UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES – UCAM
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE – IAVM
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO PÚBLICA
POR UM NOVO PARADIGMA ÉTICO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PÚBLICOS:
o enfoque na responsabilidade dos indivíduos e na dignidade do outro
ALUNO: FABIANO NEVES HOELZ
PROF.: ORIENTADOR Dr MÁRIO LUIZ
RIO DE JANEIRO
2014
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES – UCAM
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE – IAVM
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO PÚBLICA
POR UM NOVO PARADIGMA ÉTICO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PÚBLICOS:
o enfoque na responsabilidade dos indivíduos e na dignidade do outro
ALUNO: FABIANO NEVES HOELZ
Monografia apresentada ao Instituto A Vez do Mestre
como requisito parcial para a obtenção do título de
especialista em Gestão Pública
RIO DE JANEIRO
2014
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RESUMO
Este trabalho pretende apresentar um novo paradigma ético possível na prestação de
serviços públicos que tenha como principais valores norteadores a responsabilidade e a
dignidade do usuário e dos servidores públicos. Apresentaremos uma investigação de
caráter hermenêutico evidenciando o que é característico à prestação dos serviços
públicos no Brasil, como foram constituídas as relações entre servidores e usuários no
país e como elas refletem condutas e comportamentos observados na nossa sociedade. A
abordagem ética que apresentaremos terá por finalidade trazer a tona o que é
constitutivo nas relações humanas e desvelar o que está em jogo nessas relações a fim
de que um novo paradigma ético na prestação dos serviços públicos seja instaurado.
Evidenciaremos a necessidade dessa nova abordagem para os problemas que se
apresentam em nosso cotidiano, colocando em discussão e revisão o conjunto normativo
e as práticas que fundamentam as relações estabelecidas entre as instituições públicas,
os seus representantes e os usuários de seus serviços. Nosso intuito é que como reflexo
da instauração desse paradigma possamos ter serviços públicos de qualidade e
tratamento respeitoso de parte a parte.
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METODOLOGIA
A metodologia que norteou a nossa análise é caracterizada pela abordagem
hermenêutica dos fenômenos que nos propusemos abordar. Ela é constituída a saber por
três momentos: a reconstrução, a destruição e a construção. Antes do primeiro
momento, apresentamos os conceitos fundamentais envolvidos em nosso estudo e
recuperamos um breve histórico do serviço público no Brasil. Na reconstrução
buscamos recuperar os elementos estruturantes que contribuem para a construção de
sentido e para a adoção de comportamentos pelos indivíduos em nossa sociedade. No
momento seguinte – o da destruição – esses elementos foram colocados em jogo e
passamos a questionar se eles seriam suficientes e adequados para enfrentar os
problemas na forma que eles se apresentam hoje. E, por fim na construção,
introduzimos conceitos importantes para a proposta que apresentamos e, em seguida,
analisamos alguns dos problemas que observamos à luz dessa proposta.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
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CAPITULO I – CONCEITO E HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO
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1.1. SERVIÇO PÚBLICO
8
1.2. AGENTE PÚBLICO
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1.3. HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL
CAPITULO II – RECONSTRUÇÃO
10
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2.1. SOCIEDADE
15
2.2. SERVIÇO PÚBLICO
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CAPITULO III – DESTRUIÇÃO
23
CAPITULO IV – CONSTRUÇÃO
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4.1. CUIDADO
28
4.2. ÉTICA DO CUIDADO
34
4.3. ÉTICA DO CUIDADO, SOCIEDADE E ESTADO
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4.4. ÉTICA DO CUIDADO E SERVIÇO PÚBLICO
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CONCLUSÃO
46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
48
REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS
50
6
INTRODUÇÃO
Nossa proposta nesse trabalho é a de apresentar a necessidade do
estabelecimento de um novo paradigma ético para a relação entre os servidores de
instituições públicas e os usuários dos serviços públicos. As relações entre essas
instâncias encontram-se severamente desgastadas a ponto de se colocar muitas vezes em
xeque a dignidade das pessoas que prestam e das que fazem uso desses serviços.
É próprio de um regime democrático que as políticas públicas reflitam os
anseios da sociedade e os serviços públicos sejam prestados em conformidade com o
que a população espera deles. Portanto, os canais de comunicação entre o Estado e a
sociedade devem ser variados e bilaterais. O Estado deve ser capaz de mobilizar a
sociedade para que sejam realizados os esforços populares necessários para a
implementação de algumas políticas públicas, enquanto a sociedade também deve ser
capaz de manifestar o que é de seu interesse e exigir do Estado as ações necessárias para
a realização de seus anseios. O interesse público e o bem-estar da população devem
pautar essa relação entre Estado e sociedade.
Hoje verificamos um descolamento entre o que é de interesse público e o que é
de interesse privado. Ambas as instâncias que regem esses interesses operam de maneira
autônoma, aumentando as tensões características dessa relação. A cooperação entre
essas instâncias e o entrelaçamento desses interesses devem ser promovidos. Em virtude
desse isolamento mútuo, o relativismo ganha terreno como corrente de pensamento que
fundamenta a conduta em cada uma dessas instâncias.
Ao longo do tempo ocorreu um obscurecimento da figura do outro nas relações
estabelecidas em nossa sociedade, a ponto de que comportamentos violentos, ou seja,
que violam a dignidade humana, sejam absorvidos na lida diária entre as pessoas e
assumidos como normais por grande parte da população. São comportamentos com os
quais todos passamos a conviver, queiramos ou não, e que contaminam e fazem parte do
horizonte moral a partir do qual as pessoas se movimentam e se orientam, de onde
apreendem quais são as condutas aceitáveis pelo corpo social. Urge ser realizado um
esforço para que essa situação de proporções calamitosas seja investigada e para que
possamos analisar possibilidades para o estabelecimento de relações que se voltem para
o seu caráter eminentemente humano.
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Na sociedade de consumo em que vivemos o artefato ganhou vida própria. Ele
se materializa na rede referencial de sua utilidade, se autonomizou. Na lida cotidiana
com o artefato não percebemos qualquer contexto histórico ou referencial humano na
sua constituição. Por isso ele pode ser facilmente descartado. A sociedade do efêmero e
da urgência não enxerga o artefato para além de sua utilização imediata. Da mesma
maneira, as relações entre pessoas e objetos e as relações interpessoais tornaram-se
rápidas e instrumentais. O outro é alguém que pode ter, em algum momento, uma
serventia. A sua história de vida, os seus desejos, os seus direitos são desprezados. O
que importa é se alguém se mostra útil. O outro é visto segundo a rede referencial de sua
utilidade, assim como ocorre com o artefato.
Apesar de todas essas questões, introduzidas de maneira bastante sintética,
entendemos que somente uma mudança de perspectiva, que parta do indivíduo, pode
permitir o estabelecimento de novas relações que irão ecoar na sociedade, uma vez que
a relação é sempre do indivíduo com o outro. É possível estabelecer uma relação
responsável com o outro. Esse é o nosso principal intento nesse trabalho, o de
apresentar outra maneira de estabelecer essas relações, de modo a refletir num convívio
em sociedade mais harmônico, no fortalecimento e na reforma das instituições e na
prestação de serviços públicos de qualidade.
Lançaremos mão de conceitos filosóficos basilares que nos permitirão apresentar
uma abordagem ética centrada na responsabilidade dos indivíduos e no respeito à
dignidade do outro. A ética do cuidado - nossa proposta central - busca resgatar a coexistência inexorável entre o indivíduo e o seu par - o outro - e a sua interdependência
constitutiva.
Nosso trabalho busca trazer no seu primeiro capítulo o que é característico à
prestação dos serviços públicos no Brasil e um breve histórico contemplando as
transformações pelas quais esses serviços passaram. No capítulo seguinte, envidamos
esforços para identificar condutas e comportamentos dos indivíduos em nossa sociedade
e a sua repercussão na prestação dos serviços públicos. No penúltimo capítulo passamos
a colocar em questão os fundamentos que sustentam o horizonte moral a partir do qual
os indivíduos se movimentam, passando a problematiza-lo segundo a sua aparente
estabilidade. E por fim, no último capítulo de nosso percurso, apresentaremos uma
abordagem ética que terá por finalidade trazer a tona o que é constitutivo nas relações
humanas e desvelar o que está em jogo nessas relações a fim de que um novo paradigma
ético na prestação dos serviços públicos seja instaurado.
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CAPITULO I
CONCEITO E HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO
Recuperamos a seguir o conceito de serviço público necessário para a
abordagem do problema que pretendemos enfrentar e um breve histórico da sua
prestação no Brasil, para que seja possível identificar como ele ocorre hoje e reconstruir
o seu papel na relação entre Estado e sociedade.
1.1. SERVIÇO PÚBLICO
Conforme Alexandre Aragão (2009), os serviços públicos constituem conceito
que historicamente tende a uma amplitude bastante dilargada, oriunda de sua matriz
francesa, que, via de regra, equiparava os serviços públicos a toda atividade estatal.
Com base nisso, grande parte dos conceitos existentes na doutrina dos serviços públicos
abrange, com maior ou menor amplitude, atividades estatais que, possuem a mesma
base axiológica ou teleológica – o bem-estar da coletividade -, têm regimes jurídicos
com pouco ou nada em comum (atividades indelegáveis/atividades delegáveis à
iniciativa privada; financiadas por impostos/por tarifas e taxas; exploráveis
comercialmente/gratuitamente; exclusivas do Estado/compartilhadas com a iniciativa
privada; de uso obrigatório/facultativo; manifestações do jus imperii estatal ou não;
atividades administrativas, legislativas e jurisdicionais, etc).
A apresentação do conceito de serviço público que pretendemos apresentar darse-á à luz da Constituição Federal de 1988 com enfoque nas atividades administrativas.
Uma concepção ampla de serviços públicos corresponderia às atividades prestacionais
em geral do Estado, ou seja, às funções que exerce para proporcionar diretamente aos
indivíduos comodidades e utilidades, independentemente de poderem deles ser cobradas
ou não, ou de serem de titularidade do Estado, segundo Alexandre Aragão (2009).
O direito administrativo brasileiro estabelece uma diferenciação entre serviço
público e serviço de utilidade pública. Serviços públicos, propriamente ditos, são
aqueles prestados diretamente pela Administração Pública, em razão de sua
essencialidade para a manutenção do Estado, como ocorre com a segurança pública, a
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administração da justiça ou a preservação da saúde pública. Já os serviços de utilidade
pública são aqueles que são prestados diretamente pela Administração Pública ou por
terceiros, mas, sob regulamentação e controle estatal, como ocorre nos casos de
concessão, permissão e autorização. Trata-se de serviços que o direito administrativo
chama de não essenciais, mas de extrema relevância, como os serviços de energia elétrica, transporte coletivo, telefone etc. Mas é claro que esses conceitos de essencialidade
e relevância são, evidentemente, relativos, pois atualmente, é praticamente impossível
para a comunidade viver sem energia elétrica, água, transporte etc. (MÜLLER, N.;
BUENO, P. 2010, p. 119).
1.2. AGENTE PÚBLICO
Os serviços públicos são prestados por agentes públicos administrativos. A lei
8.429/92 no seu art. 2º define os agentes públicos como todo aquele que exerce, ainda
que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo,
emprego ou função na Administração Pública.
Os agentes administrativos são todos aqueles que exercem atividade pública de
natureza profissional e remunerada, estão sujeitos à hierarquia funcional e ao regime
jurídico estabelecido pelo órgão a que pertencem. Os agentes administrativos são
classificados em três: servidores públicos, empregados públicos e temporários.
Os agentes públicos estão submetidos aos princípios constitucionais que regem a
administração pública, definidos nos Artigos 37 e 70 da Constituição Federal de 1988.
São eles:
Legalidade
Todo o ato administrativo deve ser fundamentado e desenvolvido sob a forma da
lei, no limite da lei e na finalidade da lei.
Determina o inciso II do art 50 da CF: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Impessoalidade
Em conformidade com o interesse público e coletivo, a atividade pública deve
ser voltada à sociedade como um todo indivisível, vedando-se tratamento
discriminatório, preferências pessoais, favorecimento pessoal e de terceiros.
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O agente público deve tratar a todos de forma igual.
