oferecer subsídios para políticas no campo de
prevenção e intervenção em desastres.
Por fim, há que se desmistificar a concepção ainda em voga de que os desastres
ditos “naturais” fogem totalmente ao controle humano. Ainda que estes sejam
relativamente imprevisíveis e que humanamente não se consiga evitar sua ocorrência
o que leva os afetados a sensação de perda de controle, sabe-se que a dimensão de
suas conseqüências (catastróficas ou não) depende e muito das ações do homem
sobre o ambiente, as quais podem e devem contribuir para reduzir sua vulnerabilidade
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
207
social aos riscos ambientais. Conhecendo tal realidade, a psicologia não poderia deixar
de oferecer sua valiosa contribuição, juntamente com outros campos do saber
envolvidos na temática, na tarefa de construir comunidades humanas mais seguras
bem como auxiliando-as no enfrentamento e recuperação frente a situações extremas.
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Recebido em maio de 2007
Aceito em dezembro de 2008
Eveline Favero: psicóloga; mestre em Extensão Rural (UFSM).
Vivien Diesel: engenheira florestal; professora adjunta do Departamento de Educação Agrícola e Extensão
Rural.
Endereço para correspondência: [email protected]
* O artigo deriva da dissertação de mestrado intitulada “A seca na vida das famílias rurais de Frederico
Westphalen-RS” de autoria de Eveline Favero, Curso de Pós-Graduação em Extensão Rural/UFSM.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Aletheia 27(1), p.210-221, jan./jun. 2008
A toxicomania enquanto doença incurável e sua relação
com um tratamento possível
Amanda Schreiner Pereira
Resumo: Este estudo investigou qual a influência da nomeação doente incurável naqueles que
buscam um tratamento para a toxicomania. Para isto foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas com indivíduos do sexo masculino que estão em tratamento e examinadas através
de análise qualitativa de conteúdo. Conforme os resultados, a assunção do significante doente
proporciona um novo lugar de resposta ao sujeito, o que constitui um início de mudança. Esta
nomeação tem uma significação social que situa o sujeito em valores inseridos na cultura.
Porém, não há significação pessoal para esta nova condição, visto a inexistência da vinculação
deste novo nome à história individual dos entrevistados.
Palavras-chave: toxicomania, doença incurável, tratamento.
The drug addiction as an incurable disease and its relation with
a possible treatment
Abstract: This study investigated which is the influence on denominating incurable disease
those patients who look for drug addiction treatment. Four semi-estructured interviews were
conducted with male individuals that were undertaking treatment and the results were assumption
of the significant sick person offers a new position to the subject, which constitutes a beginning
of changes. This denomination has a social signification that situates the subject in values
inserted in the culture. However there is not a personal meaning for this new condition, considering
the nonexistent link for this name with the individual story of those who were interviewed.
Key words: Drug addiction, incurable disease, treatment.
Introdução
A toxicomania tem sido um assunto intensamente abordado por autores de
diversas disciplinas. Tamanha importância designada a este tema atualmente, que a
Organização das Nações Unidas (ONU) adotou um Dia Internacional Contra o Uso e o
Tráfico de Drogas (26 de junho). No Brasil, muitas campanhas e a necessidade de
medidas sociais contra o uso são encabeçadas por entidades governamentais, como a
Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Estas entidades diferenciam o dependente
químico do traficante e consideram o dependente químico como um doente.
O termo dependente químico também é utilizado pelas instituições que se
apropriam da possibilidade de tratamento de usuários de drogas. Na medicina, a
dependência química é designada como estado de intoxicação periódico ou crônico
gerado pelo consumo repetido de uma droga e que é acompanhado de um invencível
desejo ou de uma necessidade (obrigação) de continuar a consumir a droga e de
procurá-la por todos os meios. Segundo Manuila, Manuila e Nicouli (1997), trata-se de
uma farmacodependência com tendência a aumentar as doses.
210
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Porém, este indivíduo não possui apenas uma dependência química do produto –
droga – mas também uma dependência psíquica, chamada pela Psicologia de Toxicomania.
Dentre as características do indivíduo toxicômano, inclui-se a representação da
droga para o sujeito. Para o usuário, a droga é apenas mais um objeto, enquanto o
toxicômano faz da droga seu objeto exclusivo (Torossian, 1997).
Porém, o limite entre eles é tênue e segundo Melman (2000), qualquer um pode
tornar-se toxicômano. O encontro com a droga provoca uma transformação psíquica,
construindo uma nova história (Nogueira Filho, 1999).
Para Ribeiro (1997), quando a droga é o principal objeto de desejo, as relações de
alteridade perdem importância e eficácia, estabelecendo-se um curto-circuito narcísico,
proporcionando uma ilusão de auto-suficiência (e conseqüente retraimento de
investimento no mundo exterior). O constante re-uso é uma forma de refazer a cada dia
o preenchimento narcísico, que salva o toxicômano de um desaparecimento subjetivo.
Para Melman (1992), a prática da interdição, através da intenção de assistir, de
cuidar, participa da manutenção e do entretenimento da toxicomania, pois a abstinência
é necessária ao ciclo, uma vez que o objeto se destaca por sua alternância com a falta. A
interdição introduz uma erotização suplementar que faz com que todos os argumentos
sejam derrubados para privilegiar o que havia sido interditado. Assim, diz que a melhor
saída para a toxicomania seria medicalizar a droga (torná-la um medicamento, ao qual o
toxicômano pode ter acesso de forma legal), deserotizando a relação do sujeito com esta.
A representação social da droga também é evidenciada por alguns autores.
Torossian (1997) expõe o fato de vivermos em uma sociedade “adicta” em relação aos
ideais e aos imperativos propostos por ela. O toxicômano, nesta sociedade, consome
a droga e chega até ela através da busca por um lugar de exceção.
Considerando-se que nossa sociedade possui uma cultura de consumo, na qual
para “ser” é preciso “ter”, o uso de droga constitui-se em uma das formas de produção
de identidade, é uma alternativa frente à fragilidade das referências simbólicas hoje
encontradas. Esta busca por referências é uma busca por um lugar social. O toxicômano
toma como resposta o lugar de dependente.
Pode-se referir ainda, a representação da dependência. Tomando-a como uma
doença incurável, a dependência remete a algo que nunca será curado. Assim, o único
tratamento possível é o do autocontrole, uma constante abstinência da droga, e o
toxicômano passa a ser visto como um doente.
Velho (1978) salienta que a doença na nossa sociedade é a categoria mais
abrangente que classifica os comportamentos perturbadores, permitindo o mapeamento
e o controle dos desvios. Fazendo uma análise social, diz que a categoria drogado é
uma acusação moral e médica que assume explicita e implicitamente uma dimensão
política, sendo, também, uma acusação totalizadora. A acusação totalizadora é aquela
que contamina toda a vida do indivíduo acusado, estigmatizando-os de forma talvez
definitiva e atacando a identidade do toxicômano.
Nogueira Filho (1999) expõe que a identificação com o significante toxicômano,
lê-se: doente, é um saber sem verdade, pois ele não consente em passar por seu
romance familiar e pelos significantes que lhe marcaram na sua história, o que Melman
(1992), chama de um significante sem significância.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
211
Para Foucault (1968), a consciência do doente quanto à sua doença desdobra-se
sempre numa dupla referência, quer ao normal e ao patológico, quer ao familiar e ao
estranho, seja ainda ao singular e ao universal.
O doente reconhece e dá-lhe o sentido de uma diferença irredutível que o separa
da consciência e do universo dos outros. A consciência da doença é tomada no interior
da doença, está consolidada nela no momento em que a percebe (Foucault, 1968).
Conte (2002) referindo-se à nomeação doente, diz que essa se dá enquanto falta
de um traço simbólico de identificação. Ocorre, assim, uma alienação a um significante
produzido pelo social (doente). Frente a isto, o sujeito responde através daquilo que
supõe que queiram dele. Supõe-se que queiram dele a Cura.
No dicionário da língua portuguesa a cura é definida como ato ou efeito de curar,
ou seja, de restabelecer a saúde, livrar de doença. No próprio dicionário uma
exemplificação com o alcoolismo. “Sabia que o rapaz era alcoólatra, mas não perdia
as esperanças de curá-lo”, tratando aqui a cura como fazer alguém perder efeito moral
ou hábito prejudicial.
Pensa-se: o prefixo in, que remete a “não”, salienta a não possibilidade de perder
este efeito. O incurável é o irremediável, que não tem cura.
A proposição de duas terapêuticas – medicina e grupos de auto-ajuda – tem
como ponto de partida o mesmo ponto de chegada, que é a frase “eu sou toxicômano”.
Ambos concordam em que o toxicômano, conhecendo o efeito das drogas, não deve
nunca mais se aproximar dela. Não há alternativa, tem de se parar de usar drogas. “Uma
vez toxicômano, toxicômano por toda a eternidade. E, interessantemente, passa a existir
a toxicomania sem as drogas” (Nogueira Filho, 1999, p. 59).
A afirmação de que os grupos de auto-ajuda e a medicina acreditam que as
chances de cura são nulas, conforme Nogueira Filho (1999) traz a pergunta: Como lidar
com a cura neste caso?
Conforme Nogueira Filho (1999), a Psicanálise não lança mão de procedimentos
disciplinares, nem de medicamentos. E não vai repetir a resposta “nunca mais”. Vai
investigar a toxicomania naquele sujeito singular, sem punir recaídas e gratificar
abstinências. A obrigação do psicanalista é prevalecer do simbólico e da palavra.
Nasio (1999) diz que em Psicanálise devemos entender a “cura” como um valor
imaginário, um pré-conceito. Ele afirma que a demanda de cura parte de quem sofre e
ela se alimenta de uma falsa imagem de cura. Porém, é indispensável no início do
tratamento.
Ao longo do tratamento é que o paciente tem de deslocar o lugar erotizado da
droga e poder falar de outros objetos e de outras questões (Torossian, 1997).
“Somente quando o tóxico é deslocado da posição de suposto objeto ideal na
relação com o sujeito é que fica um buraco” (Conte, 2002, p.39). Para esta autora, é
necessário que o paciente faça o luto de um objeto que nunca foi a droga, admitindo
que sempre esteve perdido. A interdição desse objeto para sempre perdido deve se dar
pela reconstrução de uma lei e não mais pela intervenção do tóxico, isto permitirá que
o desejo ressurja, ocorrendo assim a transformação do dito toxicômano em um sujeito
propriamente desejante.
212
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Por fim, Nasio (1999) clarifica a cura em Psicanálise: a cura em Psicanálise é a
produção de um novo ser psíquico.
Método
Delineamento
Foi realizado um estudo exploratório de abordagem qualitativa, desenvolvido a
partir do método de Análise de Conteúdo. A Análise de Conteúdo, conforme Bardin
(2006), tem como finalidade chegar, através da descrição, a uma interpretação da
comunicação produzida.
Participantes
Participaram da pesquisa quatro internos da fazenda de recuperação de
dependentes químicos Ivorá/RS, com idades entre 20 e 36 anos, todos do sexo masculino,
designados como dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, dispostos a tratar-se nesta
instituição. Os mesmos foram escolhidos pelo coordenador terapêutico da instituição.
Foram devidamente informados e esclarecidos quanto a suas participações no estudo
através do Consentimento Informado, estando de acordo com os objetivos e
procedimentos da pesquisa.
Segue-se uma breve descrição de características dos participantes:
Participantes
Idade
Escolaridade
Profissão
Presenças de outras pessoas da família
com o mesmo problema
A1
24
1º ano do 2º grau
Comerciante
Pai (álcool)
B2
24
1º grau incompleto
Autônomo
Irmão (drogas), Tio (álcool)
C3
20
1º grau completo
Não tem
Não tem
D4
36
2º ano do 2º grau
Funcionário Público
Não tem
Instrumentos
Ficha de Dados Demográficos: Foi utilizada uma ficha para levantamento de
dados gerais dos participantes constando: idade, escolaridade, estado civil, profissão,
religião, situação econômica, com quem residem e presença de outras pessoas da
família com o mesmo problema.
Entrevista Sobre a Concepção Incurável: A qual continha questões norteadoras
sobre tempo de internação e de uso de drogas ou álcool; sobre a dependência química
(concepção de dependente, o olhar-se como um dependente e a consideração sobre a
passagem de usuário para dependente); sobre o tratamento (número de tratamentos
realizados, mudanças observadas durante o atual tratamento, diferença deste para os
anteriores) e, ainda, questões sobre a concepção de cura (se consideravam a
dependência incurável e os significados pessoais e acerca do tratamento a partir disto).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
213
Procedimentos
As entrevistas foram gravadas em fitas cassete. Após a gravação, houve
transcrição e análise através dos seguintes passos:
Descrição: Primeiramente, foi empreendido um tratamento descritivo, através do
registro do discurso dos entrevistados (dados brutos transcritos).
Inferência: Após a transcrição das entrevistas, delimitaram-se unidades de registro
e realizou-se escolha das categorias para a codificação. A partir deste material,
possibilitou-se a categorização, utilizando-se em princípio o isolamento de elementos
e, na seqüência, a classificação, por meio de um reagrupamento segundo semelhanças
e diferenças.
Durante o processo de categorização, foram utilizadas regras da análise estrutural:
Associação: análise da presença de objetos sempre juntos a outros; Equivalência: encontro
de objetos e seus substitutos; Exclusão: percepção objetos substituídos por outros.
Interpretação: Da descrição e inferência, culminou a interpretação, na qual as
entrevistas analisadas qualitativamente foram articuladas com o referencial teórico
levantado.
Resultados
A seguir serão apontadas as categorias temáticas obtidas através do processo
de categorização e, após, descritos e comentados trechos ilustrativos das falas dos
entrevistados.
