UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FACULDADE DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA – MESTRADO
O tempo em Descartes
Projeto de dissertação
Por
Louis de Freitas Richard Blanchet
Curitiba, outubro de 2011.
1
Introdução
A noção de tempo na filosofia de Descartes foi um tema abordado pela maior parte de seus
intérpretes e críticos. A continuidade do tempo, embora não tenha sido formulada explicitamente na
obra cartesiana, foi um problema abordado pela tradição. Por isso é possível encontrar teses sobre o
tempo contínuo e descontínuo.
A tradição mais próxima concentrou a crítica no aspecto físico do tempo. Leibniz introduz a
noção de força que permitiria formar uma física dinâmica, contra a física cartesiana que era
entendida como estática. Newton irá separar a noção de tempo e espaço, os tornando absolutos. No
século XX a discussão sobre o tempo, embora não tenha perdido completamente o cunho físico,
abordou problemas mais próximos da subjetividade. Além disso, começaram a aparecer teses sobre
a continuidade do tempo que se opunham à tese clássica que defendia a descontinuidade.
Apresentarei dois comentadores, cada um defendendo uma das teses. Jean-Marie Beyssade
no livro La Philosophie Première de Descartes defende a tese da continuidade do tempo; minha
leitura focou no capítulo III, no qual ele mostra a univocidade do tempo físico e mental e no
capítulo V onde se explica a natureza contínua do cogito. Martial Gueroult no livro Descartes Selon
l’ordre des Raisons I: l’âme et le corps, defende a descontinuidade; me ative ao parágrafo 10 do
capítulo III, que explica a intuição do cogito e a parte II do capítulo VI, na qual está explicada a tese
da criação contínua.
Além de apresentar as teses de cada autor, sugeriro quais problemas cada um deles pretende
resolver pela análise da obra cartesiana. Levo em conta que o problema sobre o tempo, além de ser
um problema de interpretação do texto, é um problema de história da filosofia. Cada comentador
visa resolver os problemas de sua época e tem alguns pressupostos anteriores a leitura de Descartes.
Descontinuidade
Segundo Gueroult, a eficácia do cogito contra a dúvida depende da sua natureza como uma
intuição simples e instantânea. Uma vez que a instantaneidade do cogito é essencial para a certeza,
ela é a primeira passagem na qual a tese sobre o tempo se estabelece.
O critério da verdade é a clareza e distinção. A distinção do cogito segue o procedimento da
dúvida, que gradualmente abstrai todas as ideias que não são a ideia de pensamento. No final da
abstração resta a ideia do pensamento distinto de todas as outras ideias. Para reafirmar a
necessidade da distinção, Gueroult lembra a comparação da intelecção do espírito com o olhar da
regra 9 das Regras para Direção do Espírito. Descartes afirma que embora seja possível ver várias
2
figuras ao mesmo tempo, para que haja uma intuição distinta, deve-se voltar a atenção para cada
parte separadamente. Assim, a distinção do cogito deve voltar-se para uma única intuição muito
simples. A clareza, por sua vez, é a concentração de toda a força do espírito em um único ponto, isto
é, a orientação de toda a luz natural sobre uma ideia.
A reflexão do cogito não pode ser a reunião de uma intuição passada com a intuição
presente, pois isso tornaria o pensamento confuso e a luz natural difusa. Por outro lado, o
prolongamento de duas intuições em dois instantes distintos não pode ser concebido de outra
maneira a não ser como a ideia de termos pensado anteriormente. Isso não seria propriamente uma
intuição, mas um pensamento confuso dependente da memória. A reflexão, portanto, seria uma
miragem, se referindo a uma ilusão, um pensamento não atual, que poderia ser falso na medida em
que a memória é dubitável.
