Uma demografia da escravidão mineira – O caso da Fazenda Santa Sofia, 1850 –
1882.
Marjorie Rocha Cohn – Mestranda em História Social – FFLCH – USP
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Resumo
O objetivo deste texto é propor a análise demográfica de uma fazenda na Zona da
Mata de Minas Gerais no século XIX. O objeto é a Fazenda Santa Sofia, propriedade de
Camilo Maria Ferreira Armond, Conde de Prados (1815-1882). A análise será baseada
especialmente em dois documentos, a relação da matrícula de escravos da fazenda, de 1872
e a relação dos escravos da mesma de 1882. Será também abordada a questão dos cativos
que foram alforriados pelo Conde no ano de sua morte.
A Economia Mineira no Século XIX – Um debate
Muito já se escreveu sobre a economia mineira do século XIX. Desde a década de
1970, o debate está polarizado entre autores que destacam a proeminência do setor interno
e aqueles que afirmam ser a exportação o setor dinâmico da economia da província, após o
declínio da mineração.
Na década de 1980, a crítica a historiografia clássica que tratava da estagnação e da
involução econômica de Minas Gerais no XIX ganha cada vez mais força, pois estudos
demonstravam que a província tinha, na verdade, uma sociedade heterogênea e uma
economia diversificada. Os principais autores do debate foram Roberto Martins e Robert
Slenes. O primeiro afirma que a economia mineira tinha caráter mercantil de subsistência e
estava voltada para o consumo local. O autor atribui o grande contingente escravo ao fator
Wakefield, ou seja, a disponibilidade de terras tornava difícil o recrutamento de mão de
obra livre, sendo os proprietários obrigados a empregar a mão de obra escrava1. Apesar de
assimilar algumas das propostas de Martins, Robert Slenes afirma que as atividades
exportadoras eram o centro dinâmico da economia mineira e justificavam a maciça
importação de africanos2.
1
MARTINS FILHO, Amílcar & MARTINS, Roberto B., Slavery in a non-export economy: Nineteenth-century Minas
Gerais revisited, HAHR, 63(3), p. 537-568, 1983.
2
SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no Século XIX. Estudos
Econômicos. São Paulo, v. 18, p. 449-495, set./dez. 1998.
Muito se escreveu depois do debate entre Martins e Slenes. A partir da década de
1990, as obras de caráter regional trazem a dimensão da diversidade e dinamismo da
economia mineira. Destacam-se trabalhos como o de Clotilde Paiva, que utilizando listas
nominativas de 1831-32 observa que a agricultura e a pecuária eram o principal segmento
da economia da província e que parte desta produção era destinada ao consumo interno e o
restante para outras províncias, como Rio de Janeiro e Bahia3.
Ainda nos estudos de caráter regional, especialmente sobre a Zona da Mata, estão
Mônica Oliveira4, que analisa a riqueza investida nas fazendas de café desta região e
Rômulo Andrade e Luiz Fernando Saraiva, que trabalhando com inventários e registros
paroquiais identificam propriedades grandes que permitiam a acumulação de capitais que
proporcionavam a multiplicação da riqueza5.
Depois do muito que já se escreveu, se tem certeza que uma das características
definidoras de Minas Gerais é a vastidão e a conseqüente diversidade de seu território.
Como indica Antônio Henrique Duarte Lacerda, “suas várias regiões [de Minas Gerais]
possuem características diferenciadas, carecendo de muitas pesquisas regionalizadas que
permitam futuras sínteses” 6.
O Vale do Paraíba Mineiro, Zona da Mata, Século XIX
A Zona da Mata das Minas Gerais, região que é o cenário do objeto deste texto,
permaneceu relativamente desocupada até o início do século XIX. A área recebeu este
nome por ser composta por um denso manto florestal homogêneo e compacto, um dos
motivos pelo qual levou tanto tempo para ser ocupada7. O outro era o fato da Coroa
portuguesa proibir o povoamento das chamadas “zonas proibidas”, das quais a Mata fazia
parte, para evitar o contrabando de ouro das minas. Com o declínio da produção aurífera,
estas proibições se afrouxaram e um dos resultados foi a abertura do Caminho Novo,
iniciado por Garcia Rodrigues Pais e concluída por Domingos Rodrigues da Fonseca
Leme, em 1707. Estas medidas tornaram possível o início da exploração da região.
3
PAIVA, A. Clotilde. População e economia: Minas Gerais do século XIX. Tese de Doutorado – FFLCH-Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1996.
4
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias. Mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira,
1780-1870. Bauru: Edusc; Juiz de Fora: Funalfa, 2005
5
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco:
Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX. São Paulo: FFLCH-USP, Tese de Doutoramento, 1995 e SARAIVA, Luiz
Fernando. Um correr de casas, antigas senzalas: a transição do trabalho escravo para o livre em juiz de fora –
1870/1900. Niterói: UFF, 2001.
6
LACERDA, A. H. D. Negócios de Minas: família, fortuna, poder e redes de sociabilidades nas Minas Gerais - A
família Ferreira Armonde (1751-1850), Niterói, UFF, Tese de Doutoramento, 2010, p. 30.
7
VALVERDE, Orlando. “Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais”. In: Revista Brasileira de Geografia, Rio
de Janeiro: 20(1), pp.3-82, jan./mar.1958, p.22.
2
Foi exatamente neste século XVIII, ao que tudo indica, no ano de 1722, que
Francisco Ferreira Armond chegou às Minas Gerais. Este imigrou de Portugal para São
João Del-Rei, um entreposto comercial importante, onde se estabeleceu e desenvolveu
relações de prestígio no Rio de Janeiro e ainda onde morreu com posses. No seu
testamento consta que seus bens de raiz compunham 49,6% de sua riqueza, e que possuía
apenas quatro escravos homens e uma pequena tropa de cavalos e muares, o que leva a crer
que suas principais atividades foram o comércio e o transporte entre Minas e o Rio. Seus
filhos levaram adiante esta ocupação, tanto que Antônio Henrique Duarte Lacerda indica
que a família Ferreira Armond era uma das controladoras do movimento das tropas em
Minas Gerais8.
O neto de Francisco, Marcelino José Ferreira Armond dedicou-se a interesses
ligados à mineração, ao comércio, ao tráfico de escravos, à expansão de suas terras, à
produção de gêneros e à plantagem escravista ligada à cafeicultura. Todas estas atividades
fizeram com que Marcelino, Barão de Pitangui, tenha sido citado por Richard Burton como
uma das maiores fortunas do Império9. Com sua morte em 1850, sua herança foi dividida
entre seus três filhos, entre ele Camilo Maria Ferreira Armond, personagem principal deste
texto. Para entender melhor este personagem, é fundamental entender o contexto no qual
ele cresceu e se formou.
No século XIX, a demanda mundial de café aumentou a um ritmo elevado, estando
nos Estados Unidos o mercado consumidor mais dinâmico e a revolução haitiana fez com
que novas áreas, como Java e Brasil, entrassem no circuito cafeeiro. Em 1828, o Brasil já
despontava como o maior produtor mundial da rubiácea e o acelerado desenvolvimento da
produção se estendeu até a década de 1840. Quase toda a produção cafeeira do Império era
proveniente da região do Vale do Paraíba, que compreendia terras das províncias de Minas
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Em Minas, a cultura se desenvolveu na região da Zona
de Mata, mais próxima ao Rio de Janeiro, e já em meados do século XIX podia ser
caracterizada como uma típica região de plantation escravista.
É neste contexto que em 1850, com a morte de Marcelino Armond, Barão de
Pitangui, Camilo Maria Ferreira Armond herda, entre outros bens, a fazenda Santa Sofia.