Categorias Temáticas: Aprendizado – A toxicomania enquanto doença é aprendida
durante o tratamento; Limite – O incurável possibilita uma limitação; Diferenciação – O
incurável provoca uma diferenciação; Continuidade – A nomeação doença incurável
sustenta uma continuidade no tratamento; Fantasma – A toxicomania existe sem a droga.
Aprendizado – A toxicomania enquanto doença é aprendida
A concepção de que a dependência de drogas lícitas ou ilícitas é uma doença é
aprendida durante o tratamento, a procura pelo mesmo não é realizada pensando em
uma busca por cura, mas sim visando cessar o uso. Vejamos os excetos:
A1: “aqui dentro da fazenda eu vim saber que é um, que a dependência química
é uma doença sabe?”.
C3: “Quando eu entrei aqui eu também pensava: usar drogas de sem vergonha,
mas depois o cara aprende que é uma doença, né?”
A1: “Sabe, é uma doença que não tem cura, mas que eu posso ter uma vida uma
vida tranqüila mesmo sendo um doente, é só tomar os cuidados que eu tenho que
tomar, fazer o que eu aprendi aqui dentro que tem que fazer”.
B2: “Hoje em dia eu me considero, eu era um dependente químico, eu sou, eu
vou viver, não tem cura, né? É uma doença que não vai ter cura, né? Tem que tar
sempre buscando e eu aprendi tudo isso”.
Toda esta compreensão da doença mostra algo que aprendido começa a exercer
sobre os indivíduos uma função de mudança. Adotando a nomeação doente, eles
214
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
passam a regrarem-se para assumir tal condição. Parece que a primeira função deste
significante é barrar o sujeito. Ou seja, limita-lo.
Limite – O incurável possibilita uma limitação
O significante “doença” barra, limita o sujeito, ele não é mais aquele que tudo
pode ou aquele pelo qual tudo se faz. A cadeia narcísica na qual estava preso parece
abrir-se. Adquirindo limites o sujeito passa a encontrar a alteridade, encontrar o outro.
Esta limitação é demonstrada nas palavras de D4.
D4: Respondendo à questão sobre o que seria a cura – “Saber, entender que
não pode mais. Não pode, que tem um limite, bastou, bastou”.
Percebe-se que os indivíduos que passam por esse processo atravessam um
período depreciativo de seu “eu”, culpam-se, arrependem-se, desculpam-se. Assim
como um momento de solidão, a partir do qual reconhecem um “eu” impotente, que
assume a condição de espelhar-se em outros para sustentar sua própria imagem, é
neste momento que a função do grupo aparece.
B2: “eu fui obrigado a vim aqui pra dentro e aí aqui dentro eu conheci, né? Eu
vim me conhecer, que sozinho eu não era capaz de largar da droga, né”?
Considerar-se um doente, então, permite uma mudança de lugar, de posição.
Diferenciação – O incurável provoca uma diferenciação
O termo utilizado pelos sujeitos da pesquisa para designarem sua condição é
“doença”. Salienta-se todo o peso que esta carrega quando confrontado com o social,
com a dita “normalidade”. É constante a comparação entre seus comportamentos com
a loucura.
A1: “Como eu disse antes, não é normal. Eu tenho consciência hoje de que eu
não sou uma pessoa normal. Sabe?”.
A1: “...porque quem cuidava dos negócios era eu, sei lá eu, com tudo as minhas
loucura, sabe, tinha umas coisas que eu trazia em dia sempre...”
C3: “No começo eu ah, tava aqueles louco gritando, ali rezando, bah, dava
risada dos cara...”
Ao mesmo tempo, parece não haver um comprometimento maior com esta
condição, no sentido de provocar uma verdadeira transformação psíquica no sujeito.
Podemos observar no discurso de B2 que é bastante difícil responder sobre seus
sentimentos em relação a esta condição de doente incurável:
B2: “ai, não tem como te explicar, sabe?...na verdade eu não... acho que eu não
ligo muito, eu sei que eu sou um doente, sabe, mas eu não sei como te explicar assim
como eu me sinto sendo um doente, sabe? Bem dizer é normal eu acho. Normal,
normal de repente pra outras pessoas não seja, né? Mas pra mim é, normal, né?”
Esta nova nomeação não consolida a mudança, o que acontece é o aparecimento
de um nova designação na cadeia significante. Ou seja, é o significante em si que
aparece. Porém, observa-se que isto é suficiente para que surja a possibilidade de um
novo olhar sobre si:
A1: “Olha, ser um dependente químico pra mim é ser uma pessoa especial, não
sou uma pessoa normal, sabe... pra mim seria isso, especial porque eu sou diferente”.
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Continuidade – A nomeação doença incurável sustenta uma continuidade no
tratamento
Esta nova forma de existir do sujeito é o que sustenta alguma continuidade do
tratamento. Antes de existir a concepção doente, existia um indivíduo cujo tempo era
irreal, ou melhor, era um ser que vivia permanentemente em tempo presente. Esta nova
condição parece representar uma noção de futuro. Justamente por limitar, por determinar,
possibilita que se enxergue além, possibilita a utilização de novos sonhos futuros.
B2: “A, hoje eu vejo o futuro, né? Viver feliz, não, feliz que eu assim é viver sem
ela, sem a droga, sem o álcool, trabalhar, viver uma vida normal, como todo mundo
vive: trabalho, casa, família, saí, passear, se divertir, mas sempre com sobriedade”.
A idéia de cura que acompanha o “doente” é bastante controversa. Acreditando
que é uma doença incurável, estará curado.
B2: “No momento eu acho que um dependete químico achar que ele tá curado
ele vai recair, porque daí ele não vai buscar mais, ele vai parar...”
Fantasma – O toxicômano existe sem a droga
B2: “Vou ser um eterno doente, né”?
Empreender um sentido para uma doença incurável é pensar para quais
possibilidades ela aponta, e esta parece levar para uma eterna busca de controle pessoal.
A1: “Um tratamento, eu acho que força de vontade, sabe, tu saber que tu não
vai sair curado, sabe, porque a tua doença não tem cura, mas nem por isso tu vai
desistir. Sabe. Nem por isso eu vou desistir de pelo menos tentar sabe, se eu sei que eu
tenho uma doença que ela é progressiva, é fatal. Se eu conseguir me curar, se eu
conseguir... se eu conseguir tomar os cuidados que eu sei que eu tenho que tomar
hoje, posso ter uma vida tranqüila, sabe”.
D4: “Eu falei que é uma constante, dia após dia, um tratamento não tem, tem
todo dia, só por hoje eu não vou beber, só por hoje eu não vou usar drogas, é uma
busca diária”.
É no momento em que mesmo sem a presença da droga ela está constantemente
presente para o sujeito, que ela aparece ainda como o objeto ideal.
C3: “é eu sei que eu tenho essa doença assim, né, tentei sair fora sozinho e não
consegui, sei que eu vou carregar pra sempre isso aí”.
Discussão
Como Ribeiro (1997) coloca, o consumo de drogas hoje é representado no campo
científico. Campo do qual a Psicologia participa. Esta é uma tentativa de situar uma
temática determinada, a temática da cura. A discussão baseia-se no conceito de cura
da Psicanálise, trazida por Nasio (1999): produção de um novo sujeito psíquico. A
terminologia “toxicômano” é utilizada conforme conceito aplicado por Torossian (1997)
onde a droga aparece como objeto exclusivo.
O termo “doença” é o que remete ao incurável, terminologia apreendida como
objeto de estudo deste trabalho em referência ao tratamento da toxicomania dos
216
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
entrevistados. Estamos aqui tratando de sujeitos. Melman (2000) advém ao fato de que
é a droga quem faz o toxicômano. A história que inicialmente se propõe ao uso de
drogas é a que Torossian (1997) salienta como busca por um lugar de exceção,
encontrado na droga. Melman, (1992) diz que nesta tentativa é ultrapassada a borda da
própria vida. Aí se pode pensar na doença, no significante doença: ele está barrando o
objeto droga?
O significante doença barra sim, limita o sujeito, como bem podemos presenciar
na segunda categoria temática levantada, o limite. Este significante traz consigo a
marca de uma diferenciação, que sustenta uma alteridade. Alteridade que antes era
perdida por causa de um curto circuito narcísico existente.
Este curto circuito narcísico aqui referido é o que Ribeiro (1997) aponta como o
responsável pela perda da importância das relações de alteridade. Conte (1997) divide
a mesma idéia dizendo que o preenchimento narcísico é refeito a cada dia.
Se pensarmos no termo freqüentemente utilizado pelos sujeitos da pesquisa e
pelos usuários de drogas: “ativa”, podemos associá-lo a uma questão temporal. Na “
ativa” faz-se a cada dia um novo corpo, é uma ação diária, de atos. Para que suas
palavras não tenham mais peso de atos é necessário que se instaure uma função
Paterna, esta função é a que designa o sujeito enquanto ser social, proporcionando o
limite e a referência.
Quanto à instância terceira (função Paterna), Melman (1992) propõe que o que se
constrói a partir do significante produzido durante o tratamento é uma resposta, por
parte do toxicômano, do que supõe que queiram dele. Isto explica o porque do
aprendizado sobre a doença (primeira categoria). O indivíduo não vai procurar o
tratamento pensando em uma cura, mas o que encontra dentro da fazenda é uma série
de informações que necessitam de uma resposta sobre o que busca ali. O doente
incurável parece ser o lugar de onde ele consegue responder durante o tratamento.
Se retornarmos à categoria Diferenciação pode-se observar claramente a tentativa
de enquadre social proposta pelo significante “doença”. Velho (1978) diz que a doença
permite o controle dos desvios; a partir dela se constrói um discurso sobre
anormalidade. Este mesmo autor coloca que esta concepção (doente) contamina toda
a vida do sujeito, atacando sua identidade. A percepção obtida através deste estudo é
a de que antes de um ataque, trata-se de uma nova possibilidade de identidade a ser
construída.
Na mesma categoria podemos notar a dupla referência: do normal e da loucura,
que Foucault (1968) diz implicar a doença mental. O reconhecimento do “doente”,
continua ele, dá sentido de uma diferença.
Esta questão da normalidade parece bastante significativa, há uma constante
comparação com as coisas normais, há uma constante referência à loucura. Ao mesmo
tempo em que tentam imitar homens que consideram “normais”, querendo ter um
cotidiano igualmente estável (B2 na primeira fala da categoria Continuidade), eles
adotam o termo incurável, que lhes conota uma diferenciação. Querem ter
comportamentos considerados normais e se nomeiam como anormais, a fim de
conquistar um lugar diferente. É um lugar diferente do que antes possuíam no tempo
da “ativa”, mas ainda assim um lugar de diferenciação do sujeito. Ressoa uma transição:
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do louco, para o louco disfarçado de normal (extremamente perceptível quando C3 fala
na terceira categoria sobre seus atuais “irmãos de caminhada”), até o normal.
O indivíduo parece apegar-se a esta nomeação como norma, norma que propicia
um investimento em seu tratamento, em si. Este investimento aparece a nível
comportamental. O indivíduo regra-se, instaurando um limite (já citado) para que consiga
sustentar sua atual condição, de não uso de drogas. Isto é o que Conte (1997) salienta
como uma lei que se presentifica no real, através de regras. É preciso controlar-se e
adquirir a noção de doença.
Esta borda que se forma a partir da nomeação doente permite que o indivíduo atue
no futuro, como se pode observar na categoria Continuidade, ou pense em relação ao
futuro. O que antes se sustentava apenas como presente, agora provoca chances de
continuidade. Há aí, a presente necessidade de significantes que digam quem são e para
onde vão. Esta questão parece ser norteante no tratamento e encontra sua resposta na
concepção incurável. Algo que eles possam ter certeza que sempre serão. Algo que não
os façam distanciar-se bruscamente do que foram: drogados, pois permanecem sendo.
Este significante, porém, parece não alterar os sentimentos destes indivíduos,
ou então estes parecem ainda não querer se confrontar com a possibilidade de sentir.
A doença é tratada como evento externo que se apossa deles, a qual devem responder
em atos. Aí se encontra o que Nogueira Filho (1999) fala sobre a existência da toxicomania
sem as drogas, perceptível na categoria Fantasma. Justamente isto parece acontecer
quando o incurável se faz presente como resposta.
A nomeação incurável, assim como dependente químico, produz a possibilidade
de que a droga exista permanentemente, como bem relata B2 em sua fala na quinta
categoria temática. É o que Melman (1992) coloca como falta que é celebrada. Nela o
objeto (droga) se destaca por sua alternância em estar presente ou ausente. Quando
isto ocorre, tanto o objeto quanto o interdito tornam-se reais. Pensando-se no quanto
nos sujeitos da pesquisa a mudança provocada pelo interdito ‘doença’ é externa
(comportamental), percebe-se que há uma simbolização pouco cristalizada, no sentido
de que o sujeito não pensa em elaborar sua situação passada, nem as angústias que
lida no hoje. Apenas as nomeia para que, sendo explicadas, possam ser externas a ele,
ele ainda não se identifica como ser transformador.
A cura não é admitida. Há a percepção de que no momento em que ela for concebida
como possibilidade, o momento atual se dilacera. Isso oportuniza o não envolvimento
total do sujeito em seu tratamento. Entender e aprender que é um doente em recuperação
e que esta recuperação atenta justamente ao fato de considerar-se um doente, mantém
o indivíduo num estado limite, porém não leva este a desejar outra condição para si.
Parece mais uma obrigação do que um desejo, é uma necessidade.
Nas palavras de A1, na primeira categoria há o verbo TER, que presentifica um
dever e não algo assumido através da vontade. Na mesma categoria B2 busca uma
afirmação, NÉ, para a doença, demonstrando uma busca constante para uma afirmação
que está aprendendo.