Moralidade
Na ação administrativa impõe-se comportamento: ético, moral e de direito
baseados nos bons costumes, na equidade e na justiça do agente público dirigida ao bem
comum.
Publicidade
Todo o ato praticado na administração pública deve ser objeto de ampla
divulgação, objetivando a transparência e visibilidade de toda a ação do agente público,
eliminando desta forma a tradição do secreto.
Eficiência
Impõe ao agente público a necessidade de que suas ações voltadas as finalidades
públicas sejam idôneas, rápidas, satisfatórias e econômicas, sem deixar, entretanto, de
observar aos demais princípios constitucionais, inclusive o da legalidade.
Economicidade
Vinculado diretamente ao principio da Eficiência, impõe que os recursos
financeiros de origem pública sejam geridos de modo adequado e eficiente, para que se
obtenham os maiores benefícios pelos menores custos.
Legitimidade
Impõe que todo o ato público atenda ao fim público, obrigando ao agente
público que a sua atuação seja legal, moral e vise à finalidade pública.
1.3. HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL
O serviço público no Brasil tem a sua origem vinculada à chegada e instalação
da família real portuguesa no Rio de Janeiro em 1808. A partir desse fato, tem início o
processo de tomada de consciência da importância do trabalho administrativo, diante da
necessidade de promover o desenvolvimento da então colônia, de acordo com a
diplomacia real. Proclamada a independência, o Brasil torna-se império, depois passa a
república e, ao longo da história política do país, os serviços públicos tornam-se cada
vez mais estruturados e presentes na sociedade.
O histórico do serviço público no Brasil confunde-se com a formação do Estado
brasileiro. As administrações colonial e imperial e, até mesmo, a organização estatal do
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início da República não são consideradas pela maior parte da literatura como
instituições burocráticas ou estatais. Entretanto, seu legado não pode ser
desconsiderado, pois influencia fortemente as relações que são estabelecidas em
momento posterior. Em relação ao período imperial, José Murilo de Carvalho em seu
livro A construção da ordem: a elite política imperial afirma que “magistrados e
militares, ao lado dos agentes do fisco, estiveram entre os primeiros funcionários do
Estado moderno a se organizarem em moldes profissionais” (CARVALHO, 2003,
p.148). O autor acrescenta que a organização da época era melhor desenvolvida na
captação de impostos, enquanto que as ações de desenvolvimento social (educação e
saúde, infraestrutura) chegavam somente às capitais de província. O policiamento, por
exemplo, ficava totalmente a cargo do poder local (fazendeiros, comerciantes,
capitalistas), que constituiria posteriormente a Guarda Nacional. Durante o Império, não
havia preocupação com a racionalização do Estado e o ingresso nos empregos públicos
seguia, fundamentalmente, a lógica da distribuição de privilégios: “apesar das variações
entre os diversos setores, salientando-se a maior burocracia dos setores clássicos do
judiciário, do militar e do fiscal, pode-se dizer que, em geral, a classificação de cargos
era precária, a divisão de atribuições pouco nítida, os salários variáveis de ministério
para ministério; não havia sido institucionalizado o sistema de mérito, e as nomeações e
promoções eram muitas vezes feitas à base do apadrinhamento ou, como se dizia na
época, do empenho e do patronato, e não da competência técnica; as carreiras eram mal
estruturadas e a aposentadoria não generalizada” (CARVALHO, 2003, p.159)
Um dos primeiros documentos consolidando as normas referentes aos
funcionários públicos, foi o Decreto 1.713 de 28 de outubro de 1939. Por esse motivo,
no ano de 1943, o Presidente Getúlio Vargas institui o dia 28 de outubro como o Dia do
Funcionário Público. Em 11 de dezembro de 1990, foi publicado o novo Estatuto dos
Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais,
consolidando-se, assim, o termo “Servidor Público”.
Os anos 1930 foram marcados pela organização de um aparelho estatal mais
moderno, com os primeiros indícios de implantação de cargos e carreiras para o serviço
público com base meritocrática, mas ainda mantendo uma estrutura paralela de
admissão
(GOUVÊA,
1994;TORRES,
2004).
Havia
preocupação
com
a
profissionalização e capacitação dos servidores, como demonstra a criação do Conselho
Federal do Serviço Público Civil em 1936, que se transformou, em 1938, em
Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e sobreviveu até 1986.
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Durante a existência do Dasp, foram implantados concursos públicos com
características meritocráticas, criados órgãos para atuarem variados setores, normas e
estatutos.
A criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil e do Departamento
Administrativo do Serviço Público (Dasp), na década de 1930, representa o primeiro
esforço efetivo de constituição de um serviço publico profissional no Brasil. A
instituição de um órgão central para a política de recursos humanos, a criação de novas
sistemáticas de classificação de cargos e a estruturação de quadros de pessoal, o
estabelecimento de regras para a profissionalização dos servidores e a constituição de
um sistema de carreiras baseado no mérito são as medidas de maior destaque desse
período (KALIL et alli, 2005, p.9).
Embora o Dasp remonte ao final da década de 1930, o primeiro Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis da União data de 1952, vigorando até 1990, quando foi
publicada a Lei nº 8.112 que adotou o Regime Jurídico Único.
Entre os anos 1960 e 1970, a maior mudança na administração pública ocorreu
com o Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a organização da
administração federal e a reforma administrativa. Muito do que foi estabelecido por esse
decreto permanece até hoje, como, por exemplo, a divisão entre administração direta e
indireta e a divisão de alguns ministérios e respectivas áreas de competência. O
Decreto-lei nº 200 instituiu como princípios a descentralização de atividades, a
coordenação e planejamento de ações, mecanismos de controle e a delegação de
competências regimentais. Também estabeleceu normas de administração financeira e
normas sobre o serviço público civil. Foi aberta a possibilidade de estruturar sistemas de
atividades auxiliares para gerenciar atividades de pessoal, orçamento, estatística,
administração financeira, contabilidade e auditoria, serviços gerais, dentre outras. A
gestão do quadro de servidores é organizada no Sistema de Pessoal Civil da
Administração Federal (Sipec), criado pelo Decreto nº 67.326/ 1970, que regulamentou
o Decreto-lei nº 200, tendo como “funções básicas a classificação e a redistribuição de
cargos e empregos, o recrutamento e a seleção, o cadastro e a lotação, o
aperfeiçoamento e a legislação de pessoal” (KALIL et alli, 2005, p.10). Seu órgão
central é, atualmente, a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão. Fazem parte do Sipec as coordenações gerais de
recursos humanos dos ministérios, que são as unidades setoriais, e os departamentos de
recursos humanos das autarquias e fundações, que são as unidades seccionais. Nesse
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período, o fato mais marcante em relação à gestão de pessoas é o Plano de Classificação
de Cargos (PCC), que reorganizou uma série de cargos e empregos em uma tentativa de
dar mais racionalidade administrativa ao sistema de carreiras no serviço público.
Os servidores admitidos a partir dos anos 1960, sobretudo na década de 1970
nos órgãos da administração indireta, viveram um momento no qual o conhecimento
técnico e a especialização na atividade tomaram grande impulso. Na década de 1980 e
início dos anos 1990, os esforços de capacitação dos servidores eram mais dispersos. Na
segunda metade dos anos 1990, vislumbrou-se uma reforma que mexia não só com a
organização das estruturas administrativas, mas também com os direitos e deveres dos
servidores. Embora pregasse a valorização de carreiras consideradas típicas de Estado,
flexibilizava e extinguia outras de áreas consideradas meio ou de apoio, além de prever
medidas de alteração no sistema previdenciário. Após extensos debates e negociações,
foi aprovada em 1998 a Emenda Constitucional nº 19, que permitiu o estabelecimento
de contratos de gestão entre o poder público e entidades da administração direta e
indireta, estabeleceu teto remuneratório para cargos públicos e cargos eletivos,
assegurou a existência de escolas de governo para formação e aperfeiçoamento dos
servidores, definiu situações que geram a perda do cargo, e previu limite para despesas
com pessoal.
A Emenda nº 19 trouxe parte dos avanços pretendidos, mas a reforma ficou pela
metade com a extinção do Ministério da Administração e Reformado Estado (Mare) em
1999. De maneira geral, implantaram-se mudanças na área de gestão (criação de
agências reguladoras, por exemplo) e administração de pessoal. Cargos de segurança,
ascensorista, copeiro etc. foram extintos (28.451 cargos efetivos que estavam vagos e
mais 72.930 cargos ocupados, segundo Torres, 2004). Cargos da alta administração
foram reorganizados e algumas carreiras privilegiadas com reestruturação salarial e
novos concursos de acesso (especialmente carreiras da área de finanças e auditoria, área
jurídica, ciclo de gestão e diplomacia). A situação da remuneração das carreiras do
serviço público não era muito boa, devido às dificuldades administrativas dos anos
anteriores. As reestruturações ocorridas melhoraram um pouco esse quadro, mas a
defasagem salarial da maioria dos servidores, incluídos no Plano de Classificação de
Cargos criado em 1970, permanecia grande, especialmente nos cargos de nível superior.
O Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) foi
instituído em 1990 (Decreto no 99.328, de 19 de junho de 1990) como um programa
informatizado para controlar a folha de pagamento, sendo o repositório das informações
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cadastrais de todos os servidores, civis e militares, ativos e aposentados, pensionistas,
estatutários e celetistas. O início dos anos 1990 é marcado pelas privatizações, pela
extinção de vários órgãos e implantação de planos de demissão voluntária. No fim dessa
década, são retomadas as contratações em setores específicos, mas o quantitativo total
de servidores cai ou permanece estável
A década de 1990 é marcada, em especial, pelos seguintes fatos: aumento
significativo do quantitativo de cargos organizados em carreiras do serviço público
federal; fortes distorções de remuneração, resultando em pressões pela reposição de
perdas salariais; e desvios nas práticas de avaliação de desempenho das organizações
públicas em decorrência das pressões por reposição das perdas salariais (KALIL et alli,
2005, p.11).
A partir de 2002, passa a ocorrer efetivo crescimento no número de servidores
públicos, parte integrante de uma política de valorização da capacidade de gestão do
Estado e de recuperação da força de trabalho
A história da administração pública no Brasil é pontuada por altos e baixos, por
momentos em que a organização das atividades do Estado recebeu especial atenção e
por outros nos quais não foi um tema da agenda de governo. No contexto das
transformações globais que afetam a administração pública, a gestão de pessoas
desponta como área fundamental para um melhor desempenho estatal. O desafio passa a
ser a sua inserção estratégica nas estruturas e nos processos decisórios, o que implica a
superação de uma cultura administrativa que não vê a questão dos recursos humanos
com destaque (CARVALHO et ali, 2009, 103).
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CAPITULO II
RECONSTRUÇÃO
2.1. SOCIEDADE
Para propor um novo paradigma ético para a prestação dos serviços
públicos temos que, de início, empreender uma investigação sobre quais são os
referenciais significativos que mobilizam os comportamentos dos indivíduos dessa
sociedade; indivíduos que utilizam esses serviços, ao mesmo tempo que são
encarregados da constituição e da condução das instituições responsáveis pela sua
prestação. Nessa breve reconstrução dos elementos estruturantes dos comportamentos
presentes em nossa sociedade procuramos recuperar alguns conceitos e situá-los no
contexto em que vivemos.
Apresentamos a seguir, a título de introdução à nossa investigação, uma
carta de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.–65 d.C), filósofo estoico, escritor e intelectual do
Império Romano que deixa claro que o que vamos relatar sobre nossa sociedade atual é,
de alguma forma, percebido há vários séculos.
A Moralidade Pública Degradada
As crianças ficam todas contentes quando encontram na
praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas
variegadas, importadas das areias do Egito ou dos desertos do
Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um
salão de banquetes com capacidade para uma multidão.
Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de
mármore, embora cientes do material que lá está por baixo.
Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tetos
a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira?
Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira!
Mas não são só as paredes ou os tetos que se recobrem de uma
ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da
nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa
atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve
capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a
atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo
promove a magistrados e juízes!...), desde que o dinheiro, digo,
começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder
terreno; alternadamente vendedores ou objetos postos à venda,
habituamo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela
qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse, somos
bandidos por interesse, praticamos a moralidade enquanto dela
esperamos tirar lucro, sempre prontos a inverter a marcha se
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pensamos que o crime pode ser mais rendível. Os nossos pais
habituaram-nos a dar valor ao ouro e à prata, e a cupidez que
assim nos foi instalada ganhou raízes e foi crescendo conosco.