Formado em medicina em Paris e político atuante, Camilo assumiu definitivamente a
administração da fazenda em 1851 e decidiu investir na vocação cafeeira e escravista da
mesma. Neste ano, a escravaria era composta por 67 cativos, em 1882, já eram 216
8 LACERDA, A. H. D. A evolução do patrimônio da família Ferreira Armonde através de três gerações (Comarca do
Rio das Mortes - Minas Gerais, 1751-1850). In: Elione Silva Guimarães; Márcia Maria Menendes Motta. (Org.). Campos
em disputa: história agrária e Companhia. São Paulo: Annablume, 2007, p. 63-86.
9
LACERDA, A. H. D. Idem, p.80.
3
escravos e 84 ingênuos. Ainda que não seja possível precisar o volume da produção
cafeeira da fazenda, não é exagero afirmar que este aumento do número escravos tem
relação direta com a entrada da Santa Sofia no mercado cafeeiro de exportação, que por
sua vez está relacionado com o aumento da demanda mundial de café.
A Santa Sofia ocupava uma área de 274 alqueires geométricos 10, o que a coloca na
média das grandes propriedades do Vale do Paraíba, de acordo com as estimativas de
Rômulo Andrade (236 alqueires geométricos) e Luiz Fernando Saraiva (280 alqueires
geométricos)11. Além disso, a fazenda também se encaixava na estrutura fundiária
delineada por Mônica Ribeiro de Oliveira, ou seja, de propriedades compostas por pastos,
terras de cultivo, capoeiras e terras virgens12. Segundo a partilha de bens de Camilo, suas
terras valiam 42 contos e 910 mil réis. Quanto aos pés de café, que eram 270 mil (o que
representa uma média de pouco mais de mil pés de café por escravo), estes somavam o
valor de 53 contos e 750 mil réis. Tendo estes números é possível calcular que a fazenda
produzia uma média de 10 mil arrobas de café anuais (há indicações que a produção no
Vale do Paraíba oscilava entre 20 e 60 arrobas por mil pés, aqui se adota a média arbitrária
de 40 arrobas a cada mil pés)13.
Em todas estas descrições e documentos consultados até agora, não se encontrou
referência a qualquer outra produção além da cafeeira na Santa Sofia, no entanto, segundo
Elione Guimarães, os livros de notas da fazenda revelam que havia um comércio de
gêneros diversos, inclusive mantimentos, como o milho, entre os cativos e os senhores 14.
Todavia, notas de consignação também revelam que mantimentos para os escravos e para a
casa-grande eram adquiridos dos comissários que negociavam o café do Conde de Prados.
Tendo em consideração este retrato da fazenda Santa Sofia, a próxima parte do
texto trata do tema central proposto: a escravaria do Conde de Prados.
Camilo Maria Ferreira Armond: Conde de Prados e Senhor de Escravos
10
As informações referentes às terras e aos pés de café da Fazenda Santa Sofia estão disponíveis na Sentença cívil de
partilha extraída dos autos de partilha amigável dos bens de Camillo Maria Ferreira Armond, Conde de Prados. Rio de
Janeiro, 14 de Maio de 1882. Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, Tombamento: 2460/2003.
11
ANDRADE, Rômulo. “Escravidão e cafeicultura em Minas Gerais: O caso da Zona da Mata” In: Revista Brasileira de
História. São Paulo: Vol 11, no.22, pp.95-125, mai-ago., 1991, p.96; SARAIVA, Luiz Fernando. Estrutura de terras e
transição do trabalho em um grande centro cafeeiro, Juiz de Fora, 1870-1900. In: 10º. Seminário sobre a economia
mineira, Diamantina, 2002.,p.13
12
OLIVERA, Mônica R. Op. Cit., p. 66.
13
TAUNAY, Affonso de Escragnolle. História do Café no Brasil. Rio de Janeiro, Departamento Nacional do Café, 19391943, 15 vols, pp.18-98.
14
GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação – Família,
trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828 – 1928). São Paulo: Annablume,; Juiz de Fora: Funalfa Edições,
2006, p. 143.
4
Como explicitado anteriormente, o Conde de Prados, além de administrador da
fazenda Santa Sofia, era também um político atuante, o que fazia com que seu tempo
tivesse de ser dividido entre as estadias em Minas Gerais e na Corte, onde ocupou
inúmeras vezes o cargo de deputado por sua província de origem. Além destes cargos, ele
também foi eleito Presidente da província do Rio de Janeiro (1878) e membro do Conselho
de Estado (1879).
As temporadas do Conde na Corte fizeram com que ele empregasse seu genro,
Hipólito de Albuquerque Mello na administração diária da fazenda. São muitas as cartas
endereçadas ao genro e à esposa, Josefina Cândida Gomes de Sousa, que tratam de
questões administrativas da Santa Sofia, como o envio de café a determinadas casas
comissárias ou a gestão dos cativos.
Como se sabe, em boa parte dos casos, o escravo representava a maior parte do
investimento dos fazendeiros15, e com o Conde de Prados, não era diferente. Um
documento que apresenta apenas 122 dos seus 216 escravos, sugere que o valor destes
somava 28% de seu investimento (enquanto os pés de café representavam 24% e as terras,
29%)16, é muito provável que este número fosse ainda maior, já que nem todos os escravos
foram listados. Mas além da questão financeira, a constante preocupação com os cativos
pode ser também o resultado da conjunção de fatores de ordem legal.
Em 1850, com o fim definitivo do tráfico transatlântico, os senhores se depararam
com a dificuldade da reposição da mão de obra, que até então se dava pela compra de
africanos. É importante lembrar que o fim do tráfico não colocou um fim definitivo às
transações que envolviam escravos, mas fez com que muitos senhores passassem a
dispensar um cuidado maior à manutenção da sua força de trabalho. É neste contexto, por
exemplo, que muitos se dedicam à redação de manuais agrícolas, que dentre vários
assuntos, frequentemente tratam da administração dos escravos e da produção cafeeira17.
Ora, além do comércio inter e intra-provincial, também ganha força a idéia da reprodução
natural como caminho viável para a reposição de mão de obra.
Alguns anos depois da Lei Eusébio de Queirós, a Lei do Ventre Livre, de 1871, põe
em pauta o fim definitivo da escravidão e então, a reprodução natural e as crianças
15
Esta indicação está em ANDRADE, Rômulo Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos
de parentesco:Zona da Mata de Minas Gerais, Século Dezenove. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo:
FFLCH-USP, 1995, p.62, onde o autor aponta que, em grandes propriedades da Zona da Mata, os escravos representavam
44% dos investimentos, contra 21% em cafezais e 25% em terras.
16
Documento sem título que apresenta os valores da terras, pés de café e parte dos escravos da Fazenda Santa Sofia, Sem
Data. Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis. Tombamento 2241/2003.
17
MARQUESE, Rafael. “A administração do trabalho escravo nos manuais de fazendeiro do Brasil Império, 18301847”, In. Revista de História, n° 137, pp. 95-112, p.96.
5
escravas deixam de representar uma possível continuidade e para muitos senhores
representam apenas o ônus de criar os rebentos de suas escravas.
Por outro lado, não se deve ignorar que ainda que a escravidão estivesse próxima de
ser abolida, estas crianças que nasceram após 1871, e suas famílias, não deixavam de
representar uma possibilidade de continuidade, não da escravidão, mas de uma força de
trabalho em novos moldes. Não é exagero afirmar que era grande a possibilidade que
libertos que passaram por boas experiências de cativeiro permanecessem nas fazendas
onde já trabalhavam, mesmo com a abolição.
