Título: TEMPORALIDADES : UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A
“CORREÇÃO DE FLUXO”
Área Temática: Educação e Filosofia
Autores: CARMEN LÚCIA FORNARI DIEZ e GERALDO BALDUÍNO HORN
Instituição: Universidade Federal do Paraná
Raça de Ouro —
Se queres, com outra estória esta encimarei;
bem e sabiamente lança-a em teu peito!
[Como da mesma origem nasceram deuses e
homens.]
Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas.
v. 110
Eram do tempo de Cronos, quando no céu este
reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas
mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados,
v 115
morriam como por sono tomados; todos os bens
eram
para eles: espontânea a terra nutriz fruto
trazia abundante é generoso e eles, contentes,
tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens.
Mas depois que a terra a esta raça cobriu v 120
eles são, por desígnios do poderoso Zeus, gênios
corajosos, ctônicos, curadores dos homens mortais.
[Eles então vigiam decisões e obras malsãs,
vestidos de ar vagam onipresentes pela terra.] v.
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E dão riquezas: foi este o seu privilégio real.
(HESÍODO, 1996, p.31)
O objeto do presente estudo é a proposta de ‘classes de aceleração’
que vem sendo desenvolvida em várias Unidades Federadas, tendo sido
implantada no Paraná em 1997 sob a denominação de Programa de
Adequação Idade-Série ou PAI-S: correção de fluxo. A análise crítica que se
pretende não tem por norte descredenciar a disponibilização de alternativas de
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acesso e permanência na rede de ensino aos que dela foram excluídos ou que
nela não puderam ingressar, muito menos a atuação bem intencionada de
inúmeros professores; objetiva perscrutar os significados que atravessam ou
tangenciam a proposta e sua operacionalização, para o cumprimento do que
se entende ser a vocação da Filosofia da Educação: interrogar meticulosa e
radicalmente a realidade educacional.
A expressão ‘Correção de fluxo’ denota a ação reparadora, ordenadora,
‘ortopédica’ ou de castigo sobre algo que está se movimentando, escorrendo
ou fluindo de modo incorreto, desviado, desordenado ou deformado.
Considerando que a medida corretiva enfoca o tempo de aprender, a categoria
‘tempo’ constituirá o eixo desta reflexão.
Os gregos significavam o tempo comum — chronos — em vários
sentidos. Havia a representação de um tempo primevo, em equilíbrio e
repouso, não-tempo, não-infinito, mas imutável enquanto existiu, como o da
existência da raça de ouro, quando “...nem temível velhice lhes pesava,
sempre iguais nos pés e nas mãos...” (HESÍODO,1996, p.31). As raças de
prata, dos ‘hipoctônicos’ — (hypó e tonikós, exprimindo escassez de energia) e
de bronze, revelavamavam um retrocesso em relação às de ouro, porque
correspondiam ao período das invasões dóricas, período considerado “das
trevas”. Elas foram sucedidas pela raça dos heróis, e raça de ferro, na
trajetória para o período clássico, quando o tempo passou a ‘Aion’, patamar de
sagrado e juiz. De conformidade com a leitura de WHITROW (1997), para
Parmênides (c.540-480 a.C.), passado e futuro são inconcebíveis. Através da
conhecida afirmação ‘O Ser é o que é e é impossível que não seja’, elaborou
uma ontologia relacionada ao tempo e ao movimento, conduzindo às
inferências da existência de apenas um ‘ser’, mundo da realidade, eterno,
imóvel e infinito, sem início ou fim, percebido pela razão, portanto verdadeiro.
Entre o ‘não ser’ e o ‘ser’ está o mundo da aparência com tempo e o
movimento perceptíveis pelos sentidos, consequentemente, ilusórios.
Outras interpretações mostram tempos cíclicos, progressivos, lineares,
finitos, infinitos, apenas produzidos pela razão, ou ainda combinações diversas
dentre estas formas.
Na filosofia platônica, o tempo é cópia, imagem ou sombra de uma
‘realidade verdadeira’. O mundo fenomênico, sensível, é feito de aparências,
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das coisas imperfeitas, e como tal, em fluxo constante. O tempo é concebido
como a imagem móvel da eternidade, ou ainda, de uma ‘presença’ que não
passa. Idealidade e perfeição dos arquétipos são imutáveis, estão em repouso,
prescindem de qualquer deslocamento. Apesar do repouso e da perfeição,
diferencia-se do primevo vivido pela ‘raça de ouro’, porque traz o elemento do
eterno, e constitui o outro extremo do repouso porque é o fim, o não-tempo e o
não-movimento posterior ao tempo e ao movimento. Com a definição do fim,
embora pareça aproximar-se de Parmênides, também dele se distancia.
Diôgenes de Laêrcio (séc.III a.C.) registrou que, na concepção de Platão (428367 a.C.), o fim Supremo é a assimilação a Deus, na eternidade. Assim, o
tempo foi criado como uma imagem da eternidade. O universo permanece para
sempre em repouso, mas o tempo consiste no movimento do céu. A noite, o
dia, os meses e o resto são partes do tempo; por isso o tempo não existe sem
a natureza do universo, pois só enquanto existe o universo existe também o
tempo. (DIÔGENES LAÊRTIUS, L.III –73, 1977, P.102)
No mundo sensível que se dirige ao fim supremo há movimento e
tempo. Após a assimilação, na perfeição, é desnecessário mudar e haverá o
equilíbrio e o repouso eternos.
Antes de Platão os primeiros filósofos, preocupados com a phýsis, já
haviam especulado sobre a temática. Se para Anaxágoras (499-428 a.C) o
homem era ‘a medida de todas as coisas’, sua interpretação em relação às
mudanças espaciais ou temporais implicava — conforme Aristóteles (384-322
a.C), — que todas as coisas estavam em um todo que repousava em um
tempo infinito, sendo a inteligência que lhes imprimia o movimento.
