Conflito religioso e politeísmo dos valores em tempos de globalização*
Léa Freitas Perez**
I.
Foi o fortemente sugestivo título do V Simpósio da Associação Brasileira de História das
Religiões - "Religião e globalização: os desafios da violência" - que motivou meu desejo de trazer a
público algumas inquietações/indagações, que venho ruminando acerca do religioso na sociedade
contemporânea1 .
Nesses tempos de incerteza generalizada, nesse mundo tornado aldeia global, em que os
muros caem, o viver social complexifica-se/heterogeiniza-se2 . O mundo e sua experimentação
parecem não mais constituir unicamente, como refere Francisco Coelho dos Santos, "um espetáculo
recheado de anúncios, de revelações e de mensagens a decifrar ou a interpretar com rigor para
melhor re-conhecer uma quintessência e uma teleologia, mas um espetáculo plurívoco de
simulacros e de simulações cujos referentes são longínquos, se perderam ou jamais existiram.
Esvaziado de todo princípio unificador, tanto quanto de finalidade, aliviado do peso das
representações metafísicas, o mundo se oferece ao olhar, à admiração e à descoberta pelos sentidos;
por vezes, ele se deixa tomar pela compreensão e pela empatia, do mesmo modo que nos confronta
ao trágico"3 .
No entanto, nesta época de hibridações inesperadas e, sobretudo, no que diz respeito ao trato
da religião, tudo se passa como se nos encontrassémos - nós, ainda fiéis e nostálgicos herdeiros dos
ideais iluministas -, perplexos com, como diria o mestre Pierre Sanchis, as metamorfoses do
sagrado. Nossas fervorosas crenças nas forças libertadoras da Razão - que piamente supunhámos
haviam acantonado a religião na esfera do privado e no foro íntimo de cada um e que, deste modo,
haviam criado um ambiente perene de "liberdade religiosa" e de "pluralismo confessional",
eliminando, assim e ad eternum, as "intolerâncias" e os "conflitos" - desmancham-se no ar face ao
ressurgimento de "intolerâncias" e de "conflitos" com forte acento religioso. Percorrendo
rapidamente as ementas das mesas redondas que acontecem neste simpósio encontrei formulações
*
Texto apresentado na mesa redonda "Conflito religioso no Brasil": implicações históricas, sociológicas e
antropológicas" no V Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões, Juiz de Fora/MG, 27 a 30 de maio
de 2003. A presente versão é ligeiramente modificada, incorporando a enriquecedora discussão havida em todo o
Simpósio, pelo que registro minha dívida e gratidão para com todos os participantes.
**
Antropóloga, professora adjunta do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, coordenadora do Centro
de Estudos da Religião Pierre Sanchis/UFMG.
1
Estas inquietações/indagações, às quais dedico-me há algum tempo, dizem respeito às formas de sociação na
contemporaneidade, particularmente aquelas que assumem formas religiosas e festivas e, que, sugerem a gestação de
uma outra combinatória social, pois que apontam para a existência de profundas modificações nos mecanismos e nos
processos de constituição do elo social. Ver: PEREZ, Léa Freitas. "Syncrétisme religieux et nomadisme culturel dans la
société brésilienne contemporaine". 1996. Sociétés Revue des Sciences Humaines et Sociales n. 54. Paris, Dunod;
"Campo religioso em conflito! Mas que conflito é esse?", texto apresentado nas VI Jornadas sobre alternativas
religiosas na América Latina, Porto Alegre/RS, novembro de 1996. "Fim de século, efervescência religiosa e novas
reconfigurações societárias", texto apresentado nas IX Jornadas sobre alternativas religiosas na América Latina, Rio
de Janeiro/RJ, setembro de 1999 e “Igreja Universal do Reino de Deus e Nova Era: nódulos de dádiva na sociedade
brasileira contemporânea?” 2001. Revista Teoria & Sociedade, n. 8. Belo Horizonte, UFMG, pp. 30-76 em co-autoria
com Luciana de Oliveira e Renata Apgaua.
2
Concordo plenamente com Massimo Canevacci, quando ele diz que - e o faz na contra-mão de certos burocratas do
saber, que tudo reduzem à manipulação, à exploração e seus correlatos - "antes de incolor homologação, a fase atual
desenvolve uma forte tensão, descentrada e conflitual entre globalização e localização: ou seja, entre processos de
unificação cultural - um conjunto serial de fluxos universalizantes - e pressões antropofágicas 'periféricas' que
descontextualizam, remastigam, regeneram". Pode-se, portanto, dizer que o "mundo globalizado também é um mundo
sincretizado", uma vez que "o processo de globalização não é simplesmente aquele em que as culturas indígenas são
modernizadas, mas também aquele em que a modernidade se indigeniza". Vasantkumar, Apud Canevacci, p. 21. Dito
de outro modo: o que se globaliza é a diversidade. CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das
hibridizações culturais. 1996. São Paulo, Studio Nobel: Instituto Cultural Italo-brasileiro-Istituto Italiano di cultura, p.
23.
3
COELHO DOS SANTOS, Francisco. "Postmodernité: un mode plutôt qu'une mode". 1990. Paris, Texto policopiado,
p. 7.
2
tais como: "a intolerância religiosa, um fenômeno que parecia superado numa sociedade
secularizada, ressurge com força na atualidade"; "a diversidade religiosa e o conflito, que pode
resultar da interação de suas diversas modalidades, eclode de uma forma transversal, atravessando
nações e Estados"; "em estados modernos, que deslocaram a religião para a esfera privada, a
intolerância ressurge com tal força e se mostra como elemento forte de mobilização de massa".
Formulações deste tipo compõem um campo discursivo de grande atualidade e pertinência, sim,
disto ninguém duvida. No entanto, pergunto-me se não podem também ser vistas como
sintomas/expressões de um certo estado de espanto e de susto diante da presença viva e não prevista
da religião na esfera pública, como elemento de formação de opinião e gerador de polêmicas4 .
Como argutamente observa Otávio Velho, colocando o dedo nas nossas feridas: "boa parte das
crenças (em sentido amplo) com que lidamos em nossa sociedade e sobretudo em nossa época não
possui a solidez dos manuais. Mesmo quando estamos diante de crenças que chamam a atenção
pela rigidez e dogmatismo com que se apresentam, isso não deve ser confundido com uma 'situação
tradicional', antes representando - como no, caso dos diversos fundamentalismos (nada tradicionais
e em algumas de suas variantes fazendo questão de serem 'científicos') - uma formação reativa,
tributária ela mesma, por uma via paradoxal, da impossibilidade de se manterem imunes às
vicissitudes da história concreta"5 . Diante dessa época de paradoxos e de oxímoros, tudo se passa
como se insistimos em pensar pela via da contradição, que supõe e propõe uma síntese unificadora
e totalizadora.
As variadas e complexas modulações que a religião assume na contemporaneidade colocamnos numa situação de imprecisão tal que nenhum de nós está livre de fazer o mesmo que fazem "os
obsessivos elaboradores de definição" que, como diz Zymunt Bauman, tentam "resolver (ou, talvez,
contornar) o problema [passando] pelo estratagema provado da definição sagazmente escolhida",
apresentando duas soluções: a "transcendental" e a "definitiva". A primeira dissolve "a questão da
religião em alguns traços eternos e incontestavelmente universais da situação existencial humana";
a segunda, "ao contrário, estreita de tal modo a definição que a religiosidade se torna como que
precisamente mensurável, como o tamanho da cintura de alguém, e por isso a ilusória questão das
tendências sócio-culturais é substituída por um problema totalmente administável, de tendência
estatística". Tanto uma quanto a outra, ao desconhecerem a pluralidade dos programas de verdade e
ao imporem à realidade uma obrigação de coerência (o "dever ser"), operam reducionismos e
simplificações, o mais grave deles sendo o do enclausuramento da experiência religiosa nos
quadros da metafísica tradicional6 .
