Enfermagem
Os enfermeiros em cuidados
de saúde primários
CRISTINA CORREIA
FERNANDA DIAS
MANUELA COELHO
PAULA PAGE
PAULO VITORINO
A ideia de uma «enfermagem comunitária» centrada no
trabalho com as famílias já vem de há muito a ser teorizada
e praticada pelos núcleos inovadores da enfermagem em
cuidados de saúde primários, mas recebeu novo impulso na
recente Conferência Europeia de Munique (2000). Trata-se
de uma prática centrada na comunidade, promovendo estilos de vida saudáveis, contribuindo para prevenir a doença
e as suas consequências mais incapacitantes, dando particular importância à informação de saúde, ao contexto social,
económico e político e ao desenvolvimento de novos conhecimentos sobre os determinantes da saúde na comunidade.
Em Portugal a enfermagem é hoje reconhecida como uma
profissão que se impôs de forma decisiva nos últimos vinte
anos. No entanto, dos cerca de 36 000 enfermeiros em Portugal, só cerca de 17% exercem funções nos centros de
saúde e apenas 15% são enfermeiros com a especialidade
de saúde pública/comunitária.
Apesar destas limitações, existem relatos sobre importantes
melhorias quantitativas nas actividades relacionadas com a
promoção da saúde nos centros de saúde. Muitos enfermeiros, em diferentes regiões do país, estão também envolvidos
em projectos de cuidados continuados. Estes cuidados têm
reforçado e valorizado a prática da enfermagem comunitária, para além de terem contribuído para melhorar o
acesso das populações aos cuidados de saúde. Perspectiva-se, assim, o desenvolvimento de uma enfermagem da
saúde da família capaz de alicerçar a sua intervenção em
práticas «baseadas na evidência», correspondendo a neces-
Cristina Correia, Fernanda Dias, Manuela Coelho, Paula Page e
Paulo Vitorino são enfermeiros na Sub-Região de Saúde de Lisboa.
VOLUME TEMÁTICO: 2, 2001
sidades reais, com capacidade para integrar a promoção da
saúde e a prevenção das doenças, trabalhar em equipas
multidisciplinares e multissectoriais e promover a participação activa dos cidadãos nas decisões sobre a sua saúde.
Numa perspectiva internacional, a área da saúde,
decorrente das determinações da Organização Mundial
de Saúde para a Região Europa, está em processo de
mudança, o que traz novas perspectivas para os profissionais que até ao presente têm conseguido, melhor ou
pior, funcionar em cenários clássicos que, por razões e
interesses diversos, se foram perpetuando.
A enfermagem não é excepção; antes pelo contrário,
são-lhe colocados contextos e desafios que, a curto
prazo, irão muito para além dos modelos tradicionais
nos quais tem vindo a funcionar, quer ao nível da
formação, quer ao nível dos diferentes locais de trabalho. Estes modelos têm-se mantido, umas vezes,
porque essa realidade é imposta e, outras, porque têm
tido alguma dificuldade em separar-se de um passado
longo e das consequências deste na sua autoconstrução. Isto tem condicionado a sua forma de estar e de
procurar formas inovadoras de fazer pesar as suas
potencialidades face aos actuais problemas de saúde
e aos contextos em que se prestam cuidados.
Desde os desafios que se esboçaram no final dos anos
70 com a Declaração de Alma-Ata (International
Conference, 1978), que deu origem aos actuais cuidados de saúde primários e à Declaração de Viena (United
Nations, 1993), só a Declaração de Munique (WHO
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Enfermagem
Ministerial Conference, 2000), elaborada em Junho de
2000, veio dar um novo fôlego a uma mudança pronunciada que será muito difícil de continuar a adiar.
A Declaração de Munique teve como finalidade a
identificação de acções específicas, com vista a
apoiar e salientar as capacidades dos enfermeiros, no
sentido de contribuírem para a saúde e para a qualidade de vida dos cidadãos a quem prestam cuidados.
Entre outras coisas, igualmente importantes, surgiu
de forma clara uma nova figura de enfermeiro de
saúde comunitária, «o enfermeiro de família»,
enquanto entidade imprescindível no quadro da
Saúde 21, ou seja, a política adoptada para a Região
Europa, em Setembro de 1998, que os governos dos
diferentes países europeus ratificaram.