(ARISTOTE, Physique IV-250b, 1931) O aforismo de Anaxágoras é analisado
por Platão como
... la manera como las cosas se le presentam a un hombre es la verdad
para él, y el modo como se presentam a outro es la verdad para éste. Ninguno
de los dos puede achacar error al uno outro, pues si uno ve las cosas de una
manera son de esa manera para él, auque le parezcan diferentes al vecino. La
verdad es meramente relativa. (GUTHRIE, 1995, p.80)
Antítfono (c.480-411 a.C.) entendia o tempo como apenas um conceito
elaborado pela mente, sem existência substantiva, podendo ser resumido
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como invenção de mais um padrão de medida. (WHITROW, 1997)
Empédocles(492-432), também na leitura de Aristóteles afirmava que
movimento e repouso se realizam alternadamente: o movimento quando o
amor produzia a unidade a partir do múltiplo, ou o ódio produzia o múltiplo a
partir da unidade, havendo o repouso nos tempos intermediários.
Aristóteles conceituou e analisou com maior rigor o significado do tempo
para o homem da polis grega e consequentemente para a filosofia que aí se
materializou. Nos dez livros que compõem a Física, o assunto tangencia
análises de objetos diversos, e a partir de Física, Livro IV, transforma-se em
enfoque privilegiado. Elaborando o conceito de movimento, nele ancora-se no
para explicar o tempo. Ou seja, qualquer movimento do cosmo ou da mente
ocorre concomitante a uma temporalidade.
No primeiro argumento sobre o movimento ser eterno, Aristóteles afirma:
“Nous disons, on le sait, que le mouvement est l’entéléchie du mobile en tant
que mobile, il est donc nécessaire qu’existent premièrement les choses Qui ont
la puissance de mouvoir selon chaque mouvement.” (ARISTOTE, Physique IV251a, [1931])
Não obstante ser o repouso a característica da matéria, esta coisa
amorfa tem a potencialidade da forma, cuja realização depende do ato, ou
seja, o movimento é resultante do ato do ser que atualiza a potência. Daí o
estagirita trata da existência do motor primeiro e do princípio da causalidade,
das várias formas de movimentos e causas. (Physique VII) A sucessão, daí
decorrente, na percepção de WHITROW (1997), não se resume a uma
sucessão em si, mas a de um movimento cuja numeração que os seres lhe
atribuíram definem-na como tal.
Aristóteles
se
pautava
pela
não
abstração,
e
atinha-se
com
determinação nos fatos aparentes, concretos. Por isso contestava a idéia de
Parmênides sobre o vazio, idéia insustentável porque negada pela própria
materialidade do mundo. Para GUTHRIE (1995) tal concepção “Era contraria al
sentido común. sin embargo, consciente e la grand autoridad a que tenia que
oponerse, formuló su oposición com ousadía, en cierto modo infantil, pues
según Aristóteles, le dio la forma seguinte: ‘Lo que no es existe lo mismo que lo
es.’ ”(p.71)
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Epicuro (342-270 a.C.) nega a causalidade por entender que o
movimento do universo é aletório, o que se evidencia pela diferente velocidade
de queda dos objetos. A casualidade do cosmos transposta ao homem define
o direito ao livre arbítrio no agora, pois no amanhã — exceto a morte —, tudo é
incerto. Tal incerteza diz que, apesar do livre arbítrio que é consoante à
espontaneidade, a liberdade é relativa porque está à mercê da incerteza. “E a
presunção de que além, do âmbito da observação direta os próprios tempos
mínimos concebidos pela razão apresentarão continuidade de movimento não
é verdadeira. [...] É verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos
sentidos ou se apreende por meio da mente.” (DIÔGENES LAÊRTIUS, Livro X
– 62, 1977, p.297) Epicuro asseverava que a alma é corpórea, composta por
partículas minúsculas, átomos extremamente “lisos e arredondados” que lhe
conferem a condição de sutil. Tais átomos estão localizados dispersamente por
todo o corpo no qual é a alma que garante a sensação. Todavia, ela morre,
deixa de existir. Como o vazio, o incorpóreo, não existe em si. O vazio não é
ativo nem passivo, somente, permite que corpos em movimento transitem
através dele. (DIÔGENES LAÊRTIUS Livro III, 1977)
Diôgenes de Laêrtius tratou ainda do pensamento estóico, registrando
que Crísipos (c.282-206 a.C.), Apolôdoros (séc.II a.C.) e Poseidônios (185-109
a.C.) teorizaram sobre o vazio infinito como sinônimo de incorpóreo,
significando aquilo que não contém corpos, apesar de poder contê-los. Neste
sentido, definiam o tempo como incorpóreo e medida de movimento.
(DIÔGENES LAÊRTIUS, L.VII 132–141, 1977, p.211-213)
Inversamente à interpretação casual, na de causalidade e sucessão
temporal estão presentes os conceitos de passado, presente e futuro,
conceitos que constituem a idéia de tempo cotidianizado.
Na Idade Média − a visão cristã de tempo − foi formulada pelo teólogo e
filósofo Santo Agostinho(354-430 d.C.). Em sua teoria, ele aponta para dois
aspectos que considera fundamentais para compreensão do conceito de
tempo: o tempo concebido como ‘movimento da criação’ e o tempo como
‘realidade’. Esses elementos estão estreitamente interrelacionados quando
conceituamos o tempo. Para Santo Agostinho, o tempo é um foi que já não é.
É um agora, que não é; o agora não pode se deter, pois se isso acontecesse
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não seria tempo. É um será que ainda não é. O tempo não tem dimensão;
quando vamos capturá-lo, dissipa-se. “...o futuro não é um tempo longo,
porque ele não existe: ‘o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro’.
Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas ‘o pretérito longo’ outra
coisa não é senão ‘a longa lembrança do passado”.(S. AGOSTINHO, 1996,
p.337)
Em Santo Agostinho, as dificuldades acerca da compreensão do sentido
do tempo aumentam quando concebido como algo externo, relacionado a
coisas, objetos. O tempo agostiniano é um tempo radicado na alma, isto é, a
alma e não os corpos, é a verdadeira ‘medida’ do tempo. Para ilustrar esse
entendimento, ele afirma:
Vou recitar um hino que aprendi de cor... A vida deste meu ato divide-se
em ‘memória’, por causa do que já recitei, em ‘expectação’, por causa do que
hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro
para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a
memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente
consumida, quando a ação, já toda acabada, passa inteiramente para o
domínio da memória. (SANTO AGOSTINHO, 1996, p.337).
O futuro é, para Santo Agostinho, o que se espera, o passado o que se
recorda e o presente é aquilo a que se está atento. Isso é o tempo, mas não
como medida fundada nas coisas e fatos e sim na direção tomada por Plotino,
do tempo como prolongamento sucessivo da vida da alma ou na ótica
platônica de tempo como manifestação ou imagem móvel de uma Presença
que não passa. Se de um lado a idéia agostiniana de tempo admite a alma
como fundamento real e verdadeira medida do tempo, de outro não admite
pensar que o tempo preexista a Deus ou que é anterior a tudo, pelo contrário,
por ser Deus causa suprema de tudo, há que se admitir que o tempo foi
também criado por Deus. Mas, é preciso um certo cuidado para não tomar em
mesmo sentido o tipo de duração chamado ‘eternidade’ e o tipo de duração
chamado tempo, pois são heterogêneos, isto é, a eternidade é uma presença
‘simultânea’ enquanto que o tempo não.
É possível observar que as teorias gregas acerca do tempo,
especialmente as formuladas por Aristóteles e Platão, em muito se
assemelham às teorias modernas que podem ser divididas entre os que
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defendem uma visão ‘absolutista’, do tempo como uma realidade independente
e os que defendem a concepção ‘relativista’, ou seja, que o tempo existe como
relação e não enquanto realidade ‘per si’.
Os principais representantes das concepções absolutista e relacionista
de tempo na modernidade são, respectivamente, Newton (1642-1727) e
Leibniz(1646-1716). Ambas as concepções consideram que o tempo é
contínuo, ilimitado e não-isotrópico. A visão sobre o tempo é assim descrita por
Newton num dos esclarecimentos dos ‘Principia’. Primeiro analisa o tempo
absoluto. O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si e por sua própria
natureza, flui uniformemente sem relação com nada externo e também se lhe
dá o nome de duração. O tempo relativo é descrito por Newton da seguinte
maneira: o tempo relativo, aparente e comum, é uma medida sensível e
externa... da duração por meio do movimento, a qual é comumente usada em
vez do tempo verdadeiro. Resumidamente, pode-se dizer que Newton
fundamenta sua idéia do tempo numa perspectiva absolutista, isto é, o tempo é
algo independente das coisas − enquanto as coisas tendem a mudar, o tempo
não muda.
Leibniz, ao contrário, defendeu a concepção relacional de tempo. Em
‘Os fundamentos metafísicos da matemática’, ele afirma que o tempo é a
ordem de existência das coisa que não são simultâneas. Assim o tempo é a
ordem universal das mudanças, quando não levamos em conta as classes
particulares de mudança. A magnitude do tempo é a duração, em outras
palavras, o tempo significa uma ordem de sucessões.
O conceito de tempo da Teoria da Relatividade de Einstein(1879-1955)
se aproxima de Leibniz e se opõe a Newton, pois este entendia que o tempo
era independente do universo, enquanto Leibniz afirmava ser o tempo derivado
dos eventos, um aspecto do universo, a visão que hoje prevalece, desde que a
teoria de Einstein passou a ser vista como uma parte essencial da física, é a
de que o tempo é um aspecto do universo que depende do observador.
Uma importante conseqüência da teoria especial da relatividade de
Einstein é que um relógio que se desloque parecerá funcionar lentamente
comparado a um relógio similar em repouso com relação ao observador, e
quanto mais a velocidade do relógio que se desloca se aproximar da
velocidade da luz, mais lentamente ele parecerá marchar. Esse aparente
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lenteamento de um relógio que se desloca é chamado de "dilatação do tempo".
De todas as conseqüências da teoria de Einstein, foi esta que pareceu a muita
gente a mais difícil de aceitar, uma vez que entra em conflito com nossa
intuição do tempo ditada pelo senso comum. (WHITROW, 1997, p.194)
As transformações materiais ocasionadas por revolução industrial e
descobertas científicas já haviam ditado ao senso comum a crença no
progresso, progresso pensado como um movimento de melhoria crescente em
direção a um infinito, não do sentido místico, mas no de inesgotabilidade das
possibilidades de produção de conforto e bens materiais. Aliás, a teoria de
Darwin, sobre a evolução, divulgada em 1859, substituiu no pensamento
humano a hegemonia da religião pelo mito da ciência. Paralelamente a esses
eventos, a escola também se consolidou como instituição, e à educação foi
creditada a fé de redentora da ignorância da humanidade.
Em analogia à visão de progresso, a visão de tempo linear sobrepujou, o
entendimento de outras interpretações científicas posteriores, como a da
relatividade de Einstein ou a quântica, de Planck (1858-1947). A sucessão e
mecanização
temporalidades,
gestos,
atitudes,
pensamentos,
práticas,
incluindo as educativas, tornaram-se assentes na cultura ocidental sendo
materializadas nas ‘instituições austeras’, assim denominadas por Foucault,
face a se transformarem em instrumentos disciplinares, formadores de corpos
úteis e dóceis. Essa anatomia política se organizou da convergência gradativa
de uma infinidade de práticas diversas, esparsas, pequenas, difusas e sutis,
com diferentes origens e localizações, aparentemente insignificantes, mas com
um potencial de reprodução e expansão, que permeou todo o corpo social.
