Parecer proferido no Pº
RP 69/2013 STJ-CC
Recorrente: João P…, advogado.
Recorrida: Conservatória do registo predial de …….
Ato impugnado: Recusa do registo de aquisição requisitado sob a ap. 3…. de
05/07/2013.
Sumário: contrato de colonia – forma a que deve obedecer o título comprovativo
do exercício do direito de remição da propriedade do solo que seja acompanhado
da simultânea justificação do direito de propriedade sobre as benfeitorias (art. 6.º
do Decreto n.º 16/79/M, de 14-9).
Relatório
De acordo com o que consta do teor da descrição respetiva, a ficha n.º 7737 da
freguesia e concelho de M….. respeita a prédio rústico colonizado, achando-se ele inscrito
em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos (20) herdeiros de
Guilhermina S…. e marido João T…. (cfr. ap. … de 2013/05/21).
Sobre esse prédio, a coberto da ap. 3… de 05/07/2013, e por via eletrónica,
requisitou o ora recorrente registo de aquisição com base em documento particular (que
ele mesmo autenticou e eletronicamente depositou no dia 28/06/2013) respeitante à
formalização de negócio que se epigrafou de “Contrato de Compra e Venda (Remissão de
Colonia)”, nos termos do qual os titulares inscritos do mencionado registo de aquisição,
por si ou através de procurador, declararam vender a José M…. e mulher “uma parcela de
terreno rústica, por eles colonizada, a destacar do prédio acima identificado, com a área
de 34 m2 (…)”, e estes [José M… e mulher], por sua banda, do mesmo passo que
declararam aceitar a venda, afirmaram-se “donos e legítimos possuidores, com exclusão
de outrem, das benfeitorias implantadas na parcela comprada, as quais são rústicas,
omissas na competente Conservatória do Registo Predial (…).” No ato, ao lado dos
contraentes, intervieram duas outras pessoas, as quais, a uma voz com os vendedores,
declararam
confirmar
as
declarações
dos
transmitentes
acerca
da
existência
e
titularidade das assinaladas benfeitorias.
Incumbida
de
avaliar o
merecimento
do
pedido,
a
sra.
conservadora
da
1
conservatória do registo predial de ….. decidiu recusá-lo com fundamento na “nulidade
manifesta do facto porquanto o ato consubstancia uma remição de colonia, o que não é
titulável mediante documento particular autenticado, uma vez que o Decreto Regional
13/77/M, de 18/10/1977, estabelece, no seu artigo 21.º, que os acordos que tenham por
objeto os direitos de remição de colonia deverão ser titulados por escritura pública,
requisito de validade formal que se mantém.” Invocou-se, de direito, as normas dos arts.
69.º-1-d, do CRP, e 220.º, do CCivil.
Subsidiariamente, como motivos de qualificação minguante1 – não fora a
prevalência da apontada causa de recusa –, arrolaram-se os seguintes:

O covendedor António J… é identificado no título como divorciado, em
discrepância com o estado de solteiro com que figura identificado na
inscrição de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito,
“o que suscita a dúvida quanto à eventual necessidade de consentimento
conjugal para a perfeição da declaração negocial.”

“A procuração passada por Maria A…. e Emídio C…. não se encontra
acompanhada de termo de autenticação – art. 116.º/1, CN.”;

Por outro lado, a certificação de que a fotocópia dessa mesma procuração
“se encontra conforme o original refere que a mesma foi passada a Maria do
C.. quando, na realidade, a mesma foi passada a João P…….”

“A procuração passada por Maria da G… refere os prédios sitos no concelho
da ..…. e não no concelho do …..; prédios esses que venham a pertencer à
mandante por óbito de seu pai, António T…., não João T….r”.

“A procuração passada por Maria G…. não se encontra depositada na
íntegra, faltando, pelo menos, uma página, o que impossibilita que se
verifique se os poderes concedidos para venda abrangem o prédio em
causa”.

Por fim, “Não foi feita prova da participação das benfeitorias à administração
fiscal para efeitos de liquidação do imposto de selo, nos termos do artigo 26
do respetivo diploma.”
1
Supomos que assim (isto é, como fundamento de qualificação desfavorável, se bem que
de não especificada natureza) se deva interpretar a frase de que se fez anteceder a enunciação de
tais motivos: “Ainda que fosse de lavrar o registo, verifica-se o seguinte, o que se faz por motivos
de economia registral:”. Salvo o devido respeito, dizer isto é dizer pouco. Se se entende que o
processo de registo enferma de deficiências obstativas da plena viabilidade do pedido, não chega
com certeza apresentar em desfile tais detetadas deficiências, sendo imperioso que a elas se ligue
a sua exata consequência: se a recusa, se a provisoriedade por dúvidas, se a provisoriedade por
natureza (de um ou vários tipos), se a cumulação destas duas provisoriedades.