Sugere ainda Bauman, apoiando-se em Foucault, que para "compreender os fenômenos da
religião e da religiosidade", ao invés de continuarmos ligados "às preocupações tradicionais da
'sociologia da religião'" (acrescento, também da antropologia da religião), deveríamos, "trazer para
o centro dos nossos interesses", não tanto "a necessidade de 'defini-los claramente' quanto a
necessidade de descobrir 'como até agora os mecanismos sociais podiam funcionar', 'ressaltando
sobre que espécies de suposições, que espécies de modos de pensamento habituais, incontestados e
desapercebidos, assentam as práticas que aceitamos' (Foucault). Talvez no caso da religião mais do
que em todos os outros casos, porque a religiosidade não é, afinal, nada mais do que a intuição dos
limites até os quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender"7 . Levando a
sério a preciosa pista/advertência de Bauman, quero aqui propor uma mudança de perspectiva no
trato do diagnosticado conflito religioso na sociedade brasileira contemporânea, tomando como
"caso" o enfrentamento que a Igreja Universal do Reino de Deus promove relativamente às
4
Em sua belíssima conferência no V Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões, Luis Pondé usou a
expressão "louca da casa" para referir-se à religião na modernidade. Disse ele, com o que concordo integralmente, que a
louca da casa está gritando, nos chamando a pensar sobre ela.
5
VELHO, Otávio. Besta-fera: recriação do mundo. Ensaios críticos de Antropologia. 1995. Rio de Janeiro, RelumeDumará, p. 176, 177.
6
A redução ao “paradigma semântico referencialista da presença”, como menciona Aldo Gargani, “exige que um nome
e uma proposição só tenham significação se lhes corresponder respectivamente um objeto e um fato”. GARGANI,
Aldo. "A experiência religiosa como acontecimento e interpretação". DERRIDA, Jacques e VATTIMO, Gianni. A
religião. 1997. Lisboa, Relógio D'Água Editores, p. 134.
7
BAUMAN, Zymunt. O mal-estar da pós-modernidade. 1998. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p. 206, 208.
3
religiões afro-brasileiras. Todavia, tendo como única certeza que não tenho certeza alguma. Ao
contrário, tenho apenas dúvidas e indagações.
O que se pode dizer, sem cometer exageros e sem forçar tendências? O que se pode dizer
sem correr o perigo de ser enganado e de enganar? O que se pode dizer sem incorrer no perigoso
risco, característico da metafísica da presença, de fazer depender - a significação e o valor da
experiência religiosa e do discurso religioso - como menciona Gargani, "da inspecção das entidades
determináveis como entidades presentes e de um ou de outro modo verificáveis", seja em seus
traços eternos e incontestavelmente universais, seja em suas manifestações particulares e
estatísticas?8 Seria possível escapar da lógica binária de tipo ou …ou tão presente no debate atual
sobre religião? Este é o desafio que me lanço aqui. Respostas, soluções, graças a Deus, não as
tenho… Tenho apenas - e isso por si só já não seria o suficiente? - algumas poucas "obscuras e
confusas" inquietações/indagações, e o forte desejo de compartilhá-las. Por isso mesmo, e sem o
menor senso de oportunidade, dedico este texto à Leila Amaral, como memória de nossos
estimulantes papos de botequim sobre o trabalho intelectual e a plausibilidade da distinção entre
"idéias claras e distintas" e "idéias obscuras e confusas".
Obviamente não tenho nem a intenção (muito menos a competência necessária) de esgotar
um tema tão vasto, multifacetado, complexo e objeto de apaixonadas polêmicas. Não somente faltame o espírito, parafraseando Bauman, do "perito contador", como, tal como ele, penso que "a
religião pertence a uma família de curiosos e às vezes embaraçantes conceitos que a gente
compreende perfeitamente até querer defini-los", já que "com demasiada freqüência, a experiência
transborda as gaiolas verbais em que desejaríamos retê-la", pois "o inefável é uma parte tão integral
da maneira humana de estar no mundo quanto a rede lingüística com que tentamos (em vão, e por
acaso, embora não menos vigorosamente por essa razão) capturá-lo"9 .
II.
No mundo todo e no Brasil, num quadro histórico que muitos ainda acreditam moderno e
secularizado, isto é, liberto da opressão e do "ópio" da religião, vemos explodir, com grande
intensidade e revigorada força pois, como diz Maria Clara Bingemer, "desreprimido e
incontrolável", "a sedução do Sagrado e do Divino". Talvez como nunca na história da humanidade
estejamos tão expostos à diversidade e à complexidade religiosa: temos à disposição, segundo essa
autora, uma plêiade de "novas e desconcertantes formas de expressão, assustando e intrigando as
Igrejas históricas tradicionais, as ciências sociais e os bem-pensantes"10 .
No caso do Brasil, a novidade fica por conta, entre outros, do esplendoroso e polêmico
sucesso do neopentecostalismo, em particular da Igreja Universal do Reino de Deus - igreja da
terceira vaga/onda pentecostal -, fundada em 1977 como dissidência. Como nota Pierre Sanchis, na
atualidade, "o fenômeno mais visível no campo cristão brasileiro é o da entrada maciça dos
pentecostais", sua imensa visibilidade, seu crescimento numérico e a densidade de participação dos
adeptos aos cultos11 .
O pentecostalismo não é uma presença nova em nosso país. Chega ao Brasil no início do
século XX, desde logo chamando atenção pelo seu caráter de ruptura com as tradições religiosas
brasileiras, uma vez que (e como refere Pierre Sanchis) fiel, ao "princípio radical do
protestantismo", prega que "é pela opção de fé de cada um (a entrega pessoal) em Jesus – e não pela
mediação da Instituição, segundo a fórmula católica ('Creio na Igreja') que cada fiel é salvo, muda
seu destino e, com ele, muda o mundo". Seu boom, no entanto, data dos anos 1950-1960, através
das missões intensivas, "verdadeiras 'Cruzadas de Evangelização'"12 .
O neopentecostalismo não se diferencia somente do protestantismo histórico, mas também
do próprio movimento pentecostal. Sabe-se que o fundamento teológico do pentecostalismo é a
"presença definitiva do Espírito entre os homens no lugar do Filho". Neste sentido, caracteriza-se,
8
GARGANI. "A experiência religiosa como acontecimento e interpretação". Op. cit., p. 133.
BAUMAN. O mal-estar da pós-modernidade. Op. cit., p. 205.
10
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. "A sedução do sagrado". 1992. Religião e sociedade, n. 16/1-2. Rio de Janeiro,
ISER, p. 82.
11
SANCHIS, Pierre. "As religiões dos brasileiros". 1997. Horizonte, v.1, n. 2. Belo Horizonte, p. 30.
12
SANCHIS. "As religiões dos brasileiros". Op. cit., p. 39.