A enfermagem de saúde comunitária encontra-se,
assim, no processo de receber um legado que exigirá
profundas alterações ao nível da preparação destes
profissionais de saúde. O «enfermeiro de família»
terá necessariamente de saber cruzar e articular de
forma harmoniosa o conhecimento de diversos instrumentos de trabalho — oriundos da saúde pública,
da prática clínica e dos cuidados de saúde primários — que se foram estabelecendo de formas muito
diferentes, com tempo e ritmos desencontrados.
Estas exigências não só implicam que se desenvolva
uma nova perspectiva de saúde pública, como também a reorganização do ensino e das instituições, no
sentido de promover o desenvolvimento de capacidades que são indispensáveis aos novos papéis que os
enfermeiros terão de desempenhar.
1. Alguns conceitos para a prática
de enfermagem em cuidados
de saúde primários
Em cuidados de saúde primários, a enfermagem integra o processo de promoção da saúde e prevenção da
doença, evidenciando-se as actividades de educação
para a saúde, manutenção, restabelecimento, coordenação, gestão e avaliação dos cuidados prestados aos
indivíduos, famílias e grupos que constituem uma
dada comunidade.
Enfermagem comunitária é uma prática continuada e
globalizante dirigida a todos os indivíduos ao longo
do seu ciclo de vida e desenvolve-se em diferentes
locais da comunidade. Poder-se-á dizer que é um
serviço centrado em famílias, que respeita e encoraja
a independência e o direito dos indivíduos e famílias
a tomarem as suas decisões e a assumirem as suas
responsabilidades em matéria de saúde até onde
forem capazes de o fazerem.
Resumindo, é «trabalhar com as famílias» de forma
a ajudá-las a desenvolverem capacidades para o
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desempenho adequado e eficiente das suas funções.
A sua prática é de complementaridade com a dos
outros profissionais de saúde e parceiros comunitários, responsabilizando-se por identificar as necessidades dos indivíduos/famílias e grupos de determinada área geográfica e assegurar a continuidade dos
cuidados, estabelecendo as articulações necessárias.
Esta prática assenta em características tais como:
•
•
•
•
Foco em populações que vivem em comunidade;
Uso de estratégias para a promoção e manutenção
de estilos/comportamentos saudáveis e prevenção
da doença da população, investindo na informação em saúde em larga escala e sua utilização na
melhoria da qualidade de vida;
Uso de estratégias que têm, necessariamente, em
conta o contexto sócio-político em que se inserem;
Participação em estudos de carácter epidemiológico e outros que visem a resolução de problemas
de saúde da comunidade.
Num estudo realizado recentemente (2000) junto de
enfermeiros da prestação de cuidados em centros de
saúde da Sub-Região de Saúde de Lisboa onde é
abordada esta temática foram encontrados valores
universais, sobretudo ao nível do «transcuidar», onde
o enfermeiro «faz com» a pessoa, procurando sempre
o equilíbrio com o contexto de vida real.
Ainda neste estudo, os enfermeiros descreveram o conceito de saúde em termos de bem-estar e de crescimento/desenvolvimento. Parece estar a emergir um
aspecto da saúde relacionado já com o desenvolvimento, nomeadamente, das potencialidades do indivíduo com vista ao seu bem-estar. Para estes enfermeiros
constitui objectivo dos cuidados que prestam serem
agentes e, simultaneamente, alvo de transformação.
Este conceito está de acordo com o descrito por
Kérouac (1994), em que a existência de dois níveis de
cuidados nos orienta para a pessoa ou para o contexto
em que ela vive, em interacção dinâmica, coincidente
com a perspectiva de enfermagem comunitária.
No que se refere ao conceito de cuidados de enfermagem identificado naquele estudo, verificou-se que
este se centra, essencialmente, naquilo que os enfermeiros fazem, destacando-se acções do tipo «possibilitar» (ensinar, informar, aconselhar). Quando este
critério é definido em termos do indivíduo, realça o
«desenvolvimento pessoal» e o «bem-estar».