Técnicas que determinaram modalidades de investimento político no corpo,
que face à diversidade, multiplicidade e extremidade de onde surgem, sem
alarde, criaram uma microfísica do poder, pois "A disciplina é a anatomia
política do detalhe." (FOUCAULT, 1984, p. 98)
Enquanto no período feudal, o controle se dava pelo espaço, pois a
inscrição do homem relacionava-se às suas raízes, à sua localização espacial,
ao seu pertencimento a uma determinada terra, a nova sociedade estabeleceu
para o homem outras dimensões de tempo e espaço, bem como uma nova
relação com métodos e instrumentos de produção. O tempo dos indivíduos foi
colocado no mercado, trocado por salário e transformado em tempo de
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trabalho, parâmetro universalizado de troca, cálculo de preços, de identificação
de normalidade, de nível de utilidade, docilidade e de educação. Surgiu um
novo estilo de vida humana com novo ritmo, novas relações e novas
localizações. No Século XIX, houve redução das festas e do tempo de
descanso, e a adoção do controle da economia do trabalhador.
As instituições que organizaram ‘seqüestro’ e fixação dos homens numa
rede múltipla, privando-os de seu tempo de liberdade para um tempo de
trabalho, formaram a infra-estrutura ideal que permitiu, à nova sociedade, seu
crescimento acelerado. O mesmo controle e tempo da fábrica foi deslocado
para escolas, hospitais, prisões, reformatórios, orfanatos.
A sociedade disciplinar se operacionalizou por procedimentos ou
estratégias específicas do novo tempo: as instituições de seqüestro realizam a
exploração da totalidade do tempo, que nas sociedades desenvolvidas poderia
ser comparada ao sistema de consumo e publicidade, e, além do controle
temporal, o controle dos corpos. As várias instituições de seqüestro oferecem
funções diferentes, mas, curiosamente, em todas, está implícita a disciplina da
existência,
que
supera
as
suas
finalidades,
enquanto
instituições
especializadas em áreas diversas como produção, ensino, correção e castigo.
Esta
superação
verifica-se
através
de
"...polimorfismo,
polivalencia,
indiscreción, no discreción, de sincretismo de esta función de control de la
existencia."(FOUCAULT, 1991, p. 133) Assim, se constitui uma economia dos
corpos, formando-os, valorizando-os, através do controle do tempo. O corpo se
converte em objeto de formatação, reforma, correção, transformação,
qualificação. Tempo transformado em tempo de trabalho: corpo transformado
em corpo de trabalho. Para atender as necessidades destas classes inferiores,
sem excesso de custos para o Estado, e discipliná-las, foram utilizadas as
estratégias de substituição da caridade pela filantropia, higienização,
educação, hibridação entre organismos públicos e privados para a formação
de uma infra-estrutura necessária à criação do ‘dispositivo disciplinar’, que se
tornou o sustentáculo da nova ordem social.
O primeiro procedimento da disciplina é a de distribuir os corpos no
espaço, enclausurando-os para evitar dispersão e desordem, destinando um
lugar para cada indivíduo por quadriculamento, o que evita a circulação e a
aglomeração, localizando funcionalmente os corpos individualizados e
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separados por alas de numerações e identificações. Ainda, distribuir os corpos
em espaço serial, por ordem de classificação, em filas e colunas, cujos pontos
de cruzamento permitem identificar a localização individual e uma rede de
relações possíveis de se estabelecer.
FOUCAULT (1984), fala da homogeneinização dos indivíduos, lado a
lado, sob vigilância do professor. As filas nas salas, corredores e pátios
definem a colocação dos indivíduos por tarefas, resultados de provas, idades,
valores ou méritos. Tal organização permitiu a separação do sistema de ensino
individual para o de grandes grupos, economizando tempo e aumentando o
número de alunos em relação a cada professor. O sistema escolar
transformou-se numa máquina de transmissão de conhecimentos, mas do
mesmo
modo,
máquina
de vigilância, hierarquização, distribuição de
recompensas e imposição de castigos. A disciplina obtém, pela organização de
‘quadros vivos’, uma transformação das aglomerações inúteis e potencialmente
perigosas, em multiplicidades ordenadas.
O segundo aspecto da disciplina refere-se ao controle da atividade em
relação ao tempo cíclico, contabilizado, fracionado e sinalizado, fiscalizado e
cadenciado. A disciplina centra-se no positivo da força útil, no máximo de
aproveitamento do tempo na passagem de uma operação à outra, o que
permite utilizar exaustivamente o corpo. O corpo mecânico vai sendo
substituído, através dessa técnica de sujeição, pelo corpo natural que aspira o
durável, tornando-se objeto de novas formas de poder e oferecendo-se a
novos saberes. Ao inverso do corpo da física especulativa, da animalidade ou
da racionalidade, ele é o corpo do exercício, manipulado pela autoridade,
treinado e útil.
Foucault mostra como se desenvolveu uma técnica para a posse das
existências dos indivíduos, com o intuito de capitalização de seus tempos
(utilização, acumulação e transformação em lucro). Esta se explicita em quatro
processos:
Dividir o período de aprendizado em segmentos sucessivos, que devem
ser ministrados gradativamente, sem que uma nova etapa se inicie antes que a
anterior se tenha completado;
Organizar uma seqüência das atividades mais simples para as
atividades mais complexas;
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Estabelecer o término com uma verificação (prova), para aferir o nível
atingido, se equiparado a outros indivíduos, e diferenciar as capacidades de
cada um;
Seriar as séries, enquadrando cada indivíduo de acordo com sua fase,
sua antigüidade e o que lhe é conveniente. Ao final de cada série ou sub-série
outras se iniciam, criando leques, De maneira que cada indivíduo se encontra
preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua
categoria.(FOUCAULT, 1984, p.144)
O poder disciplinar é exercido não como forma violenta que mutila,
apossa-se, reduz forças ou atua ostensivamente e repressivamente sobre as
populações. Ao contrário, concretiza sua função é adestrar, mediante
procedimentos modestos, multiplicando as forças e atuando subtilmente pela
decomposição até as instâncias microfísicas. A disciplina é uma técnica de
poder que cria o indivíduo, utilizando-o como objeto e instrumento de seu
exercício. Sua tônica é a simplicidade o emprego de práticas comuns: olhar
que gradua, ‘sanção normalizadora’ e seu ajustamento no exame.
