Intervenções muito simples em contexto escolar bastante precário
Resumo:
Em territórios de alta vulnerabilidade social o contexto escolar pode se tornar particularmente
precário. Com o intuito de auxiliar as escolas a enfrentar os conflitos que emergem neste cotidiano,
a Unidade Básica de Saúde que conta com uma equipe multiprofissional, proveniente das equipes
de apoio (Nasf e Caps), pode promover encontros para a circulação de saber e a troca de
experiências. Enquanto psicólogo de uma equipe de matriciamento do CAPS II Cidade Ademar, foi
possível participar desses encontros e constituir um saber sobre as orientações e intervenções que se
mostraram mais eficientes para a superação dos conflitos e impasses escolares. Este texto apresenta
algumas dessas intervenções que, de forma simples e clara, promovem a circulação discursiva pelo
aluno e sobre o aluno, além de sua circulação geográfica pela instituição e pelo território.
Escola – Vulnerabilidade – Matriciamento – Transferência
Autor: Daniel Rodrigues Lirio
[email protected]
Mini-Currículo: Daniel Lirio é psicanalista, mestre em psicologia social pela USP e professor
universitário. A partir de uma perspectiva psicanalítica e institucional, tem publicado artigos na área
de Saúde Mental, Cultura e Modificações Corporais, de onde se destaca o livro Suspensão Corporal,
novas facetas da alteridade na cultura contemporânea.
Intervenções muito simples em contexto escolar bastante precário
O Contexto escolar, conforme se sabe, é palco de inúmeras tensões e jogos de força que, via
de regra, dificultam o aprendizado e geram bastante sofrimento à criança. Contudo, há contextos
especialmente precários, onde se combinam diversos fatores: alta vulnerabilidade social, alta
proporção de alunos por professor, falta de flexibilidade institucional, despreparo dos profissionais
e, não raro, desinteresse do cuidador pelo aprendizado e saúde mental da criança. Muitas vezes, esse
quadro resulta na localização de algumas crianças como a causa dos problemas da escola, criandose um clima de animosidade em que o aprendizado e a convivência tornam-se muito difíceis.
Enquanto psicólogo do CAPS II Cidade Ademar, realizei matriciamento em Unidades
Básicas de Saúde na periferia da zona sul de São Paulo. Nessa função, fazia discussão de casos e
atendimentos compartilhados com os técnicos da unidade. Além disso, participava da “TEIA”,
reuniões multiprofissionais com as escolas, justamente para dar algum suporte aos casos mais
difíceis, sugerindo intervenções que fomentassem um clima escolar minimamente saudável.
Em contexto escolar conturbado, com escassez de profissionais, não é fácil ao professor ou
diretor destinar um período do dia para uma reunião fora da escola, isso fazia com que os encontros
fossem raros e, geralmente, com alta rotatividade de profissionais. Estes, via de regra, encontravamse angustiados com o cotidiano de trabalho. Além disso, deveriam ser capazes de replicar as ideias
discutidas com outros profissionais também angustiados e atarefados em um meio, como dito,
bastante conturbado. Neste quadro, aprendi com a experiência – e faço desse ponto o eixo deste
texto – algo que pode ser resumido no seguinte pensamento: quanto mais precário for o contexto,
mais simples deve ser a intervenção.
Portanto, organizo a seguir algumas intervenções bastante simples, quase óbvias, que podem
melhorar o jogo transferencial relacionado às crianças que ocupam o lugar de alunos-problema.
Vale dizer que não se trata, com isso, de resolver a situação, mas de transformar algo que aparece
como problema terrível e insolúvel em uma dificuldade possível de ser enfrentada pela escola.
Do pessimismo à aposta
Alguns casos são discutidos na tentativa de encontrar soluções para seus impasses; outros,
por sua vez, para que o supervisor referende o seu caráter insolúvel, legitimando assim a
desesperança do profissional. É comum ouvir “vou passar esse caso só por passar” ou “só por
desencargo de consciência...”. Nessas horas, é importante intervir: ou há uma confiança em
encontrar uma melhora para o caso, e faz-se a discussão com afinco, ou não se faz discussão
alguma. Se isso não estiver claro, desde o princípio, é possível que o supervisor tente apontar
intervenções milagrosas enquanto quem passa o caso se preocupa em mostrar que elas são
impraticáveis, o que, obviamente, solapa qualquer possibilidade de reflexão.