Toda a gente, ao fim e ao cabo tão díspar em tudo o mais, está
de pleno acordo quanto ao «vil metal»: só a ele aspira, só a ele
deseja para os seus, e é ele a coisa mais preciosa que encontra
para oferecer aos deuses em ação de graças! A moralidade
pública degradou-se a tal ponto que a pobreza é objeto de
maldição e causa de opróbrio, desprezada pelos ricos e odiosa
aos pobres. (SÊNECA, 1991)
É possível observar na carta de Sêneca uma sociedade em que nada mais tem
valor, mas tudo tem um preço, em que a felicidade está fundada nas aparências, na
valorização da quantidade em detrimento da qualidade, na observância da moralidade
apenas em virtude dos interesses próprios e numa certa inadaptação de uma parcela da
sociedade que é desprezada por todos. Algumas características apontadas por Sêneca
permanecem presentes em nossa sociedade e contribuem para o que o filósofo chamou
de degradação da moral pública.
A moral é o horizonte referencial constituído e compartilhado por pessoas em
uma sociedade, donde uma ação pode ser avaliada como justa ou injusta em
determinado momento histórico. Ela surge a partir da constituição histórica de
comportamentos, hábitos, costumes e práticas, tendo por base preceitos éticos
originários. O valor de uma ação atribuído pela sociedade se dá sempre em relação a
esse horizonte referencial, portanto, os valores que irão constituir todo o ordenamento
social estão fundados na ética. Todas as nossas ideias e costumes são tributários de um
pequenino núcleo ético que remeterá para o que é próprio ao caráter humano quando em
convívio com o outro. A definição dessa propriedade, que fundamenta a ética, é
justamente o maior desafio de quem a estuda e, na história da filosofia, é possível
observar respostas diversas a essa questão. A moral, portanto, é o espaço que acolhe o
desdobramento prático da ética no tempo. Trata-se do conjunto de significados inscritos
no mundo que expressam esse desdobramento e orientam as nossas ações.
Por vezes, o que ocorre é o obscurecimento do núcleo ético do qual a moral é
tributária. A repetição de práticas caracterizadas pelo esquecimento da constituição
própria das relações dos indivíduos consigo, com o outro e com o mundo levam à lenta
e gradual degeneração da moral. As consequências são absolutamente desastrosas para a
sociedade. Esse afastamento entre o fundamento e a prática é a expressão da experiência
de inadaptação dos agentes ao seu corpo social.
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Existe, em países periféricos como o Brasil, conforme escreve Jessé Souza, toda
uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas, dado que elas não participam do
contexto valorativo de fundo – o que Charles Taylor chama de “dignidade” do agente
racional – o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento, por
todos, da ideia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um
habitus (...) (SOUZA, 2003, p. 70). O conceito de habitus foi cunhado por Pierre
Bourdieu em sua sociologia. O habitus remete para um conjunto de disposições para
agir socialmente explicáveis e construídas e que não passam pela consciência de quem
age. As regras sociais são respeitadas sem que os agentes precisem pensar para cumprir
essas regras. Essas ações são caracterizadas pela ausência de percepção ou reflexão.
Não há pensamento estratégico ou deliberação.
Uma sociedade democrática, que tenha indivíduos marcados por essa
experiência de inadaptação, tende a apresentar no seu corpo social pessoas que se
portam de modo impositivo para garantirem os seus direitos, sem se darem conta das
responsabilidades que lhes cabem. Há um estranhamento desses indivíduos à estrutura
social constituída. Essa postura/disposição assevera uma percepção de autonomização
de si em relação ao outro. Para esses indivíduos, não importa se o outro vai respeitar ou
não o seu direito; não importa se o fato de eles garantirem o que lhes é de direito terá
como consequência o desrespeito ao outro. O outro desaparece como indivíduo a ser
considerado pelo que ele é, e passa a ser tomado somente como um obstáculo a ser
vencido para a consumação do que lhes cabe. O outro é assumido, no máximo, como
mais uma variável em um cálculo de possibilidades; torna-se exclusivamente meio para
a obtenção de um fim. Essas pequenas violências cotidianas são usualmente atribuídas a
um déficit na educação do agente. Furar filas, não observar as regras de trânsito, jogar
lixo no chão são exemplos do que queremos expor. São atitudes naturalizadas pelo
hábito, decorrentes da experiência de não-pertencimento àquela comunidade. Jessé
Souza sintetiza essa percepção de estranhamento pontuando que a sociedade moderna se
singulariza precisamente pela produção de uma configuração, formada pelas ilusões do
sentido imediato e cotidiano, que Taylor denomina “naturalismo”, e Bourdieu “doxa”,
que produzem um “desconhecimento específico” dos atores acerca de suas próprias
condições de vida. (SOUZA, 2003, p. 61)
O indivíduo não sabe mais por que age daquela maneira, ele simplesmente age.
Ele reduz o tamanho do mundo, barrando a entrada de novas experiências,
desenvolvendo uma alienação tanto dos terrores do mundo quanto de suas próprias
18
angústias. Caso contrário, ficaria incapacitado para agir. O indivíduo acaba por entender
que tem que se proteger contra o mundo e gera uma espécie de neurose pelo outro. Em
suas experiências, esse sujeito nega a presença do outro como indivíduo.
Essa atitude naturalizada, que podemos tomar pela expressão psicanalítica
junguiana de inconsciente coletivo, tem por consequência a ocorrência na sociedade de
práticas que apesar de alienar o outro são, por muitas vezes, moralmente aceitas. Ao dar
importância apenas aos efeitos de suas ações e desconsiderar o outro em suas escolhas,
as pessoas atribuem ao outro uma papel instrumental que tem por consequência a
negação da sua dignidade de ser considerado como sujeito de direitos e, principalmente,
de ser considerado como sujeito autônomo capaz de decidir e de ser responsável por
suas escolhas. O apartamento do outro do núcleo ético que funda a moral, leva os
indivíduos a uma confusão entre o que é certo e errado, justo e injusto, dado que o
comportamento de vários indivíduos dessa sociedade não remete mais para o bem
comum, mas para interesses particulares e imediatos, obscurecendo a presença do outro
como instância de validação de seus comportamentos. Ocorre gradualmente a
degeneração da moral. Variantes morais passam a conviver numa mesma sociedade.
São observadas práticas caracterizadas pela subversão de valores que são pilares de uma
sociedade republicana e democrática. O indivíduo passa a se portar de modo reativo,
procurando assumir uma conduta que o proteja da situação que se apresenta e que o
livre de seu problema o mais rápido possível. O que é característico dessa prática é que
não importa mais o que seria o certo ou o errado a se fazer. Trata-se de agir sem
nenhum valor subjacente ou sentido transcendente. É a postura do sobrevivente. Bicca
expressa essa disposição sublinhando o desconforto do indivíduo diante da farsa de uma
vida sem vitalidade, da existência como mera sobrevivência, dentro da qual a busca
desesperada por aquele cumulativo bem-estar na cultura termina por converter-se na
mesma e sub-reptícia origem de mal-estar civilizatório. (BICCA, 2003, p.13)
O desdobramento de uma sociedade marcada pela presença de indivíduos que se
comportam como sobreviventes é a degradação do Estado de direitos. A cidadania passa
a ser caracterizada pela obtenção de privilégios. Os direitos são tomados por privilégios,
uma vez que não são extensivos a todos os cidadãos. Se o individuo tiver seu pleito
atendido pelo Estado, ele percebe que faz parte do corpo socialmente instituído, caso
contrário ele busca, de maneira independente, garantir os seus direitos. Como pelas vias
institucionais essa garantia é colocada em risco, apela-se, por muitas vezes, para vias
corrompidas para efetivá-los. Desta forma, um direito torna-se um privilégio, uma troca
19
de favores. A busca independente é perniciosa, pois coloca indivíduo contra indivíduo
numa luta por privilégios e enfraquece as instituições que deveriam garantir os seus
direitos. O que é bom para um será, necessariamente, ruim para o outro. O que inclui
um, deixa o outro à margem.
Há uma espécie de institucionalização de uma prática que foi apelidada na
sociedade brasileira por Lei de Gérson, que nada mais é que um princípio em que
determinada pessoa age de forma a obter vantagem em tudo que faz, e tenta aproveitarse de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou
morais. Essa prática, reveladora de traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do
caráter de indivíduos brasileiros, contribuiu e contribui para a disseminação da
corrupção e o desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens pessoais.
Trata-se de uma atitude individualista de caráter protecionista diante da inadaptação ao
ordenamento social; a uma percepção de não-pertencimento ao corpo social. A
consequência é o esgarçamento do tecido social, das relações entre Estado e indivíduo e
entre os próprios indivíduos que o constituem.
O subjetivismo parece revelar-se como uma resposta ao não reconhecimento
social, uma espécie de entrada à força nesse espaço compartilhado em que o indivíduo
entende que o acesso não lhe é facultado. É estabelecida uma relação utilitária com o
que é comum a todos, uma relação desprovida de envolvimento com o objeto ou com as
pessoas que compartilham de seu uso. Há uma desconsideração pelo que é comum, uma
vez que a medida da ação é a consumação de um interesse particular. Como enfatiza
Benoist, a sociedade permanece como simples soma de átomos individuais como
vontades soberanas, movidas todas igualmente pela busca racional de seu melhor
interesse. Cada agente define seus objetivos por si mesmo, de maneira voluntária, e não
se adere à sociedade mais que sobre uma base instrumental. (BENOIST, 2013, p. 103).
No âmbito da sociedade encontra-se difundida uma lida pragmática com os
problemas que obscurece a presença das pessoas em suas particularidades, tomando um
indivíduo genérico em suas considerações e debates sobre como abordar e como propor
soluções para esses problemas. No pragmatismo, o efeito da ação para a solução de um
problema comum é a própria medida para a sua avaliação.
Parece haver uma relação de forças em nossa sociedade, estabelecida entre a
visão subjetivista do indivíduo e a visão pragmática do Estado. Enquanto o subjetivismo
ignora o interesse público e busca consumar um interesse particular, o pragmatismo
ignora o indivíduo como participante do corpo social, autonomizando as decisões de
20
âmbito coletivo dos anseios dos cidadãos. Esse contexto é pernicioso para as relações
entre os indivíduos e entre estes e o Estado. O indivíduo não legitima as decisões do
Estado, porque não se reconhece nelas e, desamparado, parte sozinho para resolver os
seus problemas, apartado do Estado e dos outros. O Estado por sua vez, em sua
obsessão com números, percentagens e metas, desconsidera que os interesses das
pessoas devem vir em primeiro lugar.
A degradação moral também se manifesta em nossa época através de uma
generalizada e, por muitas vezes, conveniente ausência ou diluição da responsabilidade
que cabe a cada indivíduo. Amparado por leis que regulam a convivência em sociedade,
pelo senso comum ou pela justificativa de que não há como imputar responsabilidade a
quem não tem escolha, o indivíduo se esconde utilizando falácias de quem age por
medo ou por covardia. Quem é covarde nunca é responsável por suas ações. Quem age
por medo entende que ser responsável é agir em conformidade com a norma e se isenta
de qualquer ação que não esteja prevista em algum código. Os governos em geral
reforçam tal visão ao tentar regular os comportamentos dos indivíduos mediante a
adoção de expedientes legislativos, imputando sanções a quem não os cumpre. Com
isso, eles transferem uma responsabilidade de ordem moral para a ordem legal e tomam
de assalto a liberdade do indivíduo.
2.2. SERVIÇO PÚBLICO
Buscaremos nessa seção, identificar os fatores que contribuíram para que a
prestação dos serviços públicos no Brasil seja percebida pelos usuários como
insuficiente e precária. Essa investigação tentará apontar para motivos de ordem préestrutural, ou seja, nossa intenção é elencar razões subjacentes aos problemas evidentes
que todo usuário enfrenta no cotidiano.
O Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo
Federal, aprovado pelo Decreto Nº 1.171, de 22 de junho de 1994, busca regular
condutas voltadas para a prestação dos serviços de maneira a resguardar a ideia de que
na administração pública a finalidade é sempre o bem comum. Segundo as suas regras
deontológicas, os atos, os comportamentos e as atitudes dos servidores serão
direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos.
21
A estrutura voltada para prestação dos serviços públicos está apoiada em
relações historicamente construídas nos âmbitos social, político e econômico. Ao longo
do tempo essas relações constituíram comportamentos sedimentados tanto dos
prestadores dos serviços quanto dos seus usuários. Por parte dos prestadores é possível
observar exemplos de condutas repreensíveis como o descaso com que as demandas dos
usuários são tratadas, o desrespeito frequente a que usuários são submetidos, a leniência
dos gestores dos serviços para com faltas de seus subordinados e o desprezo pelo bem
público, para elencarmos apenas algumas. Do lado dos usuários podemos apontar a
fraude, o vandalismo e a resignação, exemplificados como alguns dos comportamentos
existentes e dignos de reprovação.
A grande maioria dos servidores públicos executa funções que são
caracterizadas pelo trabalho burocrático, ou seja, de cunho administrativo e confinado
em escritórios. Essas características promovem um distanciamento entre o servidor e o
serviço público oferecido pela instituição em que trabalha. Mas há um tipo de alienação
mais perversa. O distanciamento entre o servidor e as pessoas que usufruem esses
serviços. Esse distanciamento retira o caráter humano do trabalho que se executa.
Muitas vezes o mais importante é cumprir a rotina burocrática estabelecida do que
resolver um problema do usuário. Essa perda de percepção do outro é evidenciada e
reforçada pelos processos internos que são criados para controle e verificação de
resultados do desempenho do servidor. O servidor se vê envolto ao preenchimento de
uma quantidade enorme de formalidades, enquanto os seus clientes aguardam pelo
serviço. Uma distorção importante e perigosa decorre da diferença entre a avaliação do
desempenho do servidor, que é medida pelo cumprimento das formalidades, e a efetiva
prestação do serviço, relacionada ao bem estar da população. A alienação entre a
avaliação interna da qualidade do trabalho e a qualidade do serviço percebida pelo
usuário é evidente. Essa alienação provoca por um lado a insatisfação generalizada da
população por conta de um serviço mal prestado e, por outro, a insatisfação do servidor
que não consegue ver o seu trabalho árduo transformado na prestação de serviços de
qualidade para a população.
A alienação manifesta-se devastadora para a autoestima e para a motivação do
servidor que, não raras vezes, sucumbe diante da ausência de possibilidades de enxergar
a efetivação de seu trabalho na melhora da prestação do serviço e se torna um mero
cumpridor de formalidades, o que garante o seu emprego e os seus vencimentos. Há,
22
sem dúvida, servidores que por interesse se escondem nas formalidades, mas há os que
são sufocados por elas.
No âmbito institucional, a influência política é perniciosa para a definição de
estratégias e de prioridades para a execução de atividades vinculadas a prestação de
serviços públicos. Por vezes, os contratos que garantem a segurança e a estabilidade de
um setor da economia são rompidos ou descumpridos em virtude da interferência
externa aos assuntos da instituição. Planejamentos de longo prazo são interrompidos por
demandas extraordinárias e emergenciais que atropelam o fluxo de atividades previsto e
exigem um retorno de caráter duvidoso quando consideramos que o fim da prestação do
serviço é o bem público. Outra manifestação desse tipo de interferência no cotidiano do
serviço público são as nomeações para cargos comissionados de comando que têm suas
nomeações vinculadas a interesses políticos. A influência política, portanto, é
determinante para a definição das prioridades institucionais que acabam por atrapalhar o
planejamento e a execução da prestação do serviço e desviar a atenção da sua real
finalidade.
A situação que evidenciamos no serviço público no Brasil é a desmotivação de
grande parte de seus agentes públicos ante a sua baixa eficiência, o obscurecimento do
vínculo existente entre o seu trabalho e o serviço prestado e a ingerência política em sua
atividade. Apesar desse cenário, o espaço para a ética no serviço público continua
preservado. Se for muito difícil vislumbrar uma mudança com origem nas instituições
ou nas instâncias de governo em direção ao servidor público, é possível efetivar uma
mudança de postura no âmbito dos agentes públicos. Uma mudança maciça nesse nível
poderia legitimar e sustentar demandas mais contundentes da sociedade e dos servidores
por mudanças estruturais nas instituições e pelo respeito às missões de cada instituição,
de maneira que reflitam em serviços públicos prestados com maior qualidade para os
usuários.
23
CAPITULO III
DESTRUIÇÃO
Nosso propósito nessa seção é o de aprofundar a análise iniciada no capítulo
anterior e ampliar a discussão sobre as bases que sustentam as ações dos indivíduos em
nossa sociedade. Intentamos, ainda, começar a problematizar essas bases e apontar para
possibilidades diversas para o enfrentamento do desafio que é viver de maneira ética e
como esse tipo de prática pode refletir na prestação de serviços públicos de melhor
qualidade.
Nossa época é caracterizada pela complexidade. A certeza nunca esteve
tão fugidia. Tudo que era sólido se desmanchou no ar. A linha que orientou muitos
caminhos pregressos está desbotada e quase não é mais visível. Em seu lugar surgiram
diversas linhas, aparentemente frágeis, que apontam para as mais variadas direções. A
bússola deixou de apontar somente para o norte. Por muitas vezes nos sentimos à deriva
e ao sabor dos ventos.
Vivemos num mundo de probabilidades, num mundo gerido por um princípio de
incerteza, que é cada vez mais um princípio determinante de tudo o que acontece. A
situação da complexidade, assim que é percebida como tal, sobretudo quando se torna
clara a existência de fenômenos contraditórios, provoca insegurança e medo.
(PINTASILGO, 2012, p. 411 e 378).
Vivemos na era da informação. Estar informado é um valor na sociedade em que
vivemos. Todos sabem de tudo, mas nada sabem do todo. Todos sabem de tudo, mas
poucos sabem de si. Todos sabem de tudo, mas poucos, muitos poucos, sabem. O
descarte quase imediato da informação que nos chega, nos revela o seu caráter
eminentemente instrumental em nossas vidas. Não há transcendência possível a partir da
informação. Ela sempre remete para o que já se encontra disposto. A sua orientação é
sempre para dentro, ela lida com o revelado. Ela diz mais sobre o que já sabemos, não
requisita o nosso imaginário. A sua importância aparece quando ela é complementar,
quando preenche um vazio esperado. Ela se expande até o limite do já conhecido. Ela
não extrapola, não vai além. Não há como requerer da informação mais do que ela pode
dar, porém, ela não deve ser considerada um valor per se.
Em nossos dias a informação traveste-se de conhecimento. De um lado a
limitada operação de conceitos e a esterilidade de ideias, do outro o culto à novidade e
24
uma revolução no vazio. Essas são as duas faces da moeda da pós-modernidade.
Enquanto há um grande grupo concentrado em realizar exegeses exaustivas de obras
pregressas, que se assemelham a análises jornalísticas de fatos, há outro grande grupo
voltado para a dissolução da tradição e o surgimento da maior e melhor teoria de todos
os tempos da última semana. O conhecimento tem o seu tempo. Nesses nossos dias, as
análises nascem mortas, enquanto as teorias nascem sempre prematuras.
Vivemos uma vida encurtada, seja pelo recorte mínimo do mundo que buscamos
perscrutar e, a partir do qual nos movimentamos, seja pelo foco absoluto no presente e a
ausência de referenciais prévios para nos orientar. É uma vida em que se opta pela
neurose ou pela esquizofrenia. Vivemos num tempo desintegrado. Cada visão dessas de
mundo se apega a um momento específico e o enxerga como autônomo. A informação
tem, justamente, essa característica. Ela lida com fatos isolados no tempo e, talvez por
isso, ela seja tomada por conhecimento hoje.
A ambiguidade, a curiosidade e o falatório marcam nosso cotidiano e
obscurecem as relações que estabelecemos com o mundo e que nos identificam nele. A
obviedade do que fazer não mais existe. Nada mais nos provê uma sustentação
inabalável para as nossas condutas. Estamos carentes de fundamento. Vivemos de
maneira contingente. Enquanto nos movemos tudo se move. A ausência de referencial
provoca-nos vertigem. Enquanto nos parece que, em comparação a outros momentos
históricos vivemos dias melhores, assumindo o critério do bem-estar geral da
população, da ampliação de seu espectro de direitos e de uma vida sem tantos sacrifícios
físicos para a maioria, há uma sensação de insegurança e incerteza que nos atravessa e
nos oprime.
O campo moral parece ter rumado para o relativismo, dadas as mudanças
históricas marcadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico desde o fim do
século XIX. Houve, portanto, o surgimento de uma realidade mais complexa e, ao
mesmo tempo, uma desorientação para se comportar nesse mundo. A rearticulação e a
expansão das relações consigo, com o outro e com o mundo, decorrentes dessa
proliferação de possibilidades do mundo, promoveram o alargamento do horizonte
existencial do homem e o desaparecimento de uma orientação inequívoca para a sua
conduta.
As correntes de pensamento ético inspiradas na metafísica, que por séculos nos
socorreram, revelaram-se insuficientes para lidarem com a complexidade que se
apresenta em nossa época.
25
A metafísica, ao tomar como horizonte de suas investigações o infinito, aparta-se
de tudo que caracteriza o homem. Algumas dessas investigações de cunho metafísico,
caracterizadas por uma abordagem que parte do infinitismo, acentuam no homem o que
lhe é constante e imutável, atribuem-lhe uma razão calculadora orientada para sustentar
os fundamentos últimos que correspondam às concepções instituídas e as causas que
expliquem os fenômenos, pois nada é sem causa. Tudo que é, é justificável. Trata-se de
encontrar a correspondência entre o mundo e os fundamentos que o sustentam. Em
suma, a metafísica busca na ontologia causas e verdades e na ética máximas e regras
que sejam infinitas.
A metafísica é, portanto, a responsável pelo encurtamento do campo de
compreensão dos fenômenos, ao estabelecer estruturas prévias e controladas onde os
acontecimentos devem se dar. Ela esgota em algumas poucas determinações a
multiplicidade constitutiva do mundo, reduzindo-o a alguns poucos fenômenos
imediatamente entendidos e explicados segundo as suas causas identificadas. Dentro
dessa concepção, algumas poucas verdades bastam para que o homem ocupe seu lugar
no mundo em que vive e se resigne com orientações razoáveis que o auxilie no
entendimento do que acontece à sua volta. Trata-se de um esforço do homem pela
manutenção das suas relações existentes com o mundo, relações estas, que o
caracterizam, ou seja, que dizem quem ele é, ou, ainda, que dizem respeito ao que ele
acredita ser a sua essência. O que podemos verificar é que esse modelo não dá conta da
complexidade que temos diante de nós.
Como derivado dessa desarticulação entre o mundo que se nos apresenta e a
tradição metafísica há diversos descompassos causados pela insistência em tomarmos a
realidade atual a partir de seus preceitos. O homem ainda se orienta no mundo segundo
um conjunto de cálculos matemáticos de perdas e ganhos, fundado em uma razão
puramente especulativa, porém, agora falta-lhe o fundamento último metafísico que
sustenta as suas ações. Diante dessa falta, os resultados das ações passaram a ocupar
esse espaço de estruturação e influência no processo de escolha. Passamos então de uma
razão calculadora metafísica para uma razão tecnicista. A motivação para a escolha não
se encontra mais fora do campo de ação circunstancial, mas encontra-se voltada para os
efeitos obtidos a partir da escolha em determinado contexto.
De mãos dadas com o caráter de complexidade que se encontra presente nesse
momento em que vivemos, há o obscurecimento de nossa interdependência constitutiva.
O ideário iluminista parece ter contribuído de forma decisiva para que ideias como a
26
liberdade e a igualdade não tivessem o terreno propício para que se realizassem. Ao
substituir a ideia de fraternidade pela ideia de progresso do ideário proposto pelos
participantes da Revolução Francesa de 1789, os iluministas retiraram as condições
necessárias para que as ideias de liberdade e de igualdade tomassem forma em nossa
sociedade.