9
4
sobretudo, como um movimento no interior das igrejas cristãs, cujo objetivo é "voltar ao evento
fundante da igreja", isto é, "a hierofania original da descida do Espírito Santo sobre um grupo de
pessoas reunidas no Pentecoste". No entanto, embora tenha no protestantismo sua matriz, dele se
distancia em muitos aspectos. O mais significativo, como comenta Antonio Mendonça, diz respeito
à descida no Espírito Santo: enquanto para o protestantismo ela "constitui um fato histórico único,
não factualmente repetitivo", uma vez que no momento da descida "o Espírito passou a habitar no
meio dos crentes e a distribuir os dons necessários sem os sinais de Pentecoste", para o
pentecostalismo a descida é um "fato que se repete quando necessário, sendo os dons distribuídos e
sinalizados através de manipulações extáticas e glossolálicas"13 . Vale dizer que a diferença mais
evidente entre um e outro relaciona-se à fixidez, à rigidez e à institucionalização das confissões de
fé e ao fechamento dos cânones revelatórios do protestantismo, em contraposição à dinâmica do
pentecostalismo, caracterizado pela revelação aberta.
Uma outra importante diferença diz respeito à cura. Ao enfatizar a cura divina, o
neopentocostalismo chega mesmo a ser denominado de "igreja de cura divina", enquanto o
pentecostalismo clássico enfatizava a santificação e os dons 14 . Convém, todavia, relembrar que as
religiões afro-brasileiras, rival primeiro do neopentecostalismo, também podem ser caracterizadas
como religiões de cura. A diferença advém do fato de que o pentecostalismo e as religiões afrobrasileiras têm, tal como menciona Reginaldo Prandi, "cada uma repertório próprio para a
interpretação das causas das doenças e sua solução. O que as contrasta muito com o catolicismo
ultramontano, especialmente pós-Vaticano II, é a alta densidade mágica das práticas de cura, com a
intervenção, nos ritos, de espíritos, divindades africanas e indígenas, do Espírito Santo e do diabo,
curando-se por meio da manipulação das forças divinas e demoníacas, do feitiço, do sacrifício, da
segregação e castigo físico, da imposição das mãos, da unção com os santos óleos, dos exorcismos,
da oração coletiva e individual"15 .
A Igreja Universal do Reino de Deus é paradigmática para a discussão aqui feita, uma vez
que ela, como diz Pierre Sanchis, "ao contrário do que indicaria a sua lógica institucional",
reencontra "os processos de intensa ritualização [leia-se efervescência e hibridação], de mediação
institucional e, se não dos sacramentos, pelos menos dos sacramentais múltiplos, feitos dos signos
quotidianos e naturais: não mais a imagem, que não passa de gesso idolátrico (cf. o caso do chute
na santa), mas o sal grosso, o óleo, a água, o manto vermelho ... E, mais ainda: "em certo sentido,
até o terreiro é reconstituído no interior do culto pentecostal, quando Exus e Pombas-giras são
triunfalmente exorcizados". A turbulência do neopentecostalismo, particularmente da Universal,
não pára por aí. Do ponto de vista da salvação, como já mencionado, ela também inova: "o caráter
transcendental da opção autônoma, responsável e modernamente constitutiva da pessoa e da
consciência", é mitigado, "pela importância reconhecida e coletivamente ritualizada do fator
demoníaco. ('Não é você; é o demônio que está em você')"16 .
Certamente um dos aspectos mais polêmicos do sucesso da Igreja Universal é um dos
elementos centrais de seu universo simbólico-axiológico: a teologia/doutrina da prosperidade, que
opera um uso absolutamente transgressor do dinheiro, o referente (universal) da modernidade. A
combinação - nada ortodoxa - de dinheiro, de bem-estar material e de felicidade terrena, tudo isso
misturado à entrega pessoal do fiel ao Senhor Jesus, à realização de exorcismos, de curas, de
"guerra santa", de uso intenso dos meios de comunicação, torna a Universal um caso sui generis no
13
MENDONÇA, Antonio G. "Pentecostalismo e as concepões históricas de sua classificação". SOUZA, Beatriz Muniz
et alli. Sociologia da religião no Brasil: revisitando metodologias, classificações e técnicas de pesquisa. 1998. São
Paulo, PUCSP/UMESP, p. 75, 79.
14
A cura divina, sem sombra de dúvidas, um dos grandes responsáveis pelo sucesso do neopentecostalismo, foi
introduzida no Brasil, em 1953, pelo movimento de tendas da Cruzada Nacional de Evangelização. Segundo
Mendonça, "este movimento de tendas foi quase tão espetacular quanto o impacto atual da Igreja Universal do Reino de
Deus e constitui-se na matriz e modelo das demais igrejas que surgiram dele e que hoje chamamos de autônomas, neopentecostais e de 'cura divina'". MENDONÇA. "Pentecostalismo e as concepões históricas de sua classificação". Op.
cit., p. 82.
15
PIERUCCI, Antônio Flávio e PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e
política. 1996. São Paulo, Hucitec/USP, p. 32.
16
SANCHIS. "As religiões dos brasileiros". Op. cit., p. 40.
5
campo religioso brasileiro contemporâneo, evidenciando uma modalidade de hibridação,
que combina a modernidade mais aguerrida com o mais puro encantamento do mundo17 .
Uma das polêmicas mais aguerridas promovidas pela Universal aconteceu em 1995, quando,
durante um programa de TV da Rede Record (de propriedade da Igreja) um bispo chutou uma
imagem de Nossa Senhora Aparecida (santa padroeira do Brasil) em pleno 12 de outubro, seu dia,
comemorado como feriado nacional. Chegou-se mesmo a falar da existência de uma "guerra santa"
no país, evidenciando o ressurgimento da "intolerânca" e do "conflito" no campo religioso
brasileiro. Chegou-se mesmo a diagnosticar uma profunda cisão no campo, que estaria dividido
entre os bons e os maus, os puros e os impuros, os genuínos e os falsificadores. Tal diagnóstico
parece corresponder, em uma certa doxa - que reúne paradoxalmente posições sensacionalistas das
mídias e posições alarmistas de um certo segmento intelectual - ao que Roberto Motta, com a
perspicácia que lhe é própria, chama de "bem pensar do intelectual", que, mesmo não tendo
consciência exata, executa o programa comteano da religião da humanidade, realizando uma
espécie de santa aliança com um certo número de religiões e, acrescento eu, declarando "guerra
santa" à outras18 . Essa ambiência de "guerra santa", atravessada por idéias judicativas acerca do
religioso e do seu lugar no mundo contemporâneo, não somente padece de uma atração fatal por
visões reducionistas e utilitaristas, em consonância com a razão iluminista, como também - et pour
cause - opera uma série de simplificações e de equívocos, o principal deles envolvendo a idéia de
conflito, reduzido à cisão e à violência, evocando assim as clássicas antinomias - integração e
ruptura, consenso e dissenso, ordem e desordem, progresso e atraso, razão e , irracionalismo, bom e
mau, normal e patológico, etc.
É óbvio que num quadro de religioso pluralizado, poder-se-ia dizer globalizado, no qual
abundam as ofertas de produtos e de serviços, a concorrência seja acirrada, e que, portanto, seja
acionada a velha e eficaz tática do denegrimento. Como observa Prandi, "a disputa pelas almas é
aguerrida, mas a guerra santa real já não pode acontecer: nenhuma religião responde por nenhuma
totalidade social", pois que ela (a religião) "não é mais para sempre, é só dura enquanto durar a
capacidade de troca que se pactua de ambos os lados, do serviço e do consumidor"19 . Para se
afirmar numa tal situação concorrencial, a Universal usa os mesmos códigos da Igreja Católica e/ou
dos afro-brasileiros, dando-lhes um conteúdo negativo, mas mantendo a mesma linguagem e, assim
fazendo, valorizando a força dos oponentes. Mas isso é só um aspecto - e menor - porque o mais
óbvio e simples da questão.