Como o Conde de Prados expressa seu cuidado com seus escravos? Um exemplo,
uma carta de Camilo para sua esposa, em 1869, retrata a preocupação com a saúde. Ele
escreve: “apesar da bondade do China (?) está o Sá com mais de 100 doentes de disenteria
[...] a coqueluche mata sem piedade em São João Del-Rei e outros pontos; dizem-me que o
Leandrinho já perdeu cinco escravos e, no entanto estão longe, bem longe de Santa Sofia.
[...] Seja como for Deus lhes dê a todos sossego e saúde”18. Esta preocupação não estava só
nas cartas, mais do que instruções, havia em Santa Sofia um hospital cuja existência está
indicada na partilha dos bens de Camilo Armond e pode ter relação não só com sua
formação em medicina, mas também com o já citado zelo com seus bens.
Vale notar que as instruções do Conde estavam em compasso com os já citados
manuais escravistas. Temos o exemplo do clássico “Memória sobre a fundação de uma
fazenda na província do Rio de aneiro”, de Francisco Peixoto Lacerda Werneck. Escreve
o autor: “nas moléstias devem ser tratados [os escravos] com todo o cuidado e
humanidade. Embora haja médico assistente, o senhor dos escravos deve fazer a sua visita
à enfermaria para animar os doentes e dar-lhes alívio, acautelando alguma falta que por
ventura possa haver”.19
Outra preocupação diretamente relacionada à saúde dos escravos, diz respeito ao
asseio das senzalas e do hospital. Em uma carta de 1869, afirmava esperar que a epidemia
de disenteria que lá se manifestou continuasse limitada e benigna, mas que mesmo assim,
conviria ter vigilância e “espalhar os doentes e isolá-los – muito asseio na enfermaria – são
medidas de rigor.”
20
Em uma carta à esposa redigida no ano anterior, atentava que, “Pelo
tempo que corre [,] é necessário muito asseio nos terreiros, senzalas e enfermaria e prover
18 Carta de Camilo Armond a Josefina de Sousa. Barbacena, 31 de julho de 1869. Tombamento: 2692/2003.
19 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Me
Janeiro, Rio Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1878, pp. 25-6.
20 Carta de Camilo Armond a Hipólito Mello. Barbacena, 31 de março de 1869. Tombamento: 1141/2003.
6
a que haja mudas para os negros molhados. À falta dessas coisas atribuo aí muitas perdas
de vidas” 21.
Para finalizar, vale tratar rapidamente de outro eixo fundamental da relação entre
senhores e escravos, e que foi a base da experiência do bom ou do mau cativeiro, os
castigos.
Nas cartas consultadas, vez ou outra, o Conde de Prados faz referência à
importância da vigilância dos feitores, fundamental para que se mantivesse a ordem na
fazenda e quase não aparecem referências a insatisfações dos escravos ou castigos.
Aparentemente a convivência na Santa Sofia era, na medida do possível, pacífica.
É provável que boa parte dos castigos estivesse relacionada a pequenas infrações,
sendo necessária uma solução rápida. Dadas as distâncias entre os remetentes, não era
possível enviar uma carta e esperar sua resposta para deliberar sobre todas as punições
cabíveis aos escravos; logo, se presume que aparecem na correspondência apenas os
problemas que mais afligiam o comando da fazenda. Ou, talvez, nela houvesse o equilíbrio
sugerido por Werneck, ao afirmar que “nem [...] é sempre inimigo do senhor [o escravo];
isto só se sucede com os dois extremos, ou demasiada severidade, ou frouxidão excessiva,
porque esta torna-os irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela
leva-os à desesperação”22.
Porém, toda regra tem sua exceção. Em 1871, o escravo João Constantino,
carpinteiro, casado, assassinou seu companheiro de cativeiro, João Carioca. Segundo
Elione Guimarães, nenhum dos outros companheiros soube indicar exatamente qual
poderia ser o motivo do homicídio. “Quase todas as testemunhas alegaram que havia rixa
antiga entre réu e vítima, mas alguns ignoravam os motivos e outros não fizeram menção
aos mesmos, não sendo perguntado pelo juiz as razões da rixa. Apenas uma das
testemunhas fez alusão ao fato de que o réu cometeu o assassinato por motivos de ciúmes
por causa de uma parceira.”23 Como afirma a autora, pode ser um exagero atribuir ao delito
um motivo passional por conta de uma afirmação, porém, mais adiante se verá que a
demografia pode fornecer algumas pistas.
João Constantino foi absolvido, alegando legítima defesa, já que segundo consta no
processo, João Carioca o atacou com um pedaço de pau, ao passo que, e aqui a história fica
um pouco confusa, Constantino devolveu a agressão com uma facada. Passado todo o caso,
o Conde de Prados escreveu à sua esposa sobre a situação: “Recebi ontem sua
21 ALBUQUERQUE, Antonio Luiz Porto de. Formação e apogeu da aristocracia rural em Minas Gerais – 1808-1888:
Elementos para um estudo de caso. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1988, p. 161-2.
22 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Op. Cit., p. 26
23
GUIMARÃES, Elione Silva. Op. Cit., p. 181.
7
comunicação a respeito do julgamento do João Constantino. Não é fácil a minha conduta
depois de tal fato. Vendê-lo? Seria preciso, em vista da nova lei, vendê-lo com a mulher.
Vender-se com a mulher ainda seria realizável: mas que benefício tiraria daí a
subordinação da fazenda? Seria na verdade um grande castigo vender um escravo carapina,
que irá talvez melhorar de sorte em poder do novo senhor! Teriam os outros um bom
pretexto para cometerem crimes quando se aborrecessem de mim ou de alguém de minha
família. Deixá-lo na fazenda impune, em virtude da lei que o protege, é lamentável e
inconveniente. Portanto o único alvitre razoável que vejo é o seguinte: Fazê-lo vir, e metêlo imediatamente no tronco com todas as cautelas; castigá-lo moderadamente com açoites,
aplicar-lhe uma argola ao pescoço, e mandá-lo para a roça. É o único meio que vejo de
exemplificar e conter os outros. [...] Não vejo outro modo razoável de conduta, e tudo o
mais será acoroçoar o crime” 24.
Esta carta é um exemplo emblemático da condução da escravaria. Porém, o final da
história de oão Constantino foi ainda mais trágico. O corpo do carpinteiro foi “encontrado
suspenso por uma corda ao pescoço, numa árvore do cafezal”, em junho de 1879 25. Mais
misterioso que o assassinato cometido por ele, foi sua morte.
Agora que já se sabe mais sobre a fazenda Santa Sofia, seu dono e como sua
administração era conduzida, hora de entender mais sobre sua população escrava.
Os escravos da Santa Sofia: Uma análise demográfica
Como dito acima, o ano inicial do recorte cronológico deste texto foi marcado por
dois acontecimentos importantes para a análise desenvolvida: a morte de Marcelino José
Ferreira Armond e o fim do tráfico transatlântico de escravos. Mesmo assumindo a fazenda
no ano do fim do tráfico, Camilo Armond acumulou durante seus anos à frente dela um
número considerável de cativos. Esta parte do texto se dedica a uma análise da composição
da escravaria da fazenda Santa Sofia em dois momentos. Para tanto, foram usados os
seguintes documentos: uma relação de escravos de 1872, a relação original de todos os
escravos e ingênuos de 1882, a partilha de bens do Conde de Prados, de 1882, cartas de
alforria e as certidões de nascimento e óbito.
1872 - A lista de matrículas de Sanfa Sofia
24
25
ALBUQUERQUE, Antonio Luiz Porto e. Op. Cit., p. 172
ALBUQUERQUE, Antonio Luiz Porto e. Op. Cit., p.20.