A ótica disciplinar, para poder chegar aos detalhes das multiplicidades
individuais, dentro das complexidades organizacionais do trabalho, do
aprendizado, do tratamento, etc., necessita efetuar escalas, criar um processo,
um mecanismo, uma estrutura pertinente. Estrutura hierarquizada de vigilância
que funciona nas relações descendentes, ascendentes, diagonais e laterais
das instituições, como uma rede de poder múltiplo e automático, pautado na
fiscalização mútua. E, apesar de organizada hierarquicamente, existindo a
figura do ‘chefe’, não é esta situada acima na pirâmide organizacional como
produtora de ‘poder’. É a organização como um todo que permite o poder,
distribuindo os indivíduos nesta instância conservada e ininterrupta.
Nos vazios das leis as disciplinas criaram pequenos mecanismos
penais, coercitivos dos comportamentos. São micro-penalidades sutis, como
reprovações, pequenas humilhações, atitudes de aparente indiferença, face a
mínimos desvios de conduta, para que o indivíduo se enrede numa
‘universalidade punível-punidora’. Espelha-se, de modo reduzido, no modelo
do tribunal, para julgar e punir a inobservância, os desvios, o não atingir da
regularidade prevista, como, por exemplo, o tempo e/ou o nível de
aprendizado. Centrado na redução de desvios, o castigo disciplinar é
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‘corretivo’, executado, portanto, através de exercícios repetidos. A punição
disciplinar baseia-se na dualidade recompensa-castigo, via julgamento bem e
mal, possibilitando o estabelecimento de uma quantificação de prós e contras,
contabilizando um balanço positivo ou negativo, relativo a cada indivíduo.
THOMPSON (1987), ironizou a sensibilidade da filantropia inglesa com o
pauperismo, propondo que os pobres fossem colocados em aldeias de
cooperação que teriam um investimento inicial dos governos e filantropos,
permitindo às classes inferiores tornarem-se úteis, industriais, racionais,
disciplinadas e moderadas.
Nas sociedades rurais e na pequena indústria doméstica a noção de
tempo estava ligada às obrigações da profissão. No agricultor ou artesão
independente (século XVII), segundo Thompson, três aspectos marcaram a
compreensão das obrigações da profissão. No primeiro, o agricultor ou
trabalhador tende a atender a necessidade concreta de seu trabalho,
secundado o tempo medido pelo relógio; o segundo aspecto refere–se à
situação de quando a obrigação profissional é comum, havendo pouca
demarcação entre trabalho e vida, isto é, as relações sociais de trabalho estão
intimamente ligadas, o dia de trabalho é maior ou menor dependendo da
necessidade; finalmente, se o trabalho está associado à medida do relógio,
trabalha-se pelo relógio, e a obrigação da profissão é relegada. A questão
tempo-trabalho tornou-se mais complexa (sociedade moderna) quando a
execução de uma determinada tarefa foi ligada a um valor em dinheiro, quando
ocorre a venda do trabalho. Com a locação dos braços para a produção, a
orientação passou a realizar-se pelo relógio. Assim, o tempo se transformou
em dinheiro, uma vez que traduz em números o que é material: resultado do
trabalho (mais-valia). Ora, se o tempo é dinheiro quando aplicado no trabalho,
o que se transforma em dinheiro é o trabalho medido pelo tempo-relógio e não
o tempo do relógio como simples unidade de medida. Portanto, o trabalho é
uma categoria temporal independentemente do relógio, pelo fato de constituir o
elemento fundante de toda a sobrevivência humana quer seja primitiva quer
seja moderna. Todavia, a clareza conceitual perdeu seu delineamento na vida
prática. Na proporção em que a sociedade se industrializou, a disciplina do
trabalho se impôs criando a cultura da economia do tempo: tempo que é
trabalho é dinheiro. O empregador passa a criar meios de controle efetivo
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sobre o tempo do trabalhador, impedindo-o de desperdiçá-lo. THOMPSON
(1991), referindo-se às indústrias inglesas do final do século XVIII, afirmou: “Foi
nessas indústrias - fábricas têxteis e oficinas mecânicas - que a nova disciplina
foi mais rigorosamente imposta e a contestação mais intensa. A princípio,
alguns capatazes procuraram que os trabalhadores não tivessem qualquer
conhecimento da passagem das horas.” (p.72).
HEISENBERG (1901-1976), em Física e Filosofia (1995), para mostrar
como a nova física aniquilou noções basilares do pensamento tradicional,
evoca os argumentos de Kant, sustentáculo da concepção de modernidade.
Kant elaborou, como parâmetro de aferição do conhecimento, o conceito de
‘julgamentos sintéticos a priori’ afirmando que fundamentariam ‘qualquer
metafísica futura’ que pudesse ser considerada ciência e, para provar a
existência de tais julgamentos, utilizou as categorias espaço e tempo, o
princípio de causalidade e, posteriormente acrescentou os princípios de
conservação da matéria, gravitação e, de igualdade entre ação e reação. A
ciência contemporânea derrubou o centro argumentativo dos ‘julgamentos
sintéticos a priori’:
A teoria da relatividade modificou nossos pontos de vista sobre espaço e
tempo e, de fato, revelou características inteiramente novas de espaço e
tempo, das quais nada transparece nas formas kantianas a priori da intuição
pura A lei da causalidade não mais é aplicável à teoria quântica e a lei da
conservação da matéria perdeu sua validade no caso das partículas
elementares. (HEISENBERG, 1995, p. 69)
Apesar das novas teorias, muitas práticas sociais persistem, tais como a
condenação do ócio, necessidade de utilidade e racionalização do tempo e,
dentre outras, o tempo-escola que se mantém com suas disciplinas,
destituídas de seu sentido na realidade pós-industrial, evidenciando o
anacronismo da educação-instituição.