Claro, é importante o reconhecimento das dificuldades do caso, das angústias e frustrações
dos profissionais, bem como da importância das intervenções realizadas anteriormente. Contudo,
levar um caso para discussão significa uma disponibilidade para investir ainda mais, tornando-se
importante a transformação da angústia em investimento.
Do sintoma ao discurso
Um aluno cujo comportamento não se adéqua às expectativas da escola será, como se pode
imaginar, uma fonte constante de transtornos e aborrecimentos. Normalmente é a criança agitada,
que briga, grita, expressa sua sexualidade, agressividade, enfim, sua vitalidade de forma
supostamente inapropriada. Esses casos são usualmente apresentados em sua dimensão sintomática,
visível, esperando-se alguma técnica ortopédica que retifique o comportamento. Obviamente, entre
o incômodo institucional e a intervenção almejada precisa haver a compreensão da situação. Para
que esta seja possível é preciso transformar a apresentação sintomática em uma apreensão
discursiva do caso, em que o comportamento da criança ganha sentido quando contraposto àquilo
que ela diz e é dito sobre ela. Ou seja, não se trata de negar o valor discursivo, prenhe de sentido, do
comportamento da criança, mas apontar que este só será devidamente desvelado em articulação ao
seu discurso verbal. Nessa perspectiva, uma intervenção simples e eficaz é perguntar pelo que o
aluno diz.
Essa questão simplória encontra frequentemente o susto dos profissionais, atentos ao que ele
faz, mas surdos ao que ele fala. Na concepção de muitos profissionais, “conversar” com a criança
significa dizer como ela deve se comportar e “fazer combinados” significa apresentar as regras
escolares previamente decididas. Ora, vale apontar o real significado dessas ações, que implicam o
fechamento ao que pode emergir de inesperado na fala da criança. Neste caso, o que orienta este
tipo de intervenção, mas que talvez não seja tão óbvio, é que profissionais identificados ao lugar de
saber devem poder se deparar com a limitação deste saber, especialmente no que tange às situações
singulares. É fundamental, portanto, um estado de curiosidade e interesse pelo ainda não dito da
criança, como se, a cada momento, ela estivesse prestes a comunicar algo essencial sobre si. A
mudança de expectativa pelas ações para a escuta pela fala pode justamente fazer com que muitos
conteúdos sejam ditos, e não atuados.
Dessa forma, ao nos depararmos com dificuldades singulares, ao invés de procurarmos
respostas prontas, estratégias típicas para cada tipo de questão, podemos ouvir, compreender e
intervir de forma específica para cada caso.
O discurso sobre a criança
Além da importância de se promover o discurso da criança, também vale apontar como
circulam os discursos sobre a “criança-problema”. Nesse sentido, vale apontar como o lugar de cada
criança é naturalizado e cronificado dentro da instituição. Isso acontece quando se estabelecem
formas estereotipadas de manejar e falar sobre ela. Por vezes, um menino rebelde é tido como
futuro bandido, e uma menina que fala palavrão será vista como forte candidata à maternidade
precoce; precisamos ter cuidado com as profecias auto-realizadoras. Ao se reconhecer a importância
do modo com que se fala de uma criança para os demais funcionários e para as demais crianças
como algo que demarca seu lugar na instituição, atentamos também para a criança-problema
produzida discursivamente pela instituição. Assim, conforme discutido no item anterior, vale
substituir as formas rotulantes e cronificantes, fechadas em si mesmas, por formas que ampliem e
aprofundem a noção sobre o sujeito falado e, se possível, constitua uma compreensão plural de cada
um, com sua dinâmica, contradições e conflitos.