2
No dia 27 de agosto de 2013, por meio de ficheiro anexado (denominado
“recurso.pdf”) a mensagem de correio eletrónico remetida às 19.35 horas para o
endereço associado à conservatória do registo predial de ….., interpôs o apresentante
recurso hierárquico da decisão de recusa, cuja petição aqui se dá por integralmente
reproduzida, e na qual, em síntese, argumenta como segue:

“A afirmação do colono, feita no próprio título de aquisição da terra – de que
é
dono,
com
exclusão
de
outrem,
das
benfeitorias
não
descritas,
implantadas no prédio rústico comprado, confirmada pelo transmitente e por
dois outros outorgantes, prevista no art. 6.º, n.º 1 do Decreto Regional
7/80/M – não constitui justificação notarial de um prédio rústico, para os
efeitos do n.º 1 do art. 116.º do CRP”, uma vez que uma tal declaração “não
dá lugar a um registo autónomo sobre benfeitorias” – ao contrário do que
sucede com a justificação notarial, com base na qual se efetua um registo
autónomo de um direito sobre um determinado prédio –, “as quais se
incorporaram no solo do imóvel rústico e com ele se confundiram”; que a
justificação notarial obedece a um conjunto de requisitos – quer ao nível das
declarações que os intervenientes têm que prestar (assim, por ex., quando a
usucapião seja invocada como causa aquisitiva do direito, a menção das
circunstâncias de facto que determinam o início da posse), quer ao nível da
documentação que para ela tem que ser reunida, quer ainda ao nível das
condições ulteriores à celebração de que depende a sua plena aptidão para
servir de título de registo (assim, por ex., a publicação de extrato da
escritura de justificação num dos jornais mais lidos da situação dos prédios)
– a que a dita afirmação do colono de modo algum está sujeita; aliás,
“mesmo que do título de aquisição de terreno de colonia não constasse a
afirmação do colono – de ser dono das benfeitorias – o registo das mesmas
sempre
seria
feito
por
simples
declaração
dos
próprios
colonos/compradores”;

Que da extinção dos contratos de colonia, decretada pelo Decreto Regional
13/77/M, resultou que as benfeitorias do colono deixaram de constituir
objeto de um seu direito real de propriedade, distinto do direito de
propriedade do solo, passando a existir um único direito de propriedade,
sobre a terra e sobre as benfeitorias, que pertence em exclusivo ao
senhorio,
ficando
em
contrapartida
ao
colono
ou
o
direito
de
ser
indemnizado pelo valor real das benfeitorias, como se se tratasse de
3
enriquecimento sem causa, ou o de comprar a terra, sendo que os acordos
que tenham por objeto a remição de colonia deveriam ser titulados por
escritura pública;

Que, todavia, com a entrada em vigor do DL n.º 116/2008, de 4-7, a
celebração por escritura pública passou a ser facultativa para a generalidade
dos atos relativos a bens imóveis, passando estes a poder ser praticados por
documento particular autenticado por advogado;

Que “o título de remição não é mais do que uma simples compra e venda,
pela qual o senhorio vende o prédio ao colono, a qual pode conter a
afirmação do colono/adquirente de que, com exclusão de outrem, é dono
exclusivo das benfeitorias não descritas implantadas no terreno comprado,
confirmada pelo transmitente/senhorio e dois outros outorgantes (…), e
permite que o terreno comprado seja registado como prédio livre”

Que “o imposto de selo sobre benfeitorias não é devido nas remições de
colonia, porque o objeto de aquisição é o imóvel remido (…), e não incide,
nem pode incidir, sobre benfeitorias rústicas ou urbanas, que não foram
remidas, nem adquiridas, nem têm existência jurídica, porque perderam
individualidade e autonomia, e incorporaram no solo, até mesmo antes da
compra e venda, por força da lei e a partir da publicação”.
Razões que porém não obviaram a que a recorrida, no despacho previsto no art.
142.º-A1 CRP, sustentasse a pertinência da decisão impugnada.
Argumentou que a remição de colonia não consubstanciará uma simples compra e
venda, não lhe sendo por isso aplicáveis as normas relativas à desformalização do ato de
compra e venda de bens imóveis – e isso “dada a exigência de confirmação, por parte do
colono, no título de aquisição da terra, de que é dono, com exclusão de outrem, das
benfeitorias não descritas, ser confirmada pelo transmitente e por duas testemunhas,
conforme prevê o artigo 6.º, n.º 1 do Decreto Regional 16/79/M de 14 de setembro, na
redação que lhe foi atribuída pelo Decreto Regional n.º 7/80/M”. Na verdade, “atenta a
unidade do sistema jurídico (…), há de se considerar que apenas ao notário e ao
conservador se reconhece competência para avaliar da idoneidade de testemunhas”,
razão por que a habilitação de herdeiros e a justificação se mantêm no código do
notariado como atos da competência do notário, “podendo, também, as conservatórias
titular habilitação de herdeiros e decidir processos de justificação”. Não é que a dita
afirmação do adquirente do terreno, contida no título de remição, consubstancie a
justificação de prédio, porquanto ela apenas serve para justificar a propriedade de
4
benfeitorias não descritas – mas também é certo que a remição de colonia, em vez de
constituir um simples ato de compra e venda, corresponde antes a uma “figura híbrida
em que se cruzam a compra e venda com alguns traços de justificação”.
Por outro lado, e no que toca à questão da exigência da prova da participação das
benfeitorias nos termos do art. 26.º do CIS, dá-se conta de que a mesma se baseou “no
conhecimento [do] serviço de que esta era, pelo menos, a posição assumida pela Direção
Regional dos Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira em 2007, comunicada
pelo seu ofício n.º … à Conservatória do Registo Civil e Predial de C……”.
*****
Questão prévia
Uma palavra cabe dizer a propósito da admissibilidade da apresentação da petição
de recurso hierárquico por correio eletrónico.
No processo RP 177/2008 SJC-CT pronunciou-se o Conselho Técnico no sentido de
não deverem ser distintas as modalidades de apresentação de pedidos de registo dos
factos a ele sujeitos, de um lado, e as modalidades de apresentação de requerimentos de
impugnação da qualificação que sobre tais pedidos versem, de outro. A unidade do
sistema parece na verdade impor a uniformidade. Daí que não haja que recorrer
subsidiariamente às normas do CPA (art. 147.º-B),2 e nomeadamente ao seu art. 79.º –
porquanto a normação registal se mostra neste aspeto autossuficiente.
Ora o art. 41.º-B, entre outras, prevê a apresentação por via eletrónica,
terminologia em que não custaria integrar o pedido formulado por correio eletrónico.
Simplesmente, sucede que a regulamentação do pedido de registo por via eletrónica (cfr.
art. 41.º-C1), tal como ficou definida na Portaria n.º 1535/2008, de 30-12, de facto não
contempla a possibilidade de o pedido de registo ser veiculado por correio eletrónico – o
que determina que também para a apresentação do requerimento de recurso hierárquico
a utilização dessa via se tenha que dar por impedida. Aliás, diga-se, para este
requerimento, e nos termos da sobredita regulamentação, nem a comum via de
submissão do pedido de registo por via eletrónica está disponível: a plataforma
tecnológica que para o efeito se concebeu, na verdade, centraliza a receção dos pedidos
no sítio da Internet com o endereço www.predialonline.mj.pt (art. 2.º da indicada
portaria), e os pedidos que por esse canal se admitem no sistema, desencadeando o
2
Importa frisar que a referência a normas do CRP, que ao longo do texto se forem fazendo,
têm por pressuposta a versão do código anterior à revisão operada pelo DL n.º 125/2013, de 30-8.