Em janeiro de 1999, as equipes de pós-graduandos do Curso de
Especialização em Interdisciplinaridade na Escola Básica – Turma Leôncio
Correia, elaboraram descrições resumidas sobre ‘”um período de um dia de
escola, relacionando tempo, espaço, pessoas e atividades”, em atendimento à
solicitação do professor. Consolidadas as descrições (aproveitando quase a
totalidade dos dados), obteve-se a seguinte rotina:
14
7:00 hs, chegam os auxiliares serviços gerais, e 2 ou 3 alunos; 7:15: o
diretor entra direto em sua sala cerca de uma dezena de alunos anda no pátio;
7:20 hs: entram inspetores e metade dos professores, encaminhando-se à sala
de convivência para tomar ‘ um cafezinho’; Mais da metade dos alunos já
chegou. Eles estão no pátio, brincando, sentados ou esperando nos locais de
‘fazer fila’; 7:30: o restante professores se encaminha à sala citada, enquanto
alguns dos que haviam chegado dirigem-se às salas de aula. Os alunos, em
tempos diversos, atendem ao sinal e ’fazem fila’, sob os olhares de alguns
professores e inspetores; 7:50 hs: alunos encaminhados às salas de aula; 800
hs: professores entram nas salas de aula, bem como alguns alunos
retardatários; Na sala de aula: 8:10 hs: oração (metade das descrições),
chamada de alunos; acomodação dos alunos; 8:15: solicitação das ‘lições de
casa’, alunos fazem tumulto buscando material; acomodação dos alunos. 8: 30
às 9:30 hs: verificação da lição; 9:30 hs: acomodação para receber merenda;
10: 00 hs: recreio no pátio; 10: 15 hs: retorno à sala de aula; acomodação...;
10: 30 hs: aula expositiva ou trabalho em equipe; 11:30 hs: professora escreve
lição para casa no quadro-negro; alunos copiam a lição; acomodação de
alguns
alunos,
outros
‘mais
lentos’
continuam
a
cópia;
11:45
hs:
recomendações e explicações do professor sobre a lição; acomodação...;
12:00 hs: bate o sinal e os alunos saem. (duas equipes acrescentaram: os
alunos debandam para viver a vida.)
A rotina, pela rotina, é mantida. Sabe-se que os alunos que a ela não se
submetem,
são
encaminhados
a outros espaços, como escolas de
reeducação, cursos supletivos e, atualmente, ao PAI-S; Correção de Fluxo (1).
Este, explicita tanto o sentido ‘corretivo’, de uma ortopedia educacional, como
de sua configuração em uma rede microfísica de exercício de poder.
A justificativa institucional para o programa reflete o consenso da
sociedade, dos professores envolvidos de forma espontânea ou por coerção,
dos alunos das classes regulares e dos próprios destinatários do projeto, pois
parte do seguinte ‘diagnóstico’:
...o aluno fora da série correspondente a sua idade deixa de ser uma
presença conveniente, tanto para os colegas, como para os professores que,
via de regra, julgam-no inadequado, como e principalmente para o próprio
aluno que acaba correspondendo ao rótulo de inadequação (desinteresse,
15
comportamento diferenciado, ‘vergonha’ por tornar-se um ‘diferente’... mais
idade, mais tamanho, conversas e interesses que não combinam mais.) Outro
aspecto levantado refere-se a perda de auto-estima, quando o aluno volta a
acreditar em si mesmo, recuperando a autoconfiança.(TEIXEIRA; CICIELSKI,
1998, p.12)
Assim, em 1997, o projeto foi implantado em 378 municípios,
envolvendo 1.170 escolas e 110 mil alunos da rede pública.
Conforme documentos do Programa Correção de Fluxo, a defasagem
no Fluxo Idade/Série, é um dos fatores que contribui para o alarmante índice
de evasão no sistema educacional. A continuidade da argumentação para a
institucionalização de mais essa modalidade compensatória, analisa que multirepetência, evasão escolar e exclusão social também são geradoras da
defasagem idade-série, constatando que, no Paraná, dos alunos matriculados
em 1.995 de 1ª à 8ª séries, 315.859 ou 36,37% do total desses alunos
encontravam-se defasados em relação ao padrão Idade/Série.
Pode-se perceber uma argumentação que transforma o efeito em causa
e que enfatiza a ‘evasão’, terminologia estratégica para atribuir a culpa do
fracasso escolar à vítima do sistema. Sabe-se que esse contingente é objeto
da dívida social gerada pelo ‘progresso’ obtido da omissão de políticas sociais
básicas que levam à extrema desigualdade de distribuição de renda. Sabe-se
também que esta legião de excluídos introjetou a fé na educação redentora, o
que se evidencia na multi-repetência, ou seja, esses alunos repetem
incansavelmente a mesma série, ano após ano, até a exaustão. Esta exaustão
é, então, denominada ‘evasão’. A palavra Evadir, em sua etimologia, refere à
ação de fuga às ocultas, de escapar-se furtivamente, o que remete ao sentido
de culpa, de ação inadequada, de infra-ação.
Apesar da explicitação da intenção corretiva tanto do fluxo do tempo
como da quantidade de conhecimentos que deveriam ter mas não
conseguiram, os jovens que ingressam no programa submetem-se ao estigma
da insuficiência, aos olhares compadecidos dos alunos das outras classes, a
tratamentos agressivos ou piedosos, com a expectativa de sua própria
‘normalização’. Todavia, o programa, como anatomia política disciplinar, é
transformado em foco de convergência e dispersão de saberes e poderes,
trazendo inúmeras frustrações, tanto para os já excluídos como para os
16
professores, principalmente aos que participam por contingências diversas da
vontade de ensinar, ou que, mesmo portanto este desejo, são desmotivados
por falta de preparação, falhas estruturais, etc.