2. Quem somos?
Os enfermeiros são um importante grupo profissional
nos serviços de saúde do país. A enfermagem portu-
REVISTA PORTUGUESA DE SAÚDE PÚBLICA
Enfermagem
guesa é hoje reconhecida social e profissionalmente
como uma profissão que se impôs de forma decisiva
nos últimos vinte anos.
Segundo o Conselho Internacional de Enfermeiras
(CIE), num documento que aborda o presente e o
futuro da enfermagem, a profissão evoluiu a partir de
antecedentes sociais, religiosos, militares, mas já
neste século quem mais influenciou a enfermagem
foi Florence Nithtingale com o seu sistema de formação de enfermeiras.
Um importante estímulo para a mudança na enfermagem foi a iniciativa da OMS «Saúde para todos»,
lançada em 1978, que insistia na necessidade de que
as enfermeiras trabalhassem fora do contexto hospitalar tradicional.
Este planeamento de cuidados de saúde primários
exigia que a formação em enfermagem mudasse.
O Conselho Internacional de Enfermeiras sugeriu
então que os planos de estudos se preparassem não
só para satisfazer a procura das competências, mas
também para formar atitudes de consciência social e
desenvolver, entre outras coisas, soluções de problemas e de direcção de equipas multidisciplinares.
Em 1989, na Assembleia Mundial da Saúde, a maioria dos Estados membros reconhecia que a alta tecnologia estava a ser prioritária na distribuição dos
escassos recursos de enfermagem, ou seja, 80% do
pessoal de saúde dispensavam serviços curativos a
20% da população residente nas cidades e estavam
sem cuidados os 80% residentes nas zonas rurais.
A prestação de cuidados de enfermagem estava, pois,
a responder a necessidades curativas em detrimento
dos cuidados de promoção da saúde e de prevenção
da doença.
Foi reconhecido que o ensino acompanhava esta tendência e eram poucas as enfermeiras na docência que
tinham a compreensão e a experiência necessárias
para ensinar cuidados de saúde primários.
Em 1992 continuava actual uma parte desta análise
de 1989, mas nas recomendações assinalava-se que
«os planos de estudos se reorientaram na direcção
dos cuidados de saúde primários e existe uma tendência para o ensino superior».
E para preparar as enfermeiras para o futuro a formação em enfermagem deve converter-se num instrumento de apoio à mudança.
Portugal, apoiado nas orientações internacionais,
procura reorientar o ensino de enfermagem para a
mudança, privilegiando nos planos de estudo a abordagem dos cuidados de saúde primários e a passagem
ao ensino superior.
Neste contexto, existem hoje 35 861 enfermeiros, o
que corresponde a 3,6 enfermeiros por mil habitantes, muito abaixo da média da CE (5,2), valor este
que fica longe das necessiaddes.
Destes, conforme pode verificar-se (Tabela 1), apenas 17% exercem funções nos centros de saúde, a par
dos 72% a exercerem funções nos hospitais.
A média etária dos enfermeiros a nível nacional é de
38,7 anos, dos quais mais de 60% têm menos de 41
anos, sendo esta ainda superior nos centros de saúde.
Em todo o país apenas existem 989 (15%) enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde pública/
comunitária (Tabela 2), ou seja, apenas um enfermeiro desta área por cada 10 090 habitantes.
O Departamento de Recursos Humanos da Saúde
(DRHS) afirma existir um défice de enfermeiros que
em 1999 era superior a 9500 e nos próximos cinco
anos atingirá um défice de cerca de 12 000 enfermeiros.
A escassez de enfermeiros reflecte-se na qualidade
dos cuidados prestados aos indivíduos, famílias e
grupos e nas relações interprofissionais. No entanto,
nos últimos cinco anos as estratégias de saúde nacionais perspectivaram mudanças, desencadeando novas
expectativas e motivações nos enfermeiros, de que
resultou um aumento na procura de trabalho nos centros de saúde (por exemplo, na Sub-Região de Saúde
de Lisboa entraram, entre 1996 e 1999, 380 enfermeiros).