A ideia de progresso parece ter se autonomizado das outras duas, ao mesmo
tempo que não tem a vocação necessária para fornecer o campo para que elas tivessem
condições de realização. O progresso autonomizado, caracterizado principalmente pelo
progresso econômico, ganhou concretude através de bens materiais e se associou a
ideias distintas e, até por vezes opostas, às ideias de liberdade e de igualdade.
A fraternidade é uma ideia que caracteriza de alguma forma a nossa
interdependência constitutiva. Ela explicita a necessidade de se estabelecer relações
interpessoais que tenham o outro como presença inexorável no horizonte de
possibilidades de ação. Sem a presença do outro não se estabelecem os limites da
liberdade e a própria noção de liberdade é colocada em xeque, uma vez que ela será
tragada pela solidão e pela angústia que se abaterão sobre o sujeito radicalmente livre.
A vida só ganha alguma familiaridade quando compartilhamos sentidos e
significados com os outros que encontramos no mundo. Nossa identidade é constituída
de igualdades e diferenças que dependem dos outros para existirem. A fraternidade tira
as noções de liberdade e igualdade do terreno das abstrações metafísicas e torna
possível a sua realização a partir de um campo familiar, estruturante de identidades.
A complexidade e a abstração metafísica parecem ter gerado o impasse que
Edgar Morin descreve da seguinte forma: “Se todo conhecimento é reconstrução e
percepção, não pode ter valor de reflexo absoluto do real. Somos, portanto, obrigados a
negociar com a incerteza.” Ele continua: “Há também o fechamento próprio à
tecnocracia, que só vê as dimensões quantitativas, econômicas, e esquece as outras
facetas humanas. Como estamos no reino do pensamento mutilante ou fragmentário, a
necessidade de contextualizar os problemas é de fato vital. De que forma? Todas as
reformas começam marginalmente na medida em que existe uma contradição: como
reformar os espíritos sem reformar antes o ensino e por conseqüência as instituições?
Mas como reformar as instituições sem reformar antes os espíritos?”
A provocação de Morin (como reformar as instituições sem reformar antes os
espíritos?) é o ponto de inflexão que nos leva de volta ao intento de nossa investigação
nesse trabalho. A nossa aposta é de que a resposta a essa pergunta esteja na promoção
27
de uma mudança do paradigma ético a partir do qual os indivíduos em nossa sociedade
se orientam, e que tenha por consequência a melhoria na prestação dos serviços públicos
no Brasil.
O que pretendemos, em última instância, é propor uma reforma das instituições
que prestam serviços públicos a partir de uma conversão, ou de uma transformação nos
espíritos dos servidores, que se encontram, inexoravelmente, implicados. Como pontua
Pintasilgo, torna-se vital uma nova competência: a de refazer constantemente a visão do
mundo na sua complexidade e na sua interdependência em todos os níveis.
(PINTASILGO, 2012, p. 386).
28
CAPITULO IV
CONSTRUÇÃO
4.1. CUIDADO
De maneira a sintetizar o que procuramos descrever nos momentos pregressos
dessa nossa investigação de cunho hermenêutico, temos que os comportamentos dos
indivíduos em nossa sociedade estão marcados pelo relativismo. Se por um lado
podemos observar uma componente subjetivista, que tem como único fundamento os
interesses dos indivíduos, por outro temos uma componente pragmática, que tem como
fundamento interesses coletivos em que os indivíduos não se reconhecem.
O relativismo ocupa um espaço importante para o indivíduo na lida com os seus
problemas em sociedade. Os fundamentos metafísicos perderam terreno na constituição
do núcleo ético que sustenta o horizonte moral a partir do qual se indivíduo se orienta.
Os resultados das ações ganharam mais importância do que as motivações subjacentes
ou transcendentes que levaram o indivíduo a realizar as suas escolhas. O tecnicismo
ganhou terreno e as relações com os outros indivíduos ficaram muito parecidas com as
relações com outros objetos que os cercavam. Toma-se o outro por coisa. O valor do
outro passou a ser instrumental.
Para que seja possível propor as mudanças que constituiriam um novo
paradigma para a orientação dos espíritos dos indivíduos de nossa sociedade
precisamos, antes, introduzir os conceitos filosóficos que nos embasarão nessa árdua
tarefa. Começaremos com a apresentação de um conceito central em nossa proposta: o
conceito de cuidado. Esse conceito é recuperado por Michel Foucault em sua obra
intitulada Hermenêutica do Sujeito, que apresenta o conteúdo das aulas de um curso
ministrado pelo professor na década de 80 do século XX.
Nessa obra, o pensador francês busca resgatar da Antiguidade a noção de
cuidado a fim de estudar as relações entre subjetividade e verdade. Trata-se de uma
tentativa de abordar essas relações não mais a partir do primado do conhecimento, mas
a partir do cuidado. Ao longo da tradição, a verdade consistia no conhecimento das
relações possíveis estabelecidas entre um sujeito cognoscente e um objeto de
29
conhecimento, ambos dados e destacados um do outro. A verdade ficou resumida à
adequação da ideia à realidade ou da realidade à ideia, permanecendo como questões o
acesso do sujeito ao objeto, no caso do realismo, e a ilusão solipsista, no caso do
idealismo. Derivada desta tradição, a compreensão ôntica do cuidado esteve quase
sempre associada a certo zelo dedicado a resguardar de danos aquilo que se apresenta no
ente como essencial à sua constituição. Segundo a concepção metafísica de homem,
carecem de especial atenção as suas propriedades e faculdades, remetidas a um
horizonte essencial infinito. Portanto, o que é colocado em risco na compreensão
cotidiana e, que carece de cuidado, é o que faz daquele ente aquilo que ele é, segundo a
significância estável e confiável do discurso sedimentado. Cuida-se do que já existe, do
que está dado. Trata-se de um esforço do homem pela manutenção das suas relações
existentes com o mundo, relações estas, que o caracterizam, ou seja, que dizem quem
ele é, ou, ainda, que dizem respeito ao que ele acredita ser a sua essência.
Em direção diametralmente oposta, a noção de cuidado em vigor na
Antiguidade, resgatada por Foucault, implica a necessidade de uma transformação do
próprio sujeito para que este tenha acesso à verdade. Nesta abordagem, assim como o
sujeito, a verdade também não se encontra dada. Portanto, sujeito e verdade estão
implicados, não podendo ser abordados de forma isolada. Segundo Foucault: “não pode
haver verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito.”
(FOUCAULT, 2004, p.20)
No início do século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger em sua obra Ser e
Tempo toma o conceito de cuidado como central para a discussão da dinâmica do ser no
tempo, ou seja, do que se apresenta como determinado para nós de início e na maioria
das vezes e de suas possibilidades de mudança ao longo do tempo. O cuidado em
Heidegger é abordado segundo a perspectiva de possível instância rearticuladora e
unificadora dessas determinações. Trata-se da estrutura que promove a articulação entre
o que é possível para o homem e o que se encontra disposto no mundo. Suprime-se,
portanto, a distância entre essência e existência. É no cuidado que a possibilidade ganha
realidade, num processo desvelador de modos de ser possíveis, projetados no mundo
pelo homem.
O homem para Heidegger é esse ente caracterizado por se autodeterminar no
tempo. Ele faz escolhas e toma decisões segundo a rede de significações que o mundo
lhe apresenta, por isso ele é ser-no-mundo. Heidegger considera o homem sempre em
sua dinâmica de ser-no-mundo. Ele é sempre essa dinâmica de cuidado. O homem é um
30
ser situado em um mundo e no tempo. Heidegger nunca se refere ao homem como
homem, mas como ser-aí, onde o aí é esse acontecimento que se dá situado num espaço
e num tempo. Essa opção feita por Heidegger é manifesta para que em suas
investigações o homem não seja encarado como um ente determinado essencialmente,
visada característica da tradição metafísica.
O cuidado é determinação de si mesmo, é a assunção do homem como
performance. A apropriação de um comportamento ou de um discurso do mundo se dá
quando essa apropriação ou esse discurso passam a ser seus, passam a dizer respeito
sobre si, segundo o seu caráter de possibilidade sempre em aberto. O homem deixa de
existir em virtude do mundo e passa a existir em virtude de si mesmo. Passa-se de uma
existência vivida a partir de uma instância impessoal, onde a fuga de si é característica,
para uma existência pessoal, ou seja, a partir de suas possibilidades, desde si e para si.
A Fábula de Higino apresentada no § 42 de Ser e Tempo, transcrita abaixo,
ilustra bem a assunção do ser-aí heideggeriano como obra inacabada, moldada ao longo
de sua existência pelo seu caráter de cuidado.
Quando um dia o Cuidado atravessou um rio, viu ele terra em
forma de barro: meditando, tomou uma parte dela e começou a
dar-lhe forma. Enquanto medita sobre o que havia criado,
aproxima-se Júpiter. O Cuidado lhe pede que dê espírito a esta
figura esculpida com barro. Isto Júpiter lhe concede com prazer.
Quando, no entanto, o Cuidado quis dar seu nome a sua figura,
Júpiter o proibiu e exigiu que lhe fosse dado o seu nome.
Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam sobre os nomes,
levantou-se também a Terra e desejou que à figura fosse dado o
seu nome, já que ela tinha-lhe oferecido uma parte do seu
corpo. Os conflitantes tomaram Saturno para juiz. Saturno
pronunciou-lhe a seguinte sentença, aparentemente justa: Tu,
Júpiter, porque deste o espírito, receberas na sua morte o
espírito; tu, Terra, porque lhe presenteaste o corpo, receberás o
corpo. Mas porque o Cuidado por primeiro formou esta criatura,
irá o Cuidado possuí-la enquanto ela viver. Como, porém, há
discordância sobre o nome, irá chamar-se ‘homo’ já que é feita
de ‘humus’. (HEIDEGGER, 2006, p.266)
O cuidado de si se resume a dizer que o seu ser está sempre em jogo. Não há
fundamento último que defina quem você é. Não há nada certo, apenas o provável.
Todas as referências de sua vida assumem um caráter provisório. É possível estabelecer
o seguinte paralelo: o cuidado está para a ontologia, assim como o ceticismo está para a
epistemologia. Não se trata da negação de tudo, apenas o reconhecimento que a escolha
que se fez é uma entre tantas possíveis. Tudo é contingente, tudo é passível de dúvida e
de mudança.
31
De início e na maioria das vezes o mundo nos fornece as orientações para que
nos movimentemos dentro da estrutura social em que nos encontramos. O homem que
abdica do seu caráter de cuidado movimenta-se segundo as determinações que recebe do
mundo e não as questiona. Segue adiante em seu cotidiano e quando interpelado por que
age desta ou daquela forma, afirma que não sabe o motivo (talvez o mais honesto); que
alguém mandou agir assim; que não conhece outra forma de agir; que todos agem
daquela forma, etc. Todas essas ações estão marcadas por nunca estarem em questão,
por não existirem dúvidas nas escolhas realizadas, por um certo automatismo irrefletido.
É o modo como nos orientamos no nosso cotidiano. Tal modo de ser é denominado por
Heidegger como impróprio.
A autodeterminação parece uma tarefa apartada do cotidiano, uma vez que
temos que seguir inúmeros trâmites consagrados para nos movimentarmos no mundo.
Se autenticidade for entendida como a criação de regras e modos de ser apartados da
realidade, não há como ser autêntico ao tomar um ônibus ou ao fazer compras. Mas é
possível ser cuidadoso em nosso cotidiano. Não precisamos criar novas formas de agir
no nosso dia-a-dia, mas se nos apropriarmos das existentes e nos responsabilizarmos
pelas nossas ações estaremos agindo de maneira cuidadosa e autêntica. A apropriação
sempre terá início com o questionamento da convenção que nos utilizamos para realizar
as coisas mais simples. E se a resposta é a assunção da convenção, mesmo que de forma
contingente, não há como escapar da responsabilidade diante de tal ato.
