Eleições nos EUA: A Metamorfose dos Valores Morais
Nikki Moore
Massachusetts Institute of Technology (MIT), USA
Paulo Ferreira
Professor, University of Texas at Austin, USA
Professor Visitante, Massachusetts Institute of Technology, USA
Se acreditarmos no inquérito à saída das urnas durante as recentes eleições
americanas, a questão dos “valores morais” foi considerada, por 22% dos eleitores, como
a temática prioritária na escolha do candidato a Presidente. Embora esta questão dos
“valores morais” tenha sido reconhecida por comentadores da esquerda e da direita como
um tema dormente nestas eleições, a reeleição de G.W. Bush pelos fíeis e
fundamentalistas faz soar, sem dúvida, o alarme. Serão estes votos sobre fé e
fundamentalismo? Ou serão simplesmente um leão vestido de ovelha: a vontade pelo
poder, disfarçado sob a escolha dos “valores morais”?
Esta metamorfose entre o poder e os “valores morais”, a que assistimos na campanha
de reeleição de G.W. Bush, nao é, no entanto, recente. De facto, nasceu há mais de dois
mil anos. As tradições cristãs sabem a história de cor. Há muito tempo, numa Terra
distante, existiu um homem chamado Jesus. A vinda deste homem tinha já sido
antecipada nas escritas do Judeu Torah: Jesus seria o Rei, o salvador do Povo de Deus – o
Cristo. Contudo, chegou-se rapidamente á conclusão que ele não seria o Leão que a fé
previa. Jesus nunca se mostrou interessado pela ascenção ao poder político, nem sequer
conseguiu expulsar os Romanos para longe da Terra prometida. Enquanto que a
população local não sabia o que pensar de Jesus, as autoridades religiosas de então
observavam em irritação a formação de pequenos grupos seguidores de Jesus, e ouviam
em horror os seus ensinamentos que proclamavam a história da humanidade numa
perspectiva de amor, humildade e perdão. Em suma, Jesus desafiava as leis e as estruturas
que os poderosos tinham estabelecido em nome do seu Deus. Finalmente, estes líderes
religiosos fecharam o negócio com um dos seguidores de Jesus – e já sabem o resto da
história: os poderosos crucificaram Jesus, enquanto que o público aplaudia em nome de
Deus, em nome da vitória moral, em nome dos “valores morais”.
Estranhamente, esta eleição nos EUA faz emergir de novo esta antiga história, de uma
forma surpreendente. Sem querer estabelecer John Kerry como o cordeiro sacrificado, é
evidente que, uma vez mais, os poderosos usaram a retórica da moralidade e a sua
autoridade religiosa para influenciar no público sentimentos de verdade e certeza, e
confissões de fé em favor dos poderosos.
Vejamos então quais foram as questões morais em que os EUA votaram a semana
passada? Aborto, sem dúvida. O desenvolvimento de células embrionárias, também. A
inclusão, no curriculum escolar, de argumentos que combatam a teoria de evolução, pois
claro. A abstinência sexual antes do casamento, obviamente. Com a convicção dos
eleitores e o suporte de líderes religiosos, os fíeis americanos selaram a lista de pecados
nos boletins de votos, antes que criassem raízes. Apesar destas questões serem
controversas, não existirá uma outra lista de prioridades morais? 51% dos EUA disseram
NÃO na recente votação.
Onde, por exemplo, se viu a regra de ouro ser aplicada na ausência de participação
dos EUA no Tratado de Kyoto ou no Tribunal Internacional? Ou na questão de confiança,
o que se pode concluir sobre os falsos argumentos relativos à existência de armas de
destruição maciça? Ou na ocupação do Iraque para substituir o regime? E será que temos
que mencionar os episodios de Abu Ghraib para levantar suspeitas sobre os “valores
morais”? Não, claro que não! Ainda assim, o que é único nesta eleição, o que é
transcendente, o que está a agitar analistas políticos e eleitores, é o facto desta última lista
de prioridades morais, juntamente com a crise no sistema público de saúde e o limitado
acesso a medicamentos por parte da população da terceira idade, não ter sido capaz de
captar a atenção junto do eleitorado. Mas porque não? Claramente, são questões morais
válidas para serem debatidas e discutidas. Mas haverá dinheiro a subsidiar estas
questões? Existirão lobbies fortes em Capitol Hill capazes de persuadir o corpo político?
E finalmente, existirá “poder” em abraçar uma destas questões? Esta é, no fundo, a
verdadeira questão moral que a administração de G.W. Bush parece estar a perguntar.
Portanto, apesar do que se tem dito e escrito sobre os valores conservadores e liberais,
os resultados da recente eleição reflectem a penetração do poder, não a escolha dos
“valores morais”, e provam que, uma vez mais, os fíeis foram ludibriados.
É facil perguntar agora o que teria acontecido se John Kerry tivesse centrado o seu
discurso na fé. Será que teria demonstrado ser uma opção melhor em termos de “valores
morais”? Nunca saberemos. Assim, por agora, amanhã e nos próximos quatro anos,
podemos conversar e sonhar sobre “o que poderia ter sido”. Ou, em alternativa, podemos
levantar uma questão interessante, e talvez, mais pertinente: Serão a moralidade e o poder
sinónimos na política americana? É este o espectro onde os EUA se situa – numa época
onde a mão do poder é também a mão da moral infalível? Nietzche teria dito que sim.
Karl Rove, o dedicado estrategista de G.W. Bush, parece concordar. Machievelli também
não disputaria a evidência. Mas temos dúvidas quanto à resposta do Jesus de G.W. Bush.
O que é preocupante, uma vez mais, é vermos a retórica religiosa ser usada para
capitalizar poder político neste período de pós-modernismo onde grandes facções da
sociedade andam erraticamente à procura de significado. Afinal de contas, será que até o
próprio G.W. Bush anda a ser ludibriado?
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