5
processo interno de apreciação da respetiva viabilidade, restringem-se aos de atos de
registo propriamente ditos. O dispositivo montado não contempla a interposição de
impugnação (hierárquica ou contenciosa – arts. 140.º e ss.) – como aliás não contempla
a apresentação de requerimento de processo de justificação (arts. 116.º e ss.) ou de
retificação (arts. 120.º e ss.).
O uso do correio eletrónico não constitui pois meio legalmente válido de dirigir aos
serviços nem pedido de registo nem requerimento de recurso. Não o é à luz das normas
registais, como aliás o não seria à luz do CPA, para quem reputasse o diploma – que já
vimos não ser o nosso caso – subsidiariamente aplicável.
Donde resulta que o recurso, no nosso entendimento, deve ser rejeitado à luz do
disposto no art. 173.º-b, do CPA, aqui subsidiariamente aplicável ex vi do art. 147-º-B
CRP.
O que porém nos não inibirá, seguindo a tradição do Conselho, de sobre a matéria
dos autos refletir e tomar posição, com isso visando contribuir para o esclarecimento dos
pontos debatidos.
Apreciação da questão de fundo
1. A questão central que nos autos cumpre dilucidar consiste em saber a que forma
(cfr. CCivil, arts. 219.º e ss.) se encontra sujeito o acordo relativo à remição do terreno
posto em regime de colonia que simultaneamente incorpore a justificação da propriedade
de benfeitorias não descritas (cfr. art. 6.º do Decreto Regional n.º 16/79/M). Deve esse
acordo necessariamente fazer-se por escritura pública, como sustenta a recorrida, ou é
lícito formalizá-lo através de documento particular autenticado submetido a depósito
eletrónico, como defende o recorrente?
1.1. A tarefa não prescinde dum apontamento, breve que seja, acerca da
fisionomia e natureza do instituto da colonia.3
A figura é endémica da Madeira, e tem raízes consuetudinárias, que remontam ao
início da exploração agrícola dos solos da ilha. Caracteriza-se fundamentalmente pelo
desmembramento do domínio do prédio colonizado em duas propriedades distintas: a
que versa sobre o solo ou chão, pertencente ao senhorio, e a que incide sobre as
3
O tema do regime jurídico da colonia foi objeto de desenvolvido tratamento nos pareceres
emitidos nos processos RP 144/2004 DSJ-CT e RP 197/2007 DSJ_CT (cfr. http://bit.ly/HIXMjo),
para que remetemos.
6
benfeitorias realizadas, pertencente ao colono. O direito do colono não se esgota porém
no de implantar e de manter as benfeitorias: ele tem um verdadeiro direito de gozo do
solo, ao qual aquele acresce.4
1.2. Como se deixou aflorado, não foi da vontade do legislador, mas da prática
histórico-jurídica, que a colonia nasceu. Mas é à vontade do legislador, em contrapartida,
que se deve a decisão de extingui-la.
A primeira manifestação desse propósito abolicionista surgiu logo nos alvores da
vigência do atual código civil, com a publicação do Decreto-Lei n.º 47937, de 15 de
setembro de 1967, pelo qual se instituiu a proibição, para futuro, dos contratos de
colonia, ao mesmo tempo que se declarava subsistirem na forma convencionada e do
direito costumeiro e usos locais aqueles que se tivessem celebrado até á entrada em
vigor do diploma (cfr. art. 1.º). Com interesse, deve ainda referir-se a consagração, nos
termos definidos no seu art. 12.º, de um processo administrativo de justificação, a correr
na conservatória, destinado a suprir “a intervenção do titular da última inscrição em vigor
de transmissão, domínio ou mera posse, exigida pelo trato sucessivo, para fins de registo
de direito sobre benfeitorias.”5
Mais contundente se apresentou o legislador saído do processo revolucionário de
74, a ponto de ter concedido honras de texto constitucional à extinção do regime.
Determinou-se com efeito no n.º 2 do artigo 101.º da Constituição de 1976 que “Serão
extintos os regimes de aforamento e colónia e criadas condições aos cultivadores para a
efetiva abolição do regime da parceria agrícola.”6-7 E assim foi que no artigo 55.º da Lei
4
Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil - Reais, 5.ª ed., 2000, p. 630.
5
Supomos que ao designar o “titular da última inscrição” cuja intervenção seja exigida pelo
trato sucessivo a norma esteja em primeira linha a referir-se ao titular do pleno domínio; mas não
se crê que houvesse razão para excluir o recurso ao mecanismo de justificação ali previsto quando
a intervenção que estivesse em falta, para fins de trato sucessivo, fosse a do anterior titular
inscrito do direito sobre as benfeitorias.
6
Quanto ao aforamento, ou enfiteuse, a extinção dela sobre os prédios rústicos, em
cumprimento da ordem constitucional, levou-a a cabo o legislador ordinário com o Decreto-Lei n.º
195-A/76, de 16-3 (ulteriormente alterado pelo DL n.º 546/76, de 10-7, e pelas Leis n.ºs 22/87,
de 24-6, e 108/97, de 16-9). Diversamente (como se verá) do que se proveria em relação à
colonia, a consolidação do domínio decorrente da extinção da relação enfitêutica fez-se dum só
golpe, por força do que se dispôs no n.º 1 do art. 1.º daquele diploma: “É abolida a enfiteuse a que
se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio direto deles para o titular do
domínio útil.”Cfr., sobre o tema, MENEZES CORDEIRO, “Da enfiteuse. Extinção e sobrevivência”, in O
Direito, ano 140.º, 2008, II, págs. 285 e ss. De referir que as alterações introduzidas ao regime da
extinção da enfiteuse pela Lei n.º 108/97 (maxime a que se traduziu na nova redação dada ao art.