Tabela 1
Distribuição dos locais principais de exercício
Tabela 2
Distribuição dos enfermeiros por área de especialidade
Primeiro local de exercício profissional
Número
Percentagem
Áreas de especialidade
Centros de saúde
Hospitais públicos
Escolas Superiores de Enfermagem
Exercício liberal
Serviços de Saúde Mental
Outros
16 184
25 764
11 576
11 969
11 132
12 236
117
172
112
113
110
116
Enf.
Enf.
Enf.
Enf.
Enf.
Enf.
Total
35 861
100
Total
Fonte: Ordem dos Enfermeiros, Novembro de 2000.
VOLUME TEMÁTICO: 2, 2001
médico-cirúrgica
de reabilitação
saúde infantil e pediátrica
saúde materna e obstétrica
saúde mental e psiquiátrica
saúde pública/saúde na comunidade
Número Percentagem
1 117
1 996
1 931
1 528
1 963
1 989
6 524
17,1
15,7
14,3
23,4
14,8
15,2
100
Fonte: Ordem dos Enfermeiros, Novembro de 2000.
77
Enfermagem
3. O que fazemos?
A actuação dos enfermeiros em cuidados de saúde
primários situa-se em duas áreas distintas, a da saúde
pública e a da saúde comunitária, em parte por
herança histórica, mas considerando também os problemas de saúde nacionais, as orientações políticas
internacionais, nacionais e regionais, a formação e a
evolução da profissão.
Reconhece-se que o enfermeiro detém um lugar privilegiado nos modelos de equipa pluridisciplinar de
saúde que têm sido experimentados entre nós devido
às múltiplas oportunidades que tem de conhecer as
famílias e os seus «estilos de vida» durante o atendimento das suas necessidades de saúde, assim como
dos recursos comunitários. Estas oportunidades conferem-lhe o papel de agente facilitador da mudança
que se pretende efectuar.
Trabalham integrados em programas ou projectos no
CS, no domicílio ou em grupos institucionalizados da
zona de implantação geográfica do CS, como promotores ou participantes, a título individual e/ou de
forma articulada em grupos multidisciplinares e, por
vezes, transectoriais, junto de pessoas, famílias e grupos da população.
Neste momento congregam esforços para adoptarem
internacionalmente uma linguagem profissional
comum e uma classificação das nossas práticas. Para
isso estão a ser testados os fenómenos e as intervenções de enfermagem, pretendendo-se avançar para os
resultados sensíveis aos cuidados de enfermagem. No
nosso país está em curso, no programa SINUS, um
registo sistemático dos cuidados prestados no programa nacional de vacinação, prevendo-se para breve
o início do módulo clínico de enfermagem.
Os enfermeiros em cuidados de saúde primários:
•
•
•
•
•
•
78
São responsáveis pela execução do PNV;
Partilham a responsabilidade epidemiológica com
as autoridades de saúde, identificando precocemente «casos novos», sobretudo os detectados em
grupos comunitários;
Efectuam inquéritos epidemiológicos, contribuindo para o diagnóstico e controlo da situação
sanitária do ponto de vista endémico e epidémico;
Efectuam vigilância de saúde a grupos seleccionados segundo padrões de comportamento ou
problemas específicos ou com disfuncionalidades
familiares e/ou sociais em aspectos ligados à
saúde materna, infantil e escolar, à adolescência e
doenças transmissíveis mais relevantes;
Estão próximos dos migrantes e imigrantes,
dando apoio e orientação em questões de saúde;
São promotores ou respondem às solicitações do
poder autárquico local ou de associações de
•
•
•
bairro, bem como a iniciativas empresariais, no
âmbito da saúde no trabalho;
Contribuem para a detecção precoce da doença
através da realização de rastreios (Mantoux e PIK);
Trabalham em articulação, sobretudo com instituições governamentais, nas áreas da educação e
da segurança social, mas também com associações na vigilância, acompanhamento e/ou execução do programa de tratamento instituído, de
doenças infecciosas, oncológicas, mentais, entre
outras;
Integrados em movimentos sinergéticos
transectoriais, participam em programas e projectos específicos, estabelecidos em rede ou em parceria, no controlo de doenças civilizacionais e nas
denominadas life style.