Se o "conflito religioso", a "intolerância religiosa" e mesmo a "guerra santa" podem ser
modos de relacionamento com a religião, é prudente que se pense mais calmamente sobre eles20 .
Assim é que, para explorar uma outra perspectiva do conflito religioso no Brasil contemporâneo,
sugiro a possibilidade de pensá-lo a partir da visão do conflito tal como formulada por Georg
Simmel, associada à idéia de pluralismo dos valores de Max Weber.
17
Embora faça uso da expressão corrente campo religioso, conceitualmente adoto o ponto de vista de Otávio Velho
segundo o qual a religiosidade não consiste apenas em um "campo", mas em uma "perspectiva", cujo ponto focal é a
idéia de "relação-presença", que não deve ser confundida com as relações sociais usuais já que é construída, como diz
Buber, "num âmbito restrito de atos fortemente ricos de presença". Tal modo de ver a religiosidade implica um radical
alargamento de horizonte teórico, pois como "no interior da relação as possibilidades são infinitas", não podem ser
reduzidas "a um único discurso ou maneira de pensar ou à reificação operada pelas ciências sociais na própria
linguagem". VELHO. Besta-fera. Op. cit., p. 61, 62, 64, 74.
18
Essa bela observação foi feita por Roberto Motta no Grupo de Trabalho Religião e Sociedade no XIX Encontro
Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, 1995. Ele desenvolve o mesmo tipo de argumento em um instigante artigo, no qual
caracteriza os intelectuais como "doutores da fé", uma vez que "ordenam e classificam os ritos e mitos seguindo um
logos derivado da ciência e da filosofia européias". MOTTA, Roberto. "Le métissage des dieux dans les religions afrobrésiliennes". 1993. Religiologiques. Le métissage des dieux. Montréal, Université du Québec, p. 30.
19
PIERUCCI e PRANDI. A realidade social das religiões no Brasil. Op. cit., p. 273.
20
Na via descontrutora de Jacques Derrida, que me inspira grandemente, não se trata da renúncia de conceitos e suas
substituição por outros, até mesmo porque eles fazem parte de nós e são indispensáveis para abalar a herança de que
fazem parte. Na operação desconstruturora, trata-se de "cercar os conceitos críticos por um discurso prudente e
minucioso, marcar as condições, o meio e os limites da eficácia de tais conceitos, designar rigorosamente a sua
pertencença à máquina que eles permitem desconstruir; e, simultaneamente, a brecha por onde se deixa entrever, ainda
inomeável, o brilho do além-clausura". DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 1973. São Paulo, Perspectiva, EDUSP,
p.16, 17.
6
III.
É certo que, como refere Pierre Birnbaum, "no próprio cerne das mais diversas filosofias
sociais, assim como nas teorias sociológicas de ontem e de hoje, o conceito de conflito ocupa quase
sempre um lugar essencial" e que, através dele, "a questão que se coloca é tanto a da natureza do
sistema social como a da própria sociologia"21 . Todavia, seu tratamento é bastante desigual e
divergente, com radicais implicações quer se trate da apreensão, da comprensão ou da explicação
do fato mesmo da vida social.
Até as elaborações de Simmel e de Weber, e mais particularmente ainda em suas vertentes
deterministas (Émile Durkheim e Karl Marx, para ficar na linhagem dos grandes ancestrais), o
conflito e seu simétrico oposto, a integração, eram tratados como universais abstratos a partir dos
quais era possível pensar o social e agir sobre ele. Tanto para Durkheim quanto para Marx, o
conflito correspondia ao "patológico", enquanto o "normal' correspondia à integração. Para
Durkheim, a erradicação do conflito aparecia associada à implementação funcional da divisão do
trabalho social, enquanto para Marx, somente a sociedade que tivesse abolido a propriedade privada
conseguiria eliminar as dissensões. Dito de outro modo: o conflito e a integração eram tratados
como instrumentos de uma causa, como um meio para atingir um fim, portanto, como teleologia.
Do ponto de vista do desenvolvimento de uma teoria do conflito, nem Durkheim nem Marx
contribuiram para uma elaboração convicente, uma vez que suas abordagens reducionistas,
revelam-se, como diz Birnbaum, incapazes, "devido a uma interpretacão demasiadamente rígida
das fontes do conflito, de apreender a sua extrema diversidade". Em ambos, e esse ponto é
fundamental para minha argumentação, "a existência do conflito baseia-se num determinismo
estrutural que pouco se preocupa com a intencionalidade dos atores: nas sociedades onde reina uma
certa forma de 'patologia' social, o conflito é como que inferido de uma distribuição disfuncional
dos papéis sociais": em Marx, "provocada propriedade privada dos meios de produção", em
Durkheim, "por sua transmissão hereditária ou ainda por um excesso de especialização22 . Em
síntese: em ambos o conflito é sempre remetido ao social já cristalizado e que independe do ator
social.
Simmel e Weber inauguram uma outra perspectiva do trato do conflito, pois associam-no a
uma teoria da ação, fundada em valores, que não podem se deduzidos simplesmente de qualquer
função desempenhada numa instituição, mas que remetem diretamente à intencionalidade do ator
social. Assim, combinando ação e intencionalidade, reenviam a apreensão e a compreensão do
conflito à interação social. Parafraseando Pierre Sanchis, diria que a fecundidade das perspectivas
simmelina e weberiana do conflito advém do fato de que, ambos, apreendem-no em toda a
espessura de sua tramas, uma vez que levam em conta que se a ação é intencional, tal
intencionalidade, como bem observa Pierre Sanchis, "não se situa em um quadro privado de sentido
e, em conseqüência, sem limites"23 . É por isso que Weber fala em politeísmo dos valores e em
politeísmo dos deuses e Simmel em sociação". Em ambos, o conflito deixa de ser visto como
"anomia", pois, sendo inerente (leia-se fundante e fundamental) à vida social, é, portanto, "normal",
isto é, como processo vital para o funcionamento mesmo da sociedade. Deixa, assim, de ser uma
estrutura - que corresponderia, tal como em Durkheim e em Marx, a uma certa etapa da evolução
supostamente disfuncional da humanidade - para tornar-se tanto um processo "positivo" da vida
social quanto um conceito analítico aplicável a todo e qualquer sistema social. Uma tal
aproximação não somente parece-me heuristicamente mais produtiva, como também vislumbra, sob
um outro ângulo, as profundas, porém sutis e nuançadas, modificações que se processam nas
formas de estabelecimento do laço social na atualidade e nas quais o religioso, e particularmente o
dito "conflito religioso", ocupa lugar de destaque.
Weber nos ensinou que o racionalismo "destronou o politeísmo em proveito do 'Único de
que temos necessidade'", tornando a religião "'uma rotina quotidiana'" e o mundo, desencantado. No
21
BIRNBAUM, Pierre. "Conflitos". BOUDON, Raymond (dir.) 1995. Tratado de Sociologia. 1995. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Ed., p. 247.
22
BIRNBAUM. "Conflitos". Op. cit., p. 253.
23
SANCHIS, Pierre. Arraial: la fête d'un peuple - les pèlerinages populaires au Portugal. 1977. Paris, École des
Hautes Études en Sciences Sociales, p. 21.