Ao falar da nomeação toxicômano, Nogueira Filho (1999) diz que a identificação
com este significante é um saber sem verdade, pois não consente em passar pelos
significantes que marcaram a história.
218
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Resta a questão: será que na concepção de toxicomania enquanto doença não há
apenas um significante sem significância, como se refere Melman (1992) ao toxicômano?
Acredita-se que não, a questão da doença está contida na cultura, cultura que a
reconhece, como diria Foucault (1968). Parece justamente que a nomeação doente é
aceita culturalmente e a drogado não, o termo drogado acaba carregando consigo as
designações de desprezo.
É imprescindível salientar o que Nasio (1999) fala sobre demanda de cura, que é
algo indispensável no início do tratamento. É este valor imaginário da cura que parece
sustentar a continuidade do tratamento, referido na categoria Continuidade.
Enfim, o significante carrega consigo uma representação social. Cabe ao
toxicômano dar um significado individual à condição de doente, que acaba de assumir.
Retomando o tratamento psicanalítico, modelo teórico adotado nesta pesquisa,
retrata-se o que foi colocado por Conte (1996) como fracasso frente a um ideal. É
preciso que no tratamento do toxicômano o tóxico seja deslocado da suposição de
suposto objeto ideal, como mais tarde Conte (2002) propõe. Isto proporciona o buraco,
a falta, a renúncia ao objeto perdido. Será que este buraco não é encontrado quando
os toxicômanos referem-se à “fissura pela droga”? Acredita-se que não porque ainda
é pela droga. É a droga que impera.
É preciso que admitam que sempre estiveram perdidos. O momento depreciativo
do eu talvez inicie esta admissão. A nomeação doente também, mas ainda assim ela
está presa no objeto droga.
Ocorre, precisamente, que a dependência de drogas, ao ser considerada uma
doença, proporciona uma nova posição ao toxicômano, um novo lugar do qual possa
responder. A simbolização de sua condição, por sua vez, parece não preceder a assunção
desta condição. Desta forma, há um significante que nomeia, mas que não propõe ao
sujeito novas significações, uma vez que estas são concebidas pelo peso simbólico
colocado socialmente na palavra “doença”. O toxicômano passa a sustentar uma nova
imagem, imagem que constitui um lugar social bastante próprio, lugar de exclusão. Ao
mesmo tempo em que o termo incurável leva a um lugar de exceção, ele trás embutido
uma série de valores sociais e culturais. Cabe perguntar: É possível que este sujeito
sustente este significante “doença” num lugar onde não é positivamente valorizado,
mas sim onde lhe é atribuído valor oposto?
Considerando-se que a toxicomania aparece neste sujeito como sintoma e não
como causa, e que fica evidenciada sua relação de dependência com os objetos,
igualmente sua fragilidade diante destes, pode-se pensar que será bastante difícil para
ele utilizar um lugar de exclusão o qual precise ocupar. Enquanto “drogado”, este
sujeito estava acompanhado de seu objeto: a droga, é a relação pura e “ativa”, como
costumam nomear. Diante da doença este sujeito parece sim se abster desta atividade
e passar a outro pólo: a passividade, passividade diante deste “novo dizer”, do outro,
que o configura, o nomeia.
Estas repostas pedidas socialmente, pelo outro, são respostas que causam um
buraco, uma fissura. Espera-se que a esta fissura ele não responda com o objeto droga,
mas que encontre novas soluções. Espera-se que a busca de novas respostas esteja
sendo realizada com desejo, ou seja, espera-se que as novas questões que lhe sejam
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colocadas suscitem a intenção de um benefício do próprio toxicômano. Com isto, dizse que é necessário que as pessoas que compartilharão com o toxicômano deste novo
significante o reproduzam desejando uma transformação do sujeito e não apenas
pensando que esta condição lhe trará mais “tranqüilidade”.
Isto preocupa no momento em que os participantes da pesquisa revelam estar
praticando a mudança em função de seus entes queridos e não em razão própria.
Assim, não há significação dada pelo toxicômano que acompanhe o significante.
Pode-se dizer que a cura, enquanto produção de um novo sujeito psíquico, não ocorre.
É negada a afirmação dada pelos participantes da pesquisa de que a cura estaria na
própria concepção de doente incurável. Pode ser que esta transformação posteriormente
seja possível.
O significante assumido poderá ser a porta de entrada para esta produção. Basta
pensarmos em um bebê recém nascido, um ser que acaba de chegar ao mundo e passa
a ser nomeado. O significante, seu nome próprio, é o que dará a ele um lugar. A partir
deste será possível que ocorram significação e a construção de uma identidade, a
partir de sua troca com o mundo.
No toxicômano o significante doente igualmente lhe dará um nome, porém, este
não é próprio, ele já existe. Enfim, essa existência é carregada de valores sociais que
exigirão do sujeito uma nova postura. Ele terá de construir dois caminhos que se
cruzarão: a representação desta nomeação dentro de sua história particular e o interlace
desta com uma nova condição enquanto ser social, do qual serão esperadas respostas.
Enfim, este estudo avaliou as condições em que a consideração doente incurável
influencia o toxicômano que procura um tratamento para livrar-se do uso de drogas.
O termo doença proporciona um novo lugar ao toxicômano, uma posição da qual
poderá responder diferentemente, porém não parece haver uma mudança mais profunda,
no sentido de culminar na existência de um novo sujeito. Esta terminologia pode ser
sim uma porta de entrada para que isto ocorra.
Através deste estudo, está-se ciente de que não se esgotaram as possibilidades
de análise sobre este tema. Alerta-se aos limites em termos de generalizações, devido
a particularidades desta pesquisa quanto ao número e escolha dos sujeitos pesquisados
e ao referencial escolhido.
Referências
Bardin, L. (2006). Análise de Conteúdo. (L. A Reto & A. Pinheiros, Trad.). São Paulo:
Edições 70/Livraria Ed. (Original publicado em 1977).
Conte, M. (1996). Os efeitos da contemporaneidade: consumo de álcool, drogas e ilusões. Boletim de Novidades Pulsional Centro de Psicanálise, 9 (90), 09-13.
Conte, M. (1997). Toxicomanias. Correio da APPOA. Toxicomanias, 49, 9-15.
Conte, M. (2002). A clínica institucional com toxicômanos: uma perspectiva psicanalítica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 5 (2), 28-43.
Foucault, M. (1968). Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
Manuila, L., Manuila, A., & Nicoulin, M. (1997). Dicionário Médico Andrei. São Paulo:
Andrei.
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Melman, C. (1992). Alcoolismo, Delinqüência, Toxicomania. Uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta.
Melman, C. (2000). Clínica Psicanalítica. Artigos Conferenciais. Salvador – BA:
Ágalma.
Nasio, J-D. (1999). Como Trabalha um Psicanalista? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Nogueira Filho, D. M. (1999). Toxicomanias. São Paulo: Escuta.
Ribeiro, E. M. (1997). Genealogia de um engano. Correio da APPOA. Toxicomanias,
49, 27-29.
Torossian, S. D. (1997). O lugar do outro na subjetividade dos adolescentes usuários de
drogas. Correio da APPOA. Toxicomanias, 49, 16-19.
Velho, G. (1978). Duas Categorias de Acusação na Cultura Brasileira Contemporânea.
Em: S. A., Figueira (Org.), Sociedade e Doença mental (pp. 37-45). Rio de Janeiro:
Campus.
Recebido em agosto de 2007
Aceito em janeiro de 2008
Amanda Schreiner Pereira: psicóloga; especialista em Psicologia Clínica (CRP) e em Atendimento Clínico –
Ênfase em Psicanálise (UFRGS); mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM); psicóloga do CAPS
(Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS).
Endereço para correspondência: [email protected]
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Aletheia 27(1), p.222-232, jan./jun. 2008
Psicologia e epistemologia: por uma perspectiva ética
de potencialização da vida
Jardel Sander da Silva
Resumo: Este artigo versa sobre as questões epistemológicas basilares que envolvem a psicologia como ciência da subjetividade humana. Realiza-se uma investigação crítica e contemporânea sobre estas questões, avaliando a pertinência à psicologia de uma verificação epistemológica
que separaria um sujeito de conhecimento de um objeto a ser conhecido, e que teria como
conseqüência uma estagnação de ambos. Opta-se, enfim, por uma postura crítica que defende a
especificidade da psicologia, e que encontra na avaliação ética, como possibilidade de se conhecer através do movimento e do devir, a mais útil à psicologia, no sentido de possibilitar a esta
contribuir ativamente na potencialização da vida.
Palavras-chave: epistemologia, ética, psicologia
Psychology and epistemology: trough an ethical perspective
for the potency of life
Abstract: This paper discusses the fundamental epistemological questions involving psychology
as a science of the human being subjectivity. This work makes a critical and contemporary inquiry
on these questions, checking Psychology’s verification of an epistemological approval that apart
the subject of knowledge from an object to be known. The consequence of such think would be
both stagnation. We choose, therefore, a critical position defending the Psychology specificity,
finding in an ethical evaluation a possibility of knowing through movement and change, reaching
thus a more useful perspective to Psychology, contributing to the potency of life.
Key words: epistemology, ethics, psychology
Introdução
Gostaria de iniciar este trabalho com uma pergunta que, a meu ver, mostra-se
como uma grande diretriz epistemológica para os dias de hoje, bem como para nosso
futuro:
- O que queremos com a ciência, ou da ciência, ou dos saberes?
Esta pergunta, pelo seu teor – e à medida que pretendo conduzi-la como
direcionadora deste trabalho –, pressupõe uma certa postura em relação ao que se
entende por epistemologia, mas também frente à sua utilidade.
Em tempos passados, talvez não bem passados, jamais se questionaria o que
querer da ciência, ou ainda, da sua utilidade; a ciência, na plenitude celestial de sua
neutralidade, à semelhança do mundo das idéias de Platão, justificava-se por si, era ela
a própria garantia da validade das verdades descobertas. Não se questionava a ciência
como método; mas sim, os métodos dentro (e fora) da ciência. E é aí que,
simplificadamente, poderíamos situar a epistemologia: encarregada de traçar essa linha
divisória entre o dentro (ciência) e o fora (não-ciência).
222
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Desta lida advieram diversos crivos de divisão, os quais propunham, segundo
certos critérios lógicos, o que era e o que não era ciência. Em outras palavras, a
epistemologia, enquanto metaciência, a qual estuda como as ciências conhecem, e se
seus métodos de conhecimento são realmente científicos.
Diversos epistemólogos propuseram diferentes crivos divisórios para as ciências.
Rudolf Carnap, por exemplo, propôs, primeiramente, o critério de verificabilidade: seria
significativo o enunciado empiricamente verificável. Posteriormente, após várias críticas,
reviu sua teoria e propôs o critério de confirmabilidade: nenhum enunciado é plenamente
verificável, podendo somente ser mais e mais confirmado.
Por seu turno, Karl Popper, situou seu critério demarcativo na falseabilidade,
traçando uma linha divisória entre Sistemas Empíricos (científicos) versus Sistemas
Metafísicos (filosóficos). Segundo este critério, se não posso confirmar todas as minhas
sentenças, ao menos posso me assegurar da sua negativa, ou seja, se não posso
provar que todos os gatos são pretos, no entanto, posso me certificar do contrário –
que nem todos são –, bastando encontrar um gato de outra cor1 .
Outro importante teórico, Thomas Kuhn, assinalou o aspecto convencional das
ciências, presente na sua teoria dos paradigmas, segundo a qual estes são “(...) as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de
uma ciência.” (Kuhn, 1978, p.13)
De forma ampla, paradigma é uma visão de mundo: diz o que existe no universo
e como explorá-lo, ou seja subministra regras. A partir desse referencial, os termos do
conhecimento só são efetivos na medida em que são compartilhados por uma
comunidade científica, vale dizer, a partir de sua prática social. Nesse sentido, valem
todas as formulações que possam se fazer a partir de estudos rigorosos que levantem
respostas articuladas a um corpo de conhecimento.
No entanto, nem Carnap, nem Popper, nem Kuhn encontram em suas teorias
subsídios para incluir as Ciências Humanas no seleto “clubinho” d’A Ciência. Devido
à especificidade de seu objeto, bem como pela própria natureza do sujeito-pesquisador,
as Ciências Humanas, de modo geral, não possuem um corpo teórico unificado, um
solo comum de onde derivar suas especialidades. Nem os dois termos de sua designação
(Ciência e Humano) encontram consenso.
Todavia, outros teóricos têm se debruçado sobre esta problemática e chegaram
a algumas conclusões que nos podem garantir mobilidade e pertença dentro do campo
científico.
Hilton Japiassu (1977), baseando-se em Michel Foucault, ressalta a nãocientificidade das Ciências Humanas. No entanto, isso não é posto como empecilho,
uma vez que a própria positividade destas ciências se encontra num certo
distanciamento em relação aos cânones tradicionais d’A Ciência. Ou melhor, segundo
Foucault: “Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças,
1
Para uma comparação entre as epistemologias de Carnap e Popper, cf. DUTRA, Luiz H. de A. A Diferença
entre as Filosofias de Carnap e Popper. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, 1 (1): 7-31, jan.-jun. 1991.
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nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências onde se trata da vida, do
trabalho e da linguagem.” (Foucault, 1992, p.368)
Esse saber fronteiriço, na concepção deste autor, estabelece-se justamente
através do “oculto”, do não-imediatamente-perceptível.
(...) o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se
produz no homem e que se poderia analisar como tal? (...) Mas a representação
não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba
de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda sua extensão; é o
suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível.
