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DESEJO E NECESSIDADE, PÚBLICO E PRIVADO:
CAMINHOS DE UMA POLÍTICA CULTURAL
Luiz Henrique Sá da Nova1
Professor - UFRB
Resumo: Esse artigo discute a centralidade da cultura na contemporaneidade e a importância
do seu subcampo, o da política cultural. Analisa o diálogo dos parâmetros dominantes nas
matrizes culturais do pós-modernismo e da modernidade clássica, procurando destacar os
parâmetros conceituais que orientam uma e outra abordagem, a partir da análise do
Dicionário Crítico de Política Cultural - Cultura e Imaginário, de Teixeira Coelho, professor
da ECA-USP. O texto destaca o pioneirismo, assim como impropriedades existentes na obra,
ao pretender dar um status científico na definição de política cultural, assim como uma
dimensão reducionista ao pretender superar com uma definição tão absoluta do desejo, na
abordagem da cultura contemporânea, quanto imputa à modernidade clássica uma
abordagem restritiva do conceito de necessidade, definindo-a em dimensão estritamente
material, sem absorver a dimensão dialética existente entre esses conceitos. O texto conclui
que esta forma de abordagem termina por substituir a estreiteza das abordagens anteriores,
por outras abordagens tão estreitas quanto, reduzindo-se à mera polarização ideológica das
diferentes matrizes culturais.
Palavras-chave: CULTURA; POLÍTICA CULTURAL; MODERNIDADE CLÁSSICA;
CONTEMPORANEIDADE; PÓS-MODERNISMO.
1. Cultura e contemporaneidade
O debate sobre cultura é marcado, nesta quadra histórica, pela sua consolidação enquanto
área de estudos e sua configuração enquanto mercadoria e cadeia produtiva de grande
presença na sociedade e no PIB das nações centrais. Esta percepção é quase lugar comum nas
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Professor do Curso de Comunicação/Jornalismo da UFRB e Doutorando do Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Cultura e Sociedade da FACOM/UFBA.
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formulações sobre o tema, que se ampliam inclusive na tentativa de dar um caráter científico
ao sub-campo da cultura, o da Política Cultural.
Esta reivindicação está, por exemplo, no Dicionário Crítico de Política Cultural - Cultura
e Imaginário, de Teixeira Coelho, professor da ECA-USP, onde o verbete é tratado a partir da
reivindicação central do estatuto de cientificidade. A princípio, em verdade, o trabalho
estabelece um novo patamar, uma nova qualidade e aponta na consolidação dos estudos da
política cultural. Isto é positivo e, ao lado do seu pioneirismo, garante a qualidade da obra.
Quanto o estatuto de cientificidade que o Dicionário Crítico reivindica para a política
cultural, merece uma melhor apreciação. Poder-se-ia até mesmo aceitar este estatuto,
enquanto uma expressão no campo do conceito de ciência normativa. Mas, ainda assim, uma
questão de fundo é que esta reivindicação tem uma perspectiva de fundo positivista.
Como diz Alexandre Barbalho (2005), em uma política cultural, significados e lógicas
sociais que a guiem, podem ser objeto de pesquisa e de reflexões científicas. Estas reflexões,
ainda segundo o autor, devem ser feitas a partir do local de onde se observa a ação cultural,
seja um olhar histórico, antropológico, ou sociológico.
Como objeto e ação social multidisciplinar, o olhar sobre as questões da cultura, entre elas
a elaboração de uma política cultural, deve ser fruto da “confluência de áreas que, diga-se de
passagem, é o olhar privilegiado, para não dizer mais adequado, para esse tipo de estudo, já
que o objeto transcende as delimitações acadêmicas tradicionais” (BARBALHO, 2005, P.36).
No entanto, esta abordagem não leva a perceber a política cultural enquanto um saber
específico ou uma ciência. A necessidade de planejamento, de integração dos seus vários
agentes e racionalização da convivência das suas várias etapas de produção – criação,
distribuição e consumo -, não lhe confere o status de ciência.