As práticas dos enfermeiros centram-se, como vimos,
sobretudo na pessoa, inserida numa família e integrada em determinado contexto ambiental e social.
Assim, e em síntese, os enfermeiros cuidam de indivíduos, famílias e grupos, no CS, no domicílio, ou
em organizações comunitárias, acompanhando-os ao
longo do ciclo de vida, próximos dos problemas e
anseios das pessoas.
O papel do enfermeiro na comunidade consiste em
«possibilitar» a autonomia, criar com sabedoria a
oportunidade, reforçando crenças e capacidades, respeitando as decisões e os ritmos de aprendizagem,
fomentando, a partir da célula familiar, a reprodução
e herança de modelos comportamentais e experiências de saúde individuais, num processo de crescimento e desenvolvimento.
Num recente trabalho de investigação realizado com
enfermeiros de centros de saúde na Região de Lisboa
e Vale do Tejo, quanto ao processo de cuidar, os
enfermeiros valorizam sobremaneira a função possibilitar, fornecendo a informação necessária, que é
geradora de alternativas, que permitirá à pessoa a
tomada de decisão, efectuar opções de vida, de forma
livre, autónoma, consciente e responsável.
Referem-se também à função «conhecer», procurar
informação centrada no cliente, evitando ideias preconcebidas, apreciando, por antecipação, os sinais e
problemas inerentes às pessoas nas várias etapas da
vida.
Mencionam ainda a importância de «estar com», no
sentido de acompanhar, estar junto dos indivíduos e
famílias, envolvidos numa parceria, em presença
plena, de forma competente, congruente e empática,
na partilha de sentimentos e experiências.
Assinalam também o «executar», preservando a dignidade no cuidar, ou seja, realizar uma acção terapêutica, de forma parcial ou total, temporária ou permanente, a uma pessoa, substituindo, incentivando e
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Enfermagem
preparando um familiar ou outro prestador informal
a cuidar. Salientam ainda o ajudar a «manter a
crença», a «desenvolver a auto-estima» e a «adoptar
atitudes de esperança e de optimismo realista».
Por fim, «utilizar o sistema de saúde», pois os enfermeiros referenciam, encaminham ou direccionam os
utentes para os diferentes recursos.
A título exemplificativo, apresentam-se (Quadro I)
algumas intervenções dos enfermeiros na comunidade, muitas delas em articulação com parceiros sociais
e/ou instituições.
Muitos enfermeiros, em diferentes regiões, desenvolvem também actividades no «projecto de cuidados
continuados». O relatório (2000) deste projecto
refere o aumento significativo de visitas domiciliárias
realizadas por enfermeiros, assim como a melhoria
da qualidade e dos meios postos ao alcance dos profissionais.
Num trabalho realizado pela Agência de Contratualização da ARSLVT (1999) sobre a satisfação dos
utentes utilizadores dos cuidados continuados concluiu-se que 87% dos inquiridos estão satisfeitos com
os cuidados recebidos e mais de metade referem
terem melhorado a sua qualidade de vida após os
cuidados que lhes são prestados no domicílio.
No âmbito da promoção da saúde, da prevenção da
doença e da prestação de cuidados globais a populações
inseridas em «bolsas de pobreza» destaca-se o projecto de intervenção especial em saúde materno-infantil e planeamento familiar, que utiliza unidades móveis.
Este projecto foi distinguido em 1998, no 50.o aniversário da OMS, por boas práticas comunitárias dirigi-
das à saúde das mulheres e das crianças e igualmente
em 2000 com o II Prémio Europeu de Promoção da
Saúde, pela abordagem que privilegiou o empowerment da comunidade local, o respeito pela cultura
local, a metodologia interdisciplinar, a abordagem
holística, a formação de promotores e mediadores de
saúde, o impacto positivo nas estruturas, e pelo excelente trabalho de equipa.
