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O Estado do Maranhão - São Luís, 21 de novembro de 2010 - domingo
Equívocos da ignorância
CERES COSTA FERNANDES
Racismo, xenofobia, segregacionismo, preconceitos de toda ordem, preceitos religiosos fundamentalistas, pruridos excessivos do politicamente correto; o que todos eles têm a ver, uns com os
outros? São todos filhos da intolerância, do atraso, da ignorância e da alienação.
Alguns alienados filhinhos de papai insatisfeitos com a eleição de Dilma Rousseff, que eles atribuem exclusivamente ao Nordeste - ignorando
que Dilma ganharia a eleição mesmo sem a inclusão dos votos dessa região - encheram a internet
com mensagens de incitamento ao segregacionismo, desejos separatistas e até de incentivo ao crime, mencionando o uso de câmaras de gás e afogamento para os nordestinos!
Os paulistas costumam dizer que São Paulo é
a locomotiva do Brasil. Seria muito interessante
a imagem de uma locomotiva a correr loucamente em busca do progresso sem os seus vagões. Se
São Paulo perdesse o grande mercado que absorve suas bugigangas e os imensos territórios onde pode instalar suas indústrias com isenção de
impostos e mão-de-obra barata, ele, como um
poderoso e independente país - como querem
os separatistas -, teria de concorrer, para colocar
sua produção no Norte/Nordeste, com grandes
países exportadores como Estados Unidos, Índia, China e Japão (e o Mercado Comum Europeu, de lambujem). Nós, os excluídos, poderíamos, então, escolher tranquilamente os melhores preços, que, necessariamente, não seriam os
do "Estado Locomotiva".
Sem querer entrar na onda separatista, e já entrando, lembro que o nosso grande folclore de origem genuinamente brasileira feito por índios, negros e caboclos, floresce justamente da Bahia para cima, e que temos abundância de florestas, gás,
petróleo, minérios e turismo. Por essas características, talvez, em caso de um separatismo besta, seria honesto ficarmos com o nome de Brasil e eles
o com o de São Paulo. Aceitaríamos a adesão do
Rio de Janeiro, com seu samba, mulatas e carnaval - que tão bem absorve os nordestinos - no no-
vo mapa a ser desenhado.
Outro assunto, aparentemente diverso, mas fortemente entrelaçado a este, é a proibição, equivocadamente parida pelo Conselho Nacional de Educação, da distribuição para as escolas do livro de
Monteiro Lobato, "As Caçadas de Pedrinho". Sei
que este assunto já foi bastante debatido (aliás, de
forma brilhante e conclusiva, pelo deputado Gastão Vieira, neste espaço), mas como domingo passado não foi meu dia, não posso deixar de me manifestar, quando me dão a deixa.
Os dois assuntos me são particularmente caros: sou daqueles chamados "órfãos de Lobato"
- a maioria dos encantos da minha infância foi
proporcionada por ele; e sofri na pele o preconceito contra os que vêm do Nordeste, quando estudei interna no Rio de Janeiro, por 3 anos, vivi-
Alguns alienados insatisfeitos
com a eleição de Dilma
encheram a internet com
mensagens de incitamento
ao segregacionismo
dos em dois colégios. As colegas me chamavam
de a nordestina, no primeiro, e de pau-de-arara,
no segundo. Os dois colégios eram para meninas
de elite. Eu não era rica, mas filha única de pais
em mediana situação financeira que se esforçavam para fazer de mim uma "menina educada".
A minha vingança foi estudar muito e mostrar
para as colegas que uma menina nordestina poderia tirar prêmios e melhores notas que granfinas de nariz empinado e títulos de nobreza do
Sul Maravilha. E consegui. Mas as coisas não param por aí, minha neta mais velha, que, apesar
de morar no Alphaville de Campinas, em seu ingresso no curso de Veterinária da UNESP, pela sua
origem maranhense, tomou a alcunha pejorativa de "retirante", que a acompanhou durante todo o primeiro ano e mais além. Ela e eu fizemos,
depois de rompidas as barreiras do preconceito,
boas amizades com as colegas.
Como se vê, o "caso Mayara" não é um comportamento isolado, como querem alguns articulistas da grande mídia do Sudeste. É algo muito
mais arraigado e sério. A OAB está correta quando pede a punição da moça. É preciso não deixar
vicejar a xenofobia entre patrícios.