8
A relação de 1872 é a que traz informações mais completas sobre a conformação da
escravaria. Este documento é composto de 17 folhas impressas, em cujo cabeçalho se lê:
“Relação número 248 dos escravos pertencentes ao Visconde de Prados residente na
província de Minas Gerais, município de Juiz de Fora, paróquia de São Pedro de Alcântara
(Art. 2o do regulamento n. 4835 de 1o de dezembro de 1871)”26. A peça faz parte das
matrículas que passaram a ser exigidas após a promulgação da Lei do Ventre Livre e que, a
partir de 1872 constituía, junto com o registro de mudanças, a única base legal para a
propriedade de escravos. Logo, era fundamental que o senhor cumprisse a lei para que
garantisse seus direitos.27
O documento traz as seguintes informações a respeito dos escravos: número de
ordem na matrícula, número de ordem na relação, nomes, cor, idade, estado, naturalidade,
filiação, aptidão para o trabalho, profissão e observações.
Há nesta relação um total de 246 escravos, sendo 150 homens e 96 mulheres
(Gráfico 1), ou seja, a primeira informação que se pode extrair do documento é a razão de
masculinidade, que era de 156. Este número não está muito distante daquele indicado por
Rômulo Andrade, para a região de Juiz de Fora, segundo o autor, em 1872, a taxa de
masculinidade em plantéis com mais de cinqüenta escravos era de 170 28. As altas taxas de
masculinidade e africanidade refletiam a entrada maciça de escravos no mercado. A grande
presença de homens era o resultado de uma época na qual o trabalho deles era considerado
mais produtivo e a reposição de mão de obra se dava com mais facilidade29, logo, a razão
de masculinidade não tão alta da Santa Sofia revela uma população escrava que não era
apenas resultante de importações.
Gráfico 1. Proporção de Homens e Mulheres em 1872
26
ALBUQUERUQUE, Antonio Luiz Porto e. Op. Cit., pp. 179-196.
SLENES, Robert. Na Senzala Uma Flor – Esperanças e recordações na Formação da Família Escrava. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.120.
28
ANDRADE, Rômulo . Casamentos entre Escravos na Região Cafeeira de Minas Gerais. Revista Universidade Rural.
Série Ciências Humanas, Seropédica (RJ), v. 22, n. 02, p. 177-197, 2000, p. 188
29
MACHADO, Cacilda, ENGEMANN, Carlos e FLORENTINO, Manolo. “Entre o geral e o singular – Histórias de
Fazendas Escravistas na América do Sul – Séculos XVIII e XIX” In: Manolo Florentino e Cacilda Machado
(organizadores). Ensaios sobre a escravidão. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 167
27
9
O aumento de uma escravaria se dava de duas formas: por meio da reprodução
natural ou pela compra de escravos no mercado (transatlântico, até 1850, interno, após a
data). Nenhuma das opções elimina a outra, porém, com a proibição definitiva do tráfico
transatlântico, o preço dos cativos sofreu um aumento generalizado e os senhores
procuraram prolongar a vida útil de seus escravos e incentivar a reprodução natural.
Observa-se a partir daí maior incidência de família escravas e o equilíbrio entre os sexos30.
Relacionada à questão da reprodução da escravaria e à razão de masculinidade, se
encontra a das relações familiares entre os escravos. A lista apresenta um total de 94 – ou
38,2% – de escravos casados (47 mulheres e 47 homens), 142 - ou 57,3% - de solteiros (96
homens e 46 mulheres) e 10 - ou 4,5% - de viúvos (8 homens e 2 mulheres). Há uma
porcentagem razoável de escravos casados, mas não foi encontrada nenhuma certidão de
casamento de cativos e ainda não há certeza se havia algum tipo de cerimônia para
consagrá-los, mas é possível que estes casamentos eram formais e não simples uniões
consensuais ou concubinatos.
Tabela 1.1. Estado Civil dos Escravos em 1872
Total
Homens Mulheres
Solteiros
57,3%
64,0%
46,9%
Casados
38,2%
30,7%
50,0%
Viúvos
4,5%
5,3%
3,1%
100,0%
100,0%
100,0%
Total
Porém, somente estes números não revelam muito, valem, então, mais algumas
observações. Havia uma maior porcentagem de mulheres casadas do que homens. Ora, isto
se explica facilmente pelo descompasso entre o número de homens e mulheres, já que
aqueles estavam em maioria. É também interessante notar que nas faixas 20-29 e 30-39 há
uma discrepância entre as porcentagens de homens e mulheres casados (Tabela 1.2). Nas
duas faixas, as mulheres casadas são absoluta maioria, enquanto no que diz respeito aos
homens, na faixa 20-29, a maioria é de solteiros e na faixa de 30-39, apenas metade deles é
casada. Infelizmente ao é possível identificar os casais, para entender melhor sua
composição. O trabalho de Florentino e Góes lança uma hipótese que pode ser considerada
neste caso. Segundo os autores, os homens mais velhos dominam o mercado matrimonial
30
GÓES, José Roberto e FLORENTINO, Manolo. A Paz das Senzalas (Famílias Escravas e Tráfico Atlântico, Rio de
Janeiro, c. 1790-c. 1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p.29.
10
das mulheres férteis e esta pode ser uma explicação para a diferença dos estados civis entre
as diferentes faixas etárias e sexos31.
Tabela 1.2. Estado Civil de acordo com sexo e faixa etária em 1872
Apesar de um número razoável de escravos casados, a opinião do Conde de Prados
sobre os casamentos era bem definida e até mesmo peculiar. Em uma carta à esposa, ele
escreve: “Demorei de propósito em responder sua carta, porque deu-me ela o que pensar.
Tratemos do casamento das negras em primeiro lugar: é constante e a história dessa
fazenda revela, que são justamente as casadas que maiores escândalos e desgostos têm aí
causado, e mesmo desgraças lamentáveis. As fraquezas humanas são mais toleráveis do
que o crime e o escândalo. A prova de que é assim está no sossego relativo das grandes
fazendas do Rio de Janeiro (Breves - Nova Friburgo – Avelares - e outras) que não casam
negros. O número de ingênuos aumentará necessariamente: nosso obstáculo para o futuro.
Há apenas a razão tirada da acumulação que seja (rasurado) e que possa determinar-me a
carregar com os demais inconvenientes. É preciso atender, que entre os rapazes novos há
um grande número, cujo casamento embaraçará para o futuro, porque pretendo deixá-los
libertos, uns por dever e outros por afeição. Como ficarão essas famílias? Em todo caso, a
efetuarem-se esses casamentos por motivo de desentulho, único admissível, devem ser
preferidos os mais velhos, a fim de que não se reproduza a sorte do Altivo e outros que
não são casados nem solteiros. Case-os embora com estas condições”32.
As preocupações fundamentais de Camilo Armond são os problemas causados
pelas escravas casadas, os ingênuos e as alforrias que pretende assinar. Esta carta parece
reforçar uma hipótese de Robert Slenes, que afirma que “a queda do interesse dos senhores
no poder reprodutivo da mulher cativa por definição implicaria uma redução em seu
31
Os autores também levam em conta o fato dos jovens africanos se unirem a mulheres mais velhas por causa deste
domínio do mercado por homens mais velhos e por causa da integração que estas uniões podiam proporcionar. Acredito
que isso não deve ser considerado no caso da Santa Sofia, já que neste momento não há mais escravos recém-chegados
que precisam ser tutelados pelos mais experientes, mas quem sabe, o domínio dos homens maduros já estivesse arraigado
entre os escravos.