7
n.º 77/77, de 29-9 (Bases Gerais da Reforma Agrária), sob a epígrafe “colonia”, se
prescreveu (no n.º 1) que “São extintos os contratos de colonia existentes na Região
Autónoma da Madeira, passando as situações daí decorrentes a reger-se pelas
disposições do arrendamento rural e por legislação estabelecida em decreto da
Assembleia Regional.” A densificação final do regime da abolição ficaria porém a constar
dos Decretos Regionais n.ºs 13/77/M, de 18-10, e 16/79/M, de 14-9 (este a breve trecho
alterado, em pontos sensíveis do seu articulado, pelo Decreto n.º 7/80/M, de 20-8).
1.3. É no Decreto n.º 13/77/M que se estabelece a disciplina regional básica, cujo
art. 1.º, começando por repetir a proclamação da extinção dos contratos de colonia,
mandou que transitoriamente se lhes aplicasse as disposições do arrendamento rural –
transitoriamente porquanto no diploma igualmente se definiu um conjunto de regras
destinadas a fazer concentrar a plena propriedade do prédio na esfera jurídica do titular
de uma das preexistentes e paralelas propriedades, de acordo com um esquema em que
é bem patente a intenção de no prosseguimento desse objetivo se dar toda a primazia
aos interesses do colono.
1.3.1. O favor legislativo de que o colono goza, neste contexto, sobressai de modo
particular no desenho normativo do direito de remir a propriedade do solo que, contra o
pagamento da correspondente indemnização ao senhorio, lhe é atribuído (cfr. arts. 3.º e
7.º do Decreto 13/77/M).8 Este direito de remição tem inquestionável natureza
5.º do DL n.º 195-A/76, por meio da qual se reconduziram aos quadros da enfiteuse, para efeitos
do reconhecimento da sua constituição por usucapião, situações que no seu âmbito, segundo o
respetivo revogado regime do código civil, se não abarcavam) vieram suscitar sérias dúvidas de
conformidade constitucional. Cfr., sobre o ponto, GOMES CANOTILHO / VASSALO
DE
ABREU, “Enfiteuse
sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito normativo do instituto enfitêutico.”, in Rev.
de Leg. e de Jurisprudência, ano 140.º, n.ºs 3967, págs. 206-239), 3968 (págs. 266-300) e 3969
(págs. 326-345); na linha do entendimento ali sufragado, cfr. o Ac. do STJ de 09/04/2013,
proferido no P. 79/06.1TBODM.E1.S1, consultado em www.dgsi.pt (http://bit.ly/1a0XFuo).
7
O art. 96.º-2, do atual texto da Constituição, persiste em proibir “os regimes de
aforamento e colonia.”
8
O favorecimento da posição do colono, como regra, é de resto um princípio abertamente
assumido no preâmbulo do diploma. Aí se lê que “É dada ao colono a possibilidade de ascender à
propriedade plena da terra e, de acordo com o princípio constitucional sobre o direito à propriedade
privada, mediante uma indemnização ao senhorio estabelecida de acordo com as partes ou
correspondente ao valor atual do solo considerado para fins agrícolas e por desbravar.”, e ainda
que “Porque se parte do princípio de que o colono, de uma maneira geral, é a parte mais
desfavorecida do contrato, só em casos muito especiais, que não afetam as legítimas expetativas
8
potestativa, e julgamos não errar se dissermos que o seu exercício, com a consequente
aquisição do chão a favor do dono das benfeitorias, representa uma forma de
expropriação por utilidade particular.9 O senhorio não tem a liberdade de transmitir ou
não transmitir a propriedade do solo, verificadas que estejam as condições de que a lei
faz depender a existência do direito de remição. Pode é não chegar a acordo com o
colono acerca do quantum indemnizatório que lhe cabe receber, caso em que a remição,
para operar, não dispensará a mediação de uma decisão judicial (cfr. arts. 13.º e 22.º, do
Decreto 13/77/M, onde respetivamente se estabelece o prazo para requerer a remição
por via judicial e se designa o tribunal para o efeito competente, e art. 9.º do Decreto n.º
16/79/M, com a redação do Decreto n.º 7/80/M, de acordo com cujo proémio “As
remissões,10 quando não resultem de negócios titulados por escritura pública, devem ser
feitas em ação judicial…”).
1.4. Pondo-se no entanto os interessados de acordo quanto aos termos da remição,
a titulação dela, conforme o disposto no art. 21.º do Decreto n.º 13/77/M, haveria de
obedecer à forma de escritura pública. É concretamente prefigurando esta hipótese que o
art. 6.º do Decreto n.º 16/79/M, na redação do Decreto n.º 7/80/M, vem dispor, no n.º
1, que “Para efeito de registo, tem-se como justificada a propriedade das benfeitorias
não descritas se no respetivo título de aquisição do terreno o adquirente se afirmar, com
exclusão de outrem, dono delas e o transmitente e dois outros outorgantes confirmarem
aquela afirmação.”, e, no n.º 2, que “Todos os intervenientes no título ficam sujeitos às
sanções previstas no artigo 107.º do Código do Notariado, a quem deverá ser feita a
advertência nele referida”.11 Quanto ao acolhimento registal que na norma se assina a
dos colonos, é que se reconhece ao senhorio ou a terceiros o direito de remição.”
9
Cfr. arts. 1308.º e 1310.º do Código Civil. Nas palavras de RUI PINTO DUARTE, Curso de
Direitos Reais, 2.ª ed., 2007, p. 67, a expropriação por utilidade particular “é um conceito de
Direito Privado destinado a abranger as situações em que o titular de um direito real pode ser
privado do mesmo no âmbito duma relação jurídico-privada”.
10
O legislador regional ora umas vezes usa a grafia “remição” (assim no Decreto n.º
13/77/M), ora noutras usa a forma “remissão” (assim nos Decretos n.ºs 16/79/M e 7/80/M), mas
não sofre dúvida que só a primeira, neste contexto, é rigorosa (cfr. como exemplos de remição
previstos no Código Civil, os dos arts. 1236.º, 1243.º, 1569.º-4, e, especialmente, o direito de
remição do foro que ao enfiteuta se concedia nos termos do revogado artigo 1511.º). Remissão é
outra coisa: cfr. os arts. 863.º e ss. do Código Civil.