Dos resultados positivos e dos constrangimentos
encontrados surgiram recomendações para outros
projectos neste âmbito. Pode dizer-se que:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Estes projectos têm permitido reforçar o trabalho
comunitário;
As unidades móveis são uma boa estratégia de
aproximação à comunidade;
Aumentam o conhecimento da realidade local;
Valorizam as diferentes culturas existentes, a participação comunitária e o empowerment;
Utilizam novos espaços comunitários;
Geram relações de proximidade (e de afecto)
entre técnicos e comunidade;
Desenvolvem e criam novas parcerias;
Organizam recursos dirigidos às necessidades
identificadas e sentidas como importantes para as
populações;
Melhoram o acesso aos cuidados de saúde.
Ainda no âmbito da promoção da saúde e da prevenção da doença, os enfermeiros desenvolvem na área
da saúde escolar um importante trabalho. Um relatório de avaliação destas actividades na Região de Lis-
Quadro I
Intervenções de enfermagem na comunidade
Projecto
Intervenção especial materno-infantil e planeamento familiar (unidades móveis)
Amora em mudança — a festa da saúde
Intervenção de enfermagem nas famílias em continuidade de cuidados
Equipas nucleares — a enfermeira de família
Intervenção comunitária por área geográfica
Enfermeiro de família
Enfermagem familiar
A criança, a família e a toxicodependência
Cuidados de saúde na comunidade de Vale do Forno
Intervenção comunitária no Bairro das Galinheiras
Prevenção de acidentes infanto-juvenil
Promoção da saúde na escola
Continuação de cuidados pediátricos no domicílio a crianças com doença crónica
Educação sexual/planeamento familiar grupo APPC
Promoção da saúde na escola — jovens ao COTA
Estudo diagnóstico de saúde familiar
Adolescência alerta
Luta contra a imobilização do idoso
VOLUME TEMÁTICO: 2, 2001
Regiões
Lisboa e Vale do Tejo e Norte
Lisboa e Vale do Tejo
Lisboa e Vale do Tejo
Norte
Norte
Centro
Norte
Lisboa e Vale do Tejo
Lisboa e Vale do Tejo
Lisboa e Vele do Tejo
Alentejo
Lisboa e Vale do Tejo
Centro
Centro
Lisboa e Vale do Tejo
Lisboa e Vale do Tejo
Norte
Algarve
79
Enfermagem
boa (2000) destaca o aumento da cobertura vacinal
global de 65% para 73%, registando, nos anos lectivos de 1997-1998 e de 1998-1999, ao nível do
ensino pré-escolar, taxas de 84% e 97%.
Na área da promoção da saúde, o mesmo relatório
refere o aumento, no ano lectivo de 1999-2000, do
número de horas atribuídas a esta actividade (mais
5000 horas), reflectindo uma maior sensibilização e
implicação de todos os profissionais em actividades
de âmbito comunitário.
•
ciplinar, como seria desejável. No relatório de
avaliação das actividades do projecto de cuidados
continuados atrás mencionado afirma-se que em
algumas equipas os cuidados prestados são exclusivamente de enfermagem;
A avaliação das actividades dos enfermeiros não
é ainda efectuada segundo indicadores que possam efectivamente medir o impacto dos seus cuidados nos ganhos em saúde.
5. Que perspectivas?
4. Que constrangimentos?
Vários são os constrangimentos profissionais,
situando-se estes desde o nível da formação até às
práticas, para além dos bloqueios organizacionais e
das limitações impostas pelo próprio sistema de saúde:
•
•
•
•
•
•
80
Constitui grande constrangimento a reconhecida
escassez de enfermeiros, a nível nacional, para
dar resposta às necessidades de determinadas
populações e ao alargamento de horários e crescimento de instituições e serviços;
Não foram até agora encontrados mecanismos
eficazes para suprir a carência de enfermeiros de
modo que possam ser acatadas as exigências do
novo sistema jurídico dos centros de saúde (centros de saúde de terceira geração);
Por outro lado, o planeamento das actividades de
enfermagem tem sido anárquico, casuístico, não
tendo em conta um ratio enfermeiro/indivíduo/
população, nem sendo compatível com as necessidades das populações nem com os novos apelos
que são feitos aos enfermeiros de saúde comunitária;
As organizações onde os enfermeiros trabalham
não atribuem valor primordial ao conhecimento/
avaliação das necessidades da população, e na
definição de estratégias de saúde não é valorizado
o papel da enfermagem, criando muitas vezes
limitações despropositadas ao desempenho das
suas funções;
A rápida evolução profissional também suscita
especificidades difíceis de gerir, designadamente
quanto à percepção do controlo interno. As
actuais necessidades de saúde da população exigem novos desafios nas áreas conceptuais e metodológicas. Esta situação, ansiogénica, por si só,
exige constantes adaptações nos processos de
mudança em curso;
Uma parte significativa dos cuidados de enfermagem é prestada em articulação com estruturas
comunitárias e outros técnicos. Todavia, não
representa verdadeiramente um trabalho multidis-
A primeira geração de centros de saúde estava orientada para a saúde pública e para a medicina preventiva. Era organizada por valências e dava prioridade
à saúde materno-infantil.