(Ibid.: 380, o grifo é meu)
Esse caráter representativo do objeto das Ciências Humanas direcionou sua
empreitada para o campo da hermenêutica (no sentido amplo), pois, uma vez que a
“verdade” sobre o fato humano não se dá imediatamente ao olhar, é preciso interpretálo, ou melhor, mediá-lo através da interpretação2 . As ciências do objeto-humano passam
pelo humano-do-sujeito (pesquisador). E talvez seja justamente este o epicentro de
toda crítica às Ciências Humanas, bem como aquilo que mais as afasta do clássico
rigor científico. Pois, uma vez que a “verdade” não se dá imediatamente ao olhar,
devendo ser interpretada, é preciso que alguém a interprete. E, no caso das Ciências
Humanas – diferentemente da química, da física etc. –, a proximidade entre sujeito
(interpretador) e objeto (interpretado) é nítida e insuperável. De modo que toda tentativa
de adequação epistemológica das Ciências Humanas às Ciências Naturais é vã, pois
que se corre o risco de jogar a água do banho com o bebê junto.
No entanto, não se pode ignorar o perigo sempre presente de se cair num
subjetivismo teórico, em que tudo é relativo, uma vez que “a minha opinião é diferente
da sua”. O “opinismo” (pseudo) teórico é um risco para as Ciências Humanas, reforçando
a necessidade de se traçar diretrizes para o pensamento e a prática.
Crítica à epistemologia
A partir disso, gostaria de focalizar alguns autores que argumentam em favor de
uma saída (ou uma entrada) para as Ciências Humanas, no que tange à cientificidade,
ou, ao menos, a alguns critérios que as afastem da trivialidade da opinião.
Bombassaro (1992), em seu livro As Fronteiras da Epistemologia, tenta forjar
uma síntese entre racionalidade (critério) e historicidade (mutação, processo) no campo
epistemológico. Desta síntese, o que nos interessa aqui é a sua proposta de uma
2
Michel Foucault discute a questão da hermenêutica moderna num texto em que identifica aqueles que seriam
os principais hermeneutas da modernidade: Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Karl Marx. Para Foucault,
estes autores teriam nos legado uma forma de interpretar os símbolos (nossa hermenêutica) como mergulho
numa profundidade própria, que irá nos mostrar, bem na esteira do pensamento nietzschiano, que não há fatos,
somente interpretações. Cf. FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud, Marx. In.: Arqueologia das ciências e história
dos sistemas de pensamento. (2000) Organização, seleção de textos, Manoel Barros da Motta; tradução, Elisa
Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Ditos e escritos; II)
224
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espécie de “território de encontro”, no qual racionalidade e historicidade se juntariam
de modo a potencializar o pensamento e a ação. Este território é a dimensão prática.
Nas palavras do autor:
A substituição paradigmática do “eu penso” pelo “eu argumento”, salientando
a dimensão pragmático-lingüística, impõe à epistemologia uma maneira
completamente diferente de considerar o conhecimento, na medida em que não
se torna mais possível encontrar padrões de racionalidade independentemente
do mundo prático, onde o conhecimento é produzido e no qual a historicidade
constitui-se em elemento central. (Bombassaro, 1992, p.120-1, grifo meu)
Mergulhando um pouco mais na radicalidade (e urgência) de um parâmetro
pragmático para nosso pensamento e nossa ação, poderíamos tomar como argumento
as palavras de Deleuze:
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante...
É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há
pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser
teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. (Deleuze
In.: Foucault, 2006, p.71)
No entanto, o uso do instrumental teórico requer critérios. E, para tanto, há que
se recorrer a algum balizamento, que inclua uma concepção de homem, uma metodologia
e um resultado a ser atingido.
A forma de satisfazer a esses requisitos, principalmente em se tratando da área em
que estamos inseridos (a psicologia), é proposta por Luís Cláudio Figueiredo, em diversos
de seus trabalhos, dos quais gostaria de focalizar o livro Revisitando as Psicologias: da
epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Um trecho deste livro é
perfeito para recolocarmos a questão da epistemologia, redirecionando-a:
Será, então, que o abandono do projeto epistemológico moderno e das versões
normativas da epistemologia nos deixaria imersos na indecisão e na
impossibilidade completa de justificar racionalmente nossas opções teóricas e
práticas? É nesta conjuntura que a dimensão ética dos discursos e práticas das
psicologias emerge como o plano no qual uma nova racionalidade poderá ser
exercida. (Figueiredo, 1995, p.24)
Essa nova racionalidade de que fala Figueiredo toma como referência a
experiência, a experiência do nosso interlocutor – ou, como queiram, do “outro”, do
nosso “objeto”: “As linguagens – tanto as teóricas e especializadas como as cotidianas
– deixam de ser concebidas como meros instrumentos para a representação mais ou
menos fiel de uma realidade para se converterem em dispositivos constitutivos da
experiência.” (Figueiredo, 1995, p. 25-26)
Esta perspectiva propõe a superação da representação, pois esta ainda está
atrelada a um modelo, que seria seu referente verdadeiro, que seria sua verdade. E se,
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
225
conforme foi colocado anteriormente, a base das Ciências Humanas for a representação,
cabe-nos desmontar esta base, limpar o terreno, ao menos o nosso terreno, e construir
algo novo. Isso remete à problematização da função e do local dos intelectuais. Nas
palavras de Foucault:
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não
necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor
do que eles; e elas dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra,
proíbe, invalida esse discurso e esse saber. (...) O papel do intelectual não é
mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a
muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente
onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da
“verdade”, da “consciência”, do discurso. (Foucault, 2006, p.71)
A ética, um caminho possível
Diante do exposto, e se quisermos buscar algum balizamento para nosso
pensamento-ação, não o encontraremos na epistemologia, mas sim numa ética.
Para conceituá-la, tomemos emprestadas as elaborações realizadas por Gilles
Deleuze – em seu trabalho sobre Espinosa – e Michel Foucault. Este autor, ao discutir
as “prescrições morais”, coloca que estas seriam uma espécie de “(...) relação consigo
mesmo que se deveria ter, esta ‘rapport à soi’[ligação a si próprio] (...), e que determina
como o indivíduo deve se constituir como sujeito moral de suas próprias ações.3 ”
(Foucault, 2001, p.1212-1213). Mas para longe de qualquer voluntarismo, o que Foucault
está configurando aqui, e em seus estudos sobre o que ele chama de modos de
assujeitamento (mode d´assujettissement), é este terreno dos modos de existência em
que nos deslocamos, em que existimos.
Aprofundando esta questão, Deleuze, ao interpretar a filosofia espinosista,
assinala a diferença entre moral e ética, entendendo a questão ética como uma
modificação dos valores, e a Ética como sendo “(...) uma tipologia dos modos de
existência imanentes, [que] substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a
valores transcendentes. (...) A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela
diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau).” (Deleuze, 2002, p.29)
Destas duas noções, podemos formar um conceito de ética que englobe uma
“relação consigo próprio” balizada não pelos valores d’O Bem e d’O Mal; mas sim
pelos modos de existência que compreendem o que é bom e o que é mau.
Indo um pouco mais adiante na concepção espinosista, o que se deve procurar,
são as alegrias ativas, o que é bom, isto quer dizer: o que amplia a minha capacidade de
agir; e o que se deve tentar evitar são as paixões tristes, o que é mau, isto é, o que
diminui minha capacidade de agir.
3
Tradução livre de: “(...) c’est la relation à soi-même qu’il faudrait avoir, ce rapport à soi (...) qui determine
comment l’individu doit se constituer en sujet moral de sés propes actions.”
226
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O que é fascinante nestas noções é precisamente o fato de a ética não estar
ligada a nenhum valor transcendental, nenhum meta-valor. A ponderação está ligada à
experimentação do sujeito, dentro de um modo de existência ético, ou seja, que afirme
a vida, enquanto potência de criação, isto é, movimento e devir.
Nas palavras de Deleuze:
Há, efetivamente, em Espinosa, uma filosofia da ‘vida’: ela consiste precisamente
em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes
que se orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa
consciência. (Deleuze, 2002, p. 32)
Daí se reafirma que o que está em questão é a alegria. “A Ética é necessariamente
uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima
da ação e da beatitude da ação.” (Deleuze, 2002, p. 34)
A reflexão que Espinosa faz em sua Ética é deveras profunda e extensa. Para os
fins aqui propostos, basta compreendermos que a procura pelas alegrias ativas se dá,
efetivamente, pela seleção dos bons encontros, os encontros que não nos envenenam:
procurar a alegria em detrimento da tristeza. Ou melhor, nas belas palavras de Deleuze:
(...) quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja
relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência desse corpo
se opusesse à nossa potência, operando uma subtração, uma fixação: dizemos
nesse caso que nossa potência de agir é diminuída ou impedida, e que as paixões
correspondentes são de tristeza. Mas, ao contrário, quando encontramos um
corpo que convém com a nossa natureza, e cuja relação se compõe com a nossa,
diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afectam são
então de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida. (Deleuze, 2002,
p. 40)
Pode-se tomar Figueiredo (1995) para complementar esta concepção, trazendo-a
para a atuação do psicólogo, pois ele chama a atenção ao papel do agente psi, que tem
como função evitar que se caia tanto num descrédito da experiência, quanto numa
super-valorização da mesma, que pode desembocar num narcisismo estéril. Para tanto,
este autor colocará a necessidade de uma mediação entre o fenomenal (a experiência)
e o meta-fenomenal (a avaliação reflexiva).
Para tal [uma avaliação ética], há também que atentar para, de uma parte, como
se efetua o reconhecimento e o acolhimento da experiência tal como se dá ao
sujeito, e, de outra, como se cumpre a tarefa de desconstrução do reino das
identidades e das representações desde o ângulo do meta-fenomenal tal como
teorizado. Esta seria a tarefa desilusionadora das psicologias. (Figueiredo, 1995,
p.31)
A nossa empreitada, então, desloca-se do campo representacional, e assenta-se
no plano experiencial. Esse distanciamento é de suma importância, uma vez que o viés
representacional remete-se à tradição filosófica platônica, segundo a qual os fenômenos
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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terrestres seriam cópias ou simulacros do mundo das idéias. E nas pesquisas em
Ciências Humanas tem-se feito muito isso: a partir de uma ordem imaginada, a idéia ou
os ideais – ideal democrático, ideal de justiça, ideal humanitário etc. – estuda-se de que
forma (qualidade) e/ou quanto (quantidade) a “realidade” se distancia destes ideais (a
verdade). O que ocorre é que o saber serve, então, para julgar a vida ou, mais
corriqueiramente, para apontar seus erros. É nesse ponto que nos interessa um outro
direcionamento epistemológico, uma outra base filosófica, que retoma uma prática
cara aos filósofos pré-socráticos: o pensamento e a vida são indissociáveis. E aquele
não deve julgar esta, mas sim afirmá-la.
Inspirado por Heráclito, o filósofo do devir, Nietzsche4 formou seu pensamento
sobre essa necessidade de o filósofo ser “mundano”, e da filosofia ser afirmativa. Nas
palavras de Deleuze, em um de seus trabalhos sobre Nietzsche, a ligação entre
pensamento e vida aparece desta forma:
O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes
e cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi
essencialmente esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade
do pensamento e da vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo
para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos
de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento,
por seu lado, afirma a vida. (Deleuze, 1994, p.17-8)
É o retorno ao mundo, à vida, à experiência. Esta é uma possibilidade para o
pensamento-ação, ou como diriam Deleuze e Guattari (1992): são buracos no existente
que abrem caminhos a novas possibilidades.
A pesquisa, também ela, precisa esburacar o seu existente, para abri-lo a outros
possíveis. Pois, se há algo a se descobrir no existente, certamente não é a verdade;
mas uma nova potência, um novo mundo, a vida que medra rizomática e insistente.
E, no entanto, não há uma resposta, ou mesmo uma fórmula para uma tal vida.
Nietzsche a chama de “a grande saúde”, isto é, “aquela que não basta ter, a que se adquire,
que é necessário adquirir constantemente, por ser sacrificada sem cessar, por ser necessário
sacrificá-la sem cessar!” (Nietzsche, 1987, p.297 - aforismo 382) Mas, ainda assim, é mais
como um desafio que isso nos soa, no máximo um convite, uma provocação.
Como poderíamos abrir o pensamento para esta vida, e como a psicologia poderia
se aproximar desta força?
Ética e psicologia
Colocada de outra forma, esta questão da aproximação da Psicologia com a
potência vital poderia ser iniciada de uma maneira mais abrangente e genérica: é possível
4
Sobre a indissociabilidade vida-pensamenlo, cf. principalmente: NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal:
prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1992; e A Gaia
Ciência. 4a ed. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1987.
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
pensar? Para, então, ser focalizada em nosso caso específico: é possível à psicologia
conhecer?
O que surge, pois, é uma necessidade de critério. No século XVII, René Descartes
buscava este critério, e se punha a primeira questão – não sem assombro e certo
calafrio frente a um possível desmoronamento cético – mais ou menos da seguinte
forma: como é possível conhecer sem se perder nas infinitas mediações, sem sermos
iludidos? A sua resposta foi tecida através da dúvida metódica, do método.
E o que seria um método? José Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia,
assim nos informa:
Tem-se um método quando se segue um certo caminho, para alcançar um certo
fim, proposto de antemão como tal. Este fim pode ser o conhecimento ou pode
ser também um fim humano ou vital; por exemplo, a felicidade.
O método contrapõe-se à sorte e ao acaso, pois o método é, antes de mais, uma
ordem manifestada num conjunto de regras. (Mora, 1982, p.264)
É interessante notar, na definição acima, que não há nada mais próximo de nossas
vidas, enquanto direcionamento finalista; e, paradoxalmente, nada mais distante, pois
o cotidiano nos ensina que não há como estabelecer um caminho de antemão.