32 Carta de Camilo Armond a Josefina de Sousa. Corte, 21 de Fevereiro de 1882. Tombamento: 2729/2003.
11
interesse imediatista no matrimônio escravo, visto este como instituição promotora da
fecundidade”
33
. Provavelmente quando trata das desgraças causadas pelas mulheres
causadas é muito provável que ele esteja se referindo ao caso, já citado neste texto, do
escravo João Constantino, que pode ser explicado pela diferença numérica entre homens e
mulheres. Ora, se, como foi apontado, a mulher de João tinha mesmo alguma relação com
João Carioca, esta pode se explicar, dentre muitos motivos, pelo maior número de homens
do que mulheres.
Além de sua opinião sobre as uniões entre os escravos, o Conde também anuncia
nesta carta sua política de alforria, por dever e por afeição, que tem relações evidentes com
a crise da escravidão, quando, a reprodução natural não é mais interessante, a abolição já
aparece como possibilidade próxima, mas a alforria pode, paradoxalmente, garantir uma
futura força de trabalho. Este assunto será tratado mais detidamente na próxima parte,
quando for analisada a relação de escravos de 1882 e suas alforrias.
Em outra carta, Camilo Armond já mostrava descontentamento com o casamento
dos escravos: “Entre os escravos vem o osé Mulatinho que deverá vir para o Rio para o
meu serviço particular, antes que arme aí algum casamento como o outro, e, portanto virá
logo com o Martinho” 34. José Mulatinho não aparece em nenhuma das listagens e, quanto
a Martinho, há duas possibilidades: Martinho Flores e Martinho Engenheiro solteiros e
listados como roceiros.
A partir das cartas é possível inferir que Camilo Armond não compartilhava
completamente da idéia que os casamentos necessariamente significavam estabilidade
social na senzala, especialmente considerando o desequilíbrio entre homens e mulheres.
Mas é importante destacar que a família cativa tinha sim a sua utilidade para os senhores.
Afinal, como indica Slenes, a formação de famílias podia transformar o cativo em refém,
pois ao mesmo tempo em que permitiria a criação de laços parentais, o senhor teriam em
suas mãos o poder da ameaça de eventual separação de parentes por meio da venda35.
O número de casados e o de ingênuos que aparecem na lista de 1882 comprova que
existiam vínculos familiares sólidos entre a escravaria da Santa Sofia e que a escravidão
não era uma instituição engessada. O cotidiano nas fazendas por todo o Império revelam
como as relações eram fluidas e negociáveis.
Mas, voltando a 1872, no que diz respeito às idades, apresenta-se a distribuição por
faixa etária feita a partir dos dados disponíveis (Gráfico 2). O que este gráfico revela?
33
SLENES, R. Op. Cit, p. 92
34 Carta de Camilo Armond a Josefina de Sousa. Icaraí, 13 de Agosto de 1874. Tombamento: 2726/2003.
35
SLENES, Robert. Op. Cit., p.114.
12
Observa-se um bom número de escravos entre os zero e 14 anos, logo, nascidos pouco
antes ou após 1850 e muito provavelmente resultado da reprodução natural no cativeiro da
própria Santa Sofia. Nesta faixa, há 42 meninos e 36 meninas; a proporção de 1,1 meninos
para cada menina representa claro equilíbrio. E, quanto maior o equilíbrio entre homens e
mulheres, maior é a evidência da reprodução natural e a incidência de famílias escravas36.
Vale ainda ressaltar que é alto o número de mulheres em idade fértil, a partir dos 15 anos
até por volta dos 40 anos, representando 49% do total de escravas.
Na maioria das vezes, autores afirmam que o setor mais produtivo da força de
trabalho era composto por escravos entre 15 e 40 anos37, nesta faixa há um total de 64% de
escravos (entre homens e mulheres). Este já é um número considerável e se for estendido o
que se entende por setor produtivo dos 10 aos 50 anos, este número sobe para 76%.
Gráfico 2. Distribuição etária dos escravos em 1872
Pode-se imaginar que seria encontrado na faixa etária de 35 a 44 anos um bom
número de africanos, já que os escravos dos 35 anos em diante poderiam ter sido trazidos
pelo tráfico transatlântico. Porém, os dados sobre a origem dos escravos revelam o
seguinte: entre os homens, 76% tinham origem em Minas Gerais, 20% eram africanos, 3%
eram de origem desconhecida e 0,7% eram baianos. Entre as mulheres, 90% eram de
Minas Gerais, 8% eram africanas e apenas 1% tinha origem desconhecida. Mas, uma
informação importante é que todos estes escravos africanos (tanto homens quanto
mulheres) tinham mais de 40 anos, tendo provavelmente chegado no Brasil na entre o fim
da década de 1840 e início da década de 1850 (período no qual a importação ainda se
concentrava, preferencialmente, sobre homens em idade produtiva), uma evidência que
36
MACHADO, Cacilda, ENGEMANN, Carlos e FLORENTINO, Manolo, Op. Cit., p. 178.
BERGAD, Laird. Escravidão e História Econômica – Demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru: EDUSC,
2004, p.222.
37
13
apóia esta hipótese é o fato de 80% destes serem homens. Importante ressaltar também que
de todos os escravos africanos (homens e mulheres), 80% deles era de casados ou viúvos,
infelizmente não é possível verificar se os casamentos aconteciam entre africanos ou eram
mistos. Para os africanos não foi encontrada nenhuma informação referente às respectivas
etnias, à exceção daquelas indicadas nos nomes como Carolina e João Angola (que, aliás,
eram casados) e Joaquim Mina. Mas, ainda assim é importante ressaltar que a
denominação de etnia nos nomes é problemática, pois nem sempre ela indica a verdadeira
origem, e sim o porto de embarque de escravos trazidos do interior do continente38.
Ligada à questão da naturalidade está a questão da filiação. Apesar de boa parte dos
escravos terem origem mineira, temos 59% de escravos com filiação desconhecida e 41%
com filiação conhecida. Entre as mulheres os números se invertem. Enquanto 30% das
mulheres têm filiação desconhecida, 69% têm filiação conhecida. Talvez um dos motivos
seja que, mesmo tendo origem mineira, uma parte dos escravos tenha vindo fazer parte da
escravaria através do tráfico interno. Sabe-se, por exemplo, que Camilo Armond arrematou
escravos que pertenciam ao seu finado primo Comendador Mariano Procópio Ferreira
Lage. Dos 26 escravos arrematados, apenas três eram africanos, cinco tinham origem
desconhecida e dezoito eram mineiros. Pode-se especular que o alto número de mulheres
com filiação conhecida tenha relação com o fato de a maioria ter nascido em Minas Gerais,
e talvez até mesmo em Santa Sofia.
Outra informação relevante é a quantidade de negros e pardos. Tanto entre os
homens quanto entre as mulheres, os negros predominavam. Eles representavam 85% dos
homens e 79% das mulheres, enquanto os pardos eram 15% dos homens e 21% das
mulheres. Ainda assim, é importante ressaltar que eventualmente esta descrição da cor da
pele não era muito precisa, devendo ser considerada com cautela.
No que diz respeito à ocupação destes escravos, temos os seguintes números:
60,6% eram roceiros, 26% não tinham nenhuma ocupação discriminada (todos estes eram
menores de 15 anos), 4% de carpinteiros, 2% de alfaiates, 2% de pedreiros e 5,4% tinham
outras ocupações (copeiros, carreiros sapateiro, arrieiro, capataz - um africano de 40 anos , tropeiro, formigueiro e telheiro). Entre as mulheres os números, 40% não tinha ocupação
definida (assim como os homens, boa parte destas era menor de 15 anos), 34% de roceiras,
18% de costureiras e 8% de outras ocupações (trabalhos de terreiro, engomadeiras,
lavadeiras e copeira). O resultado total é de 50% de escravos (homens e mulheres)
roceiros.
38
BERGAD, Laird. Op.Cit., p.227.