Voltando a Lobato dos meus amores, com ele
aprendi a amar Tia Anastácia, tão querida de dona Benta e dos seus netos, que enfrentaram o
Minotauro e uma viagem à Lua, para libertá-la
do dragão. Nunca a percebi como pessoa inferior. Cresci respeitando os negros, amarelos,
branquelos e ruivos, diferenciando-os apenas
por suas ações.
Agora que o Conselho Nacional de Educação
quer reeditar o Índex dos livros proibidos, o próximo passo vai ser a proibição de Édipo-rei (parricida e incestuoso), da Odisséia (Ulisses era cruel, mentiroso), e também da Bíblia (a não ser que
excluam as passagens de Noé embriagado, de Jacó enganando o pai e a de Davi, mandando Urias
para a guerra, dentre muitas outras). Personagens
demasiado humanas para serem apreciados por
esses legisladores de antolhos: são belíssimas passagens, dirão, mas politicamente incorretas. Nesse andar, sobraria, também, para a história da criação da mulher, como matéria machista.
Enquanto isso, drogados e traficantes são endeusados e têm até estátua em praça pública. E
ninguém tem peito para proibir essas "raves" e outros despautérios que estão minando a vontade e
o valor da nossa juventude, transformando-os em
futuro lixo da sociedade.
Bruna Surfistinha vende milhares de volumes
e faz-se até um filme sobre a vida dela! Discute-se
a sua interessante personalidade na TV. É o louvor
e o incentivo à prostituição de luxo. Aí está um
grande exemplo para as jovens de hoje. Não demora, essa obra vira livro paradidático, com os
aplausos do CNE.
Mestra em Literatura e membro da Academia
Maranhense de Letras
E-m
mail: [email protected]
Folha de Pindoba
JOSÉ JORGE LEITE SOARES
Sempre que viajo pelo Interior do estado em
companhia de técnicos do setor elétrico sou indagado sobre a pujança dos nossos babaçuais
e sobre o seu aproveitamento. Muito se tem pesquisado a respeito, porém, até os dias atuais,
ainda não se conseguiu desenvolver a cadeia
produtiva a ponto de tornar economicamente
viável sua exploração.
Nos últimos anos as pastagens vêm ocupando os espaços abertos a fogo no seio das florestas, os sabiás já não cantam como outrora e as
quebradeiras de coco enfrentam uma luta sem
trégua pela preservação de nossas palmeiras.
Recentemente, o Eike Batista encontrou uma
das maiores reservas de gás natural em nosso
estado. E sabem onde ela se encontra? Abrigada sob os densos babaçuais de Capinzal do Norte! E já tem gente achando que onde tem babaçu... tem petróleo... Vai ver que encontraram a
verdadeira vocação das nossas florestas de coco babaçu...
Pensando nisso, uma cena chamou a minha
atenção recentemente. Estava eu numa sapataria da Rua de Santana quando notei a presença
de uma moça que, pelo modo de vestir e falar,
deduzi ser uma moradora daqueles povoados
bem distantes. Pareceu-me ser a primeira vez
que ela visitava uma cidade grande. Sua expres-
são facial e o brilho de seus olhos denunciavam
o encantamento com tudo que via nas prateleiras da loja. Olhar curioso, falar manso e com fortes traços indígenas, não deixava dúvidas. Era
uma matuta daquelas bem autênticas.
Queria comprar um par de sapatos para dar
de presente a uma filha que ia ser batizada. Ao
ser indagada pelo vendedor sobre qual era o
"número" do sapato, ela não soube dizer. Mas,
prontamente, abriu a bolsa e lá de dentro sacou
um pedaçinho de folha de pindoba que servia
de medida do pé da menina. Desenrolou e passou às mãos do vendedor.
Para os incrédulos, mais uma das mil e uma
utilidades do babaçu!
Faço esse registro, pois o uso da folhinha de
pindoba como gabarito de medida era um costume muito usado nos tempos passados.
Aplicação mais curiosa ainda da folha de pindoba, como padrão de medição, também vem
de um personagem do Interior do Maranhão.
Dr. Chico Cunha, médico ginecologista recém formado, certa feita consultava uma moça num Posto de Saúde na Mata do Boi, hoje
município de Bela Vista. Chamava-se Rosilda.
Mãe de 11 filhos (seis meninas e cinco meninos), dois deles nascidos no mesmo ano. Postos um ao lado outro formavam uma escadinha de 1 a 12 anos. Ela falava sobre as dificuldades para criar essa "ruma de filhos" sendo
quebradeira de coco, dona de casa e o marido,
um pobre lavrador do mato.