Um problema que Gueroult enfrenta com relação à intuição simples é uma passagem da
Conversación con Burman1 na qual Descartes defende que é possível ter vários pensamentos
simultaneamente2. Embora Descartes diga que é possível pensar simultaneamente que estamos
respirando, sentados, falando, Gueroult reitera que seriam confusos. Além disso, o pensamento
reflexivo pode ser a consciência de estar pensando. Gueroult entende que a consciência de estar
pensado é apenas a reiteraração que o pensamento é apenas pensamento. As formulações penso e
penso que penso, portanto, significam a mesma coisa, e não coisas distintas.
A partir dessa noção de intuição instantânea o modelo para a ciência também terá o formato
de uma intuição simples e instantânea3. A dedução funcionaria como o conhecimento do
encadeamento de cada intuição, ao invés do conhecimento de ligações internas de cada intuição. O
encadeamento repetido visa reunir várias ideias em um instante para não cair no erro da memória;
porém, isso depende da garantia divina, isto é, ela visa uma verdade não alcançável, a unidade
verdade de Deus. A independência da garantia divina constitui o cogito como uma verdade singular.
O conhecimento desse encadeamento se daria pela perspicácia e sagacidade, dois conceitos que se
encontram nas Regras. A percepção de cada intuição separada é o limite do pensamento finito. O
conhecimento da existência de Deus permite a percepção da unidade da verdade a qual cada
intuição separada está ligada. A renumeração de todos os passos de uma dedução é uma maneira
pela qual o pensamento poderia reunir várias intuições ao mesmo tempo sem fazer recurso a
memória; tornaria todas presentes, todas de uma vez, isolada em seu instante, na sequência ditada
pelas ligações de cada uma com a unidade da verdade. Assim, haveria uma dependência com
existência de Deus, que as ligaria na unidade da verdade. A fragmentação é a finitude temporal que
1
Descartes; Conversación con Burman, p. 129.
Gueroult; Descartes selon l’ordre des raisons, p. 95.
3
Idem, p. 97.
2
3
se opõe a eternidade e nesse sentido a temporalidade é falsa para Gueroult. A continuidade é a visão
confusa e difusa de várias ideias se desenrolando frente ao pensamento, para alcançar uma intuição
indubitável é necessário abstrair todas essas ideias e se concentrar em apenas uma.
Um problema que podemos apontar é recurso as Regras. Podemos defender que o
pensamento cartesiano se divide em dois momentos, o das Regras, no qual há maior preocupação
com o conhecimento, e outro das Meditações, a qual se concentra na metafísica. Esse é um indício
de que Gueroult procura ler Descates como uma fase introdutória para o idealismo.
Também devemos decidir qual o tipo de distinção4 que constitui o cogito. Na Conversación,
a distinção seria real. A distinção real é existência de cada pensamento como uma substância
completa em cada instante. Se o pensamento refletido é diferente do pensamento anterior é porque
há a comparação entres duas substâncias diferentes: o pensamento do instante anterior com o
posterior.
O curioso é que embora a distinção real de cada instante seja compatível com a
descontinuidade, uma vez que cada instante seria uma substância completa, Gueroult irá defender
que a distinção é de razão5. A consciência de um pensamento não difere do próprio pensamento uma
vez que ele é apenas o esclarecimento de algo que sempre esteve presente no pensamento. O cogito
é apenas o esclarecimento do que é pensamento, que na realidade deve incluir a substância pensante
com todos os seus atributos e modos. Embora todos os modos e atributos estejam no pensamento,
não é possível perceber todos eles de maneira clara e distinta ao mesmo tempo, disso decorre a
necessidade ds distinção, por via da razão, que difere o atributo principal de todas as outras
características o concentrando numa intuição. Enfim, o pensamento na realidade é um todo
complexo que pode ter todos os modos e todas as ideias inatas, mas limitado na medida em que não
pode conhecer todas elas simultaneamente. Conhecemos os modos e as ideias inatas ao longo do
tempo pelas mudanças do pensamento: o entendimento, em seguida uma dúvida e assim por diante;
ou focamos na ideia do atributo principal, em Deus, nas matemáticas e em cada ideia inata de cada
vez. O procedimento contínuo é, no entanto, uma limitação do pensamento finito, que deveria ser
capaz de apreender tudo de uma só vez, mas só consegue conceber todas as características de
maneira confusa e difusa.