14
1882 – A relação dos escravos do Conde de Prados
Enquanto a matrícula de 1872 fornece uma entrada para a compreensão da mão de
obra cativa em Santa Sofia, existe outro que permite apreender os caminhos da liberdade.
Este documento é intitulado “Relação original de todos os escravos e ingênuos que
pertenceram ao finado Conde de Prados”
39
. Antes de passar à parte final deste texto, que
vai tratar da questão das alforrias na Santa Sofia, é importante entender o que mudou em
uma década.
Para começar, o número de escravos diminuiu. Em 1872 eram 246, em 1882 eram
216, ou seja, há uma baixa de 30 escravos. Infelizmente não é possível afirmar com toda a
certeza que morreram, mas esta possibilidade é a mais provável. Foram encontrados 13
atestados de óbito entre 1872 e 1882, seis referentes a homens e sete de mulheres. Pode ser
somado a estes números o suicídio de João Constantino, logo temos um equilíbrio entre os
óbitos encontrados. Acredito não ser possível considerar outra hipótese além da morte para
os outros dezesseis escravos que não aparecem na relação de 1882. Em plena expansão da
produção, seria difícil o Conde ter pensado em se desfazer deste número de cativos. Além
do mais vale ressaltar que morreram mais mulheres do que homens. Em 1872 eram 150
homens, em 1882, 140. Em 1872 havia 96 mulheres, em 1882, 76. Uma hipótese a ser
lançada, seria possível que, dado o alto número de crianças nascidas em dez anos, algumas
destas escravas tenham morrido em decorrência de partos40?
Gráfico 3. Proporção de Homens e Mulheres em 1882
No gráfico 3, só foram levados em conta os escravos. Se o número de escravos
caiu, o número de crianças subiu, e muito. E entre os ingênuos, resultado de reprodução
natural, como era de se esperar, havia um equilíbrio entre o número de meninos (44) e
meninas (40).
39
Relação de todos os escravos e ingênuos que pertenceram ao Conde de Prados, Juiz de Fora, 18 de Outubro de 1882.
Disponível em ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto e. Op. Cit., pp.289-304.
40
Uma evidência que pode dar força a esta hipótese: entre as certidões de óbitos forma encontradas algumas referentes a
recém-nascidos.
15
As tendências observadas sobre as faixas etárias, sexo e estado civil em 1872, são
confirmadas em 1882. Por exemplo, a maioria das mulheres entre 20 e 29 anos são casadas
e todas dos 30 anos em diante são casadas (a maioria delas) ou viúvas. A maioria (89,5%)
dos homens entre 20 e 29 anos eram solteiros e apenas dos 30 anos em diante a maioria
deles era de casados ou viúvos, confirmando a tendência dos homens maduros dominando
o mercado matrimonial.
Destaca-se que havia ainda uma diferença nas porcentagens de estado civil de
acordo com os tipos de alforria. Os números não estão muito distantes dos totais, porém
apresentam diferenças (Tabela 2.3). Entre os cativos que receberam as alforrias
condicionais, os casados e viúvos são maioria (somando 62%), enquanto no caso daqueles
que foram alforriados incondicionalmente, o número cai (para 51%). É verdade que não é
uma diferença muito grande, mas faz pensar. Será que os escravos que teriam que trabalhar
por mais algum tempo eram mais estimulados a formarem famílias? E será que isso se
devia ao fato do parentesco ser uma maneira de auxiliar a carregar o fardo do cativeiro? Ou
será que considerando que a maior parte dos escravos que receberam alforrias condicionais
serem roceiros, portanto mais distantes do convívio do senhor tinham mais “liberdade”
para decidir a quem iam se unir, tornando os casamentos mais fáceis? Ficam as perguntas
no ar, já que não há subsídios suficientes para embasar estas hipóteses.
Tabela 2.1. Estado Civil dos Escravos em 1882
Total
Homens Mulheres
Solteiros
43,1%
80,6%
19,4%
Casados
46,3%
50,0%
50,0%
Viúvos
10,6%
65,2%
34,8%
Total
100,0%
100,0%
100,0%
Tabela 2.2. Estado Civil de acordo com sexo e faixa etária em 1882
TOTAL
HOMENS
Faixa Etária Solteiros Casados Viúvos Total
Solteiros Casados Viúvos
0a9
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
10 a 19
100,0%
0,0%
0,0% 100,0% 100,0%
0,0%
0,0%
20 a 29
47,2%
50,0%
2,8% 100,0%
89,5%
10,5%
0,0%
30 a 39
21,3%
59,6%
19,1% 100,0%
35,7%
39,3%
25,0%
40 a 49
20,8%
66,7%
12,5% 100,0%
28,6%
60,0%
11,4%
50 a 59
21,6%
59,5%
18,9% 100,0%
29,6%
55,5%
14,9%
60 a 69
50,0%
50,0%
0,0% 100,0%
50,0%
50,0%
0,0%
70 +
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
MULHERES
Total
Solteiras Casadas Viúvas
0,0%
0,0%
0,0%
0,0%
100,0% 100,0%
0,0%
0,0%
100,0%
5,9%
88,2%
5,9%
100,0%
0,0%
89,5%
10,5%
100,0%
0,0%
84,6%
15,4%
100,0%
0,0%
70,0%
30,0%
100,0%
0,0%
0,0%
0,0%
100,0%
0,0%
0,0%
0,0%
Total
0,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
Tabela 2.3. Estado Civil de acordo com o tipo de alforria
Alforriados Condicionalmente
Alforriados Incondicionalmente
16
Solteiros
Casados
Viúvos
Total
38,0%
51,7%
10,3%
100,0%
49,0%
40,0%
11,0%
100,0%
A seguir, o gráfico 4 apresenta a distribuição etária em 1882 e nele estão
representados tanto os cativos quanto os ingênuos. É interessante observar que ainda que
quisesse desestimular os casamentos e, provavelmente, os nascimentos após 1871, muitas
crianças foram geradas entre 1872 e 1882. Ainda que nascidas livres, estas crianças
acompanhavam seus pais no cativeiro, e não é difícil imaginar que os mais velhos
auxiliassem os mesmos em alguma atividade. Ou seja, mesmo com a Lei do Ventre Livre,
possuir ingênuos não era totalmente ruim.
Gráfico 4. Distribuição etária dos escravos e ingênuos em 1882
Depois desta breve análise da situação demográfica da Santa Sofia em 1882, a
próxima e última parte vai tratar da última ação do Conde como senhor de escravos, a
alforria de todos os seus cativos.
Por dever e por afeição: As alforrias do Conde de Prados
A alforria é vista como um elemento fundamental do sistema escravista, e que serve
como reforço, e não como abrandamento do sistema41. Ela acaba sendo uma boa estratégia
para produzir libertos dependentes e alimentar nos cativos que ficavam a esperança da
liberdade, para eles mesmos ou outros. Este horizonte de possibilidades podia amenizar
possíveis conflitos. Aparentemente, esta política foi eficaz na Santa Sofia, já que as
41
BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do Século XIX: Liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas
FFLCH/USP, 2004, p.25.
17
evidências apontam que a convivência entre escravos e senhores era aparentemente
pacífica e mais, não seria exagero afirmar que no caso do Conde de Prados, as alforrias
faziam parte do plano de manter a produção cafeeira por mais alguns anos, tendo em vista
a disponibilidade de terras virgens e cafezais jovens.