“A primeira dificuldade com esta definição é a de propor a política cultural como
„ciência‟. Será que seu objeto é tão singular que requer a elaboração de uma nova área
científica? Creio que não. Primeiro, a política cultural é o conjunto de intervenções
práticas e discursivas no campo da cultura, e estas intervenções não são „científicas‟,
na medida que política e cultura não são sinônimos nem se confundem com ciência.
(BARBALHO, 2005, P.35)
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Mesmo com a discordância quanto ao caráter científico do conceito de política cultural,
como reivindicado pelo Dicionário Crítico, é preciso reconhecer que o trabalho de Teixeira
Coelho traz uma importante sistematização da área de estudos. Relaciona os vários agentes,
vetores, conceitos e necessidades infra-estruturais, que a profissionalização experimentada
pelo setor tem demandado.
Racionaliza todo o circuito social da produção, distribuição e consumo cultural.
Sistematiza os conceitos em sua dimensão filosófica, sociológica, antropológica e
administrativa, na perspectiva da formulação e proposição de uma política cultural.
A obra de Teixeira Coelho é de indispensável conhecimento para todos os que estudam e
trabalham com o campo da cultura. Principalmente para aqueles que se desafiem a formular
ou analisar uma política cultural, em qualquer dimensão sócio-institucional. O seu caráter
inicial, no Brasil, marca a obra com a importância do pioneirismo representa. É, portanto,
legítimo ponto de partida para a discussão das políticas culturais enquanto prática, assim
como de seus preceitos teóricos e sociais.
Uma discussão no campo dos princípios estruturantes da obra encontra a proposição de
que há um limite teórico a ser superado. É o conflito que Teixeira Coelho apresenta como
existente entre o “enfoque eminentemente sociológico” (op. cit. p.11) e a perspectiva, por ele
entendida como de uma abordagem mais profunda do fato cultural. O autor reivindica que o
destaque ao desejo e de seu papel constitutivo torna mais profunda a abordagem e o
planejamento da política cultural.
2. Origem política, realização econômica
É preciso reconhecer ainda que a análise do professor da USP, tem como ponto de partida
e estímulo a matriz teórica renovadora que a contemporaneidade sugeriu, possibilitou e busca
consolidar. Esta releitura, em relação à modernidade clássica, é a síntese da
contemporaneidade e tem várias configurações. Todas elas marcadas pela força e
consolidação do simbólico, na reconfiguração da sociabilidade e suas consequências.
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Dentre as releituras, o pós-modernismo tem grande destaque. Chega a ser marcado por
pretensões de renovação teórica definitiva e inaugural, de um novo período histórico. Apesar
de certo arrefecimento, é inegável que as marcas pós-modernistas ainda estão fortemente
presentes, enquanto leitura hegemônica do contemporâneo e de crítica à modernidade
clássica.
Uma maior aproximação em relação ao processo sócio-histórico permite entender ou
identificar parâmetros que apontem a especificidade do contexto em que se dá a busca de
superação dos paradigmas da modernidade clássica. A renovação citada tem várias origens,
enquanto fato social.
Decorre, por exemplo, da consolidação dos parâmetros da sociedade capitalista, com a
centralidade da cultura, do consumo e seus conceitos estruturantes e do sistema midiático,
enquanto realidade sobreposta. Entre estes conceitos, inerentes à centralidade do consumo e
que permeiam a prática social mais ampla, estão: o momento, como gerador de necessidades e
desejos; o fragmento, como síntese e estímulo à consagração do consumo enquanto ato
simplificado; o efêmero, desejo que o consagra. Todos estes referenciais se juntam na
configuração do ato único, simplificado e peculiar do consumir, dispensando ao consumidor
qualquer preocupação conceitual.
Ao tempo em que consolida o indivíduo enquanto unicidade social, fato a ser melhor
abordado abaixo, é no consumo da cultura que se consolida toda uma ação de forte
perspectiva econômica e lucrativa, a partir do controle de mega-empresas de entretenimento.
A consolidação do campo da chamada economia da cultura ou criativa tem a presença
inclusive dos Bancos de Desenvolvimento Multilateral (BDMs), como Banco Mundial e BID,
financiando e/ou estimulando projetos e planejamento das ações culturais.