A partir de 1983, a segunda geração de centros de
saúde integra a primeira rede de centros de saúde com
os postos das caixas de previdência (ex-SMS) e implementa a carreira médica de clínica geral. Estes centros
são organizados por serviços e grupos profissionais.
Os problemas de saúde comunitários e a evolução da
prestação dos cuidados de saúde exigem hoje a reorganização das instituições e de métodos de trabalho,
enfatizando a constituição de equipas multidisciplinares para optimizar as respostas às necessidades da
população.
O sentido da mudança é enquadrado pelo Decreto-Lei n.o 157/99, de 10 de Maio, que preconiza uma
organização descentralizada. Neste sentido, esta reestruturação cria, entre outras, a unidade de cuidados
na comunidade (UCC).
Esta unidade é constituída por uma equipa multidisciplinar, articula-se, sobretudo, com as unidades de
saúde familiares e com a unidade operativa de saúde
pública, mobilizando em simultâneo recursos existentes e pretendendo que integre todas as intervenções comunitárias.
A OMS vem reforçar esta ideia ao introduzir o conceito de enfermeiro de saúde familiar, traçando os
objectivos para este século, contando com o seu
papel na equipa multidisciplinar.
Neste contexto, pretende-se que a UCC se direccione
para a comunidade e alcance as pessoas que apresentam dificuldades para procurarem a ajuda dos serviços de saúde. A sua inserção familiar exige uma
intervenção de carácter domiciliário e a delimitação
de áreas geográficas.
Assim sendo, serão alvo dos cuidados de enfermagem:
•
As famílias com disfunções familiares e/ou
sociais que sejam identificadas como vulneráveis
a problemas de saúde;
REVISTA PORTUGUESA DE SAÚDE PÚBLICA
Enfermagem
•
•
•
As famílias cujo ciclo de vida possa originar risco
evolutivo, nomeadamente as grávidas e recém-nascidos;
As famílias que vivam crises disruptivas, designadamente por marcada dependência bio-psico-social, com doença crónica e/ou comportamental, e requeiram acompanhamento próximo, regular e continuado.
•
O enfermeiro de família será então responsável por
um grupo de famílias, combinando actividades de
promoção da saúde e de prestação de cuidados,
actuando no seio da família e da comunidade, em
articulação com todos os sectores. Este papel multifacetado e a proximidade das famílias colocam o
enfermeiro em situação privilegiada para constituir a
interface entre todos os profissionais que intervêm no
processo dos cuidados (Figura 1).
Na Declaração de Munique a OMS exorta as autoridades da Região Europeia:
•
•
A criarem oportunidades para que enfermeiros e
médicos estudem em conjunto a nível da formação inicial e de pós-graduação, para assegurarem
maior cooperação e fomentarem o trabalho interdisciplinar;
A procurarem oportunidades para estabelecerem
e sustentarem programas e serviços de enfermagem comunitária centrados na família, incluindo,
quando apropriado, a enfermeira de saúde da
família;
A reforçarem o papel dos enfermeiros em saúde
pública, na promoção da saúde e no desenvolvimento comunitário.
Em síntese
A prática de enfermagem familiar é uma área em
desenvolvimento e constituirá no futuro aspecto significativo dos cuidados de saúde.