A carta de alforria é uma fonte que ganhou destaque na historiografia a respeito da
escravidão a partir da década de 1980. O documento transferia a propriedade do cativo do
senhor para o escravo, sendo o instrumento legal pelo qual a passagem da condição escrava
para a livre era legitimada, mas nem por isso garantia liberdade irrestrita. É preciso avaliar
a qualidade desta liberdade. Muito se pensou a respeito do espaço que era ocupado pelos
libertos que deixavam o cativeiro, e sabe-se que a liberdade adquirida era tutelada, vigiada
e estava sob constante ameaça. O liberto que tem que carregar para sempre e para todos os
lugares aonde ia, sua carta de alforria para provar a sua condição. É preciso ter em mente a
afirmação de Eduardo Paiva França, quem tem o dever de comprovar sua liberdade, não é
livre42.
O documento precisava ser registrado por um tabelião ou diretamente no cartório.
Deveriam constar no documento “primeiro, a identidade do senhor ou de seu procurador,
ou testamenteiro, ou inventariante [...]. Segundo, a identidade do alforriado, seu nome e
sexo, idade, cor, profissão, naturalidade, filiação, estado civil e, não freqüentemente, a
história de como ele veio a ser propriedade de seu último senhor [...] Depois vêm as
condições da alforria, que podia ser a título gratuito ou a título oneroso. [...] Se o
pagamento fosse estipulado em prestações de serviço, estipulava-se o prazo de tempo, para
quem se prestariam os serviços, que tipos de serviços e, se houvesse, a remuneração.
Finalmente, era costume indicar os motivos da alforria, que eram os mais variados [...]
Com regularidade, essas alforrias foram concedidas como o último desejo do senhor”43.
No caso da Santa Sofia não estão presentes todas as informações, mas elas foram o
último desejo do Conde. Nas alforrias só constam nome, estado civil, idade e número de
ordem e matrícula. Informações fundamentais como ocupação, naturalidade e os motivos
das alforrias não são citados, mas, com o cruzamento dos dados das cartas com as
informações contidas em outras fontes é possível recompor a identidade destes alforriados.
Neste texto, optou-se por focar as seguintes variáveis: sexo, qualificação profissional e
filiação.
42
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVII – Estratégias de resistência
através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 2000 ,p.102
43 EISENBERG, Peter. “A carta de alforria e outras fontes para estudar a alforria no século XIX”. In:
Homens Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – Séculos XVII e XIX. Campinas, Ed. da
UNICAMP, 1989, pp. 245-252, p. 247
18
Em uma carta endereçada a sua esposa em 1882, o Conde de Prados anuncia, de
maneira muito breve, mas nem por isso menos clara, sua política de alforria. O dever e a
afeição eram os motivos que o levavam a libertar seus escravos. O que pode revelar que
para ele a alforria era uma demonstração do paternalismo senhorial44. Ao anunciar que
existem motivos determinados para que um escravo seja libertado, é possível comprovar
que a carta de alforria não era um mero prêmio distribuído aleatoriamente entre os cativos
do grupo45.
Ao tratar do dever como uma das condições para a concessão da liberdade, o Conde
deixa transparecer que isso não lhe agrada completamente, e parece reforçar a noção de
que a alforria beneficiava somente os escravos. Mas é bem possível que ele soubesse que
estas alforrias se reverteriam em seu benefício. Como afirma -----, “a alforria – entendida
como um dom e, por conseguinte, o estado de endividamento que ela engendrava –
transformava-se em um elemento fundamental na produção e reprodução das relações
sociais que reforçavam o poder senhorial ao ampliar sua clientela e autoridade sobre seus
escravos.” 46
Em 1882, ano da morte do Conde de Prados, a escravaria da Santa Sofia era
formada por 216 escravos e 84 ingênuos47. Do total de escravos, 140 eram homens e 76
eram mulheres. Todos eles foram alforriados gratuitamente com a morte de Camilo, alguns
incondicionalmente, outros condicionalmente.
Os escravos alforriados incondicionalmente foram 101 (ou 47%). O número está
próximo dos 43% de alforrias incondicionais apontadas por Antonio Henrique Duarte
Lacerda em um estudo sobre o padrão das alforrias em Juiz de Fora no século XIX 48. O
mesmo autor ainda aponta que na última década da escravidão, frequentemente as alforrias
incidiram sobre um grande número de escravos de uma só vez e às vezes sobre todos os
cativos de um mesmo senhor49, justamente a situação que encontramos na Santa Sofia.
Os alforriados condicionais receberam as alforrias gratuitamente somavam 116
escravos (Gráfico 4.1), e eram compostos por três grupos: os menores de 35 anos (formado
por 35 homens e 31 mulheres) que deveriam prestar serviços por mais quinze anos (até
1897), os menores de 45 anos (32 homens e 11 mulheres), que deveriam prestar serviços
44
BERTIN, Enidelce. Op. Cit., p.130.
Aparentemente, para o Conde a noção de alforria estava próxima àquela indicada por SOARES, Márcio de Sousa em A
remissão do cativeiro:a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750 – 1830. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2009.
46
SOARES, Márcio de Sousa. Op. Cit., p.157.
47
ALBUQUERQUE, Antonio Luiz Porto e. Op. Cit., pp.289-303
48
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Os padrões das alforrias em um município cafeeiro em expansão – Juiz de
Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-88. São Paulo: Annablume, 2006, p.63.
49
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Idem, p.80.
45
19
por mais dez anos (até 1892) e os maiores de 45 anos (sete homens) que deveriam prestar
serviços por mais cinco anos (até 1887).
Gráfico 4.1 Alforriados Condicionais (1882)
A imposição de condições, que neste caso era o trabalho (e boa parte dos escravos
que receberam alforrias condicionais trabalhavam como roceiros), deixa claro como o
arbítrio do senhor, ao estabelecer, frequentemente, de maneira unilateral as condições da
alforria, prevalecia. Impor o trabalho como condição indica uma provável consciência da
proximidade da abolição, já em 1878, Camilo tem notícias sobre as possibilidades do
trabalho assalariado de asiáticos50 e, além disso, é sabido que o movimento abolicionista
vinha crescendo desde o começo da década de 1880, e não se pode desconsiderar o fato do
Conde de Prados ser um homem envolvido com política e que circula na Corte, o que pode
ter aberto seus olhos a respeito do fim do trabalho escravo.
Aparentemente, o desejo do Conde era garantir a sua força de trabalho no contexto
de crise da escravidão. Afinal, 116 escravos em idade produtiva trabalhariam por mais dez
ou quinze anos o que garantiria ainda uns bons anos de produção.
Passando aos alforriados incondicionais (Gráfico 4.2), este grupo era composto por
100 libertos gratuitamente e sem ônus, sendo 66 homens e 34 mulheres. Dentro deste
grupo, há cinco divisões: filhos de determinados casais; amas, e seus descendentes, de
Camilla e Cecília (filhas do Conde de Prados); escravos que foram de Possidônia Leodora
da Silva (mãe do Conde de Prados); escravos diversos e escravos matriculados como
pardos. O objetivo aqui é focar em dois grupos destes alforriados: as amas das filhas do
Conde de Prados e os escravos que foram de sua mãe.
Gráfico 4.2. Alforriados Incondicionais
50
ALBUQUERQUE, Antonio Luiz Porto e. Op. Cit., pp. 241-44.
20
Sobre os escravos diversos não foi possível identificar um padrão ou a razão pela
qual foram alforriados incondicionalmente, são doze, entre 20 e 70 anos, e a maior parte
deles era de roceiros. Sobre os escravos matriculados como pardos verificou-se que boa
parte deles possuía filiação desconhecida, era natural de Minas Gerais e alguns tinham
ocupações profissionais qualificadas, como carpinteiro, alfaiate, costureira. A maior parte
era de roceiros, porém não se pode esquecer que como as alforrias foram concedidas a
todos os escravos, é claro que a maior parte deles teria esta ocupação. Não é possível
afirmar com certeza que alguns destes escravos foram fruto de relacionamento de escravas
e homens brancos, mas vale lembrar que alguns estudiosos apontam que de qualquer
maneira os pardos, ou mulatos, podiam ser beneficiados por terem uma aparência física
mais próxima da classe dominante51, o que podia influenciar os sentimentos dos senhores e
podia ser definidora nas relações sociais.