As convenções, determinações, orientações do mundo são compartilhadas por
todos. Se não somos cuidado, se não as questionamos, acabamos por escolher que o
estado das coisas permaneça. Se atribuímos ao mundo o fornecimento exclusivo da
motivação para as nossas escolhas, optamos por reforçar as estruturas existentes. A
responsabilidade é empurrada para o mundo. Justificativas como “foi ele que nos
orientou” ou “nós só fizemos o que todos fazem” são apenas tentativas de desvincular a
nossa conduta de nossa responsabilidade, porém, continuamos responsáveis por nossas
ações. E, abdicando de sermos cuidado e sendo irresponsáveis com as nossas ações,
assumimos a nós mesmos como sujeitos descuidados e irresponsáveis para com as
convenções, determinações, orientações do mundo que, por sua vez, serão referência
para as ações de outras pessoas.
Da mesma maneira, quando somos cuidado, seja nos apropriando de
determinações prévias do mundo, seja modulando esses modos de ser e criando novas
possibilidades, reforçamos os modos de vida existentes ou os alteramos.
32
Responsavelmente, reforçamos valores mundanos ou criamos novos valores no campo
da moral. O fato é que a nossa escolha vai refletir nas possibilidades de escolha das
outras pessoas, uma vez que elas se orientam pelas referências mundanas. É por isso que
o Sartre diz que: “qualquer projeto, por mais individual que seja, tem um valor
universal.” (SARTRE, 1987, p.22).
Sendo assim, o projeto não tem como ser solipsista porque as nossas escolhas
vão constituir as possibilidades de existência no mundo. Ao inventar o primeiro avião
alguém criou uma nova possibilidade para todos, mesmo que fosse um projeto
individual. Ao escravizar pela primeira vez alguém para fins próprios, um sujeito criou
uma possibilidade no mundo que levou várias pessoas a serem escravizadas pelo mundo
inteiro. Portanto, as nossas escolhas poderão repercutir nas possibilidades de modo de
ser existentes no mundo, e esses serão os modos de ser que os outros terão por
referência. Por isso, é possível afirmar que quando nos preocupamos conosco também
nos preocupamos com os outros.
Para Alain de Benoist e Myriam Revault d’Allones, trata-se de assumir uma
perspectiva relacional que coloca antes de tudo o “sentido humano” como uma
capacidade de intercambiar experiências. A humanidade não é uma categoria funcional,
senão uma “disposição a habitar e compartilhar o mundo”. Podemos chegar à conclusão
que a humanidade não aparece como um dado unitário, mas sim sobre um fundo comum
que compartilha. (BENOIST, 2013, p.85)
A atitude fundadora do cuidado de si é a atenção. Desatenção e cuidado são
inconciliáveis. O cuidado prescinde da presença. Não há como colocar o ser em jogo
sem que se esteja inserido espaço-temporalmente no mundo. A atenção sempre requisita
uma suspensão temporária do passado e do futuro. Os questionamentos que nos levam
ao passado ou ao futuro sempre partem de um momento de presença. Um falso
problema surge de uma desconsideração do presente.
Ocorre hoje uma indiferença quanto ao cotidiano. O importante é não
interromper a dinâmica, pouco importa como e de que ela se constitui. Orientações de
caráter moral duvidoso são aceitas desde que seja possível dar prosseguimento aos
nossos afazeres. Nosso cotidiano está caracterizado pela desatenção ao que se faz e às
pessoas que dele participam. Quando e onde tudo tanto faz, não há que se falar em
valores.
A atenção é fundamental para que a apropriação ou a modulação das
determinações do mundo ocorra. A primeira consequência é que essas determinações
33
passam a ser percebidas. A segunda é que uma vez percebidas elas passam a nos
questionar sobre o que faremos delas. Ao passo que elas não se apresentam mais para
nós como indiferentes, estamos condenados a fazer uma escolha e, independente de qual
ela seja, passaremos a ser responsáveis por ela. A apropriação ou a modulação, portanto,
seria essa atitude cuidadosa para com as coisas que nos mobilizam no cotidiano. Há
uma valorização das orientações fornecidas pelo mundo, pelo que nos cerca ao longo de
nossa vida, e uma real valoração das ações possíveis nesse mundo. O modo de ser
próprio revelar-se-ia na resposta ao questionamento que surgiu do olhar atento às coisas
do mundo.
A diferença entre apropriação e modulação seria caracterizada pela resposta
afirmativa ou negativa ao questionamento que as coisas nos colocam. Se a resposta for
afirmativa o caso é de apropriação. Apropriamo-nos de uma orientação do mundo
quando a tomamos como nossa, quando passamos a agir segundo o que ela diz. Nós a
afirmamos porque não faríamos diferente e a temos sob nossa inteira responsabilidade,
apesar de ela já estar presente no mundo.
A modulação pode ser possível quando a resposta é negativa ao questionamento.
A negativa é apenas o ponto de partida para uma busca. É, precisamente, nesse ponto
que a fenomenologia contribui de maneira fundamental para o processo hermenêutico.
Somente através de um evento de descerramento de mundo, de abertura do espaço de
conformação do mundo, é que é possível encontrar elementos que possam se manifestar
como moduladores do que está posto no mundo. Esse evento de conteúdo puramente
fenomenológico deve ser capaz de ampliar o horizonte hermenêutico dado, em que o
homem se encontra inserido. O homem, então, a partir de conteúdos prévios
rearticulados ante a experiência fenomenológica, insere e inscreve mais uma
possibilidade no mundo.
Para que esse evento fenomenológico seja possível, a atenção é indispensável.
Somente através dela nossa percepção pode vencer a capa de preconceitos que revestem
as coisas.
Essa abordagem do cuidado encara os problemas trazidos pelas experiências do
cotidiano, não se furtando de apresentar respostas aos questionamentos que surgem
dessa escuta atenta ao que acontece a nossa volta. O filósofo francês Jean-Paul Sartre,
habilmente, pontua essa necessidade de nos colocarmos sempre atentos e voltados para
a ação diante de um acontecimento: “Não importa o que fazem de ti. Importa o que você
faz como o que fazem de ti.” (Apud, MACIEL, 1986).
34
4.2. ÉTICA DO CUIDADO
Nessa altura de nossa investigação, passaremos a expor as características de uma
ética do cuidado. Essa ética desvelará um modo de ser estruturado a partir da dinâmica
instaurada pelo questionamento das determinações prévias do mundo e será
caracterizada pela responsabilização do agente por suas ações e pelo respeito à
dignidade do outro.
Para Joan Tronto, em primeiro lugar a ética do cuidado faz apelo à
responsabilidade e a relações mais do que a direitos e normas. Depois, uma tal ética está
mais ligada às circunstâncias concretas do que aos aspectos formais e abstractos.
Finalmente a ética do cuidado é expressa adequadamente não tanto por um conjunto de
princípios mas por uma atividade, a “atividade do cuidado.” (apud. PINTASILGO,
2012, p. 139).
Talvez o principal desdobramento desta ética originária seja o de colocar em
evidência a liberdade e a responsabilidade intrínsecas a esse homem que determina a si
próprio, para que essa característica humana, demasiadamente humana, seja tomada
como ponto de partida para o estabelecimento das relações humanas e da organização
da sociedade.
A grande maioria das éticas da tradição, pensadas e constituídas a partir da
metafísica, sempre vislumbraram um projeto de vida de teor normativo. Os
comportamentos humanos são adotados com vistas a se adequar a regras, normas ou leis
racionalmente constituídas a partir de fundamentos perenes e universalmente
reconhecidos por todos, trazendo consigo a promessa de superação de tudo que se
apresenta para o homem como estranho, desprazeroso e transitório, ou seja, trazendo
consigo a promessa de segurança e controle para a vida humana. A validade universal e
infinita tornaram-se premissas para os fundamentos que sustentam as máximas e regras
éticas. A própria constituição destas ocorre por meio do desenvolvimento de estratégias,
de escolhas de meios e fins e da realização de cálculos que justifiquem modos de ser
que garantam que suas finalidades sejam plenamente atingidas. Estas éticas prescindem
de um princípio da razão suficiente em que uma ação necessariamente tem que remeter
para algo dado, isto é, para uma causa identificável, para um conhecimento prévio.
Trata-se de uma espécie de adequação da ação humana a uma conduta previamente
35
determinada, fundada por orientações e referências que justificam a ação para além da
situação que se apresenta.
Na filosofia de Heidegger é colocado em evidência o caráter finito da existência
do homem, revelando a sua transitoriedade. O que se apresenta como um dever ser
nestas éticas da tradição para o homem não corresponde mais à sua essência. O homem
passou de um ente dado, pronto, determinado para um ente temporalmente constituído,
caracterizado por falta e indeterminação. O homem é essencialmente a sua existência. E
é, a partir desta falta que ele se constituirá. Portanto, a partir da assunção do homem
como esse ente que está sempre em formação, torna-se necessário pensar uma ética que
dê conta de seu caráter finito e indeterminado.
O desempenho do cuidado é a expressão máxima da liberdade do homem, onde
ele é para as suas possibilidades. É no cuidado que o homem se responsabiliza por sua
existência e confia a si mesmo a tarefa de se autodeterminar.
A coexistência com os outros, segundo a égide do cuidado, abre para o homem
um modo ético de ser com todos os homens. A preocupação com os outros,
caracterizada pela lida cuidadosa, libera o outro para as suas possibilidades e silencia o
discurso do mundo, de forma que se faça ouvir em sua consciência a voz do cuidado,
restituindo-lhe, finalmente, a responsabilidade de ser quem ele é. Conforme André
Duarte, “Para mostrar que Ser e Tempo contêm os traços de uma ética da finitude é
preciso argumentar que aquela obra vislumbra a possibilidade de um modo determinado
de ser com o outro que está na base da possibilidade da relação ética genuína, isto é, um
modo de ser com o outro que deixa o outro ser o outro, inspirado no acolhimento
silencioso e agradecido por sua existência, alheio à violência das relações humanas na
cotidianidade.” (DUARTE, 2010, p. 353)
O homem, tomado como ser-aí na filosofia de Heidegger, parece ser o único ente
que participa da constituição de seus comportamentos, podendo alterar de maneira
significativa as relações e orientações herdadas do mundo naquele momento histórico
em que sua existência se dá. Portanto, o homem participa de modo efetivo de sua
história. É ele que coloca em movimento e modula as estruturas prévias de interpretação
do mundo, alterando a sua significância, restituindo, desta forma, a plasticidade do
horizonte hermenêutico, onde a sua existência e a dos demais entes intramundanos
desenrolar-se-á. Desta forma, é possível afirmar que o homem, ao assumir um modo de
ser, participa da história do mundo. Porém, essa participação só se constitui no
acontecimento de uma mobilidade histórica do mundo quando efetivada pela decisão do
36
homem. A decisão envolve o espaço de constituição da ação no mundo em que o
homem assume a responsabilidade de ser em virtude de sua própria consciência.
Não se pode pensar uma ética para além da situação histórico-temporal em que
se vive. Entretanto, se pode pensar numa ética em que as possibilidades veladas no
discurso cotidiano estejam sempre em jogo na dinâmica de constituição do campo de
realização do homem. Por isso, o projeto de uma ética do cuidado se dá na forma de
modulações da significância do mundo, ou seja, ele não promove a possibilidade de
escapar do círculo hermenêutico, mas, antes, coloca em movimento as estruturas que
constituem o horizonte hermenêutico no interior do qual o homem se movimenta. A
mobilidade histórica do mundo enraíza-se, justamente, na mobilidade temporal do
homem.
Apesar de a autenticidade implicar a conquista de um modo de ser
absolutamente solitário pelo homem, ou seja, um modo de ser intransponível,
intransferível e inexorável, paradoxalmente, por outro lado, a existência desse homem
se dá num mundo compartilhado com outros entes intramundanos que vêm ao seu
encontro e que exigem dele comportamentos. O homem não escapa de existir, conviver
e ser mortal. Uma vez que o mundo se apresenta como um todo significativo
compartilhado, e à medida que um homem cuidadoso promove a rearticulação de suas
relações, esse mundo muda em suas possibilidades e os outros ficam sujeitos a elas.
Portanto, a responsabilidade do homem, revelada pelo seu caráter de cuidado, envolve o
total de sua existência e a dos demais homens. Cada caminho aberto pelo desvelamento
de possibilidades do mundo, promovido por um único homem torna-se uma nova
possibilidade no mundo de todos os homens. “A interdependência é constitutiva do ser
humano; a autonomia é a gestão das nossas dependências: dependências de nós em
relação a outros e ideias, dependência de outros em relação a nós. A autonomia é a
gestão dessa interdependência.” (PINTASILGO, 2012, p. 416).