E é nesse paradoxo que o método se instala, prenhe de sua historicidade. Pois, o
que geralmente concebemos como método traz consigo muito do seu cartesianismo
originário: a boa condução da razão e a procura da verdade. Voltamos a Descartes, para
dele nos distanciarmos.
Entretanto, não nos cabe caçoar, levianamente, da empreitada racionalista, com o
sorriso cínico do niilismo pós-qualquer-coisa. Pois há no método uma tentativa de
lidar com o caos, com a profusão de intensidades a que o mundo nos expõe.
O que nos importa, como teor da crítica, é que o método, geralmente, tem lidado
com a vida através de uma estabilização. É por isso que se sente certo cheiro de
estagnação no método e na metodologia. Talvez, mesmo, nossa pele perceba o problema
do método: um ar frio, uma inação gelada própria do que não tem vida, cujo sangue há
muito já não corre. O método, muitas vezes, sofre de coagulação mortificante.
Há um entrave, pois, no que se tem chamado aqui de método – a partir da citação
acima – que diz respeito ao sujeito, e este, ao controle. Método-sujeito-controle formam
uma estagnante trindade na ciência (ao menos ao que nos interessa para a psicologia):
pois o método instrumentaliza um sujeito de conhecimento, para que este controle os
acontecimentos e os conheça. E é neste ponto que precisamos traçar uma outra forma
de nos relacionarmos com o conhecimento, principalmente em psicologia. É necessário
que tornemos contemporânea as discussões em psicologia. Nossos instrumentais
teóricos – nossas bases epistemológicas – têm servido há várias décadas (há mais de
um século, na verdade), e provavelmente continuarão a servir (uns mais, outros menos).
No entanto, a contemporaneidade nos coloca problemas urgentes e bastante sui
generis, porque a subjetividade, enquanto processo de produção (maquínica, nas
palavras de Guattari & Rolnik, 1996), mostra-se bastante diversa do que se apresenta
em várias das teorias da psicologia.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
229
Nosso primeiro impulso é o de tomar a teoria como modelo (crivo, muitas vezes)
e confrontar as pessoas a este referencial. Neste movimento, podemos, então,
patologizá-las e/ou classificá-las. Mas parece que se perde aí, justamente, a potência
das configurações subjetivas atuais. Afinal, é muito fácil diagnosticar nosso afã
hedonista, nosso desejo infinito de imortalidade (e beleza), nosso imediatismo, nosso
narcisismo... para isso, basta uma olhada em qualquer banca de revistas. No entanto,
há potências sendo atualizadas e vividas, que pedem interpretações que façam jus à
sua atualidade e complexidade.
Mas voltemos ao método. Falávamos da trindade sujeito-método-controle.
Podemos entendê-la a partir da utopia do sujeito moderno, que era a de controlar o
caos das coisas, da vida, para vê-la deslizar sobre seus trilhos finalistas. Sua (ainda
nossa) forma de saber reflete isso, de várias maneiras. E só nos é possível conhecer
diferentemente se entendermos, na sua radicalidade e tragicidade, e sem nenhuma
utopia, que “as coisas não têm paz”5 , e que não há caminho seguro e reto, estabelecido
de antemão. A realidade e a verdade existem, sim, mas são da ordem da estratégia e das
linhas de força, em vez de serem uma descoberta: a verdade não é uma princesa
adormecida em sua torre esperando que vençamos o dragão e lhe beijemos os lábios.
Portanto, parece que nosso desafio é pensar a partir do movimento próprio às
coisas, à vida. Afinal, o que se entende aqui por “vida” é justamente esta potência de
devir, este movimento trágico da criação e da destruição. Vida é movimento. E nossos
métodos, amiúde, necessitam estagnar a vida para observá-la, registrá-la, analisá-la.
Os processos de subjetivação são processualidades abertas, afetáveis e afetantes.
São da ordem do encontro. Como observá-los? Seria isso possível? Para nosso
desconforto, a resposta é negativa: não há como simplesmente observar, como se
houvessse um lugar privilegiado de observador, onde este pudesse captar todo o
movimento em sua extensão e profundidade. Há que vivê-los!
O pensar, e o pensar psicológico, sobretudo, é vivência, ou melhor,
experimentação. E é um duplo movimento de experimentação: uma experimentação da
vida em sua potência de singularização; e uma experimentação do pensamento em sua
potência diferenciante. Ambos movimentos são afirmativos. Ou melhor, uma dupla
afirmação, que conflui: o pensamento afirmando a vida, a vida ativando o pensamento.
Sendo que o pensador é também um vivente, um pensador-experimentador. Ele precisa
ser afetado: pensar por afetos6 , o que nada tem a ver com qualquer sentimentalismo.
Essa qualidade de pensamento é que se faz necessária quando almejamos as bodas
entre vida e pensamento.
Mas, afinal, por que – ou mesmo para que – pensar? Pensar é um modo de traçar
um movimento conjunto à vida: uma dança, uma improvisação. Não se pensa porque
5
As Coisas, música de Arnaldo Antunes.
Para Espinosa, o afeto seria como um índice da transição entre dois estados (espírito e corpo): “A passagem
a uma perfeição maior ou o aumento da potência de agir denomina-se afeto ou sentimento de alegria; a
passagem a uma menor perfeição ou a diminuição da potência de agir, tristeza.” (Deleuze, 2002, p.57)
Gostaria de reter, aqui, a idéia de registro sensível de movimento.
7
Para esta noção, cf. PELBART, P. P. (1989). Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: loucura e desrazão. São
Paulo: Brasiliense. p.103 e ss.
6
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se decidiu a fazê-lo; pensa-se porque se é provocado a, convocado. A vida – enquanto
caos-germe7 – nos atravessa com seus fluxos (devires) e nos convoca ao movimento,
às desterritorializações e reterritorializações. Ao pensamento, cabe acompanhá-la nesta
dança, neste jogo.
Conclusão
A ética surge, pois, como uma possibilidade de conhecermos através do
movimento. Se quisermos atravessar o território hermenêutico da representação, que
tanto abrigou quanto colonizou a psicologia, precisaremos rever nosso uso do
conhecimento, nosso modo de usá-lo. Pois é preciso, antes de mais nada, que a ciência
sirva, no sentido de utilidade e submissão. E aqui voltamos à idéia de ferramenta,
citada acima.
A ciência não deve buscar verdades; mas sim utilidades. E não no sentido de um
raso utilitarismo, mas no sentido ético: a utilidade como ética da ciência. Não se pretender
verdadeira; mas útil. Para abdicar da sua tirania (seu poder despótico) é preciso que
abra mão também de sua paixão incondicional pelas verdades.
Como? A partir do momento em que a ciência abre mão de julgar o mundo segundo
seu crivo (a verdade), deixa de lado seu pretenso – e muitas vezes falso, e outras vezes
inútil – poder sobre o mundo. A partir do momento em que a utilidade é seu objetivo,
deixa a critério do utilizador a sua validade. Não se alimenta de vida (muitas vezes
humanas) para nutrir o seu desejo pelo impossível; serve às vidas, oferece-se a elas,
dá o seu peito para alimentá-las, para nutri-las: a CIÊNCIA-NUTRIZ contrapondo-se à
ciência-parasita.
Por fim, esta ética que, para Figueiredo, refere-se etimologicamente a ethos, a
“habitar o mundo”, a uma “morada” (Figueiredo, 1995, p.44), devolve-nos a possibilidade
de habitar nosso mundo. Para a psicologia, isto quer dizer que restitui uma vocação
esquecida: a de buscar conhecer a subjetividade humana no que lhe é mais próprio,
isto é, o movimento, o devir. A ética, como aqui discutida, possibilita-nos atravessar a
dicotomia sujeito-objeto, tão cara à ciência, tão problemática à psicologia, para
encontrarmos um conhecimento que se abstém de seu ímpeto normativo (tu-deves8 )
para que possa auxiliar na potencialização do querer.
O que queremos da ciência? O que queremos da psicologia? Que ela intervenha
no sentido de viabilizar a potência do querer.
Referências
Bombassaro, L. C. (1992). As fronteiras da epistemologia (2a edição) Petrópolis: Vozes.
Deleuze, G. (1994). Nietzsche. Lisboa: Ed.70. (Col. Biblioteca Básica de Filosofia; 16)
8
A referência aqui novamente é Nietzsche, em seu livro Assim Falou Zaratustra, em “Das Três Metamorfoses”
(Nietzsche, 1998, p.51 e ss.).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Deleuze, G. (2002). Espinosa: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta.
Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34.
Figueiredo, L. C. M. (1995). Revisitando as Psicologias: da epistemologia à ética das
práticas e discursos psicológicos. São Paulo/Petrópolis: EDUC/Vozes.
Foucault, M. (2001). À propôs de la généalogie de l’étique: un aperçu du travail en
cours – 1983. Em: Dits et Écrits,vol. II – 1976-1988. Paris: Gallimard.
Foucault, M. (1992). As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas
(6ª edição). Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes.
Foucault, M. (2006). Microfísica do poder (22ª edição) Rio de Janeiro: Graal.
Guattari, F. & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo (4ª edição)
Petrópolis, RJ: Vozes.
Japiassu, H. (1977). Introdução à epistemologia da psicologia. Rio de Janeiro: Imago.
Kuhn, T. S. (1978). A estrutura das Revoluções Científicas (2ª edição) São Paulo: Perspectiva.
Mora, J. F. (1982). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote.
Nietzsche, F. W. (1987). A Gaia Ciência. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães
Editores.
Nietzsche, F. W. (1998). Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Recebido em julho de 2007
Aceito em março de 2008
Jardel Sander da Silva: doutor em Psicologia; professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
– PUC-Minas
Endereço para correspondência: [email protected]
232
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.233-242, jan./jun. 2008
Reflexões acerca do atendimento psicológico
a desempregados
Janine Kieling Monteiro
Clarissa Machado Pesenti
Daiane Maus
Daniela Bottega
Fabiane Rosa Machado
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões feitas acerca do Atendimento Psicológico a Desempregados. Esta experiência trata de uma parceria entre a Unisinos e
FGTAS/SINE São Leopoldo/RS, iniciada em 2003. Visando fazer articulações entre a Psicologia
do Trabalho e a Psicologia Clínica, salientamos a importância de se agregar estas duas áreas, de
forma complementar, como uma junção de áreas que pensa, de forma ampliada, as demandas e
representações do sujeito total, que sofre com o trabalho ou com a falta dele. O desemprego
origina, muitas vezes, experiências de solidão, desamparo e desespero, como atestam as queixas
trazidas por esta clientela. Refletindo-se a partir das falas de pacientes, no processo terapêutico,
procuraremos apresentar a psicoterapia como uma forma de possibilidade de suporte para a
situação existencial desencadeada pelo desemprego.
Palavras-chave: atendimento psicológico, desemprego, psicologia clínica.
Reflections on psychological counseling to unemployed individuals
Abstract: This paper presents some reflections on psychological counselling sessions with
unemployed individuals. This research has been enabled because of a partnership between
Unisinos and FGTAS/SINE-São Leopoldo which began in 2003. The authors argue that Labor
Psychology and Clinic Psychology might come together as an important aggregation of two
different branches of psychology that takes into consideration, in a comprehensive fashion, the
needs and representations of the total self, one who suffers from his/her job or with the lack
thereof. Unemployement is many times the origin of experiences of loneliness, contempt and
dispair as the complaints of the patients in the data attest. Through reflections on the patients’
discourse during counselling sessions, the authors try to present psychotherapy as a possible
tool of support to the existential experiences that are brought about by unemployment.
Key words: Unemployment, Psychological Attendance, Clinical Psychology.
Introdução
Em dezembro de 2003 iniciou-se uma parceria entre Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – UNISINOS e FGTAS/SINE Agência São Leopoldo. Esta parceria
contou com o envolvimento de três núcleos da Universidade, entre eles o Núcleo de
Excelência em Psicologia do Trabalho (NEPT). Nessa ocasião, a Coordenação do
SINE (Sistema Nacional de Empregos) da cidade de São Leopoldo solicitou à Unisinos
que fossem realizadas intervenções relacionadas à qualificação junto aos
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
233
desempregados. Esse pedido era resultado da crença de que este público não
conseguia trabalho, principalmente, por não apresentar uma postura adequada nas
entrevistas de seleção. Partiu-se então para uma análise desta demanda, onde se
recorreu a uma investigação diagnóstica para poder entender quais eram as
necessidades reais que se apresentavam.
Após a realização deste diagnóstico feito pelo NEPT, foram oferecidas ao SINE/São
Leopoldo várias propostas de frentes de trabalho, entre elas, indicou-se o Atendimento
Psicológico aos Desempregados que procuram o serviço do SINE. Na análise diagnóstica,
constatou-se que a falta de perspectiva de resolução da fase de desemprego ultrapassa a
condição de falta de renda. Estabelecendo não só condições favoráveis à instalação e
manutenção de diversas psicopatologias, como também produzindo um estado de sofrimento
específico do desemprego. Evidenciou-se então a necessidade de uma escuta para estas
questões e sofrimentos decorrentes da situação de desemprego. Até o ano 2006, havíamos
atendido em torno de 185 pessoas neste serviço.
Desta forma, o seguinte trabalho visa apresentar algumas considerações acerca
do Atendimento Psicológico para Desempregados, no sentido de chamar a atenção
para o sofrimento psíquico específico decorrente desta condição e dos benefícios que
a psicoterapia pode trazer para o desempregado. Para isto procuraremos ainda, discorrer
sobre uma aproximação e articulação entre a Psicologia do Trabalho e a Psicologia
Clínica. Propomos a reflexão sobre estas duas não como Psicologias distintas, mas sim
de forma complementar, como uma junção de áreas que pensa, de forma ampliada, as
demandas e representações do sujeito total, que entre outras coisas, sofre com o
trabalho ou com a falta dele.