Passando adiante, quatro casais e um escravo sozinho tiveram seus descendentes
alforriados sem ônus. Estes somavam 22 escravos (17 homens e 5 mulheres), entre 11 e 40
anos. Com o cruzamento das fontes, só foi possível apurar informações sobre três destes
escravos (uma possibilidade, talvez os outros tenham falecido antes do registro das
matrículas de 1872). Um dos casais era formado por João Ferreiro e Adriana, ambos
definidos como pardos, com filiação desconhecida e nascidos em Minas Gerais, e temos
ainda alforriados os filhos de Manoel Copeiro, negro e africano. O que se pode inferir é
que o fato dos homens ocuparem cargos especializados (definidos nas suas próprias
nomeações) pode ter aproximado seus descendentes da liberdade.
Reforçar o sistema através de incentivos como este, a possibilidade da liberdade,
ainda que para um próximo e não para si mesmo, se revelou uma política de domínio
ardilosa e eficaz, já que indo de encontro aos anseios dos escravos, o senhor aumentava a
vulnerabilidade dos mesmos, tornando-os menos dispostos a arriscar confrontos52.
Seguindo adiante, momento de passar à análise das alforrias das escravas (e seus
descendentes) das filhas e da mãe do Conde de Prados. Este grupo somava 27 cativos,
51
52
EISENBERG, Peter Op. Cit., p. 279.
SLENES, R. Op. Cit, p.281.
21
sendo 11 homens e 16 mulheres entre 12 e 50 anos. Dentre todos os grupos de alforriados
incondicionalmente, este é o único no qual as mulheres se sobressaem numericamente.
Este é um dos momentos nos quais a relação entre gênero, ocupação e liberdade
aparece com clareza. Sabe-se que durante muito tempo, as mulheres foram mais
alforriadas, já que o homem sempre foi mais valorizado no mercado, especialmente por sua
força física e sua conseqüente utilidade para o trabalho. A mulher, menos resistente
fisicamente acabava se tornando um fardo com a idade e não raramente teve sua
capacidade reprodutiva ignorada53, afinal, até meados do século XIX, a reprodução do
sistema se dava facilmente com a reposição da mão de obra através do tráfico
transatlântico.
Das 16 escravas deste grupo de alforriadas, 10 trabalhavam (as outras eram
crianças) e destas apenas uma era roceira. As outras tinham ocupações domésticas: 5 eram
amas, 2, lavadeiras, 1, cozinheira e 1, costureira. Além da questão física apontada por
Eisenberg, boa parte dos estudos sobre alforrias indicam que as mulheres foram mais
alforriadas, pois tinham mais oportunidades de estabelecer laços afetivos com seus
proprietários durante o tempo em que trabalhavam na casa-grande.
É importante pensar que a vantagem proporcionada pela proximidade que as
escravas podiam ter ao trabalhar na casa-grande, poderia de fato resultar em laços de afeto
que poderiam levar a liberdade da mesma ou de seus filhos, mas também pode se
transformar em uma desvantagem, já que deixava a escrava mais visível e suscetível às
investidas dos senhores, ao ciúme e inveja das senhoras e à vigilância constante.
Uma questão que surge desta discussão é a seguinte: É então possível afirmar
definitivamente que os escravos que estavam mais próximos ao senhor tinham mais poder
de barganha cotidiana e esta pode ser considerada uma forma de “liberdade”? Ao mesmo
tempo em que as escravas que trabalhavam na casa foram beneficiadas com alforrias
gratuitas e incondicionais, alguns escravos de eito também receberam a mesma benesse. O
que leva a pensar. Qual seria o motivo que levaria um senhor a alforriar
incondicionalmente e gratuitamente um escravo com o qual ele mal devia conviver e até
mesmo conhecer?
Muitos estudos apontam para a influência das relações íntimas das escravas com os
senhores na obtenção da alforria das próprias ou de eventuais filhos frutos destes
relacionamentos. Até agora não foram encontrados indícios de relacionamentos entre os
homens brancos de Santa Sofia com as escravas. Porém, de forma alguma esta hipótese
53
EISENBERG, Peter. Op. Cit., p. 264.
22
pode ser totalmente descartada, até porque, como os documentos disponíveis são fruto de
um trabalho de seleção da família, é possível que documentos que tratassem de um assunto
tão polêmico quanto esse fossem descartados.
Os escravos que trabalhavam na casa-grande viviam em dois universos distintos.
Ao mesmo tempo em que gozavam de posição privilegiada na hierarquia dos escravos, por
ter um serviço, às vezes, mais leve e contato direto com os senhores, não podiam romper
laços com a sua comunidade na senzala. Ter mais contato com os senhores de maneira
alguma queria dizer que eles eram menos escravos, inclusive talvez isso reforçasse a sua
condição, já que a proximidade a deixava mais vulnerável à tutela. Conforme afirma
Slenes, estas escravas precisavam encontrar maneiras manter o favor do senhor e a
amizade dos companheiros de cativeiro54.
Como dito acima, cinco das escravas alforriadas eram amas. A figura da ama, da
mãe-preta, da mammy, era uma das imagens centrais para alimentar a mitologia da
benevolência do sistema escravista. Como aponta a autora Kimberly Sanders, ela é a
conexão humana entre senhores e escravos e acaba alimentando o sistema55. É possível que
outras escravas almejassem esta posição. E é muito provável que as amas tenham sido
alforriadas porque era comum que senhores alforriassem, por gratidão, que não deixa de
ser uma forma de afeto, escravas que amamentaram, cuidaram ou criaram seus filhos ou
algum outro parente56.
As escravas da mãe de Camilo foram alforriadas em primeiro lugar, por serem
filhas de outra escrava que não aparece em nenhuma relação (provavelmente por ter
morrido antes do registro das listas), mas que provavelmente serviu Possidônia por muito
tempo e poderia ser uma daquelas escravas que Sanders aponta como uma escrava
influente que se mantinha extremamente próxima à família do senhor57.
Eram ao todo quatro escravas (duas roceiras, uma lavadeira e uma costureira) que
foram libertadas e tiveram todos os seus filhos alforriados. Mais uma vez se comprova que
quando o escravo buscava o caminho da liberdade, esta poderia demorar muito a chegar e
nem mesmo contemplá-lo, mas no longo prazo poderia beneficiar seus descendentes.
As alforriadas tinham entre 26 e 40 anos e estavam todas listadas como negras. A
mãe do Conde morreu com 86 anos, logo, não é exagero inferir que provavelmente ela
conhecia estas escravas desde crianças e nutrisse por elas algum tipo de afeto. Como
54
SLENES, Robert. Op. Cit, p. 278.
WALLACE-SANDERS, Kimberly. Mammy. A century of Race, Gender and Souther Memory. Ann
Arbor/University of Michigan Press, 2008, p.13.
56
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Op. Cit., p.81.
57
WALLACE-SANDERS, Kimberly. Op. Cit., pp. 14-15.
55
23
afirma Enidelce Bertin, apesar da violência que envolvia a escravidão, não podemos deixar
de considerar a possibilidade do surgimento de laços entre senhores e escravos. Afinal,
ainda que pautada pela dominação, a relação escravista não foi desprovida de afeto, na
medida que a escravidão permitia58.
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58
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Uma demografia da escravidão mineira – O caso da Fazenda Santa