Na correria do cotidiano institucional é comum a entrada de um novo professor sem que haja
tempo para que lhe seja passado um histórico sobre a criança. Em territórios socialmente
vulneráveis, são corriqueiros os casos em que familiares são presos, envolvem-se com drogas, têm
problemas com a justiça, além do envolvimento em histórias de assassinato e violência. Se for o
caso, algo tão banal como o compartilhamento dessa informação com o professor pode prepará-lo
para acolher um comportamento inesperado. Novamente, não se trata de procurar uma continuidade
entre a criança e seu meio, naturalizando suas ações, mas de compreender o pano de fundo do qual
ela se destaca, com o qual dialoga e constitui resistências e interpretações singulares. Em suma, está
em questão o não saber dos profissionais e como isso implica a necessidade constante da circulação
de saberes no interior da instituição.
A circulação da criança pela instituição e fora dela
Outro ponto bastante comum com as “crianças-problema” em instituições precárias é o
surgimento do mártir ou herói da vez. Normalmente, é aquele funcionário que se destaca pela
firmeza na imposição dos limites ou pela paciência e compaixão ao lidar com as crianças difíceis.
Via de regra, esse funcionário desobriga os colegas da tarefa de se relacionar com a criança. Essa
questão emerge quando a criança passa para uma serie em que não mais terá contato com o tal
funcionário, ou quando este sai da instituição, criando o problema de se encontrar um substituto. A
regra de ouro aqui é que quanto mais difícil for o caso, mais gente precisa estar envolvida,
compartilhando dificuldades e estratégias. Assim, na escola, mais gente terá de encontrar um jeito
de se conectar com a criança, de criar afinidades e interesses comuns, e ninguém ficará com o
terrível peso de enfrentar o caso sozinho.
A procura pelo herói para os casos difíceis se reedita nos espaços de supervisão ou
discussão, pela demanda por uma solução mágica para o problema, como se os manejos fossem
sabidos a priori, como receitas previamente validadas. Ao contrário, as soluções devem ser
construídas em equipe, mas também levando-se em consideração os demais equipamentos
disponíveis. Muitas vezes, regiões bastante precárias contam com uma boa diversidade de
equipamentos capazes de dar suporte à criança, juntamente com a escola, formando um tecido
social verdadeiramente eficaz. Esses serviços precisam ser mapeados.
Até o momento, neste texto, tenho feito um caminho problemático, à medida em que não
tenho incluído a família na compreensão e enfrentamento dos casos difíceis. Essa escolha ocorre na
tentativa de contemplar os casos mais graves, em que os cuidadores pouco se ocupam, de fato, do
cuidado da criança. Para tanto, as causas são as mais diversas, desde o excesso de trabalho,
passando pelo abuso de drogas, problemas com a justiça, até o descaso e o abandono. Muitas vezes
quem cuida é uma tia ou avó, já bastante atarefada, doente ou idosa, constituindo uma situação
complexa cujo manejo foge do escopo deste texto. Enfim, há casos bastante difíceis que, na
ausência de um poder público realmente eficaz, vão transcorrer com intenso sofrimento para a
criança. É preciso, contudo, que a escola não se paralise diante dessa situação e descubra o que
poderia fazer para garantir um mínimo de saúde mental para essas crianças.
Algumas vezes, conseguir que o cuidador ou vizinho leve a criança a um outro serviço já
pode ser de grande valia. Para tanto, é preciso mapear os atores do território com os quais a escola
poderia contar. A Unidade Básica de Saúde (UBS), especialmente se for PSF, pode ser um grande
parceiro, mas é possível pesquisar também pela existência de algum CEU, Centro de Convivência,
Centro da Criança e Adolescência (CCA), SESC e serviços filantrópicos mais diversos, até
chegarmos às Secretarias de Assistência Social, ambulatórios psicológicos e conselhos tutelares. Em
suma, encontrar os parceiros aptos a ajudar no cuidado da criança e da família. Mais uma vez, a
ideia é que quanto mais difícil o caso, maior a importância das parcerias e da circulação pelo
território.
A ideia fundamental, portanto, é superar um discurso preso às dificuldades do caso em
direção à valorização das potencialidades advindas com o fomento aos deslocamentos geográficos e
discursivos.
Daniel Lirio
[email protected]
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