“A cultura é cada vez mais invocada não somente como propulsora do
desenvolvimento do capital; repetiu-se ad nauseum que a indústria audiovisual
só perde para a indústria aéreo espacial nos Estados Unidos. Alguns até
defendem que a cultura se transformou na própria lógica do capitalismo
contemporâneo” (YÚDICE, 2004, p.35).
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Os BMDs se constituem em destacados estimuladores da realização de projetos culturais
nos países “em desenvolvimento”. São financiadores que entendem a cultura enquanto
instrumento de ligação entre as necessidades do poder e as demandas dos amplos setores da
população. O reconhecimento de que a “fraca premissa da teoria econômica neoliberal não foi
confirmada” (op. cit., p.31) levou a que recorressem à cultura como elemento eficaz de
relação com a sociedade.
Assim, além de setor lucrativo, a cultura assume lugar estratégico na ação e planejamento
do capitalismo internacional, enquanto produtora de lucro e conhecimento, valores e estilo de
vida, com alta rentabilidade. Por outro lado, em momento de estabilidade política, enquanto
sistema econômico sem competidor, o capitalismo fortalece a economia da cultura e até
mesmo sua diversidade, posto que, diversidade de produtos culturais, significa diversidade de
consumo, sem perder a perspectiva do controle hegemônico.
...“é preciso reconhecer que, para sobreviver, o capitalismo precisou transmutar-se
passando de um regime de propriedade a uma economia global em rede fundamentada
em ideologias que implicam „pensar sistemas e construir consenso‟, sustentada pelas
telecomunicações e pelas „redes de acesso‟ e não pela propriedade direta” (op. cit.,
p.457).
Além da consolidação da cultura enquanto produto político e econômico é possível
destacar outras conseqüências que compõem o universo mais imediato das origens da busca
de renovação teórica, que marca o contemporâneo. Aqui, registra-se a consolidação do
indivíduo enquanto unicidade social e potencialidade cultural, combinando-a com a
intensificação da sociabilidade, a partir da sua desterritorialização e reconfiguração, em
ambiente de telerealidade.
O sistema midiático, base onde a telerealidade se concretiza, aumentou o fluxo da
interação social, da troca de experiências e da produção simbólica. Consolidou o movimento,
a intensidade e a circularidade do cotidiano perpétuo, como registrou Guy Debord (1997).
Assim, em permanente fluxo, a contradição e ambiguidade com que os processos sociais são
marcados tornam-se intangíveis na configuração dos fatos históricos e, no caso específico,
culturais.
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Neste contexto, outra presença constante na percepção do contemporâneo é reação ao
engessamento
político-cultural
que as
experiências do chamado
socialismo real
proporcionaram, fato registrado aqui sem a pretensão de julgamento moral. A práxis dos
conhecimentos com os quais a modernidade clássica apresentou-se ganhou uma marca
reducionista, enquanto fato social.
Assim, as experiências em nome do marxismo trouxeram material suficiente para a
negação política de grandes narrativas. Mesmo que isso tenha sido feito em nome da maior
delas, o liberalismo, enquanto fundamento e balizador do mimetismo capitalista, que é a
capacidade de adaptação a cada contexto histórico, que esse modo de produção revelou, ao
longo de sua consolidação enquanto caminho único para a produção de riquezas e organização
das sociedades humanas.
O entendimento aqui expresso, portanto, é o de que a matriz teórica da opção por
referenciais analíticos efêmeros e da negação de uma análise sociológica, sob o pretexto de
crítica ao exclusivismo do passado, sustenta-se no desenvolvimento capitalista e nas
demandas decorrentes. Os preceitos e princípios da lógica produtiva do capital e sua realidade
instrumental estão entranhados na prática social cotidiana, fundamentando e naturalizando
todas as práticas estruturadas a partir deles.
Entre os aspectos formatadores do quadro teórico em questão está o avanço do
capitalismo sobre a produção simbólica e da cultura, impondo-lhes a sua lógica produtiva,
naturalizando a racionalidade e valores estruturantes e tornando-as setores econômicos
rentáveis. Agrega-se a este primeiro aspecto a intensificação do fluxo de sociabilidade e das
trocas simbólicas, possibilitando a sensação de mutabilidade permanente, ainda que na
circularidade do cotidiano perpétuo e sua ilusão renovadora.