A escolha da distinção por razão como a distinção da ideia clara e distinta também nos
aponta que Gueroult orienta-se pelo idealismo, dando menos importância a distinção real, que
possibilita compreender o pensamento como uma substância, ou seja, fundamentar ontologicamente
a certeza. A discussão entre Gueroult e Alquié sobre o atributo principal nos é útil, pois Alquié
4
Descartes; Principorium Philosophiae, I, ar.t 60-62, p.147-151. Correspondance IV, Carta a xxx, Egmond, 1645 ou
1646, p. 348-350.
5
Gueroult; Descartes selon l’ordre des raisons, p. 100.
4
defende que o ser do cogito é algo diferente do conhecimento do cogito, isto é, a primeira verdade
não é só uma ideia, ela tem um fundo ontológico. Essa discussão ilustra o problema da relação entre
as Regras e as Meditações. Será que há um período epistemológico e outro ontológico? Qual deles
deveria orientar a leitura da obra cartesiana?
Estabelecido que o cogito deve ser uma intuição e que as intuições são instantâneas resta
explicar o tempo físico. Gueroult se vale, principalmente, da tese da criação contínua e de algumas
passagens dos Princípios.
Gueroult esclarece que o tempo pode ser uma dimensão comparável ao espaço, no entanto
não pode ser divisível infinitamente. O tempo é o fato de existir e não a substância que existe. O
átomo da extensão não é possível, pois seria uma limitação para Deus, enquanto o instante criador é
o ato divino de criação, isto é, o instante de criação não é uma limitação, mas o próprio poder em
ação.
O movimento é só uma inclinação, e não uma mudança ao longo do tempo. A transmissão
do movimento de um instante a outro não tem duração. Assim, o movimento se torna ambíguo: o
instante geométrico é estático, porém dotado de um ímpeto de movimento, de forma que o instante
deveria ter um ímpeto de continuidade. Gueroult resolve essa contradição recorrendo à repetição do
ato de criação. Não é o instante que prossegue a outro instante, nem é o estado geométrico que tem
a tendência de se alterar de uma determinada maneira, é Deus quem cria cada instante de maneira
que o conjunto pareça em movimento. O movimento é apenas a sequência de estados geométricos e
equivale a visão cinematográfica.
Aí que se estabelece a dualidade entre o tempo abstrato e concreto. Cada instante, portanto,
não é um fragmento da continuação, mas ação independente da criação. O tempo concreto, ou real,
é a instauração do instante e não a continuação no tempo. O momento da criação é um só na
eternidade, pois Deus é indiviso e precisa de um ato único para criar o mundo. Porém, esse ato
único e indiviso que se dá a partir da eternidade é incompreensível, o pensamento finito não pode
alcançá-lo, embora possa entendê-lo.
Outra contradição que Gueroult enfrenta é a existência leis físicas e a independência de
Deus. Se o movimento se torna previsível de acordo a física, parece que Deus é obrigado a manter
as mesmas leis a cada vez que cria um novo instante. Mas, uma das qualidades de Deus é a
imutabilidade e, se ele criou um instante com um certo conjunto de leis, ele irá criar o próximo com
o mesmo conjunto de verdades eternas. Essa criação contínua do mundo, com um conjunto de leis e
a manutenção da mesma quantidade de movimento constiui a metafísica causal, na qual o
fundamento das leis da física não estão no mundo mas em Deus.