11
O art. 107.º do CN de 1967 surge sistematicamente inserido na regulamentação da
escritura de justificação notarial, e, sob a epígrafe “advertência aos outorgantes”, dispõe que “Os
outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade
9
esta titulação, é o artigo seguinte, também na redação resultante do Decreto 7/80/M,
que logo nos diz em que termos ele se traduz. “O registo das benfeitorias”, declara-se,
“considera-se efetuado, face ao título referido no artigo anterior, por declaração feita na
própria descrição ou em averbamento à mesma de que o prédio consta de terra com
suas benfeitorias, averbando-se também a respetiva inscrição matricial e inscrevendo-se
a aquisição do terreno como prédio livre.”
1.4.1. Julgamos resultar meridianamente claro das disposições que vimos de
transcrever que a justificação de que aqui se trata mais não é do um dispositivo técnico
de legitimação – a sua função, bem vistas as coisas, nisso se esgotando, é a de
comprovar que a pessoa que concretamente intervém a remir é justamente aquela a
quem a lei em abstrato atribui um tal direito: ou seja, o titular das benfeitorias, ou seja,
o colono.12 E o que com base nesse título complexivo (remição-justificação) se regista,
em boa verdade, não é o domínio sobre as benfeitorias, mas, antes, o pleno domínio
sobre o prédio, adquirido pela remição – e, com isso, e reflexamente, registando-se
outrossim, em relação a esse mesmo prédio, a cessação do regime da colonia. A
justificação – esta justificação –, numa palavra, está integralmente ao serviço dos fins da
remição.
2. Como se salientou, é do art. 21.º do Decreto n.º 13/77/M que decorre a
exigência de que o acordo de remição revista a forma de escritura pública (“Os acordos
se, dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas,
devendo a advertência constar da própria escritura.”. Tem direta correspondência no artigo 97.º do
atual CN.
12
Já assim não é, nos mesmos moldes, com a justificação prevista no art. 12.º do Decreto-
Lei n.º 47937, que o art. 5.º do Decreto n.º 16/79/M declarou aplicável a todos os casos em que se
pretenda obter título para se efetuar a primeira inscrição do direito sobre benfeitorias. Portanto,
nesta hipótese, de justificação “autónoma”, há lugar à feitura, com base nela, de registo autónomo
de direito sobre benfeitorias. Ainda aí, porém, do que se tratará, em último termo, se bem
raciocinamos, é de obter um título de legitimação para o exercício da remição: o titular inscrito do
direito sobre as benfeitorias fica habilitado a ser remitente. Na verdade, a colonia, por lei, foi
extinta, já não existe. O que existe, transitoriamente, são situações em que, não obstante a
abolição do regime, a consolidação da propriedade plena nas mãos do colono (na situação
normativamente paradigmática) queda por alcançar. Cfr. o Ac. do STJ de 24/06/2010, proferido no
P. 592/03.2TCFUN.S1, consultado em www. dgsi.pt (http://bit.ly/HSwZ53), onde foi entendido (cf.
sumário, ponto III) que “A extinção da colonia, decretada pela Lei n.º 77/77, de 29-09, veio
inviabilizar a transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais, seja do dono, seja do
colono, mediante negócio jurídico celebrado inter vivos.”
10
que tenham por objeto os direitos de remição previstos no presente diploma deverão ser
titulados por escritura pública.”).
O ponto está justamente em saber se uma tal exigência de forma, na sua
exclusividade, subsiste incólume, ou se entretanto passou aquela mesma remição, ainda
quando seja acompanhada da justificação das benfeitorias, a poder também fazer-se por
recurso à forma de documento particular autenticado submetido a depósito eletrónico.
2.1. O DL n.º 116/2008, de 4-7, veio na verdade introduzir na ordem jurídica
interna, em matéria de negócios jurídicos com eficácia real (quoad effectum) relativos a
imóveis, um princípio de tendencial equiparação (ou fungibilidade) entre a forma de
escritura pública e a forma de documento particular autenticado submetido a depósito
eletrónico, depósito este cujos termos e condições a Portaria n.º 1535/2008, de 30-12,
viria regular. A forma de escritura pública, ali onde antes era obrigatória, passou assim a
ser meramente facultativa: uma, apenas, das duas formas em princípio possíveis.
É no art. 22.º do diploma que se encontra a norma-chave da mencionada
equiparação, ao dispor que “Sem prejuízo do disposto em lei especial, só são válidos se
forem celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado”, entre o
mais: “a) Os atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação,
divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou
servidão
sobre
coisas
imóveis.”;
“g)
Todos
os
demais
atos
que
importem
reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de
propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre imóveis, para os
quais a lei não preveja forma especial.”.
Nuclear, neste contexto, igualmente se nos apresenta a norma do n.º 2 do art.
23.º, nos termos da qual “Todas as disposições legais, regulamentares ou outras que
pressuponham ou exijam a celebração de escritura pública para a prática de atos que
importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos
direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas
imóveis ou outros equivalentes àqueles em relação aos quais se torna esta forma
facultativa são entendidas como pressupondo ou exigindo a celebração de escritura
pública ou a autenticação do documento particular autenticado que formaliza o ato.”
Importa referir, por último, a reconfiguração que do art. 80.º do CN se levou a cabo
através dos arts. 8.º (dando-lhe nova redação) e 34.º-d (suprimindo-lhe certas
componentes normativas). Essa recomposição envolveu, nomeadamente, a revogação do
n.º 1 daquele art. 80.º, onde justamente se consagrava a regra da sujeição a escritura
pública dos atos com eficácia jurídico-real relativos a imóveis, bem como a revogação
11
das als. c) e) e h) a l) do seu n.º 2. Daí resultou que, no final, a exigência de escritura
pública com assento direto no Código do Notariado se reduzisse a um elenco muito
restrito de atos – nele se incluindo as justificações notariais (cfr. art. 80.º-2-a).