Os dois parâmetros citados acima são complementados pelo consolidar do indivíduo
enquanto unicidade social, princípio e fim de mensagens, projetos e todas as trocas
simbólicas. Particularizada a identidade na simplificação do referencial disperso do indivíduo,
é natural a diluição das perspectivas sociológicas e a consolidação da cultura cotidiana, como
único aspecto intangível da sociedade.
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Em síntese, o pragmatismo fundamenta a busca do efêmero, conceito ontológico do
consumo, que é o fundamento da vida e das relações por ela estabelecidas, sob a égide
capitalista. O caráter transitório e de permanente movimento das relações, dos valores e
sentidos configura o palco da superficialização das abordagens e dos fenômenos sociais. É
como se, aí, o indivíduo não estivesse, e seus desejos não se conflitassem em busca de
realização.
3. Necessidade e desejo na política cultural
A partir destes parâmetros críticos é que se procura discutir a obra de Teixeira Coelho, no
aspecto aqui relacionado. Por um lado, ainda que de forma limitada, a obra em questão
insinua uma abordagem mais próxima dos parâmetros que aqui se entende como necessários
para a superação do maniqueísmo. Superação esta que é pretensão e lugar comum, bastante
destacado, nos discursos teóricos contemporâneos.
No entanto, a substituição de um maniqueísmo por outro é facilmente constatada em
muita das teorias mais influentes, como é o caso, mesmo que em momento de relativa
contenção, do pós-modernismo, teoria a qual a obra em questão termina por reforçar.
Esta corrente de pensamento - que parece marcada para uma existência tão efêmera
quanto os parâmetros teóricos com os quais buscou se estruturar – questiona a noção clássica
de verdade; razão; identidade; a existência de grandes narrativas históricas, assim como a
possibilidade de um conhecimento objetivo, entre outros referenciais analíticos.
Apesar da efemeridade em que baseia seu arcabouço teórico, o pós-modernismo pretendeu
ou ainda pretende ser um momento histórico específico e a própria resposta a seus dilemas.
Portanto, pretendeu ou pretende o mesmo sentido de totalidade, que nega e identifica como
equívoco, em outras matrizes teóricas. Produz assim uma substituição maniqueísta de uma
totalidade por outra, pode-se dizer então que, nesta perspectiva, “uma zelosa ortodoxia dá
lugar a outra” (EAGLETON, 2005, p.16).
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Teixeira Coelho, por exemplo, se apóia no padrão crítico contemporâneo, para formular
sobre as limitações que uma abordagem centrada nos aspectos sociológicos produziu e produz
para os temas sociais, em particular, para a cultura. Referendando, portanto, os paradigmas
citados, mesmo com as diferenças que comentaremos a seguir, e inserindo o Dicionário
Critico na perspectiva pós-modernista.
Esta filiação pode ser constatada na síntese que faz quanto à identificação de referências
na inauguração de um novo momento histórico, distinguindo a modernidade, da pósmodernidade. Ele relaciona a diferenciação de formatos editoriais, enquanto exemplo de
referências distintas de obras inauguradoras ou sistematizadoras de cada período.
“A modernidade começou com uma Enciclopédia; a pós-modernidade pode estar
reencontrando, no formato fragmentado do dicionário, uma maneira
contemporânea de reordenar o conhecimento (destaque do artigo).” (Coelho, 2005,
p.10)
Como é próprio da fragmentação e do efêmero, enquanto componentes do pósmodernismo, a contestação de todo o pensamento clássico e o reordenar do conhecimento
pode ser feito, como reivindica o autor em questão, “no formato fragmentado do dicionário”.
É possível discordar desta pretensão, mas, no entanto, há que se reconhecer a coerência com a
matriz teórica que lhe ser1ve de estímulo, posto que a fragmentação na abordagem da
realidade, em qualquer dimensão, é síntese e pilar de estruturação do pensamento pósmoderno.
Há que se registrar uma diferença qualitativa entre o autor do Dicionário Crítico e autores
que reivindicam mais explicitamente a ortodoxia pós-moderna. Ao contrário de muitos
outros, Teixeira Coelho não joga fora a criança, junto com a água suja. Ele afirma lançar
mão das duas perspectivas teóricas, em busca de uma melhor abordagem do fato cultural.