Aproximando a clínica do trabalho
Começamos a pensar, mais fortemente, na importância da aproximação da
Psicologia Clínica com a Psicologia do Trabalho quando iniciamos o atendimento
psicológico a desempregados e vimos que é impossível dissociar estas duas áreas.
Pois a nossa proposta inicial era fazer uma escuta mais voltada e/ou centrada para
questões de como o sujeito estava lidando com a falta de trabalho e de como veio
construindo a sua trajetória profissional. Mas notamos, através das falas dos
desempregados, que não tínhamos como abordar isto sem entrar também em questões
que se relacionavam com outras áreas: familiar, social, afetiva, etc.
Partindo deste ponto, é importante situar o conceito e/ou significado do trabalho.
Para Chauí o trabalho é uma das dimensões da vida humana que revela nossa
humanidade, pois é por ele que dominamos as forças da natureza, é por ele que
satisfazemos nossas necessidades vitais básicas, e é nele que exteriorizamos nossa
capacidade inventiva e criadora (Chauí, 1999, citado por Sato & Schimidt, 2004).
Como coloca Antunes (1995), acreditamos que a categoria trabalho possui ainda
um estatuto da centralidade, no universo de práxis humana existente na sociedade
contemporânea. Cabe destacar ainda a importância e a centralidade do trabalho na
vida do sujeito e como esta repercute no fenômeno desemprego, a partir de Lima e
Borges (2002, p.338):
234
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Ao contrário de certos modismos teóricos contemporâneos, defendemos a
centralidade do trabalho para o homem, mesmo nas suas formas mais
entranhadas. Em outras palavras, não vemos como pensar o homem
desconsiderando essa categoria e muito menos como pensar as conseqüências
do desemprego desconsiderando o fato de que o trabalho foi e permanece
central para o ser humano. Assim, as reações do desempregado à sua condição
não são fruto apenas das perdas materiais que sofreu, mas, sim, da
impossibilidade de expressar-se, desenvolver-se e deixar sua marca no mundo.
Portanto para estes autores, a ruptura do vínculo do sujeito com seu trabalho
acarreta também a ruptura das principais referências que estruturam seu cotidiano,
com tudo aquilo que permitia sentir-se parte integrante do seu meio.
A expulsão do mundo do trabalho e, conseqüentemente, a exclusão da sociedade
faz com que os indivíduos desempregados passem a ser impedidos de uma vida dotada
de algum sentido (Antunes, 2002). O trabalho, até então, tinha um caráter de servir
como referência econômica, social, cultural e, principalmente, psicológica (Castel, 1998).
Por tudo isto, salienta-se a demasiada importância que o trabalho assume na vida das
pessoas, sendo que ao cortar essa ligação depara-se com a perda de todo esse
investimento e de reconhecimento social e subjetivo.
No que diz respeito às questões sociais, ter um emprego significaria mais do que
ter uma atividade assalariada, pois também compreenderia todos os elementos que a
acompanham: “reconhecimento de qualificação, acesso à formação contínua, condições
de higiene e segurança e participação coletiva” (Férreol citado por Santos, 2000. p. 54)
e portanto a condição contrária, de estar desempregado, privaria o sujeito de tudo isto.
Encontramos na literatura autores que defendem que o distanciamento entre
saúde mental e trabalho e a prática clínica se traduz no acanhamento da clínica como
escrava dos acontecimentos da infância e de classificações psicopatológicas, tendo
por base sintomas ora do ponto de vista organicista, baseados em resultados
neuroquímicos ou genéticos, ora de um ponto de vista mais psicológico, mas não
introduzindo as questões relativas ao trabalho (Vasques – Menezes, 2002).
Ainda, destaca-se que a ausência da categoria trabalho na prática clínica tem
dificultado o entendimento de muitos dos sofrimentos psíquicos e o tratamento de
algumas psicopatologias, principalmente, as relacionadas com as psicopatologias do
trabalho (Codo, 2002).
Le Guillant (Codo, 2004) explora esses aspectos na medida em que busca escapar
a dois vieses que constatavam antigamente e que seguem até os dias de hoje, ou seja,
o psicologismo que consiste em se prender demasiadamente à subjetividade,
negligenciando os aspectos relativos ao meio, e uma espécie de sociologismo que
atribui tudo ao meio, desvalorizando os dados psico-históricos. É por isso que tal
autor nos adverte para a importância de considerarmos o papel fundamental exercido
pelo meio, tanto no surgimento quanto no desaparecimento dos distúrbios mentais,
mas sem nos esquecermos do fato singular que é o sujeito, onde aspectos sociais e
individuais estarão sempre se articulando na gênese das doenças, superando a
dicotomia entre subjetividade e objetividade, entre singular e coletivo.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
235
Por tudo isto, acreditamos que os profissionais de saúde mental, psicólogos
clínicos e do trabalho devem repensar os limites de uma e outra área, o que novamente
remete à crítica que se faz sobre a ausência da categoria trabalho na prática clínica
tradicional e as conseqüências que isso pode causar ao paciente em termos de
diagnóstico, intervenção e prognóstico. Busca-se a possibilidade de uma ação mais
articulada, clínica e trabalho, juntos, uma apoiando o olhar da outra na leitura e
discussão dos casos (Codo, 2002). Como cita este mesmo autor (2004), o trabalho é
sempre prenhe de subjetividade, portanto, carece da lógica clínica, e a clínica, por sua
vez, está condenada a caminhar por onde o ser humano se torna sujeito, e isso envolve
necessariamente o trabalho.
A experiência do atendimento psicológico a desempregados
Como já citado anteriormente, foi a partir de um diagnóstico realizado na
FGTAS/SINE – Agência São Leopoldo, iniciado em agosto de 2003, o qual visava
conhecer a realidade do público de trabalhadores que buscavam (re)inserção no
mercado e suas relações com os diversos momentos de interface junto ao SINE,
que iniciamos um trabalho de atendimento psicológico a desempregados. Neste
foi observado que a falta de perspectiva de resolução da fase de desemprego
ultrapassa a condição de falta de renda. Estabelecendo não só condições favoráveis
à instalação e manutenção de diversas psicopatologias como também produzindo
um estado de sofrimento específico do desemprego. Nos relatos dos
desempregados entrevistados apareceram sentimentos de depressão, desesperança,
insegurança, isolamento e problemas na auto-estima, entre outros. Evidenciou-se
então a necessidade de uma escuta para estas questões e sofrimentos decorrentes
da situação de desemprego.
Em novembro de 2003, iniciamos os atendimentos individuais com desempregados,
que foram realizados com estagiários de Psicologia do NEPT, com o objetivo de resgatar
a sua subjetividade, visando melhorar a auto-estima e a saúde psíquica destes.
Utilizamos o tratamento psicoterápico de orientação breve focal, com ênfase no trabalho,
como metodologia para os atendimentos. Esta estratégia consistiu em fazer intervenções
referentes ao mundo do trabalho, visando sua ressignificação. No entanto, como citado
anteriormente, vimos, através das falas dos desempregados, que não tínhamos como
abordar somente este foco, sem entrar também em questões que se relacionavam com
outras áreas destes sujeitos como: familiar, social, afetiva, etc.
No âmbito da agência do SINE foram divulgados os atendimentos psicológicos
e, com o tempo, listas de espera começaram a se formar. A demanda crescente instigou
o serviço a buscar alternativas de execução das atividades. Para isto, adotamos o
acolhimento como atividade inicial à psicoterapia, onde podíamos trabalhar também a
visão que estes desempregados tinham a respeito da clínica e do atendimento
psicológico e a existência ou não de uma demanda real. Pois, algumas vezes, os
desempregados acreditavam que o objetivo deste serviço era ajudá-los a conseguir
um emprego. E, nesta ocasião, deixávamos claro que isto poderia ser uma conseqüência
ou não dos atendimentos.
236
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Algumas mudanças também foram necessárias no projeto, como a necessidade
de se fazer atendimentos para manutenção e acompanhamento, pois alguns pacientes
colocavam que se sentiam angustiados, antecipadamente, por terem que parar o
atendimento, caso conseguissem um emprego. Entendeu-se ainda que algumas
dificuldades destes permaneciam mesmo com a condição de ter obtido um trabalho.
Aqui podemos trazer como exemplo o caso de uma paciente que não conseguia ficar
muito tempo nos seus empregos.
Partimos ainda do conceito de uma clínica psicológica para além de um setting (local)
ou uma técnica, concebida então como sendo uma postura, uma ética. Portanto, pode ser
focada para o desenvolvimento de estratégias para lidar com o sofrimento psíquico e para
um saudável movimento de reorganização frente ao desemprego (Moura, 2001).
Como referencial para os atendimentos breves focais utilizamos, sobretudo
Lemgruber (1997). Esta salienta que focalizar significa que o terapeuta vai tentar levar
o paciente a trabalhar emocionalmente em especial uma área previamente determinada,
sendo que, para isto, será acessado material não só inconsciente, mas também
consciente do paciente. O foco no trabalho e na experiência do desemprego demonstrouse, na continuidade dos atendimentos, como uma metodologia viável para uma escuta
do sofrimento psíquico no trabalho. Salienta-se que todos os aspectos relatados pelos
pacientes a partir da delimitação deste puderam ser encadeados com o núcleo central
em questão, corroborando as idéias da autora. O foco na situação do desemprego
proporcionou também aquilo que Lemgruber (1997) designa como efeito carambola, ou
seja, uma reorganização na vida do paciente em todos os aspectos a partir da terapia
desenvolvida sobre um enfoque específico.
Desemprego e o sofrimento psíquico
A idéia da existência de uma psicopatologia do desemprego já foi sedimentada
por diversos autores (Angerami & Santos, 1984; Seligmann-Silva, 1994; Lima & Borges,
2002), que admitem que, sobretudo o desemprego prolongado, pode criar uma situação
propícia à emergência de distúrbios mentais característicos. Neste caso, é comum a
desestruturação de laços sociais e afetivos, que podem ainda causar restrição de
direitos, insegurança socioeconômica, redução da auto-estima, sentimento de solidão
e fracasso, levando, com freqüência, à evolução de distúrbios e dependência de drogas
como o álcool (Lima & Borges, 2002).
Alguns estudos internacionais também indicaram o desemprego associado a
desfechos clínicos como à depressão (Gallo et al, 2006; Price, Choi & Vinokur, 2002;
Stankunas, Kalediene, Starkuviene & Kapustinskiene, 2006), a ansiedade (Comino &
cols., 2003; Stankunas & cols., 2006) e baixo sentimento de bem-estar (Carrol, 2007;
Kennedy & McDonald, 2006).
O trabalho, compreendido como atividade genérica é uma forma de relação com
coisas e pessoas e, por isso, forma identidades, jeitos de ser e existir num mundo
compartilhado. Por tudo isto, o desemprego e a insatisfação no trabalho estão, muitas
vezes, na origem de experiências de desenraizamento, solidão, desamparo e desespero,
como atestam as queixas trazidas por esta clientela. (Sato & Schimidt, 2004).
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237
Segundo Goulart e Guimarães (2002), a respeito das repercussões psicossociais,
o que tem sido apurado é a vivência do desemprego com um forte sentimento de
desagregação social e pessoal. Os resultados são alarmantes e indicam que o
desemprego pode culminar em depressão, angústia, sentimentos de impotência e de
culpa, perda da auto-estima, alcoolismo, tabagismo, uso de drogas em geral, conflitos
conjugais e familiares, isolamento social e até suicídio.
Todas estas experiências de condições adversas da situação de desemprego
foram, muitas vezes, observadas nas falas dos pacientes:
“Sinto-me mal, mal... é a angústia da gente não ter trabalho...”.
“Acho que vou enlouquecer ou ficar louco se continuar mais tempo assim...”.
P., homem, 61 anos, desempregado há cinco meses.
“Uma imensidão de tristeza...”.
“Tomo remédio para tudo, mas esta angústia de não ter emprego, esta angústia
não tem remédio...”.
R., mulher, 28 anos, desempregada há quatro meses.
“Vou colocar fogo na rádio... Pois este é um meio de comunicação e não me
ajuda a arrumar emprego... Aí eu vou preso... Mas para mim até que é bom, não tenho
filhos aí fico preso lá, só dormindo, ganho tudo e não preciso mais procurar emprego”.
F., homem, 43 anos, desempregado há um ano.
Trabalhar é condição imprescindível para se viver. Não o é, apenas, no sentido
material, mas para que alguém seja socialmente confiável, e isto lhe atribui um lugar
social. No desemprego, mais do que reações à sua condição por causa das perdas
materiais que sofreu, os desempregados apresentam reações também referentes à
impossibilidade de expressar-se, desenvolver-se, deixar sua marca no mundo. O que
pode ser ilustrado pelos depoimentos abaixo:
“Sinto-me sem utilidade, tenho vergonha de ficar em casa de tarde, porque os
vizinhos vão saber que estou desempregada...”.
V., mulher, 37 anos, e M., mulher, 26 anos, há 11 meses desempregadas.
“Saí para procurar emprego para ninguém dizer que sou vagabundo...”.
M., homem, 32 anos, desempregado há mais de 2 anos.
“Gostaria muito de ser feliz sem medo... medo de rejeição. Hoje meus problemas
parecem tão grandes que fico me perguntando se sou tão diferente assim. Só queria
ser ou ter coragem para falar às pessoas que preciso muito, que eles me ajudem a
parar de ter medo de tudo.”
