PARECER
Nº 2084/2015
- PP – Patrimônio Municipal. Projeto
de lei que autoriza a desafetação de
área pública destinada a cemitério e
consequente regularização fundiária.
Análise da validade. Considerações
acerca
da
desafetação
e
transferência de cemitérios.
CONSULTA:
Indaga o consulente acerca da validade de projeto de lei que
autoriza a desafetação de área pública destinada a cemitério e
consequente regularização fundiária.
A consulta vem acompanhada do referido projeto de lei.
RESPOSTA:
Inicialmente, para o escorreito deslinde da questão, cumpre
assentar que o Município é responsável pela ocupação do solo urbano, na
forma do art. 30, inciso VIII da Constituição Federal, que a ele atribui a
competência para "promover, no que couber, adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano."
Em cotejo, o art. 182 da Lei Maior, ao dispor que cabe à lei
municipal fixar diretrizes para a política de desenvolvimento urbano, de
modo a ordenar o inteiro desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes.
Especificamente no que tange à questão da possibilidade de
1
desafetação das áreas mencionadas, esta Consultoria já se manifestou
diversas vezes acerca do tema, motivo pelo qual recomendamos a leitura
dos Pareceres nºs 1994/2013, 0945/2013, 2466/2011, 1353/2011,
1540/2010, 0967/2009 e 1103/2005, dentre outros.
Não obstante, o caso em tela apresenta uma peculiaridade na
medida em que o bem público de uso especial mencionado na hipótese é
o cemitério local, envolvendo a questão da transferência de cemitério e
sobretudo o jus sepulchri. Este último é direito subjetivo de todo homem,
que se manifesta nas seguintes dimensões: direito-a-ser sepultado, direitode-permanecer-sepultado, direito-à-sepultura ou direito sobre-a-sepultura,
e direito de sepultar.
Tal direito decorre do princípio da dignidade da pessoa humana,
epicentro axiológico de nossa Lei Fundamental e fundamento da
República (art. 1º, III, da Constituição Federal), pelo que é conferido ao
cadáver, aos despojos mortais e à memória do morto peculiar proteção
jurídica, inserindo-se no rol de direitos da personalidade e projetando-se
na família do defunto, tendo os herdeiros legitimidade para tomar medidas
judiciais e administrativas, visando sua proteção e defesa, e na sua
omissão, o próprio Estado.
São frequentes transferências de necrópoles de um local para o
outro. Pode decorrer de saturação, de necessidade de sua ampliação, de
necessidade de reformulação do plano diretor da cidade, entre outros.
Destacamos, ainda, que, de um modo geral, as legislações
municipais prevêem essa possibilidade, deixando desde logo
estabelecidas as consequências dessas transferências: os titulares do jus
sepulchri apenas ficam com direito a receberem na nova necrópole espaço
idêntico de sepultura.
Corroborando a possibilidade da desafetação e transferência do
cemitério, transcrevemos trecho de famoso e antigo julgado do Tribunal de
Alçada do Estado de São Paulo na Apelação Cível n 42.857. Relator Des.
Vieira Neto:
2
"Ao
Ao Municipio cabe, por fôrça de disposição constitucional
a administração dos cemitérios, podendo, dentro de suas
atribuições, prover sôbre a polícia mortuária, que abrange a
remoção de despojos. Ao conceder jazigos. não faz qualquer
alienação de direitos reais, mas estabelece vínculos de Direito
Administrativo :e a lição de Hely Lopes Meirelles: "Os locais para
sepultura nos cemitérios municipais são obtidos mediante
concessão remunerada, imprõpriamente denominada venda. Não
há alienação de tais terrenos, porque os cemitérios, sendo bens
públicos de uso especial, são inalienáveis enquanto guardarem
essa destinação. Como concessão. mantém o Municipio poder de
revogá-la, se o interêsse público o exigir" (Direito Municipal
Brasileiro, vol. l. pág. 306). (Grifos nossos).
Assentada a possibilidade de desafetação dos bens de uso
especial destinados a servir como cemitério local, destacamos, todavia,
que não será possível sua utilização para loteamento. Isso porque, uma
fez desafetado o bem deverá o mesmo passar a servir a comunidade,
passando a ser caracterizado como um bem de uso comum do povo.
Neste sentido transcrevemos as lições de Justino Adriano Farias da Silva
in Tratado de Direito Funerário:
"Desafetar o cemitério, portanto, é a declaração do Poder
Público Municipal através da qual se põe termo ao cemitério
público, por não mais cumprir com sua finalidade, transferindo-o
para outra localização. O imóvel onde assentava a necrópole,
deixa de ser bem público de uso especial, mas necessariamente,
no caso dos cemitérios, deve permanecer como bem público de
uso comum do povo
povo, ali implantando-se, por exemplo uma praça.
(...)
No local onde existia o cemitério transferido, devem ser
implantados, de preferência, praças ou jardins. Nada impede de ali
ser construído algum monumento, museu ou algo semelhante.
Tampouco, trecho de nova avenida ou viaduto, em casos de
3
extrema necessidade. O que se deve evitar é a instalação de
prédios residenciais ou comerciais." (Tratado de Direito Funerário.
Editora Método. p. 381/383). (Grifos nossos).
O projeto de lei em tela, pretende a desafetação de cemitério
local para autorizar parcelamento do solo urbano, o que não se revela
factível com espeque no jus sepulchri como visto nas lições de Justino
Adriano Farias da Silva.
Por tudo que precede, concluímos objetivamente a presente
consulta no sentido da possibilidade da transferência da necrópole, desde
que respeitado o jus sepulchri. Porém, não é possível estabelecer um
loteamento na área desafetada, motivo pelo qual o projeto de lei em tela
não merece prosperar.
É o parecer, s.m.j.
Priscila Oquioni Souto
Assessora Jurídica
Aprovo o parecer
Marcus Alonso Ribeiro Neves
Consultor Jurídico
Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2015.
4
Download

PARECER