7
entanto, quando "confrontado com a realidade da vida interior e exterior", o racionalismo se vê
constrangido a realizar compromissos e acodomodações, de modo tal que "a multidão dos deuses
antigos sai de suas tombas, sob a forma de potências impessoais porque desencantadas, e se
esforçam novamente, retomando suas lutas eternas, para fazer nossas vidas regressarem a seus
poderes". Dito de outro modo, segundo Weber, "por tanto que a vida tenha em si mesma um sentido
e que se compreenda em si mesma, ela não conhece senão o eterno combate que os deuses travam
entre si ou, evitando a metáfora, ela não conhece senão a incompatibilidade dos pontos de vista
últimos, a impossibilidade de resolver os conflitos entre eles e, em conseqüência, a necessidade de
se decidir em favor de um ou de outro"24 . Vale dizer que os conflitos são irredutíveis e a questão de
fundo é a da escolha: a cada um, diz Weber, de acordo com suas "convicções profundas", cabe
"decidir, de seu próprio ponto de vista, quem é deus e quem é diabo". Em outros termos: trata-se da
recusa de dar uma significação intrínseca à realidade, que não adquire sentido senão em função de
avaliações subjetivas, pois que, como menciona Julien Freund, "a luta é a lei imanente do
politeísmo, diferentemente do monoteísmo que, mesmo dando lugar aos antagonismos, se esforça
para lhes transcender com seu universalismo"25 .
Para Simmel, "um grupo que fosse simplesmente centrípeto e harmonioso, uma pura e
simples 'reunião', não só não teria existência empírica, como também não apresentaria um
verdadeiro processo de vida", uma vez que, "para aceder a uma forma definida”, "a sociedade tem
necessidade de um certa relação quantitativa de harmonia e de dissonância, de associação e de
competição, de simpatia e de antipatia", "que se misturam intimamente", formando uma “unidade
orgânica" e "sui generis" de relação, na qual não se pode mais distinguir o que é de um e/ou de
outro desses elementos26 . É por isso que na pena simmeliana o conflito é dotado de positividade.
O conflito favorece a formação de associações e de organizações que concentram forças de
união visando à oposição com outros grupos também associados da mesma forma. Não é, portanto,
um dado residual da vida social, ao contrário, é parte integrante. Mais ainda, é uma forma pura de
sociação e constitui, juntamente com a determinação quantitativa dos grupos e com o processo de
subordinação-dominação, as condições formais para a existência da sociedade27 .
Em Simmel, o conflito é tão vital (no sentido de condição necessária) para à vida do grupo
(quer para sua constituição, quanto para sua manutenção e para sua mudança) quanto o consenso.
Como bem observa Freund: "Simmel inverte, em suma, nossos hábitos de pensamento: em geral,
estimamos que, para estruturar solidamente uma sociedade, é necessário excluir os conflitos ou ao
menos amortecê-los tanto quanto possível; ao contrário, na sua opinião, eles contribuem para a
unidade da vida social"28 . Não cabe como uma luva para o caso da santa chutada? Neste caso em
particular parece que esqueçemos de levar em consideração que, historicamente, a sociedade
brasileira tem uma relação transgressora com seus santos, em que maus tratos, relações
tempestuosas e ambíguas, enfim, conflituais, são moeda corrente.
24
WEBER, Max. Le savant et le politique. 1986. Paris, Plon, p. 85, 91.
FREUND, Julien. "Le polythéisme de Weber". 1985. Sociétés. Revue des Sciences Humaniens et Sociale, n. 4. Paris,
Dunod, p. 8. A ambivalência situada no coração mesmo da modernidade é finamente enunciada por Bauman, quando
ele diz que a modernidade coloca-nos diante do dilema dilacerante de nos defrontarmos com a problemática da
identidade, isto é, do mesmo, do fixo, do imutável, num mundo, tal como observado por Joyce, onde a questão mais
relevante é a de definir "quem é quem quando cada um é qualquer um outro", onde a instabilidade e o imprevisto, a
ausência de razões irresistíveis para preferir uma identidade mais do que outra, são os temas mais obstinados.
BAUMAN, Zygmund. "Simmel, ou l'éclosion de l'expérience postmoderne". 1992. Sociétés. Revue des Sciences
Humaines, n. 35. 1992. Paris, Dunod, p. 3.
26
SIMMEL, Georg. Le conflit. 1992. Saulxures, Editions Circé, p. 21, 22, 32.
27
Para Simmel, "a sociedade só é possível pela existência de formas de sociação, verdadeiro a priori lógico de sua
existência". Sociação - vergesllschaftung - é, para ele, "o processo permanente do vir-a-ser da vida social, processo
sempre in fieri, que está acontecendo sem que se possa dizer que já aconteceu". Significa dizer que "não há
propriamente sociedade feita, mas antes o fazer-se sociedade". O que faz a sociedade é a interação, a relação recíproca,
de modo que "sociedade é "o nome para vários indivíduos ligados pela interação". Tal como ele diz: "Estritamente
falando, nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia, nem as funções e resultados da
inteligência são sociais. São fatores de sociação apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados
em formas específicas de ser com e para um outro - formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação".
SIMMEL, Georg. "Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal". Georg Simmel: sociologia. 1983. São
Paulo, Ática, org. [da coletânea] Evaristo de Morais Filho, p. 22, 28, 31, 166 , grifos meus.
28
FREUND. "Preface". SIMMEL. Le conflit. Op. cit., p. 9.
25
8
Segundo Simmel, "em si mesmo, o conflito já é a resolução das tensões entre os
contrários; o fato que vise a paz não é senão uma expressão, entre outras, particularmente evidente,
do fato de que ele é uma síntese de elementos, um contra autrui que é preciso colocar com um para
autrui sob um só conceito superior". Vale dizer que o conflito combina duas formas de relação, a
"antitética" e a "convergente", que não são pura negatividade, contrastividade e indiferença, uma
vez que a síntese que o conflito opera vai na direção da "oposição comum a essas duas formas de
relação", pois que ele "designa o momento positivo que tece com seu caráter positivo de negação
uma unidade que não é somente conceitual, mas impossível de se desfazer, de fato"29 . Em uma
palavra: conflito é reciprocidade. Não é disso que se trata no exorcismos praticados pela Universal?
O antagonismo, a concorrência, a animosidade desempenham, para Simmel, "papel de
integração extremamente positivo", pois que "independentemente de seus resultados concretos",
determinam tanto a forma do grupo, quanto sua posição recíproca. Ou seja, numa relação conflitual,
que é uma relação de reciprocidade, não basta que a hostilidade tenha causas objetivas, ela precisa
ser acompanhada de "um sentimento" e de suas expressões. Em outros termos, a oposição é parte
integrante da relação e "é inextrincavelmente ligada às outras razões que a fazem existir, com
direitos completamente iguais", tal como, por exemplo, no sistema social indiano que, segundo
Simmel, não repousa unicamente sobre a hierarquia das castas, mas também diretamente sobre sua
repulsão mútua. A relação recíproca que é o conflito, selada por um sentimento, é também uma
relação de interdependência e, nesta medida, é produtora de "uma certa comunidade entre as duas
partes"30 . Não é perfeito para a dita "guerra" dos pentecostais contra os afro-brasileiros?
IV.
No caso empírico aqui considerado, a positividade do conflito expressa-se claramente em
duas esferas, a saber, uma mais geral, que diz respeito a idéia de "guerra", e outra, mais específica,
a prática do exorcismo.