3. Em que pé fica então a exigência de escritura pública constante do art. 21.º do
Decreto n.º 13/77/M perante o recente desenvolvimento legal sucintamente descrito?
3.1. Sendo o título de remição apenas de remição – fora, portanto, do campo de
aplicação da norma do art. 6.º do Decreto n.º 16/79/M –, temos para nós como evidente
a abrangência da espécie pelo princípio da equiparação: o ato importa a aquisição do
direito de propriedade do imóvel, pelo que cai diretamente no âmbito da previsão da al.
a) do n.º 1 do art. 22.º do DL n.º 116/2008 (sem esquecer o “alargamento” retroativo
para o documento particular autenticado efetuado pelo n.º 2 do art. 23.º).
Nem se diga, contra isso, que o regime jurídico da extinção da colonia, onde a
exigência de escritura pública se consagrou, constitui uma lei especial, e que, por sê-lo,
uma tal forma se não tornou facultativa, e antes se mantém obrigatória – pois não é o
artigo 22.º aquele cujo texto, antes de estabelecer a alternativa entre a escritura pública
e o documento particular autenticado, começa justamente por ressalvar o que se
disponha em lei especial?
Ao que cremos, porém, o alcance da fórmula “Sem prejuízo do disposto em lei
especial”, ali inserta, não tem em vista um ou outro particular regime legal, dedicado a
esta ou àquela matéria, no qual, porventura, para determinado ato, se estabelecesse a
exigência de escritura pública, exigência que, por causa dessa particularidade, houvesse
que manter a salvo da titulação por documento particular autenticado. O seu alcance é
outro: é o de ressalvar a validade dos atos, nomeadamente dos respeitantes a bens
imóveis, que se formem e formalizem no contexto de procedimentos em que não há nem
celebração de escritura pública, nem celebração de documento particular autenticado.
Como será o caso, paradigmaticamente, do procedimento especial de transmissão,
oneração e registo de imóveis, aprovado pelo DL n.º 263-A/2007, de 23-7.
E tão pouco se objete com aqueloutra ressalva contida na parte final da al. g do art.
22.º, acima transcrita, e que isenta da mencionada alternatividade (escritura pública /
documento particular autenticado) os atos para os quais exista lei a prever forma
especial. A forma de escritura pública, no que toca aos atos do comércio jurídico
imobiliário, nada tem de especial – ao invés, ela é, nesse domínio, na nossa tradição
jurídica, a forma por antonomásia, a verdadeira forma padrão (cfr. o art. 89.º do CN de
1967, em vigor ao tempo da edição dos diplomas regionais).
12
3.2. Mas deverá a nossa posição acaso ser revista quando o título de aquisição do
terreno, sobre formalizar o exercício do direito de remição, concomitantemente
incorpore, como requisito de legitimação do remitente, a justificação da propriedade das
benfeitorias?
Pela nossa parte, entendemos que nem essa circunstância levará a defender o que
a sra. conservadora recorrida defendeu: que deve num tal título, sob pena de nulidade
(CCivil, art. 220.º), continuar a observar-se a forma de escritura pública prescrita no art.
21.º do Decreto n.º 13/77/M.
Com efeito, e se não erramos, excecionar o referido título do princípio da
facultatividade da forma de escritura pública terá que passar por postular uma de duas
coisas, as quais ambas, digamo-lo já, se nos afiguram erradas: ou que a justificação em
causa integra a categoria normativa da justificação notarial, nos termos e para os efeitos
do disposto no art. 80.º do CN; ou que, não consubstanciando uma justificação dessa
natureza, constitui de todo o modo uma modalidade de justificação em relação à qual há
de valer valoração análoga à que determinou o legislador a manter a forma especial de
escritura pública para tais atos, devendo por conseguinte também para ela – e, por
extensão, para o título de remição-transmissão em que estruturalmente se integra –
manter-se a exigência de celebração por escritura pública.13 No fundo, ao defender-se
esta segunda linha de raciocínio, cremos, estará a defender-se a existência, quanto à
matéria, de uma lacuna da lei, mais precisamente de uma lacuna teleológica.14
3.2.1. Quanto a uma eventual tentativa de subsunção da justificação da
propriedade das benfeitorias na categoria normativa de justificação notarial, diremos o
seguinte.
A justificação notarial a que a al. a) do n.º 2 do atual art. 80.º do CN se reporta
não é uma qualquer justificação lavrada por notário, mas apenas a justificação a cuja
13
Parece-nos aliás ser deste segundo tipo o raciocínio que se surpreende no despacho de
sustentação, quando nele se defende que “a unidade do sistema jurídico que deve orientar a
interpretação da norma jurídica” conduz a que se tenha de “considerar que apenas ao notário e ao
conservador se reconhece competência para avaliar da idoneidade” das “duas testemunhas” cuja
intervenção se requer para o efeito de confirmarem a afirmação do justificante de que é o dono das
benfeitorias. “, e bem assim quando, um passo adiante, se expressa o entendimento de que “a
remição não é um simples ato de compra e venda mas sim uma figura híbrida em que se cruzam a
compra e venda com alguns traços da justificação, não lhe sendo, portanto, aplicáveis apenas as
regras da compra e venda.”
14
Cfr. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1994, p. 196.
13
regulamentação o código dedica os arts. 89.º e ss.: ou seja, da justificação para
estabelecimento do trato sucessivo, da justificação para reatamento do trato sucessivo, e
da justificação para estabelecimento de novo trato sucessivo (cfr. CRP, arts. 116.º e ss.).
Ora a justificação da propriedade das benfeitorias não tem nenhuma destas finalidades; a
nosso ver, como acentuámos, o seu papel consiste “simplesmente” em legitimar o
remitente a ser remitente, e o registo que em ultima análise por via dela se propicia não
é o do direito justificado (como acontece na “verdadeira” justificação notarial) mas sim o
do direito adquirido pela remição – a propriedade plena do prédio. Este, para nós, é que
é o ponto decisivo.15 Pelo que recusamos que a justificação das benfeitorias realizada nos
moldes previstos no art. 6.º do Decreto n.º 16/79/M seja suscetível de enquadramento
no rigoroso conceito de justificação notarial para o efeito de, em exceção à regra do art.