Rosilda vinha pedir ao doutor Chico para ligar as trompas dela, pois "eles moravam no
"Centro", sem energia (o Luz para Todos ainda
não existia), sem televisão, e que a única diversão que tinham era fazer filhos..." Disse ainda
ao doutor que, ao sair de casa para ir ao Posto
de Saúde, o marido recomendou:
- Rosilda, já que tu vai fazer essa tal de ligadura, pede pro doutor dá uma apertadinha na
"perseguida".
Antes do preparo da paciente para realizar os
exames Rosilda abriu a bolsa, retirou uma folha
de pindoba e passou às mãos do Doutor Chico.
- O que é isso dona Rosilda? Perguntou, surpreso, o médico!
- É a medida da "natureza" de meu marido
que eu trouxe pro senhor ver.
- Mas pra que que eu quero isso?! Disse Chico Cunha livrando-se da folha de pindoba.
- É pro senhor tirar a medida...
Chico assustou-se com o comprimento da
"natureza" do marido de dona Rosilda, mas,
mesmo assim, indagou?
- Só por curiosidade, dona Rosilda! - Quando a senhora tirou a medida, a "natureza" estava viva ou estava morta?
Ex-deputado estadual, membro da Academia
Pinheirense de Letras e cônsul honorário
da França em São Luís
Gestão Pública e Controle Externo
ALEXANDRE ANTONIO VIEIRA VALE
O controle externo eficaz não se exerce apenas por
intermédio das funções sancionadoras específicas
dos tribunais de contas. Sem abrir mão do necessário rigor no controle da aplicação das verbas públicas, novos parâmetros orientam a atuação das
cortes de contas brasileiras na relação que estabelecem com a sociedade e com seus jurisdicionados. Um dos mais importantes é o que se denomina função pedagógica dos tribunais de contas.
Em que se constitui a função pedagógica de
uma instituição destinada a avaliar o uso do dinheiro público e a atuação dos personagens responsáveis por isso? Como essa função de fato se
concretiza e quais as vantagens de se adotar medidas nesse sentido?
Uma constatação simples está na origem de
todo esse processo: as atribuições constitucionais dos tribunais de contas brasileiros, suas responsabilidades, a forma como atuam, a natureza e a amplitude das medidas que podem tomar
na defesa do Erário Público e da boa gestão, ainda não estão claras para os jurisdicionados e para a sociedade.
Para alterar esta realidade e construir um sistema de controle externo moderno, ágil e eficiente, os tribunais de contas brasileiros passam por
profundas modificações em sua estrutura organizacional, tendo como foco a excelência no desempenho e a qualificação de seus quadros funcionais. O início desse processo ocorreu com as
ações do Programa de Modernização do Sistema
de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (Promoex), criado pelo Ministério do Planejamento. O Tribunal de
Contas do Estado do Maranhão integra o Pro-
moex e desenvolve, no âmbito local, as atividades previstas no programa.
Uma das diretrizes oriundas do Promoex estabelece o fortalecimento e a ampliação de atividades de caráter pedagógico como instrumento para melhor esclarecer jurisdicionados e sociedade,
contribuindo para a elevação da qualidade da gestão pública.
O III Encontro de Gestores Públicos e o Tribunal de Contas, que acontece nos dias 25 e 26 de
novembro, no Centro de Convenções Pedro Neiva de Santana, é resultado desta nova mentalidade gerencial, que se dissemina com intensidade
no TCE maranhense.
Com o tema "O Controle Externo e a Otimização do Gasto Público", o evento reunirá prefeitos,
secretários de estado, presidentes de Câmaras Municipais, assessores jurídicos e contábeis dessas
duas instâncias, estudantes universitários de diversas áreas de formação, além de cidadãos interessados no assunto.
Durante dois dias, especialistas nacionais e maranhenses analisarão questões cruciais concernentes ao sistema de controle externo brasileiro
com um foco bastante específico: como fazer com
que gestores públicos e instituições do sistema de
controle externo atuem de forma a atender às
complexas demandas da sociedade brasileira, em
especial a maranhense. Cada segmento em sua
esfera de atuação e especificidade.
Gestores tendo como referência o imperativo
de utilizar os recursos públicos dentro dos princípios da economicidade, da legalidade, da probidade e da relevância social das ações, contribuindo,
desta forma, para a redução das desigualdades e a
construção de uma sociedade mais equânime.