Luiz Eduardo Soares, com todo o seu refinamento analítico, já disse o essencial sobre isso.
Segundo ele, no caso da dita "guerra" dos pentecostais contra os afro-brasileiros, trata-se da
existência de continuidade entre os "universos simbólicos-axiológicos" em confronto, "responsável,
inclusive, pela determinação de sua natureza sociológica", assim definida: "o conflito separa, com
radicalidade, para unir, estabelecer relações, construir pontes, fundar as bases de uma nova
experiência de sociabilidade, identificada por um renovador igualitarismo, associado a uma postura
cultural excludente e diferenciadora"31 . Essa identificação de ideários, que é também - et pour cause
- uma relação recíproca, evidencia, pelo menos assim sugiro, que se trata de uma relação sincrética.
Vale lembrar que, em sua dimensão etimológica, sin-cretismo refere-se à guerra, ao conflito, pois
significa a união dos cretenses, famosos brigões, dos quais dizia-se que “sempre dispostos a uma
briga entre si, se aliavam quando um inimigo externo aparecia”32 .
O exorcismo é momento paradigmático deste tipo de relação conflitual, pois, é o elo de
ligação mais potente entre os contendores. É, como diz Soares, “o momento crucial do confronto”,
a “exibição de sua face verdadeiramente dramática”, pois enquanto “culminância da luta contra o
‘povo do santo’ [...] atualiza uma integração orgânica com o antagonista, orquestrando uma espécie
de harmonia contrapontística”33 . Vale dizer que, e aqui vejo o ponto-chave da questão, a veracidade
do universo de crenças do imaginário afro-brasileiro não é posta em dúvida, justamente ao
contrário, é admitida e, complementaria eu, adotada e temida. Sabemos todos que a eficácia do
29
SIMMEl. Le conflit. Op. cit., p. 20.
SIMMEl. Le conflit. Op. cit., p. 24, 25, 26, 51.
31
SOARES, Luiz Eduardo. "A guerra dos pentecostais contra o afro-brasileiro: dimensões democráticas do conflito
religioso no Brasil". 1993. Comunicações do ISER, n. 44. Rio de Janeiro, ISER, p. 44.
32
O sincretismo, de acordo com Canevacci, enquanto “determinação de unir grupos conflituais”, é um conceito
defensivo que migra da política para a religião CANEVACCI. Sincretismos. Op. cit., p. 15. O conflito tal como visto
aqui liga-se diretamente à idéia de sincretismo, cujo lugar na religiosidade brasileira - poder-se-ia também dizer na
cultura - é historicamente fundante. Esse nosso velho conhecido, que hoje recebe várias denominações - pastiche,
patchwork , mix, marronização, mestiçagem, hibridação, mistura, mulatismo, aculturação, polifonia, cacofonia,
pluralismo, politeísmo dos valores, mutação, nomadismo , trânsito, errância, indigenização, crioulização, tribalismo, etc.
- recobre os amplos movimentos/processos de brassagem cultural que estão em curso no mundo contemporâneo.
33
SOARES. "A guerra dos pentecostais contra o afro-brasileiro". Op. cit., p. 44.
30
9
exorcismo é tanto maior quanto mais forte for o espírito a ser expulso. A eficácia do exorcismo
pressupõe a crença em pombas-giras, exus, caboclos, etc. Sabemos todos também que o temor é
uma das principais atitudes em relação ao sagrado: quanto mais temido, mais sagrado; quanto mais
sagrado, mais poderoso. Não é à toa, portanto, como aponta Soares, que “o fervor fideísta do
carisma pentecostal depend[a] do ardor guerreiro com que se combate o grande outro, o inimigo,
todavia parceiro de classe". Mas, como se trata de uma relação recíproca - o "um contra autrui" de
Simmel -, não é, do mesmo modo, à toa, que o "grande outro" do carisma pentesotal,
historicamente atravessado por "guerras" contra sua legitimidade, se alimente igualmente da
"guerra". Em uma palavra: a lógica da sobrevivência, tanto para um como para o outro corresponde,
necessária e imperiosamente, à "estratégia da mútua referência”34 . Como bem lembra Pierre
Sanchis, discutindo o caráter hemêutico-político do conflito, "para se legitimar, e pelo fato mesmo
de ser objeto de conflitos, a autoridade deve abrir-se (num movimento análogo ao da
intencionalidade husseriana) ao seu objetivo". Todavia, trata-se de um objetivo não total e
completamente escolhido, pos que dado pela situação mesma. Dito de utro modo: letimidade,
conflito e escolha reenviam "imancavelmente às duas esferas da produção material e simbólica: a
economia e a cultura, seja, em um caso como no outro, aos valores"35 . No ritual do exorcismo, - que
marca a conversão para o pentecostalismo - como refere Prandi, “os ex-filiados à umbanda e ao
candomblé podem encontrar o reconhecimento de uma identidade (no transe) com a qual estavam
fortemente identificados e que não podem reconhecer como não-verdadeira, ainda que agora se
disponham a abandoná-la”36 .
Assim é que se falarmos em conflito, em campo religioso em "conflito" ou em "guerra
santa", antes de mais nada, é preciso qualificar de que conflito se trata. E, na perspectiva aqui
adotada, o conflito, longe de ser disruptivo, anômico, gerador de violência e de intolerância, ou
qualquer outra coisa, é constituidor de uma rede de interações e de interdependências e, portanto,
gerador de normas e/ou pautas comuns às partes em enfrentamento, enfim, como relação recíproca
que, no plano mais estritamente religioso, engenda as relações-presença de que fala Otávio Velho.
Olhando o dito "conflito religioso" na sociedade brasileira contemporânea sugiro, que se
pense sobre a plausibilidade de o "dever ser" se ver - bon gré, malgré - impelido a co-existir com
outras formas de sociação, entre as quais destaco a do "estar junto", que não segue uma lógica
identitária e dialética, mas uma dinâmica de hibridação. Vale dizer que nenhuma síntese final,
totalizante, homogeneizante é buscada, uma vez que a vida social é experienciada como sendo o
domínio da pluralidade irredutível.
V.
Antes de terminar, quero deixar claro de que não estou fazendo profissão de fé de nenhum
tipo de otimismo triunfalista, nem de nihilismo simplificado, uma vez que admito que, tal como
menciona Otávio Velho, "'nós' não temos mais como 'nos' garantir o privilégio de sermos a
sociedade (ou o ponto de vista) que é capaz de refletir sobre as outras sociedades e sobre si mesma.
Isso talvez tenha sido uma ilusão que se pôde carregar durante algum tempo, mas que já não é mais
possível", uma vez que "uma das características do atual processo de globalização é justamente a
perda desse monopólio da tendência genérica à reflexão e à auto-reflexão de uma sociedade (ou um
ponto de vista) ou de seus representantes privilegiados, como por exemplo os antropólogos".
Precisamos aceitar (continua a dizer meu caro interlocutor) a existência de "impurezas", "de
misturas e combinações absolutamente incontroláveis a priori", pois que nas condições da
globalização "combinam-se tendências paradoxais, que se por um lado provocam o rompimento das
barreiras e uma homogeneização cultural, por outro acentuam diferenças e heterogeneidades a que
não são estranhos nem o renascido interesse pelo 'multiculturalismo', nem [...] a preocupação com
os conflitos culturais e étnicos"37 .