22.º do DL n.º 116/2008, a considerar abrangida pela exclusividade de forma de
escritura pública estabelecida no art. 80.º-2-a CN.
3.2.2. Por outro lado, quanto a uma eventual tentativa (subsidiária, digamos, em
relação àqueloutra que vimos de enjeitar) de aplicação analógica, ao caso, da exigência
da forma de escritura pública, considerando que se estará em presença de uma lacuna
teleológica, cumpre-nos observar, desde logo, que temos por muito duvidoso que
procedam em relação à justificação das benfeitorias as razões (ou razões análogas) que
levaram o legislador a preservar para a justificação notarial dos arts. 89.º e ss. CN a
forma de escritura pública. Admitindo que a intenção do legislador não tenha sido, muito
prosaicamente, a de guardar a existência de um reduto mínimo de competência exclusiva
da atividade notarial, estamos em crer que a teleologia da exceção residirá sobretudo na
sentida necessidade de controlo da “verdade material” das declarações prestadas (pelo
justificante e pelos declarantes), para o que o notário se reputará estar especialmente
habilitado, numa área da vida jurídica que se destaca pela elevada conflitualidade que
15
Não cremos por isso que se deva atribuir particular valor argumentativo, no sentido da
assimilação da justificação das benfeitorias não descritas à comum justificação notarial, ao teor do
disposto no n.º 2 do art. 6.º do Decreto n.º 16/79/M, que mais acima reproduzimos, e que
implicaria hoje a remissão para o disposto no art. 97.º do CN (imposição ao notário do dever de
advertir os outorgantes de que incorrem no crime de falsas declarações perante oficial público). O
dever que ali se comete ao notário, não sendo o título de remição-justificação celebrado por
escritura pública, deverá naturalmente ser cumprido pela entidade que intervenha a autenticar o
documento particular (cfr. art. 24.º-1 do DL n.º 116/2008). Sobre o âmbito da intervenção (e de
“responsabilidade”)
da
entidade
autenticadora no
que
toca
aos
documentos
particulares
equiparados a escritura pública, cfr., entre outros, os pareceres emitidos nos Prcs. CP 81/2009 SJCCT e RP 67/2009 SJC-CT, este disponível em www.irn.mj.pt (http://bit.ly/RP672009).
14
em si se gera. Ora é manifesto que o risco de fraude de que se envolve o recurso ao
expediente da “verdadeira” justificação notarial está muitíssimo atenuado na justificação
das benfeitorias que surja enxertada no título de remição. A fraude, neste contexto,
traduzir-se-á na preterição do verdadeiro dono das benfeitorias (e , portanto, na
preterição do verdadeiro titular do direito a remir) pelo falsamente arrogado dono delas,
mas é uma fraude que, a ocorrer, atenta a natural proximidade dos potenciais
interessados-preteridos com a concreta situação de vida em causa (a começar pelo
“contacto” que têm com o prédio, materializado na exploração que dele fazem), com
grande probabilidade rapidamente se porá a descoberto, ficando à mercê de impugnação
pelos meios próprios. Não é com certeza por acaso, aliás, que para a referida justificação
se não exige qualquer requisito de publicidade (como já ao tempo do Decreto Regional se
exigia para a justificação notarial - cfr. art. 108.º do CN 1967).
3.2.2. Porém, e talvez mais importante, é reconhecer que a norma do art. 80.º-2a, do CN, ao reservar a forma de escritura pública para a justificação notarial, constitui
uma norma de natureza excecional no quadro do regime de geral equiparação entre
escritura pública e documento particular autenticado introduzido pelo DL n.º 116/2008.
Pelo que a lacuna, se existisse – e nós não estamos convencidos de que exista –, não
poderia ser colmatada através da respetiva aplicação analógica (CCivil, arts. 10.º-1-2 e
11.º).
Portanto, e concluindo, também por aqui se nos afigura inviável reivindicar, para o
título de remição-justificação, a exclusividade da forma de escritura pública. O que é o
mesmo que concluir pela aplicabilidade, à confeção deste título, do princípio da
equiparação entre escritura pública e documento particular autenticado submetido a
depósito eletrónico, sendo ele tão formalmente válido por uma como por outra via.
4. Dada resposta à questão central dos autos, cumpre passar em revista as demais
objeções subsidiariamente levantadas – se bem que, como se viu, sem especificação de
consequência.
4.1. Quanto à “eventual necessidade de consentimento conjugal para a perfeição
da declaração negocial” do transmitente António J….., atenta a constatada divergência
entre o estado civil declarado no título (divorciado) e aquele que uniformemente figura
no registo e na procuração por meio da qual se fez representar (solteiro), nós não vemos
nisso qualquer motivo para impedir a procedência do pedido. Por um lado, na hipótese de
o estado civil daquele interveniente ser efetivamente o de divorciado, não se requererá
15
evidentemente consentimento de ex-cônjuge algum – supondo que o conceito de
“consentimento conjugal” com que se joga, como parece ser o caso, seja aquele que é
próprio das chamadas ilegitimidades conjugais (cfr. CCivil, arts. 1682.º-A e 1687.º). A
necessidade dum tal consentimento, como se sabe, pressupõe por definição a vigência do
vínculo conjugal.16 Porém, se não foi com este rigoroso alcance que a putativa falta de
consentimento conjugal se invocou, mas se, ao falar-se assim, se pretendeu invocar uma
eventual preterição, na transmissão, de um qualquer ex-cônjuge daquele António J…, o
qual
por
força
do
regime
de
bens
do
extinto
casamento
se
tivesse
tornado
patrimonialmente contitular do direito à herança em que o prédio se integrava, a nossa
opinião, em relação a estoutra eventual objeção, é a de que, efetivamente, a
possibilidade de que tal possa ter sucedido é só por si motivo bastante para que o registo
se tenha que fazer como provisório por dúvidas. Se não erramos, o que está em causa,
neste ponto, é a incerteza em que se fica relativamente ao cumprimento do princípio do
trato sucessivo na modalidade da continuidade de inscrições (cfr. art. 34.º-4).