Sistema de controle externo atuando com o
rigor, a consistência técnica e a rapidez necessá-
rias para minimizar ou até mesmo evitar danos
ao Erário Público e punir, nos casos cabíveis, os
gestores que procederem em desacordo com as
normas vigentes.
Melhorar a qualidade da gestão pública é um
dos principais desafios do Brasil contemporâneo.
A tarefa não é fácil e requer a participação dos vários segmentos sociais comprometidos com a
construção de um país mais justo, economicamente sólido e capaz de ser um dos protagonistas
da nova configuração geopolítica mundial.
O momento se revela propício à adoção de medidas que possam fomentar práticas mais eficazes na esfera da gestão pública. Temos estabilidade institucional, economia dinâmica, inflação sob
controle, mercado interno forte e em expansão,
entre outros aspectos positivos. Faz-se imprescindível adotar as atitudes gerenciais certas em direção a esse objetivo.
Gestão pública eficiente implica utilizar de forma adequada todos os instrumentos disponíveis
para oferecer à sociedade serviços capazes de atender às demandas existentes com elevado padrão de
qualidade. Esse é um direto de todos os brasileiros
que contribuem diariamente com seu o trabalho e
os elevados impostos que pagam. É fundamental
exercê-lo e exigi-lo em toda a sua abrangência.
Para que isso seja alcançado, devemos aprimorar a qualidade da gestão pública. Ao mesmo tempo, é indispensável fortalecer e melhorar a atuação do sistema de controle externo. Com a realização do III Encontro de Gestores Públicos e o Tribunal de Contas, o TCE maranhense dá uma contribuição essencial nesse processo que requer a
participação de toda a sociedade.
Auditor Estadual de Controle Externo do Tribunal de
Contas do Estado do Maranhão
Opinião
5
Sentindo na
própria pele
ANTÔNIO AUGUSTO RIBEIRO BRANDÃO
"A audácia é sempre cega, para não ver os
perigos e as inconveniências." Francis Bacon
(1561-1626), filósofo inglês
Peço licença a São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, e ao Cristo Redentor, que abençoa a cidade, para fazer esta confissão.
Amor se ganha, amor se guarda, amor se perde.
Antes, a flor; durante, os espinhos; depois, a dor. Coisas do coração.
Da primeira vez foi o encanto pelo futebol, pelo time do Fluminense, amor perdido; agora foi o Rio,
amor quase perdido pela cidade onde trabalhei e vivi por mais de dez anos, e revisitei por vezes incontáveis; onde nasceram dois dos meus quatro filhos e me
formei em economia.
Esse amor era tanto que, quando lá estava, não
percebia a insegurança vivida por todos. Sentia-me
imune ao clima de tensão permanente, de arrastões,
de balas perdidas e de pequenos assaltos. Cheguei até
a proclamar isto numa crônica intitulada "Reflexões
em tempo de férias", publicada neste jornal. O fato é
que precisava sentir na pele o perigo agravado que,
de uns tempos para cá, mora ao lado de qualquer
mortal. E senti sofrendo situações traumáticas.
Em setembro, eu e minha esposa Conceição fomos ao Rio. No Galeão, como sempre costumamos
fazer, escolhemos um táxi de cooperativa e compramos logo bilhetes de ida e volta, por questões de segurança. Hospedamo-nos num hotel em Copacabana, por indicação de amigos. Dos andares mais
altos, a visão dos telhados escurecidos pelo tempo e
das antenas de televisão atestando o refúgio dos melancólicos, dos reféns da violência das ruas. Nossa
missão era bem definida. Entre tarefas específicas,
íamos aproveitar o final de semana e visitar parentes, rezar nas igrejas, passear nos shoppings; e, no
outback do Leblon, comemorar minha formatura
em economia, há mais de 50 anos.
Quando ando de táxi gosto de conversar com o
motorista, geralmente uma pessoa bem informada
sobre os acontecimentos que envolvem a cidade e
com algum juízo de valor a seu respeito. Um deles
confirmou a onda de insegurança ainda pairando no
ar, mas que os pequenos assaltos, à luz do dia e em locais de grande movimentação, estavam sob controle. Acreditei. Então, pensei: as autoridades constituídas estavam atuantes e obtendo resultados.
Aliás, andar em alguns táxis no Rio não é tarefa das
mais agradáveis. Seus "pilotos" correm muito. Erram
o trajeto na suposição de que todo mundo é turista.