Sugiro como problema de introduzir a noção de tempo descontínuo a necessidade de fazer
recurso a explicações que se distanciam do texto cartesiano. Descartes jamais formulou a
5
diferenciação em dois pontos de vista: do tempo concreto e abstrato. A explicação do tempo
descontínuo se envereda em explicações complicadas, especialmente sobre a possibilidade de
velocidades diferentes6. Gueroult se vale de uma passagem7 em que Descartes explica a tendência
de movimento de um objeto sob pressão, mas que não tem direção livre para se mover. O
impedimento do movimento pode ser apenas um obstáculo na direção do movimento, e não ímpeto
de origem metafísica que faz surgir o movimento do instante geométrico estático.
Apesar disso, não entendo que a tese da descontinuidade deva ser desqualificada. É
importante procurar qual razão levou Gueroult a escolher essa tese. Provavelmente seja o viés
idealista que culmine em uma tese sobre descontinuidade do tempo no texto cartesiano.
Continuidade
A primeira diferença que encontraremos com Beyssade será a complexidade da intuição do
cogito e a exigência de um esclarecimento prolongado no tempo. Essa diferença se baseia na ênfase
ao aspecto ontólogico da filosofia cartesiana.
O cogito é iniciado com uma intuição simples o suficiente para ser compreendida de uma só
vez, essa simplicidade permite a existência de dois termos diferentes ligados: a natureza do
pensamento e o juízo de existência. O cogito é a constatação de uma experiência ontológica,
perceber a si mesmo como existente. A substância pensante, portanto, é a condição para a
constatação da essência do pensamento e da sua existência. No entanto, a substância não é
conhecida independentemente de seus modos ou atributos. O primeiro atributo pelo qual se conhece
a substância pensante é o eu8, que simultaneamente é o sujeito e o pensamento.
O esclarecimento do cogito é a restrição do pensamento a todos os modos contidos nele, que
irão diferenciá-lo da substância extensa. Assim, contra Gueroult que defendia que a intuição simples
comportava apenas o atributo principal, Beyssade defende que a primeira certeza é conhecida pela
constatação dos modos dessa substância.
Ontologicamente o pensamento contém todos os modos e não pode ser realmente disitnto
deles, ele pode ser separado por abstração, que é a distinção por razão. No entanto, o conhecimento
ontológico dá o objeto inteiro e é a distinção real que nos permite conhecê-lo. A atenção pode se
voltar para este ou aquele modo, mas nenhum deles existem separados. A ideia do atributo principal,
distinto pela razão, desligado da experiência ontológica não comprova a existência da ideia e não
6
Gueroult; Descartes selon l'ordre de raisons , p. 282-283.
Descartes; Pincípios de Filosofia, III, art. 55-59, p. 115-117.
8
Beyssade; La Philosophie Première de Descartes, p. 226.
7
6
resiste contra a dúvida.
O interessante é que a constatação de todos os modos e a permanência de algo que pode ser
constatado pelo pensamento, sempre o mesmo eu, ocorre ao longo do tempo. A enumeração das
diferenciações entre os modos se dá na continuidade e não no instante.
O tempo é um atributo da substância em geral e pode ser atribuído a extensão da mesma
maneira que é atribuído ao pensamento. Pela linguagem cartesiana ele é representado por uma
noção comum. Cada substância tem a sua própria duração, que é idêntica e simultânea9.
O movimento pode ser calculado como a relação entre uma coisa e o espaço ao seu redor, no
entanto é uma relação absoluta. A coisa que se move tem o modo movimento, ele é uma
propriedade do corpo. Não há necessidade de ímpeto de movimento para fazê-lo surgir do instante.
Como a continuidade não foi posta em dúvida, basta constatar que a coisa se move enquanto ela se
move para saber se há ou não movimento.