“... este dicionário não substitui o esquema sociológico-materialistaracionalista pelo esquema imaginário-imaterial (...). Coloca-os lado a
lado e procura extrair dos dois o que podem oferecer de pertinente e
sugestivo para a interpretação do fato cultural.” (op. cit. p.12)
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No entanto, o reconhecimento da presença do denominado esquema sociológicomaterialista-racionalista se restringe à necessidade de que o planejamento seja estruturado a
partir de um “sistema de produção cultural” (idem, p. 13). Para o autor, sem este sistema,
qualquer planejamento cultural se torna um aglomerado de medidas inócuas, soltas e
imediatistas.
A concessão à abordagem modernista do fato cultural, no entanto, não é feita de forma
eclética, contraditória em relação à predominância da filiação teórica da obra. O pensamento
marxista do qual lança mão é apresentado de forma reducionista, na perspectiva pragmática e
de mero sistematizador do sistema produtivo.
A apropriação feita desta forma reducionista e descontextualizada, mesmo que com um
diferencial em relação a muitos outros autores, comprova o aspecto pragmático como outro
traço dominante, no pensamento pós-moderno. Por outro lado, a inter-relação de perspectivas
da leitura contemporânea, em Teixeira Coelho, ainda guarda em si a marca essencial de
priorizar uma das formulações como a resposta melhor à abordagem do fato cultural,
enquanto fenômeno social. Não potencializa a interação de conceitos na perspectiva do
enriquecimento da analise teórica.
Desta forma, reduz o fato social, ao sentenciar que a diferenciação qualitativa do
contemporâneo está na possibilidade de que “uma motivação central do impulso cultural pode
ressurgir e expandir-se: o desejo” (idem, p.13). Aqui, o maniqueísmo se revela, apesar da
anunciada intenção de que procura extrair dos dois conceitos o que estes podem oferecer de
contribuição ao objeto em questão.
Reduz o marxismo à sistematização do sistema produtivo e retrata a necessidade
exclusivamente como uma manifestação sociológica. Na formulação de Teixeira Coelho, não
há possibilidade de entender a necessidade enquanto expressão de demandas individuais
socializadas, assim como o desejo não pode ser visto como manifestação coletiva.
Como em toda a tentativa pós-moderna de contestação do pensamento moderno, também
aí está a rasa opção de sustentar a crítica na simples negação ou no reducionismo oferecido
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pela práxis, enquanto registro histórico. Um olhar filosófico sobre os conceitos de desejo e
necessidade
poderia
oferecer
uma
outra
perspectiva
crítico-analítica,
sem
que
necessariamente o reducionismo identificado fosse menos combatido na reconfiguração
contemporânea.
Por exemplo, para ficar em uma obra do mesmo formato editorial em questão, lembremos
dos dois verbetes em questão e como são definidos no dicionário de Nicola Abbagnano
(1998). O desejo (op. cit. p.241) é caracterizado enquanto “princípio que impele um ser vivo à
ação” ou como “apetite sensível”, além de outras definições relacionadas.
Todas as definições acima podem ter uma relação conceitual coerente com o verbete
necessidade (op. cit. pp.707/708). Este é definido como “qualquer tipo ou forma possível de
relação entre o homem e as coisas, ou entre o homem e os outros homens podem ser
considerado sob o aspecto da N., implicando que o ser humano depende dessas relações.”
(idem, p.708).
No entanto, a perspectiva com que a necessidade é apresentada nas críticas à modernidade
clássica é sempre como um conceito autoritário, dogmático e impositivo. A necessidade passa
então de uma demanda natural, social ou individualmente apresentada, para uma imposição
reducionista. Esta abordagem está mais próxima à definição do verbete necessitarismo,
também no Dicionário Filosófico, de Abbagnano (1998), que é “a doutrina que admite o
destino a ordem finalista ou providencial do mundo como ordem que determina
necessariamente todas as coisas e a cada coisa determina o melhor resultado”. (op. cit.
pp.709)
Assim, não é o conceito de necessidade ou desejo, objetos da releitura dos parâmetros da
modernidade que revela a limitação de sua lógica. O que precisa ser revisto é a exclusividade
de um ou de outro conceito, como referência única do planejamento de uma ação social, nas
dimensões de uma política cultural.