Além disso, a pirataria campeia no setor, pois quem
dirige nem sempre é o dono e precisa faturar bem, para pagar o aluguel e ainda ter lucro. É como disse a documentarista peruana Heddy Honigmann: "[...] é um
mergulho hipnótico no cotidiano dos motoristas de
táxis clandestinos [...]". E mais: "[...] que cruzamos no
banco de passageiros a crueza das ruas de uma capital em crise [...]".
O hotel onde estávamos hospedados aparentava
ser desconhecido dos taxistas, pois eles nunca acertavam o caminho. Disseram-me que isto era uma reação ao fato de que a administração da casa não pagava comissão, como faziam outras similares. Fiquei
pasmo. Corrupção ativa e passiva. Práticas abusivas
em uma cidade traumatizada ainda cheia de charme,
mas perigosa de ser desfrutada. Nas ruas do Rio as
pessoas se vestem com sobriedade, principalmente
as mulheres; nada de jóias, relógios e outros adereços.
Nada que possa despertar a atenção. No metrô ninguém arrisca olhar para ninguém; é aquele silêncio
apenas quebrado pelo barulho do trem. Quando cada um chega ao seu destino suspira aliviado.
Nesse clima de baixo astral explícito tinha que
acontecer conosco. Foi numa sexta-feira, entre 10 e
11 horas da manhã, em plena avenida Rio Branco,
no calçadão da Biblioteca Nacional, defronte à Cinelândia. Tínhamos resolvido uma questão burocrática, na rua México; daí, a pé, desejamos ver como teria ficado o Teatro Municipal (pequena réplica da
Ópera de Paris Garnier), depois da ampla reforma a
que foi submetido. E fomos dispostos a redescobrir
aquela maravilha arquitetônica. Fotografei a Conceição. Quando ela tentou fazer o mesmo comigo surgiu, como um raio vindo não sei de onde, um sujeito que arrancou-lhe a máquina das mãos e, no meio
daquele trânsito maluco, atravessou a avenida e fugiu em desabalada carreira observado por aqueles
que passavam pelo local, sem poderem esboçar qualquer reação. Acabara de fazer, ainda que de forma involuntária, a minha "filantropia". Antigamente, quem
roubava o fazia em surdina, na "calada da noite", e
só depois a gente ficava sabendo. Agora, é distribuição de renda "na marra", à luz do dia.
Tento compreender que são problemas decorrentes da desigualdade social. O capital, quanto mais cresce o PIB, mais é concentrado e os ricos ficam ainda
mais ricos, como acontece no Brasil. E isto não se resolve com programas assistenciais, filantrópicos, mas
com geração de emprego e renda, e de forma sustentável. O cientista político francês Pierre Rosanvallon
diz: "[...] uma política democrática é a que busca superar as desigualdades, de tal forma que não haja uma
separação entre o mundo onde vivem os ricos e aquele onde vivem os pobres". E acrescenta: "[...] o Brasil
é o país da desigualdade cordial [...]".
Perder um pequeno objeto não significa nada; o
trauma vem da forma como o perdemos. Aconteceu
conosco, mas por que não? Depois ficamos sabendo
que não se deve ir a alguns locais da cidade, pois é
muito perigoso: Cinelândia, Largo da Carioca, Praça
Quinze, Largo do Machado, Catete e Humaitá são os
mais citados, isto sem falar em alguns pontos eternamente críticos da Zona Norte, que "abraçam" as famosas Linhas Vermelha e Amarela, para quem vai ou
vem ao (do) Aeroporto Tom Jobim.
Mesmo assim conseguimos visitar os parentes,
rezar nas igrejas, passear nos shoppings e, afinal, ainda que sem fotos, comemorar os meus 50 anos de
formado em economia testemunhados pela Conceição, que também presenciara a cerimônia de colação de grau. Continuamos gostando do Rio, mas
perdemos a confiança que nos permitia um ir e vir
tranqüilo, sem receios.
E é como diz Ingrid Betancourt, no seu recente livro "Não há silêncio que não termine", e que esteve
sequestrada pelas FARC colombianas, entre fevereiro de 2002 e julho de 2008: "[...] o passado está impregnado em nós. E creio que o ser humano precisa compartilhar o que viveu. Sempre que passamos por algo temos de contar a alguém[...].
Economista e escritor, e ex-professor da UFMA. Autor
do livro "Fortes Laços". Membro da Academia
Caxiense de Letras e da primeira diretoria da
Federação das Academias de Letras do Maranhão
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