Além disso, a reflexão é uma duplicação do pensamento e não apenas a ênfase de que a
primeira intuição é a intuição do atributo principal10. Refletir é diferente de apenas estar consciente,
pois estamos sempre conscientes, mas nem sempre refletimos sobre isso. A reflexão é a retomada de
um pensamento anterior por um posterior e se dá no tempo. Ela é pensar que estive duvidando,
entendendo, etc, em geral é pensar que pensa. Assim, para Beyssade a reflexão é a comparação do
pensamento atual com o posterior, que permite tomar o fato ontológico como conteúdo do
pensamento.
Essa atenção fundamenta a ciência reflexiva na medida em que as verdades matemáticas se
tornam verdadeiras por todo o tempo em que se orienta a atenção a esses conceitos. A constatação
da presença de vários elementos permite a dedução. Semelhante ao triângulo que pode ser
constatado por uma única intuição e, ainda assim, no qual podem ser deduzidas muitas propriedades
que estão sempre presentes, como a relação entre os lados, a soma dos ângulos igual a 180 graus,
etc. Os conceitos gerais, como noções comuns, estão presentes no cogito e podem ser rearticulados
para prosseguir o raciocínio. É assim que os elementos do cogito complexo podem ser ideias claras
e distintas e serem utilizadas para alcançar a prova de Deus. As verdades fundamentadas apenas no
sujeito são provisórias, elas dependem do foco da atenção. A clareza e distinção superam o deus
enganador e o gênio maligno enquanto estão fundamentados no sujeito existente. Assim, com
ênfase ao aspecto ontológico podemos escapar do círculo cartesiano.
A diferença dessa dedução do cogito com a dedução que irá exigir a garantia de Deus é a
ligação entre a ideia e o fato ontológico. No caso do cogito é a ligação entre a noção primitiva de
pensamento e o pesamento em ato. A ciência se faz pela postulação de princípios como é preciso
9
Beyssade, La Philosophie Première de Descartes, p. 129.
Idem, p. 234.
10
7
pensar para existir, que pode estar desligado de sua justificativa, o fato ontológico. Isso explicita o
prolongamento da atenção e a necessidade de que essa atenção esteja presa ao fato ontológico por
todo o tempo em que ele é considerado antes da prova de Deus. Uma vez feita a prova de Deus e
das verdades eternas a geometria pode ser confiável e as relações conhecidas com a ajuda dela são
verdadeiras.
Uma objeção é o recurso à memória, que pode ser dubitável. Descartes afirma, nas
Meditações, que podemos lembrar de termos existido. Ainda que haja algumas referências ao
engano da memória, ela faz parte da coisa pensante. Beyssade afirma que deve haver uma distinção
entre a memória (mémoire), relativa à união, e lembrança (souvenir), relativa ao intelecto11. Essa
distinção não é marcada por Descartes nas Meditações, mas ele a indique na carta a P. Mesland de 2
de maio de 164412. A memória física é registrada por vestígios no cérebro, como uma imagem
impressa. A outra, embora ele também use a palavra vestígio, não pode ser explicada por
comparação com a extensão; são apenas coisas que duram no pensamento. Descartes irá explicar
que a lembrança de uma ideia é semelhante a uma dobra em uma folha de papel: uma vez feita é
mais fácil de a repetir. Assim, temos a memória da união, que pode ser falsa, e a lembrança, que é
um modo do pensamento e é confiável.
Além dessa distinção, também sugeriro a diferença entre o modo do pensamento de seu
conteúdo. A memória é um modo do pensamento como o entendimento, a dúvida, etc. Ainda que o
entendimento alcance uma conclusão falsa, o entendimento como modo continua sendo verdadeiro.
De maneria análoga, a memória pode criar falsas lembranças, ainda assim, como um modo, a
memória continua verdadeira. Essa é uma alternativa para explicar a natureza do tempo para o
cogito. Da mesma maneira que o sentimento de liberdade é suficiente para provar que somos
livres13, a memória deve ser suficiente para provar que há tempo passado.