A simples substituição de um conceito referência por outro, não viabiliza a superação das
limitações observadas na formulação da modernidade clássica. E isso é o que ocorre na crítica
à prioridade dos aspectos sociológicos, enquanto formadores dos fatos culturais, uma verdade
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é substituída por outra e agora se baseia em princípios mais específicos, subjetivos e
individuais. Mesmo quando o autor enuncia a vontade de ampliar os parâmetros de análise, a
lógica pós-moderna se impõe, como revela Teixeira Coelho.
Assim é que a política cultural sustentada no desejo como matriz central e não na interrelação entre desejo e necessidade é tão limitada frente à potencialidade do acúmulo
registrado hoje, quanto são os acontecimentos sociais da modernidade clássica. Esta lógica
ainda tem o agravante de que lá, na modernidade clássica, as possibilidades e potencialidades
de realização do indivíduo e do social, não se davam nas dimensões hoje existentes.
Para superar os limites conceituais da modernidade, a política cultural precisa ter uma
perspectiva interativa e abrangente ao nível da complexidade social. Precisa integrar o Estado
e as organizações sociais; democracia direta e representativa; o público e o privado; o
indivíduo e o coletivo; o momento e a representação da narrativa sócio-histórica; o lúdico e a
aventura humana. Neste sentido, a política cultural não pode ser reduzida ao desejo, enquanto
contraposição à necessidade, se assim for, será tão reducionista, quanto o exclusivismo
anterior.
Até porque, em Teixeira Coelho, a necessidade, conceito que lhe serve de base para
criticar a modernidade, está reduzida, em sua formulação, à construção do “sistema de
produção cultural” (op. cit.). Reduzir a necessidade ao aspecto econômico da organização da
cultura é abstrair a importância das relações sociais enquanto ambiente de produção também
simbólica e cultural.
A percepção das relações sociais com base na necessidade do estritamente econômico ou
na priorização do desejo tem o mesmo mal reducionista e torna-se uma mera substituição de
verdades - uma, tão limitada, quanto a outra. Desta forma, esta lógica não aponta na superação
das limitações tão decantadas e, em verdade, termina reduzindo a questão ao debate
ideológico. Este se dá entre as limitações do coletivismo, como apresentado nas experiências
do chamado socialismo real, no século XX e a elegia do indivíduo hedonista e suas tribos,
enquanto expressão da maturidade capitalista ou da pós-modernidade.
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É importante superar o script da mera substituição de verdades. É preciso apontar na
direção da necessidade e do desejo; na direção de uma atenção maior à experiência social,
afirmando espaços da individualidade, enquanto parte da construção do social e coletivo. Este
é um caminho ainda mais necessário, quando se trata de estabelecer parâmetros para uma
política cultural, em tempos em que a cultura é ação político-estratégica internacional e se
constitui em um sistema produtivo, dos mais lucrativos.
Na perspectiva deste artigo, esta é a orientação que proporciona a real superação de
parâmetros exclusivistas e excludentes e aponta na direção do enriquecimento e pluralidade
da interpretação do social, em sua interseção com as individualidades. Vale registrar, aqui, a
reflexão de Terry Eagleton, em seu livro Depois da Teoria (2005), quanto às duas grandes
narrativas em questão.
“Uma razão para julgar ser o socialismo superior ao liberalismo é a crença de que
seres humanos são animais políticos não apenas porque, para se realizar, têm que levar
em conta as necessidades de realização uns dos outros, mas também porque, de fato,
somente atingem sua realização mais profunda quando em reciprocidade.”
(EAGLETON, 2005 p.170)
A relação dialeticamente imbrincada entre desejo e necessidade decorre da dimensão
histórica e social que é inerente a formação do indivíduo. Não há constituição de sujeitos que
se dê exclusivamente em uma perspectiva histórica ou especificamente em uma dimensão
social. A política cultural, enquanto registro, planejamento e afirmação de uma prática social
e seus valores, se constitui em expressão e/ou representação da necessidade e do desejo, ainda
que mimetizados na dimensão contemporânea da fragmentada volatilidade.
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