4.2. Quanto às diversas deficiências detetadas em algumas das procurações,
cremos que, no limite, se de facto se confirmarem, isso fará com que o registo
peticionado se tenha que lavrar com caráter de provisoriedade por natureza, com
fundamento no art. 92.º-1-f.
Será o caso, nomeadamente, da eventual insuficiência de forma da procuração
passada por Maria A… e Emídio C….17, do que a nosso ver decorrerá que se tenha que
entender que o arrogado procurador não possa ser tido como tal; com dúvidas,
propendemos a entender que a intervenção do representante, neste caso, se deva
reconduzir aos quadros da gestão de negócios. Quanto à procuração passada por Maria
da G…, não parece que da mesma, com efeito, se extraia a concessão de poderes para a
prática do ato.18
No que toca ao alegado depósito incompleto da procuração passada por Maria G…
(da qual pelo menos se teria omitido uma página), diremos que da consulta que
efetuámos não nos pareceu que lhe faltasse parte alguma. A procuração foi passada
através de instrumento público, e o depósito, tanto quanto nos é dado observar, contém
16
Sendo certo que a falta de um tal consentimento, por si só, ao tempo do pedido, não
determinava qualquer tipo de provisoriedade. Hoje, após as alterações introduzidas ao CRP pelo DL
n.º 125/2013, já seria diferente – cfr. art. 92.º-1-e.
17
A procuração consta de documento com reconhecimento apenas da assinatura (e não da
letra e assinatura) dos representados, feito por advogado. Cfr. art. 116.º-CN.
18
Concedem-se poderes para a alienação de prédios integrantes da herança de António T…,
que se crê seja pessoa diversa do de cujus (João T….) em cuja herança o prédio se diz integrado.
16
todas as suas laudas.
Finalmente, no que toca às apontadas deficiências cometidas no texto da
conferência das fotocópias das procurações com o respetivo original, cremos que se trata
de manifestos lapsos de escrita, dos quais por conseguinte não haverá que extrair
quaisquer consequências.
4.3. Só resta aludir ao suposto incumprimento das obrigações fiscais (cfr. art. 72.º
CRP): segundo a sra. conservadora, far-se-ia mister fazer prova da “participação das
benfeitorias à administração fiscal para efeitos de liquidação do imposto de selo, nos
termos do art. 26.º do respetivo diploma”.
Sobre o ponto, a nossa opinião muito convicta é a de que, quanto às benfeitorias
próprias do instituto da colonia, a justificação da propriedade delas nos termos do art.
6.º do Decreto n.º 13/77/M não está sujeita a imposto de selo sobre transmissões
gratuitas (CIS, art. 1.º-3 e verba 1.2 da TGIS). E não o está porquanto, se bem vemos, a
aquisição que aí se tributa, quando titulada em ato de justificação, é só aquela cuja
invocada causa seja a usucapião, modo este de adquirir ao qual as declarações
constantes do título de justificação-remição não fazem, nem têm que fazer, a mais leve
referência, sequer de forma implícita. E sempre se poderia acrescentar que as
benfeitorias
em
causa
não
são
elas
próprias
o
objeto
da
aquisição
que
ali
verdadeiramente se titula – a aquisição tem por objeto o solo remido, não as benfeitorias
justificadas. A parte do título respeitante à justificação, repetimos, não visa mais do que
legitimar o exercício do direito de remição, e não obter um título para registo do direito
justificado.
*****
O recurso, pelos motivos vistos, deve ser rejeitado.
Quanto à questão de fundo, o essencial do que sobre ela discorremos fica
condensado nas seguintes
Conclusões
I.
A justificação do direito de propriedade sobre benfeitorias que, no quadro
do regime jurídico da extinção do instituto da colonia, o art. 6.º do Decreto
n.º 16/79/M, de 14-9, prevê que se realize no título em que se exercita o
direito à remição, pelo colono justificante, do direito de propriedade do
17
solo, não consubstancia uma justificação notarial para efeitos do disposto
nos artigos 89.º e ss. do Código do Notariado, uma vez que a sua
finalidade não é a de obter um título para registo do direito justificado mas
tão somente, e instrumentalmente, a de legitimar o exercício do direito de
remição.
II.
Por ser assim, e para efeitos da respetiva formalização, não fica o título de
remição e justificação, lavrado nos apontados moldes, excluído do âmbito
da regra da equiparação entre escritura pública e documento particular
autenticado submetido a depósito eletrónico estabelecida pelo art. 22.º do
DL n.º 116/2008, de 4-7, não lhe sendo portanto aplicável a exceção que a
um tal princípio se consignou relativamente às justificações notariais
“propriamente ditas”, para as quais o art. 80.º-2-a, do código do
notariado, continua a exigir a exclusiva forma de escritura pública.
III.
Donde, apresentar-se-á como formalmente válido o título de remição e
justificação a que se refere a conclusão I. quer quando seja celebrado por
escritura pública, quer quando seja celebrado por documento particular
autenticado submetido a depósito eletrónico.
IV.
Não está sujeita a imposto de selo sobre as transmissões gratuitas a
justificação
da
propriedade
das
benfeitorias
realizada
nos
mesmos
apontados termos, uma vez que, designadamente, não é nem tem que ser
invocada,
como
causa
aquisitiva,
a
usucapião
desse
direito,
nem
verdadeiramente é esse direito justificado, mas o direito de propriedade do
solo, aquele cuja aquisição se titula.
Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo de 21 de novembro de 2013.
António Manuel Fernandes Lopes, relator, Blandina Maria da Silva Soares, Luís
Manuel Nunes Martins, Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, Maria Madalena Rodrigues
Teixeira.
Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Diretivo
em 25.11.2013.
18
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Pº 69/2013 STJ-CC - Instituto dos Registos e Notariado