Além de formular a possibilidade de se criar proposições provisórias, a ciência reflexiva
formula um interlocutor possível. O cogito e a ciência refletida são formulados em proposições que
podem ser comunicadas. Há a dualidade da sentença que se apresenta enquanto o pensamento é
feito e ela desprendida desse pensamento. Como a reunião entre a sentença e o pensamento pode ser
feito por cada sujeito ela também não depende de Deus. Essa leitura visa uma alternativa contra o
solipsismo. Embora a intuição seja individual, ela pode ser comunicada a outros. Beyssade se vale
das Regras para explicitar o aspecto linguístico. Mas, ele não lê as Meditações subordinando-as a
uma teoria do conhecimento das Regras. Ele entende que as Regras nos servem como um léxico
para a formulação das proposições.
11
Beyssade; La Philosophie Première de Descartes, p. XI.
Descartes, Correspondance IV, p. 114.
13
Idem, Principorium Philosophiae, I, art XLI, p. 91.
12
8
Assim, além do problema do tempo, Beyssade explora linguagem e alteridade. As
Meditações oferecem oportunidades para discutir esses temas. No entanto, acho importante salientar
que nem sempre Descartes visava a antecipação completa de algumas teses nas Meditações. A
leitura das Meditações exige a limitação das teses ao alcance no qual elas são úteis para as
passagens em que são apresentadas. O problema da descontinuidade pode ser formulado se
interpretarmos a criação contínua como uma tese sobre o tempo, que pode não ser a sua função
naquela passagem. A tese da criação contínua exije a criação do mundo continuamente, ela dá uma
resposta a necessidade de algum fundamento, mesmo para a ontologia. Para Descartes, a substância
criada é sempre verdadeira e alcançamos certezas enquanto tornamos a atenção a seus aspectos, no
entanto, essa verdade depende da provisoriedade da atenção. A certeza sobre as substâncias depende
de uma explicação mais fundamental. Essa é a função do Deus veraz que age continuamente na
criação do mundo.
Como a continuidade é a natureza do tempo segundo Beyssade o problema da passagem do
tempo se inverte. O problema para Gueroult era explicar a passagem de um instante ao outro, para
Beyssade o problema é explicar a limitação do sujeito. Na Segunda Meditação Descartes afirma que
sabe que existe e que sabe que sempre existiu, isto é, sua existência se prolonga além do tempo
presente sobre o qual temos a consciência atual. A primeira certeza é constatada pela percepção da
mudança dos modos do pensamento ao longo do tempo. Essa mudança tem uma duração, que é
maior que o instante atemporal de Gueroult, mas não abarca todo o tempo da existência do sujeito.
A atenção tem uma limitação, ela não se prolonga muito além de um momento. Com relação ao
passado, a memória14, seja com conteúdos falsos ou verdadeiros, nos dá a evidência que o sujeito
teve um passado e que se arrasta a partir dele. Com relação ao futuro, o sujeito se depara com a
possibilidade de tomar decisões livres15, tendo certeza de que se projeta no futuro.
Parece que é o esforço em demonstrar um aspecto voltado à alteridade, contra o solipsismo,
que Beyssade visa e que gera outra interpretação. As constatações das Meditações são constatações
sobre coisas que realmente existem e o pensamento pode ser disciplinado para conhecer essas
coisas. Uma vez que duas pessoas compreendessem bem de que se tratam as duas substâncias e
todas as outras certezas elas poderiam se comunicar a cerca dessas verdades. A ênfase nesse aspecto
ontológico, que é o fundamento dessas verdades, nos dá a oportunidade de ler a obra cartesiana
gerando uma tese sobre a continuidade do tempo.
14
15
Beyssade; La Philosophie Première de Descartes, p. 165.
Idem, p. 199.
9
Proposta
A leitura da obra cartesiana nos oferece a oportunidade de formular tanto uma tese sobre o
tempo descontínuo quanto contínuo. Podemos afirmar, como faz Beyssade que a duração contínua é
real, pois é apenas um modo das substâncias. A continuidade seria evidente para o pensamento e
poderia ser atribuída à extensão sem nenhuma mudança na ideia que temos da duração.