Uma palavra de difícil tradução da cultura ancestral dos povos bantos na África
esclarece essa interdependência de maneira exemplar. A palavra ubuntu significa algo
como “eu sou porque nós somos”. É uma filosofia que existe em vários países africanos
e que se baseia nas alianças e no sentido de comunidade, cuidado mútuo e
compartilhamento. O complexo conceito banto evidencia, ainda, a necessidade de o ser
humano estar aberto às diferenças intrínsecas do outro e a enriquecer-se com elas. O
conceito do ubuntu define um indivíduo em termos de seus relacionamentos com os
outros.
37
O ubuntu não é um conceito coletivista, ele não diz respeito a uma classe ou a
uma raça, ele diz respeito a indivíduos. Essa ideia de que a minha humanidade depende
e exige a humanidade dos outros foi o centro do pensamento de Mandela para a
constituição de uma África do Sul pós-apartheid. Mandela compreendeu perfeitamente
que as pessoas dependem das outras para que os indivíduos e a sociedade prosperem.
Ele é a personificação do ubuntu.
Em conferência de Desmond Tutu, arcebispo anglicano emérito da Cidade do
Cabo e prêmio Nobel da Paz, definiu ubuntu como a essência do ser humano, de uma
pessoa. Nas suas palavras disse: "Eu preciso que você seja tudo o que você pode ser, de
forma que eu possa ser tudo o que eu posso ser. É que a minha humanidade está
envolvida em sua humanidade". Ubuntu, portanto, remete ao valor das pessoas, à sua
dignidade.
Tomando essas expressões ancestrais e a perspectiva da ética do cuidado que
procuramos apresentar, recorremos à constatação de Pintasilgo e à resposta de Morin
sobre a relação entre indivíduo e sociedade.
“Certo, as pessoas individuais são afetadas pela sociedade, dependem dela; em
certo sentido, são emanações dela. Mas, por seu turno, ao assumirem uma atitude crítica
na sociedade, aos colocarem-se na história como sujeitos de pensamento e de decisão,
geram a sociedade. A questão da prioridade entre o indivíduo e a sociedade não pode ser
resolvida senão na perspectiva em que se coloca Morin: a de um processo de
circularidade segundo o qual os indivíduos e as sociedades se co-produzem.”
(PINTASILGO, 2012, p. 375).
38
4.3. ÉTICA DO CUIDADO, SOCIEDADE E ESTADO
Numa sociedade em que se verifique a estratificação da dignidade humana, os
privilégios e as injustiças hão de proliferar. Os privilégios aparecem quando um está
abaixo e outro acima da lei, expressão máxima do totalitarismo. Não admitir a
humanidade do outro é requerer privilégios para si. Os direitos surgiram para regular
relações entre pessoas e pessoas e entre pessoas e o Estado investido pelas pessoas.
Porém, numa sociedade em que nem todos são "gente" o direito é legitimador de
injustiça. Por isso, surge a necessidade de mirar para antes das leis, regular relações
fundadas na dignidade humana e, a partir daí, buscar uma cidadania norteada pela
educação, pela multiplicação de possibilidades, pela proliferação das oportunidades.
Como diz Jessé Souza, é essa “dignidade”, efetivamente compartilhada por
classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros
numa medida significativa, que parece ser o fundamento profundo do reconhecimento
social infra e ultra-jurídico, o qual, por sua vez, permite a eficácia social da regra
jurídica da igualdade, e, portanto, da noção moderna de cidadania. É essa dimensão da
“dignidade” compartilhada, no sentido não jurídico de “levar o outro em consideração”,
e que Charles Taylor chama de respeito atitudinal, que tem que estar disseminada de
forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que, nessa sociedade concreta,
temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei. Para que haja
eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na
dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada. (SOUZA, 2003, p. 63).
O terreno em que será levantado o edifício da cidadania precisa ser o da
humanidade que todos partilhamos. As fundações desse edifício serão preceitos éticos
impregnados do que é comum a todos, o nosso caráter humano. Não há nada mais
humano do que as relações que estabelecemos no mundo. As relações consigo, com os
outros e com o mundo. A realidade se mostra nessas relações. Porém, a relação
reguladora das outras duas é a relação com o outro. Não há um eu sem o outro, nem
mesmo seria possível dizer “eu” sem a presença de um outro. O outro é fundamental
para que se estabeleçam as demais relações, e a ética funda, justamente, o
comportamento, o portar-se diante do outro, a relação com o outro. O comportamento
só adquire um valor quando o outro está implicado. Não se trata de abdicar do caráter
individual de cada ser humano, mas antes, de reconhecer a importância do outro na
39
relação entre indivíduos. Trata-se de deixar de encarar o outro como objeto ou meio
para alguma finalidade. É dar rosto ao outro e manter o seu rosto. Sozinhos, nos
perdemos nas nossas dores e angústias, sufocamos nos nossos medos. O outro oferece
referência, prumo, consolo, estabilidade. Trata-se de uma fusão de horizontes
significativos, de uma comunhão entre indivíduos. Toda estrutura social advém dessa
relação primária, portanto, quando essa estrutura dá sinais de que vai ruir e as relações
estão degeneradas há a necessidade de retomar as relações básicas para a sua reforma.
Esse trabalho é justamente sobre a necessidade da constituição de novas relações entre
as pessoas de modo a restituir o essencial na lida com o outro, a sua humanidade.
A relação entre o indivíduo e a sociedade é apresentada por Alain de Benoist de
maneira inequívoca:
“Hoje sabemos – desde muito tempo – que o homem é um
ser social, que a existência do homem não precedeu sua
coexistência; em suma, que a sociedade é o horizonte em
que se inscreve, desde sua origem, a presença humana no
mundo. Assim como o espírito só pode ser apreendido se
está encarnado, o indivíduo somente e pode situar-se
dentro de um contexto sócio-histórico determinado. A
pertença à humanidade jamais é imediata, mas mediata:
pertence-se a ela somente mediante a interpretação de uma
coletividade particular ou de uma cultura determinada.
Para o homem resulta impossível definir-se simplesmente
como indivíduo porque vive necessariamente em uma
comunidade com a qual entra em relação mediante
valores, normas, significações compartilhadas, e onde o
conjunto de tais relações, de tais práticas, em uma palavra,
de tudo aquilo que constitui se meio de vida e o entorno
em seu ser, não está sobreposto senão, pelo contrário, é
constitutivo de seu eu”. (BENOIST, 2013, p.120)
Ainda na esteira da autonomização do indivíduo em relação ao corpo social,
parece-me que o filósofo Charles Taylor toca num ponto fundamental no livro Ética da
Autenticidade. Ele cita que algumas abordagens éticas que levam em conta o caráter de
autenticidade parecem extrair o valor das ações a partir da própria possibilidade de
escolher. Se dada ação foi tomada por uma escolha pessoal essa ação é considerada boa,
caso contrário a ação será considerada ruim. Nada mais atual. A demanda por escolher
como as coisas devem acontecer é crescente e tratada como um valor em si. O direito de
escolha é o direito radical. Mas o direito de escolher simplesmente não existe! Em Ser e
Tempo de Heidegger entendemos porque ele não existe.
40
O filósofo alemão afirma que somos culpa. De que se trata tal afirmação? O que
Heidegger tenta nos mostrar é que existir é o mesmo que fazer escolhas. Como temos
que optar a cada momento de nossas vidas por tantas possibilidades quantas as que se
nos apresentam, ao escolher uma única em dada situação, acabamos por carregar a culpa
de não termos escolhido aos outras possibilidades disponíveis. O homem tem-que-ser,
ele tem que escolher. Ele não escapa do fato de ter que escolher. Portanto, a escolha não
pode ser um valor em si. Só se pode atribuir valor a algo se há opções disponíveis.
Como no caso da escolha ela não é opcional, mas inexorável, ela não pode ser
considerada um valor. O que dá valor às nossas escolhas é o que nos anima a
escolhermos determinadas possibilidades que o mundo nos apresentou, em detrimento
de outras tantas que deixamos de escolher. Como disse Sartre, estamos condenados a ser
livres, ou seja, a fazer escolhas e a ser responsável por elas. (SARTRE, 2002).
Talvez pela destituição de parâmetros éticos normativos de tradição metafísica,
que resultaram em perspectivas relativistas de toda sorte, as necessidades dos indivíduos
são supridas sem sacrifícios sociais. Essa possibilidade avilta a consciência de
cidadania, uma vez que o indivíduo passa a ser um consumidor de direitos sem valores
ao dever, faz a maturidade política vacilar. Preocupados que estão somente em aumentar
a sua utilidade, há que reforçar e fazer aceitar a responsabilidade como o outro lado da
cidadania.
Maria de Lourdes Pintasilgo explicita de maneira exemplar essa relação entre
direitos e responsabilidades:
- se temos direito à vida, temos também a obrigação de respeitar a vida;
- se temos o direito à liberdade, temos a obrigação de respeitar a liberdade dos outros;
- se temos o direito à segurança, temos a obrigação de criar condições para que cada ser
humano goze de uma segurança humana;
- se temos o direito de participar no processo político de nosso país e eleger os nossos
dirigentes, temos a obrigação de participar a e assegurar que os melhores dirigentes
sejam escolhidos;
- se temos o direito de trabalhar em condições justas e favoráveis, de modo a obter um
nível decente para nós e aqueles que dependem de nós, temos, também, a obrigação de
realizar com a maior exatidão, e até o máximo de nossas capacidades, esse mesmo
trabalho;
- se temos o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião, temos,
também, a obrigação de respeitar os pensamentos e os princípios religiosos dos outros;
41
- se temos o direito a ser educados, temos, também, a obrigação de aprender tanto
quanto as nossas capacidades nos permitam e partilhar o nosso conhecimento e
experiência com os outros;
- se temos o direito de beneficiar da abundância da Terra, temos também a obrigação de
a respeitar, de dela cuidar e de a restaurar, a ela e aos seus recursos naturais.
Resumindo, cada direito tem, sem dúvida, a responsabilidade que lhe
corresponde. Os direitos são expressões das relações constituídas entre cidadãos e
Estado que visam resguardar a dignidade de cada um, mas o que funda a possibilidade
de que tenhamos direitos são as relações interpessoais que se perfazem e se sustentam
na lida responsável com o outro.
No sentido oposto, o Estado deve lidar com as questões sob o primado da
dignidade de seus cidadãos, deixando de lado a lida pragmática e tecnicista que orienta
as suas ações em nossos dias. Enquanto a ética da justiça constrói todo o edifício
político sobre o ser humano como sede de direitos, a ética do cuidado toma em linha de
conta a posição eminentemente realista de que o ser humano também é um ser de
vulnerabilidades que, em numerosas situações, o impedem de se erguer para defender os
seus direitos. Uma ética do cuidado pode dar um novo ponto de partida ao papel do
Estado em relação às verdadeira prioridades políticas de sociedades em que a pessoa
humana deve ser o centro e o fim último de toda decisão política. (PINTASILGO, 2012,
p. 138).
42
4.4. ÉTICA DO CUIDADO E SERVIÇO PÚBLICO
O que se observa em nossos dias é que a prática usual da maioria dos servidores
públicos se encontra descolada da ética. Nem mesmo as atribuições básicas a que se
encontram submetidos são efetivadas. A repetição de certas práticas dá corpo a um
comportamento padrão que é encarado como normal. As próprias queixas dos usuários
são queixas resignadas. O mau serviço tornou-se, de alguma forma, moralmente aceito.
O protesto pode ser veemente, mas é sempre carregado de resignação. Ninguém escuta
o usuário, nem mesmo num canal de atendimento denominado por ouvidoria, fato
impregnado de ironia. Há, em algumas oportunidades, uma falsa boa vontade o que se
mostra pior do que a má vontade, pois esse tipo de falsa disponibilidade para a solução
de problemas, além de enganar o usuário, mina a sua confiança. Porém, é importante
não confundir boa vontade com a concessão de favores. Talvez aí esteja um problema
importante enfrentado na prestação dos serviços públicos.