S., mulher, 32 anos há um ano desempregada.
238
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Podemos refletir aqui que o desemprego abarca questões que atravessam toda
a vida destas pessoas e que existe uma demanda nestas para falar sobre as suas
vivências frente ao desemprego. Esta demanda e este fenômeno já foram constatados
em estudos anteriores (Sato & Schimidt, 2004; Terra, de Carvalho, Azevedo, Venezian
& Machado, 2006).
Diante desta situação apresentada, cabe perguntar de que modo e em que
circunstâncias a Psicologia e, mais especificamente, a Clínica Psicológica podem
contribuir, de forma a abrandar o sofrimento psíquico do sujeito advindo do desemprego.
O que se busca conjeturar aqui é a possibilidade de situar-se como ponto
organizador de uma ajuda psicológica voltada para o universo do trabalho e do
desemprego, no qual o setting psicoterapêutico se constitua como oportunidade
de interrogação sobre quem se é, indissociável da interrogação sobre onde se
está, ou ainda, para onde se está indo. Ou seja, para o psicoterapeuta significa
poder sustentar e, mesmo facilitar, que o sujeito interrogue-se, interrogando ao
mesmo tempo, o mundo em que se move. (Sato & Schimidt, 2004). Já que mesmo o
desempregado necessita fazer escolhas a todo o momento, mesmo sem se dar
conta. Desta forma, pode-se auxiliar o sujeito a se potencializar para sua reinserção
no mercado de trabalho. Buscando ainda refletir sobre algumas questões centrais
como: Quem sou eu? No que eu gostaria de trabalhar? Como estou fazendo as
minhas escolhas?
Acompanhamos as idéias de Moura (2001) de que o desemprego, ao mesmo
tempo em que “dissolve” a subjetividade do trabalhador produzida ao longo da
experiência de trabalho, também produz, nos sujeitos, uma abertura à capacidade de
análise crítica frente à situação que este está passando, ou seja, pode ocorrer um
aumento na capacidade de auto-percepção dos sujeitos. Neste sentido, a clínica
psicológica pode proporcionar ou contribuir para esta “abertura”, na medida em que
conduz os sujeitos a constantes questionamentos sobre quem se é, independente da
sua condição, como já citado anteriormente.
A fala de uma paciente, ao ser questionada sobre como estava sendo o processo
terapêutico pelo qual vinha passando, nos ratifica este apontamento teórico:
“Foi muito bom, hoje eu consigo me colocar mais, dizer o que penso, o que
quero, o que considero melhor para mim. Não fico só guardando e me angustiando
com as coisas. Não sei o que aconteceu exatamente, acho que posso chamar de
autodescoberta. Eu me autodescobri e isso foi devido as nossas conversas... eu vinha
aqui falava, falava e daí depois eu saía daqui e ficava me escutando, lembrando e
aquilo ficava sempre em mim.”
V., mulher , 37 anos, desempregada há 11 meses.
Considerações finais
A situação do desemprego parece obrigar os sujeitos a olharem para si, e
muitas vezes, esse movimento é feito pela primeira vez nesta situação de perda de
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
239
emprego. Isso pode promover uma inusitada possibilidade de liberdade e autonomia
frente ao futuro, ampliando os limites antes impostos pelo “ser – trabalhador”,
pois o trabalho, ao mesmo tempo em que sustenta e forma identidades, também as
aprisiona.
Sob esta perspectiva, segundo Moura (2001), enfrentar o desemprego,
significa esvaziar-se, desapropriar-se, desalojar-se de si mesmo, abrir-se às
desestabilizações. Desprovidos deste “ser – trabalhador” os sujeitos vêem-se
solitários, isolados, desvalorizados, carregados de culpa e vergonha. No entanto,
o desemprego pode oportunizar uma re-construção, abrindo possibilidades de resignificação da vida e do trabalho, sendo que no setting terapêutico, este processo
é facilitado, na medida em que o sujeito vai falando e se escutando, se escutando
e escutando ao terapeuta.
Na área psicológica, toda e qualquer terapia, nas mais diferentes linhas ou escolas,
em última instância, segundo Codo (2004), partem da possibilidade de re-significação
de conteúdos internos do sujeito para que ele consiga melhor articular seu mundo
interno e externo, de modo que esta nova forma de ser no mundo induza ou produza
modificações em seu ambiente, coerentes com as suas necessidades, aumentando a
probabilidade de sucesso e bem-estar.
Nesse sentido acreditamos que, independente do referencial teórico, o mais
importante é procurar em qualquer exercício e, principalmente, na Clínica conduzir uma
prática na direção de “ampliar as possibilidades dos pacientes de escolha e de construir
uma renovada realidade pessoal” (Sakamoto, 2000). Procurando, assim, ajudar o sujeito
a lidar com seu sofrimento, o qual ele se sente, nesse determinado momento,
impossibilitado de transformar.
Assim, pensamos a psicoterapia como uma forma de possibilidade de repouso e
suporte para a situação existencial desencadeada pelo desemprego (Sato & Schimidt,
2004). Um olhar psicológico pode, também, ser importante para salientar que as
mudanças existenciais e psicológicas que são, muitas vezes, experimentadas pelos
desempregados, pedem cuidados que ultrapassam a mera recolocação no mercado de
trabalho. A proteção e o amparo psicológicos estendem-se, ainda, na apreciação das
tentativas de retorno ao emprego, uma vez que se considera que este retorno, em
condições adversas de trabalho, para o indivíduo fragilizado, pode tender mais ao
prejuízo psicológico do que ao benefício. Por fim destaca-se que o desempregado
pode ter muitos benefícios e amenizar o seu sofrimento psíquico se puder ter acesso a
um atendimento psicológico.
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Recebido em agosto de 2007
Aceito em fevereiro de 2008
Janine Kieling Monteiro: psicóloga; doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNISINOS.
Clarissa Machado Pesenti, Daiane Maus: psicóloga graduada na UNISINOS.
Daniela Bottega: psicóloga graduada na UNISINOS.
Fabiane Rosa Machado: psicóloga graduada na UNISINOS.
Endereço para correspondência: [email protected]
242
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Aletheia 27(1), p.243-246, jan./jun. 2008
La invención ecológica. Narraciones y trayectorias
de la educación ambiental en Brasil
Bodil Andrade Frich
Quiero comenzar mi presentación agradeciendo a la coordinación de la Maestría
en Estudios Regionales en Medio Ambiente y Desarrollo la invitación que me hicieron
a participar en esta presentación, ya que ello, me dio la oportunidad de leer con todo
cuidado la obra de la doctora Isabel de Moura Carvahlo, y situarme en un nuevo punto
de vista desde donde mirar con una perspectiva diferente, el campo de la educación
ambiental, dentro del que mi propia actividad profesional se desarrolla.
Por lo anterior, mi lectura formará parte de un sin fin de posibles interpretaciones
y como un juego de cajas rusas, yo como educadora ambiental interpreto la
interpretación que otra educadora ambiental ha realizado sobre las interpretaciones
que diversos colegas brasileños expresan a través de narraciones sobre sus propias
trayectorias como educadores ambientales.
Interpretaciones siempre en busca del sentido profundo que guía nuestro decir,
hacer y sentir respecto a este reciente y dinámico campo de la educación ambiental, en
el que se teje una compleja red de significados articulados en un campo social.
Desde la perspectiva hermenéutica que la autora propone para guiar el análisis
de las vidas narradas, en las que se articulan las dimensiones individuales, sociales y
políticas de las trayectorias profesionales de los narradores, dentro de un contexto
histórico, el lenguaje cobra una gran importancia como una forma de ser, estar y hacer
el mundo, pues como dice José Omar Acá, es “a partir de este acto semiótico primordial,
constante y dinámico, que articulamos y damos sentido al mundo”, en este caso a la
relación conflictiva del ser humano y su medio ambiente, lo que constituye lo que la
autora nombra “sujeto ecológico” quien es inventado en palabras de la autora, en el
acto narrativo autobiográfico de los educadores ambientales, un sujeto ecológico que
supone idealmente un actuar según una ética ambiental.
En esta obra la autora construye los significados que dentro de un campo de
tensiones orientan la acción ambiental de los agentes que ahí establecen un desarrollo
personal y profesional. Se presentan las narraciones de 16 educadores ambientales,
que incluyen fundadores de la educación ambiental (EA), la primera y la segunda
generación pos fundadora, así como dos líderes ecológicos brasileños, como corpus
de relatos que expresan diferentes experiencias educativas y de formación en educación
ambiental en Brasil. La autora busca abordar la interacción entre el campo ambiental y
Carvalho, Isabel Cristina de Moura (2006). La invención ecológica: narraciones y trayectorias de la educación
ambiental en Brasil. Puebla: Universidad Iberoamericana (UIA) de Puebla y la Universidad Veracruzana.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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las trayectorias, en la construcción de una condición narrativa que permite formular la
cuestión ambiental como identidad distintiva de un grupo y de un espacio social en el
que se inscriben los itinerarios profesionales analizados.
En el libro de Isabel de Moura, se revelan, a través de las trayectorias biográficas
analizadas, los caminos recorridos por los sujetos y se registra el paso del tiempo en el
que se suceden diferentes coyunturas políticas. Según la autora cada trayecto, desde
su propia concepción, constituye, una narrativa política sobre el actuar político a
través del cual se reproducen y se recrean formas de ver y hacer política, ecología y
educación ambiental.
El libro conformado por 210 páginas traducidas del portugués al español con
gran claridad por Jorge Abascal y Fernando Aragón, se divide en 6 secciones
organizadas en dos partes. En la primera se desarrolla la manera como los sentidos se
van tejiendo en la tradición ambiental como una trama de tensiones múltiples, en las
que se inserta el educador ambiental como parte de un contexto histórico que va
modelando el campo ambiental.
El libro ofrece la descripción de un campo ambiental fuertemente marcado por el
contraste entre una perspectiva explicativa con una clara herencia naturalista, cuyo
discurso excluye al mundo humano al insertar el medio ambiente en la naturaleza y otra
perspectiva comprensiva del medio ambiente bajo la cual se reconoce el papel que la
educación tiene como una práctica interpretativa del ambiente como campo complejo
de relaciones entre la sociedad y la naturaleza, la cual depende del horizonte
comprensivo del intérprete, por lo que esta interpretación según Isabel, nunca será
unívoca.
Con una gran claridad la autora caracteriza las diferentes sensibilidades que
conforman el ideario ambiental contemporáneo que van desde la visión de una naturaleza
controlada por la razón, la visión pastoral idílica del naturalismo inglés del siglo XVII,
las sensibilidades burguesas del siglo XVIII, hasta la visión del romanticismo europeo
de los siglo XVIII y XIX y el imaginario edénico sobre América. Visiones que
permanecen en una tradición ambiental en la que se arraigan, refuerzan y se transforman
valores como parte de un complejo juego de intereses y motivaciones que cruzan el
campo ambiental.
Lo anterior permite a la autora sentar las bases teóricas para desarrollar en la
segunda parte del libro, la invención del sujeto ecológico, título de este libro, quien
debe ser comprendido según Isabel, como el sujeto de la acción ambiental, como un
tipo ideal que alude simultáneamente a un perfil identitario y a una utopía societaria,
siendo la educación ambiental la acción educativa de este sujeto.
En la segunda parte Isabel va entretejiendo con gran habilidad narrativa,
fragmentos textuales de las entrevistas con la interpretación que de ellos hace a la
luz de la historia, recorriendo momentos de gran tensión política y social en Brasil,
cuya huella aún lastima y perdura en la memoria de todos aquellos que viveron
aquellos tiempos y que a su vez constituyó la coyuntura en la que la educación
ambiental brasileña comenzó a tomar forma, desde acciones aisladas bajo
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Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
percepciones difusas de la problemática ambiental, dentro de un clima de represión
política, hasta iniciativas de organizaciones de la sociedad civil en torno a la
cuestión ambiental decodificadas como no- políticas dentro del régimen militar.
Las diferentes afiliaciones políticas, constituyeron el bagaje de experiencias
constitutivas del sujeto ecológico, distinguiéndose en las narraciones diferentes
pesos en el equilibrio entre pasión y profesionalización de cada educador ambiental
entrevistado. Por otro lado la contracultura, aparece como matriz simbólica en la
formación del sujeto ecológico.
Es interesante la manera como en la obra se incorpora la dimensión subjetiva a la
temática tratada, al identificar en los relatos autobiográficos el viaje del yo, de la
interioridad hacia lo ambiental. El recorrido de lo interior a la naturaleza dice Isabel, “
podría ser visto como parte de esa actualización-reinvención de un espectro de valores
alternativos, en que el Yo romántico, como espacio de revolución personal y social, es
visto de nuevo y reinvertido de sentido”.
Por otra parte, en la última sección del capítulo 5, se caracteriza el circuito editorial
y la formación de especialistas en medio ambiente y educación ambiental en Brasil, a
partir de los años ochenta, ya que constituyen para la autora, procesos que contribuyen
a caracterizar la constitución del campo ambiental.
En el último capítulo titulado la política en tránsito y los tránsitos de la política,
se busca mostrar como por un lado los recorridos y experiencias de vida de los
educadores ambientales, se encuentran insertos en un tránsito colectivo en busca de
una nueva política y cómo la política se encuentra en un momento de transición marcada
por la autonomización y estatización de los sujetos y de la acción lo que no se
circunscribe únicamente al campo ambiental, sino que revela las condiciones actuales
de la política.
La obra plantea como una de sus conclusiones, la necesidad de replantear, de
resignificar diversos ejes que cruzan el campo ambiental como son:
Sujeto - sociedad, privado – público, ética- estética como parte de una nueva
izquierda contracultural pero desde la perspectiva del conflicto constituyente de la
modernidad que podríamos describir como ejes de oposición:
Emancipación-control, racionalización-subjetivación, razón universalindividualismo, subjetividad y ciudadanía- regulación y emancipación (p 187).