Face a uma complexidade crescente dos problemas
relacionados com a saúde, e no momento em que esta
é repensada, os enfermeiros são considerados elementos fundamentais nas estratégias e reformas a
A garantirem a participação dos enfermeiros na
tomada de decisão a todos os níveis do desenvolvimento e implantação das políticas de saúde;
Figura 1
O enfermeiro de saúde familiar sob o «chapéu» da saúde pública e dos cuidados de saúde primários
O enfermeiro de saúde familiar, a saúde pública
e os cuidados de saúde primários
SAÚDE PÚBLICA
CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS
Medicina
Enfermagem Enfermagem
obstétrica
Médico de família
Centro de saúde
Serviço
social
O enfermeiro
de saúde familiar
Serviços hospitalares
Enfermeiros especialistas
Outros ambientes
de acção para a saúde
Outras instituições
Médicos especialistas
Outros sectores
Famílias e indivíduos
VOLUME TEMÁTICO: 2, 2001
Outros
profissionais
«O enfermeiro de saúde familiar sob o
‘chapéu’ da saúde pública e dos cuidados
de saúde primários», adaptado de 2.a Conferência da OMS para a Enfermagem e
Enfermagem Obstétrica, Munique, Alemanha, 15-17 de Junho de 2000. A enfermagem da saúde familiar — contexto, quadro
conceptual e currículo.
81
Enfermagem
implementar. É premente adoptar escalas de níveis de
dependência da família, de diagnóstico e avaliação de
saúde das populações.
Cabe-nos então fazer um esforço para transpor para a
prática as directivas mundiais de âmbito comunitário,
contribuindo para que a saúde das pessoas e populações constitua uma mais-valia na economia do país.
Há, portanto, que manter uma perspectiva de avaliação contínua dos objectivos traçados, das actividades
desenvolvidas e das metodologias adoptadas.
Há que desenvolver bases de informação que permitam aos enfermeiros melhorar o planeamento e a
utilização dos recursos existentes, explorando e
rentabilizando potencialidades.
Há que instalar novas metodologias de trabalho que
permitam a recolha e interpretação sistemática da
informação. A investigação começa agora a impor-se
como prática quotidiana porque nasce da necessidade
de reflexão e questionamento.
É hora de emergirem as ciências sociais a partir dos
contextos em que as pessoas vivem. Há uma grande
riqueza metodológica a explorar e que desafia a
enfermagem.
Os enfermeiros estão conscientes dos problemas
efectivos de saúde pública/comunitária e pretendem
desenvolver programas e projectos para darem solução aos mesmos.
Nesse sentido, a temática abordada exige que trabalhemos de forma diferente e fundamentada nos
seguintes pressupostos:
•
•
•
•
•
•
Basear a nossa actuação em necessidades reais;
Utilizar intervenções evidence-based;
Integrar e articular a promoção de saúde e a prevenção da doença;
Trabalhar em equipas multidisciplinares e multissectoriais;
Promover a participação activa dos indivíduos e
comunidades nas decisões sobre os seus próprios
cuidados de saúde;
Desenvolver competências essenciais ao trabalho
com as famílias e planear as actividades em função dos ganhos em saúde.
Bibliografia
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Copenhagen : WHO, 2000 (EUR/00/5019309/6).
Summary
NURSING IN PRIMARY HEALTH CARE
The recent European Conference on Nursing organised by
WHO/Europe in Munich reinforced the idea of a family health
nurse as an important member of modern health care delivery
teams.
In Portugal the nursing profession has made a remarkable
progress over the last twenty years in its training and practice
standards.
However of the approximately 36 000 nurse practising in the
country, only 17% work in primary health care and only 15%
hold a specialty on community health care.
Not withstanding these difficulties, progress on the nursing
role in health promotion have been reported. Many nurses are
currently engaged in projects with the chronically ill on a
community basis. This is contributing to improve access to
health care by those most in need and is creating a renewed
appreciation of community nursing care in the profession. This
can be a very valuable basis for the development of a Portuguese family health nurse.
REVISTA PORTUGUESA DE SAÚDE PÚBLICA
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Os enfermeiros em cuidados de saúde primários