A boa vontade no serviço público poderia ser caracterizada pela tentativa do
servidor em realizar tudo que esteja ao seu alcance para atender uma demanda do
usuário do serviço. Trata-se de um esgotamento das possibilidades diante dos limites
impostos pela situação que se apresenta e pelas condições de trabalho. Fazer tudo o que
é possível em determinado contexto. Essa é a ação ética por excelência, o cuidado a
estrutura. Ela é caracterizada por não ser possível naquele momento fazer nada além do
que foi feito. Já, quando caracterizamos uma ação como um favor, estamos dizendo que
a pessoa poderia ou não ter realizado aquela ação, poderia ter feito de uma ou outra
forma. Portanto, a concessão de um favor não representa uma conduta ética. Não cabe
ao servidor público a concessão de favores, mas a conduta ética diante das demandas
que são de interesse público. Grande parte do corpo de servidores executa o seu serviço
como quem está a conceder favores, ou seja, se for do agrado do servidor o serviço é
prestado. A prestação se encontra submetida aos seus humores e ao tempo estipulado
pelo servidor, do contrário ela simplesmente não ocorre.
Sobre a boa vontade Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, escreveu em sua obra
intitulada Humano, demasiado humano: “Entre as coisas pequenas mas infinitamente
abundantes e portanto muito eficazes às quais a ciência devia dar mais atenção que às
coisas grandes e raras está a boa vontade [Wohlwollen]. Refiro-me às expressões de uma
disposição amorosa nas interações, àquele sorriso no olhar, ao aperto de mãos, à
43
naturalidade que geralmente envolve quase todos os atos humanos. Todo professor, todo
funcionário inclui esse ingrediente naquilo que considera ser do seu dever. É a contínua
manifestação de nossa humanidade, seus raios de luz, por assim dizer, nos quais tudo
prospera (...) A boa índole, a cordialidade e a generosidade de coração (...) têm
contribuído muito mais para a cultura que as expressões muito mais reputadas desse
impulso, chamadas compaixão, caridade e abnegação.” (NIETZSCHE, 2005, p. 48)
Essa disposição amorosa nas interações de que fala Nietzsche é uma espécie de
escuta atenta ao ser do outro, uma acolhida do outro com toda a dignidade que lhe cabe,
uma lida cuidadosa com o outro. A conduta ética está expressa na boa vontade de uma
pessoa naquilo que considera ser do seu dever.
O dever do servidor de observar o princípio da impessoalidade nas relações
inerentes à administração pública é, por vezes, utilizado como justificativa para que o
usuário seja tratado com indiferença na prestação dos serviços públicos. Esse tipo de
apropriação do conceito dá margem para que servidores, de forma perniciosa e covarde,
obscureçam o caráter humano da relação pessoal que se estabelece entre eles e os
usuários. Ocorre a objetivação da relação servidor/usuário. A proibição da concessão de
privilégios a quem quer que seja, não pode ser interpretada pelos servidores como uma
salvaguarda para um comportamento que viole a dignidade do usuário de ser
reconhecido como outro ser humano. Esse princípio vigora para esclarecer que o serviço
não se refere ou não se dirige a uma pessoa em particular, mas às pessoas em geral,
porém, se refere ou se dirige sempre a pessoas.
Os limites de atuação do servidor público são definidos por leis, normas e
códigos e por suas condições de trabalho. Uma vez dadas as condições de que necessita
é seu dever prestar um bom serviço, mas há de se discutir os limites de atuação da
pessoa que foi investida no cargo de servidor público. Sem dúvida as condições de
trabalho no serviço público são, em sua maioria, muito ruins e a burocracia representa
uma força inercial que se faz presente a qualquer tentativa de movimento que possa
representar uma melhoria seja das condições de trabalho, seja do próprio serviço
público prestado. Não faltam exemplos de criatividade e superação diante das
dificuldades que são enfrentadas no serviço público. Iniciativas louváveis ocorrem e
devem ser estimuladas, mas o fato é que esse esforço fica muitas vezes confinado dentro
da máquina burocrática e não é percebido pelo usuário. Há que se ter nos processos uma
valorização do usuário e, por conseguinte, a valorização do trabalho com enfoque no
usuário. Temos que passar a enxergar os usuários implicados nos dados apresentados
44
numa planilha, num processo, num gráfico. Enxergar pessoas onde só há números. Dar
concretude ao abstrato.
Uma ação ética pode ficar aquém, além, ou ainda estritamente alinhada com o
previsto no arcabouço legislativo, dadas as condições de trabalho e a situação em que se
dá a prestação do serviço. A ação ética, caracterizada pela boa vontade, pode ficar
aquém do que está previsto face a impossibilidade do servidor realizar seu trabalho de
acordo com as suas atribuições, dadas as condições de trabalho que se encontram
disponíveis, por exemplo. De outro modo, essa ação pode ficar além do previsto nas
atribuições do cargo do servidor, quando há a ocorrência de uma situação em que a
conduta prevista em lei não dá conta de assegurar a integridade física ou a dignidade do
usuário e há a necessidade de tomar medidas contingentes e de caráter emergencial para
o atendimento da demanda que se apresenta caso existam condições para tanto. Porém,
as metas das políticas que estruturam o serviço público devem evitar a existência de
ações aquém ou além do previsto, mas antes, definir normas e atribuições para a
prestação do serviço e promover condições de trabalho suficientes para tanto, de
maneira que a ação ética convirja para o estrito cumprimento do que se espera dos
servidores, tendo em vista o cargo que ocupam e as funções que devem exercer para a
prestação de um serviço de qualidade ao usuário.
No Brasil ocorre um fenômeno diverso do observado nos países desenvolvidos
quando o assunto é o funcionalismo público. O quadro de servidores públicos em nosso
país é formado pelos melhores profissionais, tanto em competência quanto em
formação. Nos países desenvolvidos os trabalhadores do serviço público são
profissionais que não obtiveram oportunidades no serviço privado, portanto, em geral, o
quadro de servidores públicos é formado pelos seus profissionais menos gabaritados.
Enquanto no Brasil o serviço público vem sendo a primeira opção de emprego para a
maioria dos profissionais, nos países desenvolvidos ocorre o inverso. Não é nosso
objetivo investigar de modo aprofundado as razões para que essa inversão ocorra, mas
numa análise bastante superficial podemos apontar para duas características importantes
para que o profissional opte entre os setores público e privado: a sua valorização e as
oportunidades de desenvolvimento.
Essas características variam conforme o modelo de desenvolvimento
socioeconômico e o seu estágio atual em cada um dos casos abordados. Nos países
desenvolvidos o setor privado é caracterizado pela concepção e pelo desenvolvimento
de produtos e de serviços que exigem a presença de profissionais altamente
45
especializados para a sua realização na esfera privada. As empresas, a fim de atrair esses
profissionais, parecem tentar combinar, de maneira equilibrada, a oferta de
oportunidades de desenvolvimento e a sua remuneração, de modo que o funcionário se
sinta valorizado e atraído. Nesses países há, ainda, condições favoráveis em termos de
valorização e de oportunidades, para iniciativas empreendedoras por seus profissionais.
Portanto, o trabalho na iniciativa privada, em diversas áreas de atuação, parece se
mostrar como o mais atrativo pelos profissionais que não encontram as mesmas
condições no setor público desses países.
No Brasil o trabalho na iniciativa privada é caracterizado por atividades que
requerem pouca especialização e, em geral, seus funcionários são mal remunerados,
recebem poucas oportunidades de desenvolvimento, convivem com condições de
trabalho desfavoráveis e com a instabilidade econômica - mitigada nos últimos anos que coloca seus postos de trabalho em risco. No setor público destacam-se como
características uma remuneração média superior a do setor privado e a estabilidade no
emprego. Essa política pública voltada para o servidor tem por intenção atrair os
melhores profissionais para os quadros do funcionalismo publico.
Essa característica concernente aos servidores públicos em nosso país deve ser
entendida como uma oportunidade para que serviços públicos de qualidade sejam
prestados. O problema que acarreta uma prestação deficiente não se encontra vinculado,
portanto, à capacidade dos profissionais envolvidos. A possibilidade de melhoria dos
serviços é real se entendermos que o processo de mudança deve ter início com os
servidores e a sua conscientização sobre as responsabilidades que cabem a cada um,
manifesta em ações caracterizadas pela boa vontade para a prestação de serviços de
qualidade.
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CONCLUSÃO
A mudança de paradigma ético que procuramos apresentar nesse trabalho no
âmbito da prestação de serviços públicos é muito mais ampla e complexa.
Entendemos que há em uma sociedade democrática um movimento pendular
entre Estado e sociedade que passa pela prestação de serviços públicos de qualidade.
Essa instância mediadora pode ser uma grande catalisadora de mudanças importantes
para a expansão e a ampliação dos serviços que terão por resultado uma qualidade vida
superior para os cidadãos, contemplando mais pessoas. Hoje, esse movimento encontrase parcialmente interrompido. Quando acontece não é fluido, ocorre aos trancos, não
respeita a trajetória ou a frequência características desse movimento.
O movimento do Estado em direção à sociedade, contaminado pelas mudanças
que propusemos no âmbito dos serviços públicos, poderá ajudar a mitigar a inadaptação
dos indivíduos outrora não contemplados em ações do Estado, devolvendo a sua
dignidade, fazendo deles cidadãos capazes de terem uma visão crítica sobre a sua
condição, que poderá representar um despertar de sua responsabilidade e uma lida
respeitosa com o outro.
O movimento no outro sentido pode levar ao fortalecimento das instituições,
pode reforçar o papel do cidadão que estará mais disposto a fazer esforços para a
implementação de políticas públicas, pode estimular a participação dos cidadãos nas
decisões de caráter público e pode levar o cidadão a cooperar e confiar nas ações do
Estado.
Os serviços públicos constituem um amálgama composto pelo Estado e pela
sociedade. Essas instâncias hoje se encontram separadas e distantes. Com o intuito de
promover a cooperação entre ambas, as relações marcadas pelo subjetivismo e pelo
pragmatismo deveriam ser substituídas por uma relação caracterizada pela abertura de
um campo compreensivo-dispositivo em que os preconceitos de parte a parte seriam
silenciados e em que haveria uma escuta atenta ao que é característico ao ser humano.
As ações do Estado não perderiam de vista a dignidade dos indivíduos, enquanto os
indivíduos assumiriam a responsabilidade de suas ações e um modo de ser com o outro
que deixa o outro ser quem ele é.
Os serviços públicos têm esse papel importante e os servidores públicos podem
ser os primeiros a dar esse passo rumo à constituição de uma cidadania que não se
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reconheça nos direitos previstos em leis, mas no rosto do outro. Como diz a escritora
portuguesa Agustina Bessa-Luís em um de seus aforismos, "na nossa sociedade, que se
entende por permissiva, não há afinal homens exemplares. Há só leis que substituem o
exemplo; há só alíneas morais que estão em vez dos actos reais e da sua humanidade."
Nós, servidores, temos a oportunidade de sermos esse exemplo de nossa
humanidade, de assumirmos nosso caráter de cuidado e passarmos a prestar atenção ao
que acontece diante de nós, assumindo a responsabilidade que nos cabe em cada um de
nossos atos. Alguém tem que vencer a inércia e romper a capa de preconceitos que nos
ata a um modo de vida encurtado.
O exemplo é fundamental nesse processo. Ele promove a confiança mútua e
estimula a autoconfiança. A confiança não se reflete na expectativa de que o
acontecimento se repita, mas na expectativa que os valores mantenham-se íntegros,
independente do que aconteça. Segundo o filósofo romano Sêneca, o homem acredita
mais com os olhos do que com os ouvidos. Por isso longo é o caminho através de regras
e normas, curto e eficaz através do exemplo. (SÊNECA, 1991).
Por fim deixo a reflexão de Maria de Lourdes Pintasilgo que pode nos orientar
como indivíduos, cidadãos e servidores públicos a estabelecer relações que não percam
de vista a nossa humanidade: "Tornar-nos pessoas é descobrirmos a nossa lei interna, é
descobrirmos quais são os limites que temos dentro de nós, e dentro desses limites
fazermos, necessariamente, o máximo e o melhor." (PINTASILGO, 2012, p. 410).
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