Frente a esta tensión de polaridades, se muestran posiciones que van desde
declarar la muerte de la política, hasta ver en el momento actual la oportunidad para la
construcción de una nueva política a partir de espacios de negociación entre lo público
y lo privado. Sin embargo la obra deja abierta la reflexión sobre los sentidos que la
centralidad del sujeto puede adquirir y sobre las nuevas formas de la acción política
con relación al campo ambiental en general y al sujeto ecológico en particular.
Para cerrar mi presentación quisiera retomar una cita de Enrique Leff (2000, p.8)
que la autora inscribe en su texto a fin de subrayar la importancia que este libro tiene
lo que el libro que hoy se presenta, aporta al campo de la educación ambiental: ¿??
“Una hermeneutica ambiental es un mirar desde la complejidad ambiental-entendida
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como expresión de la crisis de civilización- desde donde se desentrañan los orígenes y
las causas de esta crisis, y desde donde se proyecta un pensamiento para la
reconstrucción del mundo. A través del análisis de las narraciones referidas en esta
obra y desde la percepción de la profunda crisis del pensamiento y del modo de vida
moderno, la autora vislumbra lo ambiental como un campo simbólico capaz de
resemantizar proyectos políticos y utopías para contribuir a transformar el mundo y
participar en la construcción de un futuro mejor.
Recebido em agosto de 2007
Aceito em novembro de 2007
Bodil Andrade Frich: bióloga; mestre em educação; professora da Universidade Ibero Americana de Puebla
Endereço para correspondência: [email protected]
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Instruções aos autores
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196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde); Resultados;
Discussão, Referências (títulos em letra minúscula e em seções separadas). Usar
as denominações tabelas e figuras (não usar a expressão quadros e gráficos).
Colocar tabelas e figuras incorporadas ao texto. Tabelas: incluindo título e notas
de acordo com normas da APA. Formato Word – ‘Simples 1’. Na publicação
impressa, a tabela não poderá exceder 11,5 cm de largura x 17,5 cm de comprimento.
O comprimento da tabela não deve exceder 55 linhas, incluindo título e rodapé(s).
Para assegurar qualidade de reprodução, as figuras contendo desenhos deverão
ser encaminhadas em qualidade para fotografia (resolução mínima de 300 dpi). A
versão publicada não poderá exceder a largura de 11,5 cm para figuras. Anexos:
apenas quando contiverem informação original importante, ou destaque
indispensável para a compreensão de alguma seção do trabalho. Recomenda-se
evitar anexos.
6) Trabalhos com documentação incompleta ou não atendendo às normas
adotadas pela revista (APA, 4ª edição) não serão avaliados.
Normas para citações
- As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas
por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de
texto ao qual se refere a nota.
- As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (4ª
edição).
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
249
- No caso da citação integral de um texto: deve ser delimitada por aspas, e a
citação do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma citação literal com
40 ou mais palavras deve ser apresentada em bloco próprio em itálico e sem aspas,
começando em nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma posição de
um novo parágrafo. A fonte será a mesma utilizada no restante do texto (Times New
Roman, 12).
• Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da
publicação. Exemplo: Rodrigues (2000).
• Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no
texto. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000) – quando os sobrenomes forem citados
entre parênteses, devem estar ligados por &. Quando forem citados fora de parênteses,
devem ser ligados pela letra e.
• Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência,
seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize o
sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. Exemplo: Silva, Foguel, Martins e
Pires (2000), a partir da segunda referência, Silva e cols. (2000).
• Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor,
seguido de e cols. (ANO). Na seção referências, todos os autores deverão ser citados.
• Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação
original, seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant 1871/1980).
• Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes e
não a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza,
2005).
• Publicações diferentes com a mesma data: acrescentar letras minúsculas, após
o ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: utilizar a expressão
citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),...
Na seção Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins).
• Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data,
página. Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45).
Normas para referências
As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo.
Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em
minúsculo.
Livro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento
familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
250
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Capítulo de livro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp
(Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Artigo de periódico científico
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde:
desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia,
3(1), 95-121.
Artigos em meios eletrônicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública”
ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artigo de revista científica no prelo
Albuquerque, P. (no prelo). Trabalho e gênero. Aletheia.
Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tese ou dissertação publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, RS.
Tese ou dissertação não-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antiga e reeditada em data muito posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
Autoria institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª
ed.).Washington: Autor.
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251
Endereço para envio de artigos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
CEP: 92425-900
252
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Instructions to authors
Editorial policy
Aletheia is a half-yearly journal edited by the Psychology Program of the Lutheran
University of Brazil, which purpose is to publish papers in Psychology and related
sciences. Only unpublished papers will be accepted into these categories: original
articles, review/update articles, professional experiences reports, brief communications
and book reviews.
Original articles: empirical research reports with scientific methodology.
Review articles/ Update articles: systematic and update reviews about relevant
themes according with editorial policy.
Professional experiences reports: case reports with discussion of its conceptual
or therapeutic implications; description of intervention procedures or strategies of
psychology practitioners’ interest.
Brief communications: brief reports of professional experiences or preliminary
communications of original character.
Book review: critical review of recently published books that may be of interest
to psychology.
Ethical aspects: All the articles involving research with human subjects must
state that individuals included in these studies gave a Written Informed Consent,
according to the national and international ethical regulations. In case of research with
animals, authors must confirm that the study was done in accordance with the ethical
care standards for the animals involved in the research. The authors are also requested
to state in the “Methods” section that the research protocol was previously approved
by a Research Ethics Board.
Disclosures: The authors are requested to disclose all possible kinds of conflict
of interest (professionals, financials, direct or indirect benefits), if the case. The failure
to disclose properly can lead to publication refusal or cancellation.
Editorial rules
1. Only unpublished articles will be accepted.
3. The articles will be evaluated by the Editors.
2. After initial evaluation, the Editors will send the submitted papers to the Editorial
Board, which will be helped, whenever necessary, by ad hoc consultants of recognized
expertise in the knowledge area. The Editorial Board and ad hoc consultants will
analyze the manuscript, suggest modifications, and recommend or not its publication.
4. The papers may be: a) fully accepted; b) accepted with modifications; c) fully
refused. In any of the situations the author will be properly communicated. The originals
will not be returned in any case.
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253
5. The authors will received a copy of the consultants’ analysis and will be
informed about recommended modifications.
6. When the modified version of the manuscript is sent (this may happen up to
15 days after receiving the notification), the authors must include a letter to the Editors,
elucidating the changes that have been made and justifying the ones they did not
judge relevant to make. All modifications must be highlighted with Word’s tool “yellow
brush”. The modified version of the article may be sent by e-mail ([email protected]).
7. The Editors have the right to make small modifications in the text.
8. The final decision of publication of a manuscript will always be of the Editor
and of the editorial board in charge. They will take into consideration the original text,
the consultant’s recommendations and the modified version of the article.
9. Articles may be submitted in other languages besides Portuguese (Spanish
and English)
10. Regardless the number of authors, two copies of the journal per published
article will be offered. The electronic version of the printed article (PDF file) can be
accessed in Aletheia homepage www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its
acceptance does not mean that Aletheia supports it.
12. Total or partial reproduction can be made only after permission of the Editor.
Aletheia owns the copyrights and will not transfer them to authors.
Preparation of manuscripts
1) The unpublished articles must be sent in diskettes or CD and also one printed
copy, typed in double space, Times New Roman letter, size 12, numbered since the title
page. The sheet must be A4, with inferior and superior margins of 2,5 cm, and right and
left margins of 3 cm. The journal follows the rules of Manual of Publication of American
Psychological Association - APA (5th edition, 2001).
2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages);
Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages);
Brief communications (5 pages); Book review (5 pages).
3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf
of the Editor in charge.
4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization
letter, signed by all of the authors, stating:
a) The intention of submission the article to publication;
b) Authorization for modification of language if necessary;
c) Transference of copyrights for Aletheia Journal.
254
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5) The manuscript should contain:
a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title
and institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at
least 3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract
; key words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail.
b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese
from 10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible
with the text of Portuguese abstract ; key words;
* If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in
its original language.
c) Body of the text.
d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction, Method
(population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this section the
study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results, Discussion,
Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in separate section).
Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other terms). Place
tables and figures embedded in the text. Tables: including title and notes in accordance
with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed version the table may
not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of the table should not exceed
55 lines, including title and footer(s). To ensure quality, the reproduction of pictures
containing drawings should have photograph quality (minimum resolution of 300 dpi).
The printed version can not exceed 11.5 cm width for pictures. Appendixes: only when
they contain new and important information, or are essential to highlight and make
more understandable any section of the paper. The use of appendixes should be
avoided.
6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted
by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised.
Citations norms
- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged
by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the
note refers to.
- The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition).
- In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and
the author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal
citation with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without
quotation mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
255
position of a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text
(Times New Roman, 12).
• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of
publication. Example: Rodrigues (2000).
• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the
text. Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between
parentheses: they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis
they must be connected by the letter e.
• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference,
followed by the date of article between parentheses. Starting from the second reference,
use the last name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins
and Pires (2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000).
• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed
by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited.
• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,
followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980).
• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names
and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year
of publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c).
• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression
cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...
In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins).
• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.
Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).
References norms
The bibliographical references must be presented at the end of article. Its
disposition must be in alphabetical order of the last name of author in small letter.
Book
Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Chapter of book
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp
(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto
Alegre: Artmed.
256
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Article of scientific journal
Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health:
Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology,
3(1), 95-121.
Articles in electronic means
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health” or open
field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://
www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.
Article of scientific journal in press
Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.
Work presented in congress
Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family. Em
Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.
Thesis or published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in
Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, RS
Thesis or non-published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program
of Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS
Old work reedited in posterior date
Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:
Universal. (Original published in 1950)
Institutional Authorship
American Psychological Association (1994). Publication manual (4th
edition).Washington: Author
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
257
Address for submissions
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
CEP: 92425-900
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
258
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Instrucciones a los autores
Política editorial
Aletheia es una revista semestral editada por el Curso de Psicología de la
Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de
investigadores, implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias
afines. Serán aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las
categorías de relato de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos
experiencia profesional, comunicaciones breves y reseñas.
Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando
metodología y análisis científica.
Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre
temas relevantes para la línea editorial de la revista.
Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de
implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias
de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología.
Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o
comunicaciones preliminares de resultados de investigación.
Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto
a sus características y usos potenciales.
Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres
humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término
de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e
internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los
autores deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las
recomendaciones éticas para este tipo de investigación. Los autores también son
solicitados a declarar, en la sección “Método”, que el protocolo de la investigación
ha sido previamente aprobado por algún Comité de Ética en Investigación del local
de origen del proyecto.
Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos
de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso. El
fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de la
publicación.
Normas editoriales
1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos.
2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores.
3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación
del Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida
competencia en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
259
ad hoc analizan el artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su
publicación.
4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con
reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será
debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán
devueltos.
5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será
informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas.
6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15 días
después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta al
Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes y
la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con la
herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones
realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]).
7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el texto
de los artículos.
8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor
Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de las
sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el autor.
9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español
e inglés).
10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares
por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará disponible
en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los
autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología de
la ULBRA le soportan.
12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente, des
de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales
obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del artículo.
Presentación de los originales
1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa,
digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde la
hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes
superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La revista
adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological Association
- APA (4ª edición, 2001).
2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos
de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos
260
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas
de libros (máximo de 5 laudas).
3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la
atención del Editor Responsable.
4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de
autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar:
a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación;
b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario;
c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia.
5) El artículo debe contener:
a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre
de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen
en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo en
lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección
para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail.
b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o
castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave,
título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el
texto del Resumen en lengua original; keywords.
c) Cuerpo del texto.
d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten
la siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra,
instrumentos, procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta
sección afirmación de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación
de acuerdo con la Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio
de Salud o declaración de haber atendido a los criterios de dicha resolución);
Resultados; Discusión, Referencias (títulos en letra minúscula y en secciones
separadas). Utilizar las denominaciones tablas y figuras (no utilizar la expresión
cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras incorporadas al texto. Tablas:
incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la APA. Formato Word –
‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder 11,5 cm de ancho
x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas, incluyendo título
y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras que contengan
dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución mínima de
300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm para figuras.
Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque
indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase
evitar anexos.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas
por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados.
Normas para citaciones
- Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas
por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de
texto al cual se refiere a la nota.
- Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas de
la APA (4ª edición).
- En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas y la
citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita literal con
40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin comillas,
empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del margen, en la
misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada en el restante del
texto (Times New Roman, 12).
• Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año de
publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000).
• Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el
texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre
paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis
deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para
publicaciones en castellano.
• Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia,
seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia,
utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins
y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000)
• Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor,
seguido de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser
citados.
• Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación
original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980).
• Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no el
orden cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005).
• Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego el
año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión
citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),...
En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins).
• Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha,
página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45).
262
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
Normas para referencias
Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo. Su
disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando presente
más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede utilizar la
normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por un guión. Ej.:
Martínez-Cruz.
Libro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de libro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp (Org.),
Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Artículo de publicación periódica científica
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a
formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.
Artículos en medios electrónicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou
campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artículo de revista científica en prensa
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Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales
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Tesis o monografía publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.
Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Aletheia 27(1), jan./jun. 2008
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Tesis o monografía no-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças pré-escolares.
Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
Autoría institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).
Washington:Autor
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(jan./jun. 1995)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 1995.
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