“Quanto às ideias claras e distintas que tenho das coisas corporais, há
algumas dentre elas que, parece, pude tirar da ideia que tenho de mim
mesmo, como a que tenho da substância, da duração, do número e de
outras coisas semelhantes.” (DESCARTES, Meditações, III, 20, p. 107)
No entanto, Gueroult afirma que a palavra duração deve ser tratada como sinônimo de
existência, a qual deve ser criada por Deus em cada instante.
A formulação clássica cogito ergo sum não tem nenhuma indicação temporal, no entanto
vimos que essa passagem é essencial para fundamentação de uma dessas teses. Esse é um indício de
que a temporalidade tem um papel central na filosofia cartesiana. No texto das Meditações são
abundantes as passagens que indicam alguma noção temporal, sobre as quais se pode construir
ambas teses. Nas Segunda e Terceira meditações há a explicitação sobre a superação da certeza
frente a dúvida e uma indicação sobre a temporalidade do pensamento:
“Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais
que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto
eu pensar ser alguma coisa.” (Idem, II, 4, p. 92)
“(…) engane-me quem puder, ainda assim jamais poderá fazer que eu
nada seja enquanto eu pensar que sou algo; ou que algum dia seja
verdade que eu não tenha jamais existido, sendo verdade que agora
existo; (…)” (Ibidem, III, 4, p. 100)
Podemos defender que a certeza de que o pensamento existe enquanto penso exige a
repetição em cada instante e que os instantes anteriores continuem existindo autonomamente; ou
podemos afirmar que esse pensamento se prolonga por todo o tempo enquanto penso e arrasta
consigo a existência passada. Seja como for, a temporalidade do pensamento é um problema central
do cogito.
10
A tese da criação contínua, por sua vez, oferece a explicação sobre a possibilidade da divisão
do tempo em instantes. Não esclarece, entretanto, a natureza dessa divisão, se ela for real constituirá
instantes descontínuos, se for uma distinção por razão o tempo será contínuo e o instante apenas
uma forma de pensar. A descontinuidade é defendida pela ênfase na afirmação da divisão unida a
afirmação sobre essa ser a natureza do tempo.
“(…) todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade
de partes (…) é uma coisa muito clara e muito evidente (para aqueles que
consideram com atenção a natureza do tempo)(…)” (DESCARTES,
Meditações, III, 33 e 34, p. 110)
Se focarmos no aspecto ontológico da passagem podemos defender a tese sobre a
continuidade. Pois, a função da tese da criação contínua não é explicar a natureza do tempo, mas a
natureza da existência. A autonomia de uma instante frente a outro apenas afirma que não há nada
no mundo que tenha a potência de fazer algo existir. A substância pensante e a extensa têm apenas o
poder de mudar seus modos e não há nenhuma configuração ou sequência de modos que tenha por
efeito fazer outra substância exisitir. A formulação dos Príncipios, além de não se limitar a falar
sobre a temporalidade do pensamento, enfatisa esse aspecto ontológico.
“(…) do fato que existimos agora não se segue que também haveremos
de existir no tempo imediatamente sequente, (…) facilmente entendemos
que não há força alguma em nós pela qual nos conservemos a nós
mesmos(…)” (DESCARTES, Principorium Philosophiae, I, XXI, p. 63)
Enfim, não há muito sentido em tentar resolver o problema selecionando um dos lados. O
interessante é investigar quais razões levaram cada autor a formular sua tese e sugerir qual o papel
de cada interpretação na sua época. O problema que proponho é prosseguir na investigação da
gênese da tese da descontinuidade do tempo. E por que, desde a tradição mais próxima a Descartes,
a temporalidade foi abordada como um problema central para a leitura de Descartes.
11
REFERÊNCIAS
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