Diante da crescente complexificação do campo religioso na atualidade não me parece mais
heuristicamente produtivo e plausível que ainda nos fixemos em visões estreitas, acanhadas e, mais
34
SOARES. "A guerra dos pentecostais contra o afro-brasileiro". Op. cit., p. 49.
SANCHIS. Arraial Op.cit., p. 21.
36
PIERUCCI e PRANDI. A realidade social das religiões no Brasil. Op. cit., p. 32.
37
VELHO. Besta-fera. Op. cit., p. 223, 224.
35
10
ainda, em dissintonia com o conflito e com o pluralismo. Vale mais, e aqui faço minhas as
palavras de George Marcus, ter uma “visão analítica nômade que monitore constantemente sua
localização e sua perspectiva parcial em relação às outras”38 . E, sobretudo, em relação à religião, é
preciso que deixemos de lado o esquema referencialista da presença e de sua redução objetificante,
para dar destaque à experiência em sua dimensões, ao mesmo tempo, sensitivas e performáticas.
Rita Segato, em um desconcertante artigo, já nos chamou atenção disso, particularmente sobre a
operação traidora da interpretação antropológica (racionalista e relativizadora) que pensa poder
substitutir - usando a lógica da verossimilhança e da factualidade - o significado pelo ato mesmo de
significar, subssumindo, assim, o imaginativo ao cognitivo, o sensível ao intelectivo, a experiência
à compreensão, reduzindo também, e em decorrência, a polissemia religiosa ao "princípio de
caridade" ("todas as crenças são corretas") e ao "princípio de humanidade" ("minimização da
ininteligibilidade")39 . Nesta mesma linha, Vital Pasquarelli Júnior nos mostra o desconforto e a
conseqüente redução objetificante que opera a antropologia: “a interpretação tem reproduzido sobre
a crença o nosso imperativo cultural (racional-moderno) da coerência [e do conseqüente imperativo
da ordem, que exclui o conflito ou o vê como anômico, acrescento eu], que implica conceder toda
ênfase ao conteúdo, porque este é supostamente passível de controle pela intelecção - essa nossa
obsessão espiritual, característica constitutiva do self ocidental. Dispomos da ação anímica
traduzindo-a como um conteúdo coerente para a intelecção, em detrimento da forma/natureza dessa
dimensão da experiência”40 . Um belo exemplo disso nos é dado pelo depoimento de um diácono da
Assembléia de Deus recolhido por Regina Novaes: “Dizem que o crente é chato porque só fala de
religião. Mas as pessoas aqui só me perguntam sobre isso”41 .
Antes de continuarmos fazendo a economia das crenças e/ou reduzindo-as aos nossos
programas de verdade, isto é, aos nossos modos de pensamento habituais, incontestados e
desapercebidos, sobre os quais assentamos as práticas que aceitamos, como fazem os que
desqualificam o conflito religioso no Brasil, parece-me necessário re-lembrar o convite de Marcel
Mauss para que vejamos as sociedades em estado dinâmico, estudando-as, não “como se estivessem
fixas, em um estado estático ou antes cadavérico” e muito menos ainda decompondo-as e
dissecando-as “em regras de direito, em mitos, em valores e em preço”. É preciso considerar “o
essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que as sociedades e os
homens tomam consciência sentimental deles mesmos e de sua situação face a outrem”. Assim,
continua ele, “chega-se a ver as próprias coisas sociais no concreto, como elas são. Nas sociedades,
mais do que idéias ou regras, apreendem-se homens, grupos e seus comportamentos. Vemo-los
moverem-se assim como, em mecânica, vemos massas e sistemas, ou como, no mar, vemos pedras
e anêmonas. Percebemos multidões de homens, de forças móveis, flutuando em seu meio e em seus
sentimentos”42 .
Sugiro então, como questão de trabalho que o que interessa levar em consideração na
compreensão da religiosidade na atualidade, particularemente quando se trata de "conflito e/ou
intolerância" e de pluralismo é, como chama atenção Mike Featherstone, o "grau de comunalidade
dos sentimentos gerados", o que significa dizer que pouco importa, ou importa muito pouco,
determo-nos no conteúdo (isto é, na "posse de um conjunto integrado de crenças e valores"), mas
no plano da forma, isto é, nas "possibilidades gerativas formais subjacentes de um conjunto
reconhecível de variações"43 . Como diz Georges Bataille, o sagrado "não é senão um momento
privilegiado de unidade comunal, momento de comunicação convulsiva com o que ordinariamente
38
MARCUS, Ge orge. “O que vem (logo) depois do pós: o caso da etnografia". 1994. Revista de Antropologia, v. 37.
São Paulo, USP, p. 28.
39
SEGATO, Rita Laura. " Um paradoxo do relativismo: discurso racional da antropologia frente ao sagrado". 1992.
Religião e Sociedade, n. 16/1-2. Rio de Janeiro, ISER, p. 117, 124, 125.
40
PASQUARELLI JUNIOR, Vital. “Diálogo e pensamento por imagem - etnografia e iniciação em Las enseñanzas de
D. Juan de Carlos Castañeda”. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29. São Paulo, ANPOCS, p. 107, 108.
41
NOVAES, Regina.“Religião e política: sincretismos entre alunos de Ciências Sociais”. 1994. Comunicações do
ISER, n. 45. Rio de JANEIRO, ISER, p. 72.
42
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dávida: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. 1974. Sociologia e
Antropologia, v. II. São Paulo, EPU, p. 180, 181.
43
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. 1985. São Paulo, Studio Nobel, p. 183, 196.
11
é abafado"44 . Dito de outro modo: a comunalidade, a unidade comunal que está em
foco não é de tipo integrador, totalizador e homogeneizador, ou seja, institucional, mas emocional,
porosa, polivalente e constituída por uma plêiade de formas nebulosas que, acima de tudo e antes de
mais nada, possibilitam o reconhecimento não de igualdades, mas de diferenças (consideradas
legítimas e válidas) e baseadas em afinidades eletivas. Nesta via de aproximação, e tal como propõe
Soares, a "eventual novidade" não está nas religiões, "mas no modo de relacionar-se com elas"45 . E
acrescento eu, relacionar-se com a religião nos quadros de uma sociedade globalizada, o que
implica, entre outras coisas, que se coloque em questão se tomamos a globalização, tal como já
fazemos com a religião, como objeto ou perspectiva, pois que, como diz Otávio Velho, "a adoção
da globalização como perspectiva - e não apenas como 'objeto' - parece alterar significativamente a
maneira pela qual são abordadas as temáticas usuais das ciências sociais", uma vez que "trata-se de
nos interrogarmos, tanto de um ponto de vista substantivo quanto epistemológico, a partir dos
processos de globalização, os valores sociais e suas articulações", vale dizer, portanto, que o que
"está em jogo não é tanto a questão de quais são, em termos substantivos, os valores culturais, mas
de qual é a nossa relação com eles"46 .
O conflito religoso, numa sociedade globalizada, não seria indicativo de uma nova matriz de
plausibilidade e de um novo modo de experienciar a alteridade e o estar no mundo?
VI
Pequena nota pós-discussão.