Dentre uma diversidade de imprevistos, pode-se citar: o material
específico para os professores e para os alunos, considerado de excelente
qualidade, nem sempre chega nas escolas de acordo com o calendário; o
número de 25 alunos por turma, previsto pela resolução, na prática tem sido
ampliado, e em alguns casos até 50; vários professores designados para o
programa sentem-se ‘castigados’, desvalorizados; o treinamento discente
muitas vezes foi efetivado após o início do trabalho; NOGAROLLI e
RETONDARIO (1998) identificaram:
Chamou-nos a atenção a colocação feita por alguns entrevistados, de
que há discriminação por parte dos professores: são chamados de marginais,
burros, otários, classe especial. [...] Quanto aos aspectos positivos do
Programa, não fhouve consenso entre os docentes, pois para 10% é a
facilidade da conquista do diploma, para outros 10% oportuniza o não
cumprimento de um planejamento, para 40% é o material didático e a
avaliação diferenciada que contam, para 20% torna os alunos mais
conscientes e desobriga do registro de notas, para 10% viabiliza atingir os
objetivos propostos e, ainda, para outros 10% facilita o avanço do aluno para a
série seguinte
A resposta dada à pergunta sobre o aumento da causa da evasão dos
alunos egressos (60%) e solicitou-se sugestão para diminuir o índice de
evasão a maioria respondeu que “... deveria ter mais seriedade da Secretaria
de Educação, pois ela brincou muito, e não fomos preparados para enfrentar o
2° Grau”. (p.29).
Finalmente, o que é mais perverso: após grandes contingentes terem
sido iniciados no Programa e com os relatos oficiais sobre o sucesso da
operação corretiva, a instância oficial reduziu o número de turmas, de forma
que jovens que atingiram a condição de ‘egressos’ (denominação oficial aos
alunos do programa que alcançam a 8ª série), realmente serão egressos da
escolarização. Apesar desse descompasso, o discurso institucional relata que
a avaliação para essas turmas de ‘egressos’ tem a função permanente de
diagnóstico e possibilita ao professor intervir no processo de aprendizagem
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acompanhando os alunos, parte integrante do trabalho realizado em sala de
aula e tem como principal objetivo ajudar o aluno a aprender. Além disso,
como decorrência não apenas da redução de turmas da Correção de Fluxo’,
mas na mesma lógica na qual se insere a terceirização da Escola Pública,
encontra-se também em formação a categoria do professor ‘egresso’. Com o
aumento no número de alunos por turma, muitos educadores (não
concursados) estão sendo descartados. Diante da redução do quadro docente
e conseqüente disputa por aulas, emerge a dissenção entre os professores, a
dissolução de vínculos estabelecidos em penosas jornadas.
O Programa traz subjacente a lógica liberal, cristalizadora, a partir do
trabalho, uma nova disciplina do tempo, o ritmo do relógio conceituando o
tempo, novos valores e hábitos de uma economia da divisão e supervisão dos
corpos e das almas, concretização da apologia do trabalho e condenação da
ociosidade: tempo-trabalho, tempo-dinheiro, tempo-espaço-escola, tempoidade; espaço-série... lógica que é veiculada na rede micro-física, legitimando
tanto a proposta PCI-S, emanada das instâncias oficiais, como sua
administração, a displicência de alguns professores e alunos, a irreverência de
muitos alunos, e até a depreciação-preconceito de professores e dos alunos de
classes regulares para com os que freqüentam a Correção de Fluxo, bem
como o sentido de pertencimento ao magistério.
Antes o professor corria como o ‘coelho branco’ do conto de Lewis
Carroll, trotando inquieto e lamurioso em busca do irrisório, pois substituía a
ausência de objetivos pelo consolo de um dia a mais que passava, ou pela
aquisição de um novo produto cuja necessidade lhe foi inculcada. Hoje o
professor, já proletarizado, corre de escola em escola buscando aumentar uma
carga horária de 8 para 10 ou 12... aulas semanais, para não ser egresso. A
carreira desenfreada é um ‘programa’ definido por uma racionalidade
ontológica que busca a relação saber e poder, como estratégia demiúrgica que
organizando o Ser se produz como tal. Se a produção é da ordem do Logos,
emerge a existência, principalmente a de Castas Sacerdotais que se arrogam o
direito de transformar a rede pública em fábrica de egressos.
Todavia, existem outras lógicas, vinculadas a outras visões de mundo.
Existe uma forma diferenciada de raciocínio de alguns professores que
acreditam da profissão, na profissão de fé na educação, que leva ao
18
aproveitamento da realidade apresentada, para nela exercer o contra-poder de
ensinar a pensar, algo habitualmente considerado ‘etéreo’, à revelia do
programado. É este aluno que não se deixa seduzir pelo atrativo chamado que
Mefistófeles, em Fausto, fazia ao estudante:
O tempo esvai-se logo e deves bem gozá-lo, /A ordem e a disciplina
ensinam a utilizá-lo.
Aconselho-te, então, meu jovem amigo,/A primeiro estudar a Lógica
comigo,/Teu espírito estará por fim bem amestrado,/E em boas espanholas
muitíssimo ajustado/E assim já poderá deslizar, num momento,/Nas estradas
suaves de todo pensamento./Não andarás indeciso a torto e a direito,/Erradio,
a vagar sem o menor proveito./Aqui te ensinarão durante muitos dias, /O que
de um golpe só comumente fazias,/Qual comer e beber com liberdade,
várias/Vezes. Uma! duas! três!/Quantas necessárias./Na verdade isso ocorre
em fábrica-pensante,/Onde um só pedal move mil filamentos, /Em que
peçazinhas vibram em movimentos,/Invisíveis os fios deslizam com pujança,/O
filósofo sábio investiga e avança,/Demonstra que no mundo está tudo na
ordem:/O primeiro era assim, o segundo também,/Então terceiro e quarto em
seguida vêm./Se o primeiro e segundo em ordem não se viam,/Terceiro e
quarto jamais se encontrariam./Isso louvam estudantes em todos os
rincões,/Mas nunca eles se tornam ao menos tecelões./Quem quer investigar e
a Vida desvendar,/O espírito abandona em primeiro lugar,/E exibe nas mãos
apenas a matéria, / Infelizmente falta aquela coisa etérea. (GOETHE, in:
HEISENBERG, 1995, p. 129-130)
O paradigma da causalidade que dava aporte às disciplinas está
superado. Segundo EINSTEIN e INFELD (1976), as partículas representam
condensações de um campo contínuo presente em todo o espaço, o que
permite interpretar o universo como teia infinita de eventos correlacionados, e
todas as teorias dos fenômenos naturais passam a ser meras criações da
mente humana, esquemas conceituais que representam aproximações da
realidade, pois não há realidade até o momento em que ela é percebida pelo
observador.
Dependendo
do
ajuste
experimental,
vários
aspectos
complementares da realidade se tornaram visíveis. A observação, em si, gera
os paradoxos. Por isso a realidade é fruto do trabalho mental e ela tenderá a
ter os contornos de quem a observa e que escolhe o quê e o como observar. É
19
a mente que se vê refletida na matéria. O real é uma metáfora com a qual o
cientista pode criar e ampliar significados e valores na busca por entendimento
e propósito...
O aprofundamento desta visão de Einstein e da física quântica, levou
BARBOUR (1999) a elaborar a teoria da inexistência do tempo, lembrando
Antífono e Anaxágoras. O físico inglês, Julian Barbour resume seu raciocínio:
...um objeto pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Na física
quântica, até você provar que o objeto está em apenas um lugar, ele está por
toda a parte. E é um princípio que se torna ainda mais complicado, bonito e
surpreendente quando diz que vários objetos podem estar em um único lugar
ao mesmo tempo. Aplicada a todo o Universo, essa teoria possibilita a
existência de vários ‘agoras’ num único instante. O que a mecânica quântica diz
é que há várias versões de você por toda parte. No mundo da mecânica
quântica ocorrem em você bilhões de coisas nesse momento, mas haverá
sempre um outro no qual você não entrará. Somos prisioneiros do agora em
que vivemos. (p.11)
Assim como os contos Júlio Verne vêm sendo materializados pela
ciência e pela técnica, quem sabe um novo tempo permita escolas diversas,
nas quais possa Educação Física concretizar a fantástica competição que
CARROLL imaginou: a Corrida de Tohu-Bohu. Esta deve ser realizada em
pista — cuja forma não é relevante—, sem ponto definido de partida ou
chegada, muito menos direção ou cronometragem de tempo. Cada qual corre
e para à vontade, sendo estabelecida a única regra de que todos são
vencedores.
Alice, no centenário conto de Lewis Carroll, em companhia do
apressado grifo, escutava o relato da Tartaruga Falsa sobre a escola de sua
infância, na qual aprendia-se:
Primeiro Recitação e Contorção, naturalmente [...] e depois as quatro
regras da aritmética: Ambição, Distração, Enfeiamento e Ridicularização.
E que mais aprendiam?
Havia, em seguida, Histeria Antiga e Moderna. [...]
Histeria quer dizer nervosismo. Não sabia que há maneiras antigas e
modernas de ficar nervoso? [...]
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Aprendíamos também margrafia e depois arrastamento, esticamento e
desmaio em espirais. [...] E o Grifo nunca aprendeu a desmaiar em espirais.
Não tive tempo — disse o Grifo. Fiz o curso de Literatura Clássica. O
professor era um velho Caranguejo.
Nunca segui os cursos dele — disse a Tartaruga Falsa com um suspiro.
— Disseram-me que ensinava diferentes formas de choros e risadas.[...]
E quantas horas de aula vocês tinham por dia? — perguntou Alice [...]
Dez horas no primeiro dia —. disse a Tartaruga Falsa. — Nove no
segundo, oito no terceiro e assim por diante.
Que sistema engraçado! exclamou Alice. — Então no décimo primeiro
dia devia haver sempre feriado.
E havia disse a Tartaruga Falsa.
E como era no décimo segundo dia? — perguntou Alice, com
curiosidade.
Chega de falar de aulas — decidiu o Grifo, com autoridade. —Conte-lhe,
agora, alguma coisa sobre os recreios.(CARROLL, 1982, p93-95)
A reflexão realizada permitiu perceber que está ocorrendo um
deslocamento sem precedentes da visão de mundo, através da física, talvez
com conseqüências mais radicais do que as causadas pela revolução
copernicana. É possível cogitar que os enunciados criam a realidade, mas é
possível também que os enunciados derivem da realidade. A única indicação
obtida conduz à leitura de que os significados compartilhados podem ser
materializados. Assim, da mesma forma que a economia disciplinar e o tempolucro tecem a trama da exclusão, é possível, a partir da elaboração de novas
representações, construir uma outra escola, do tempo etéreo, da corrida cuja
única regra é a de que todos vencem.
Quanto às verdades científicas, quanto ao tempo verdadeiro, delega-se
à fala do especialista:
Quaisquer palavras ou conceitos que foram criados no passado, frutos
da interação do homem com o mundo, não são, de fato, precisamente
definidos no que se refere a seu sentido; isso quer dizer que não sabemos
exatamente quão longe palavras e conceitos nos ajudarão a achar nosso
caminho no entendimento do mundo. Freqüentemente, sabemos que eles
podem ser aplicados em um domínio amplo de experiências interiores e
21
exteriores mas, na prática, jamais saberemos os limites de sua aplicabilidade.
Isso é verdade mesmo para os conceitos mais simples e para os mais gerais
como ‘existência’, e ‘tempo e espaço’. Portanto, jamais será possível chegarse, pela razão pura, a alguma verdade absoluta. (HEISENBERG, 1995, p. 72).
Nota
(1) As informações pertinentes ao programa foram obtidas em aulas
ministradas nos cursos de especialização nas quais professores que
participam do projeto avaliaram-no verbalmente ou em textos acadêmicos, bem
como em monografias elaboradas nos cursos citados.
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UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A “CORREÇÃO DE FLUXO”