Após a tão enriquecedora discussão que seguiu a apresentação deste texto, vi-me
constrangida a redigir essa pequena nota para, antes de mais nada e acima de tudo, me desdizer,
mas agora num outro sentido, e registar a pertinência da dedicatória às Leila Amaral. Leila lançoume questões fundamentais, que me fizeram pensar, pelas quais lhe sou profundamente grata, mais
um vez. Aqui quero apenas enfatizar um ponto, dos vários, para os quais ela chamou à devida
atenção. Mostrou-me ela o risco que se poderia correr ao enfatizar a positividade do conflito, na
medida em que isso poderia remeter o conflito a uma "ontologia do ser". Leila, como sempre tem
toda a razão. Mas tentando ser um pouco (quem sabe?) mais clara do que fui ao longo do texto,
quero enfatizar que nem de longe é minha intenção fazer do conflito uma ontologia, uma vez que
tenho claro - provavelmente seja a único ponto em que tenha alguma clareza - que no trato do
conflito deve-se separar analiticamente os dois patares/instâncias nas quais ele se a-presenta, a
saber: como problema social e como questão socio-lógica. Ninguém duvida que em razão da
violência, dos antagonismos e das intolerâncias que ele pode e, em grande medida, deve engendrar,
o conflito seja um problema social que requer intervenção, de políticas públicas, por exemplo.
Todavia, essa parece-me ser uma instância de algo maior e mais profundo. Certamente é a mais
visível, a que mais nos afeta direta e duramente no plano do cotidiano. É o conflito como
acontecimento, como fato social anômico, como querem, entre outros, Durkheim e todos os
funcionalistas. Mas também não se pode negar que se ultrapassarmos essa primeira instância, esse
primeiro palier en profondeur, e se levarmos mais longe o olhar, o conflito deixa de ser um
problema de intervenção política para tornar-se uma questão socio-lógica, a partir da qual pode-se
apreender mecanismos e processos da vida social mais fundamentais e fundantes da vida em
sociedade. É o conflito como forma (como quer Simmel) ou como estutura (à la Lévi-Strauss, por
exemplo). Talvez tenhamos que refletir com mais acuidade acerca do agradecimento que Kant fazia
à natureza "pela insociabilidade, pela vaidade de competir com inveja, pela cobiça, nunca satisfeita,
de ter ou mesmo de assenhorar-se". De acordo com ele, a "insociável sociabilidade" dos humanos,
é a única via por meio da qual podemos, enquanto humanos, escapar ao "idílio arcaico", no qual "a
concórdia perfeita, a moderação e o amor recíproco, todos os talentos permanecem eternamente
ocultos em seus germes". E se escapa ao idílio arcaico - esse nosso confortável e reconfortante
jardim do sono feliz - diz Kant, pela vaidade da competição, pela cobiça, pelo assenhoramento. Em
uma palavra: nossa insociável sociabilidade nos lança para fora de nosso ensimesmamento ao nos
44
BATAILLE, Georges. "Le sacré". 1973. Oeuvres complètes, v. I. Paris, Gallimard, p. 562.
SOARES, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Ensaios de Antropologia Interpretativa. 1994. Rio de Janeiro,
Relume-Dumará, p. 206.
46
VELHO. Besta-fera. Op. cit., p. 221, 222, 225.
45
12
remeter (ao mesmo tempo e de só vez, para falar maussiamamente) à diversidade, ao conflito, ao
antagonismo47 . Outrossim, e repito aqui o que já disse em outro lugar, creio que já é passado o
tempo de uma certa doxa intelectual ingênua, para a qual a sociedade era um todo organizado, de
modo único, homogêneo e coerente. Como observa Jean Duvignaud, "a idéia segundo a qual o
objetivo das todas as sociedades humanas é o trabalho, e que a função principal das coletividades é
a produção, talvez não seja mais do que uma crença, ao mesmo título que a crença melanésia que
admite, por exemplo, que a morte não existe...". Ou seja, temos dificuldade de admitir que a vida
coletiva seja tecida mais de imprevisível do que de inelutável48 . É neste sentido que para
Duvignaud, com o que concordo em gênere, número e grau, a consideração positiva da anomia, e
acrescento do conflito, oportuniza fazer emergir "a discontinuidade parcial dos fatos", uma vez que
"a conduta 'aberrante' ou marginal em toda a amplitude de sua objetividade parcial" revela condutas
ou atitudes "inovadoras, mas virtuais", das quais é, enquanto fato desviante, o símbolo (pois que) o
campo fenomenológico" que a conduta aberrante ou marginal descobre "não é ainda ou não será,
talvez, jamais experimentado". Vale dizer, portanto, que o fato anômico é em potencialidade, "a
matriz de evidências existenciais ainda não manifestas e que, enquanto tais, constituem, de uma
maneira impensada por seu suporte momentâneo, o elemento criador eventual de relações sociais
ou inter-humanas ainda desconhecidas, a parte incontrolada [Bataille diria parte maudita] da
experiência coletiva –sem a qual uma sociedade não seria senão acumulação morta de fatos
positivos que excluem a ação humana". Dito de outro modo:"trata-se de compreender, violentando
nossos hábitos comuns dominados pelo sentido histórico [leia-se a inexorabilidade do devir] como
os grupos humanos secretam a inovação não diretamente, mas depois de terem feito sua
experimentação, freqüentemente aberrante, através de certos casos particulares, dos fatos
privilegiados". Os germes inovadores experimentados em condutas ou atitudes aberrantes, violentas
diriámos usando o jorgão da doxa corrente, podem ou não vir a ser "reintegrados na trama da
experiência coletiva e das relações sociais estabelecidas", todavia, o momento de ruptura
permanece fundamental, pois "permite dar conta da inovação antes que ela seja cristalizada ou
congelada"49 . Fica, então, a questão de Bastide acerca da natureza luciferiana de uma "sociologia
da imaginação criadora", que chamaria a uma "sociologia do pecado"50 .
Referências bibliográficas
BATAILLE, Georges. "Le sacré". 1973. Oeuvres complètes, v. I. Paris, Gallimard.
BAUMAN, Zygmund. "Simmel, ou l'éclosion de l'expérience postmoderne". 1992. Sociétés. Revue
des Sciences Humaines, n. 35. 1992. Paris, Dunod.
BAUMAN, Zymunt. O mal-estar da pós-modernidade. 1998. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. "A sedução do sagrado". 1992. Religião e sociedade, n. 16/12. Rio de Janeiro, ISER.
BIRNBAUM, Pierre. "Conflitos". BOUDON, Raymond (dir.) 1995. Tratado de Sociologia. 1995.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridizações culturais. 1996. São
Paulo, Studio Nobel: Instituto Cultural Italo-brasileiro-Istituto Italiano di cultura.
COELHO DOS SANTOS, Francisco. "Postmodernité: un mode plutôt qu'une mode". 1990. Paris,
Texto policopiado
DAHRENDORF, Ralf et GARTONASH, Timoty. "A Europa e seus descontentes". Folha de São
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Denoël.
DUVIGNAUD, Jean. Fêtes et civilisations. 1984. Paris, Scarabée & Compagnie .
47
Apud. DAHRENDORF, Ralf et GARTONASH, Timoty. "A Europa e seus descontentes". Folha de São Paulo,
Caderno Mais, 13 de julho de 2003, p. 12.
48
DUVIGNAUD, Jean. Fêtes et civilisations. 1984. Paris, Scarabée & Compagnie , p. 133, 141.
49
DUVIGNAUD, Jean (org.). "Anomie". 1972. La sociologie: guide alphabétique. Paris, Editions Denoël, p. 24, 25,26.
50
BASTIDE, Roger. Apud. SANCHIS. Arraial Op.cit., p. 394.
13
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. 1985. São Paulo, Studio
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Conflito religioso e politeísmo dos valores em tempos