CliniCAPS, Vol 5, nº 14 (2011) – Relato de Experiência
“A rotina do modo de gozo”: um caso único
"The routine mode of enjoyment": a unique case
Lilany Vieira Pacheco
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise,
Doutoranda em Ciência da Saúde-Saúde da Criança e do Adolescente - Faculdade de Medicina - UFMG.
E-mail: [email protected]
Maria Rachel Botrel
Psicóloga pela Universidade Fumec (1996)
Psicanalista - Escola Brasileira de Psicanálise - seção Minas Gerais
E-mail : [email protected]
Resumo: Trata-se de um caso de um adolescente com histórico de uso de drogas
associado a atos infratores, acompanhado por Maria Rachel Botrel no Programa
Liberdade Assistida de Belo Horizonte. O caso evidencia a importância do aparato
jurídico na estabilização desse jovem em relação ao uso de drogas e atos infratores, mas
revela, ao mesmo tempo, a psicose, quando a medida sócio-educativa é extinta,
colocando em cena um retorno súbito ao uso desregulado de tinner, tentativas de autoextermínio, enfim, a rotina do modo de gozo, uma vez que o sujeito se apresenta como
um corpo que só se sustenta quando entra em cena uma mulher que lhe dá o curso por
lhe faltarem o Nome do Pai e a orientação fálica como regulação de gozo.
Palavras-chave: adolescência, atos infracionais, uso de drogas, diagnóstico.
Abstract: This is a case of a teenager with a history of drug use associated with
offenders acts, accompanied by Maria Rachel Botrel Program in Assisted Freedom of
Belo Horizonte. The case highlights the importance of the legal apparatus in the
stabilization of this young man in relation to drug offenders and acts, but reveals at the
same time, psychosis, when the socio-educational measure is extinguished, by playing a
sudden return to the unregulated use of TInner, attempts at self-annihilation, finally, the
routine mode of enjoyment, since the subject is presented as a body that can only be
sustained when a woman enters the scene that gives the course as lacking the Name of
the Father guidance and regulation as phallic jouissance.
Keywords: adolescence, illegal acts, drug use, diagnosis.
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Trata-se de um caso acompanhado no Programa Liberdade Assistida1 cujo
“divino detalhe” que decide a “arte do diagnóstico” se apresenta após o cumprimento da
medida uma vez que, mesmo após a extinção imposta pelo Juizado, o LA continuava
sendo a referência tanto para F. quanto para sua família.
F. é um jovem de 20 anos. Em sua chegada ao Programa ele relata que vive com
a avó materna. Sua mãe e sua tia fazem uso de medicamentos controlados, seus irmãos
mais velhos saíram de casa e seu irmão mais novo está internado por overdose: injetou
cocaína misturada com medicamentos de sua mãe.
O cumprimento da medida traz efeitos à vida de F. Retoma os estudos e inicia
um curso de jardinagem. Nestes dois lugares, escola e curso, ele se deparou com a pior
dor que ele sentiu em sua vida. Chorando ele diz que é um sentimento estranho, algo
que ele nunca sentira antes. Ele diz que dói querer saber o que o outro pensa, o que o
outro quer dele. Diz: “me destaquei, não tenho preguiça, não importo em sujar as mãos
e muito menos com o dinheiro da bolsa”. Nos atendimentos dizia de seu sofrimento, não
sabia o que o outro achava. Pede que se busque uma avaliação pelo Programa, uma
palavra. Diz que sempre viu sua mãe, sua tia, seu irmão deitados, drogados e nada fazia
diferença. Nem uma palavra de aprovação ou reprovação.
No dia de seu aniversário alguns amigos o convidam para assaltar. Ele se
surpreende ao não ir, ele não sabe por que não foi, tinha motivos para ir. Ele escolheu e
não foi. Algum tempo depois ele conta que se surpreendeu quando foi ao Mineirão. Ele
e seus amigos sempre subiram pelas cordas. Naquele final de semana ele não quis subir,
ficou onde estava e viu os corpos baterem na parede com o balançar da corda. Ele não
entende por que não foi, mas afirma que então viu como os corpos se machucavam.
Ele conclui o curso, está freqüentando a escola tudo parece ir bem, consegue um
estágio, se mostra bem tranqüilo e deixa de comparecer aos atendimentos.
Chega irreconhecível, magro abatido. Diz que foi ao estagio uma semana, depois
pegou os vales e trocou por tinner. Começou a cheirar e era como se não fosse mais
parar. Diz que é assim da um passo para frente e dois para traz. Estava bem, então, viu
uns meninos no beco cheirando, entrou e ficou. Diz: “perdi a noção do tempo, foram
dias, mas não parecia, o tinner faz a gente não sentir o tempo, não sentir nada”. E
conclui: “às vezes parece que as coisas estão mudando, mas não mudam”.
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Medida Sócio educativa prevista no ECA executada pela PBH.
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Começa então a aparecer a rotina do modo de gozo de F. As rupturas,
a
capacidade e possibilidade de refazer uma ancoragem, que desse a F. uma mobilidade
ou certo transito no simbólico. Esta ancoragem, no entanto, não o lança, não o remete a
algo que o faça avançar – não o retira do lugar. Ao se deparar com o real ele não
encontra uma cena fantasmática, ele encontra cenas fantásticas que repetem sempre no
mesmo lugar.
Conhece uma garota no Shopping, ela lhe diz que seu sonho era pegar uma
mochila e sair pelo mundo, conhecer todas as cachoeiras que existem na terra. Ele que
não conhecia uma cachoeira foi com ela para Macacos. Depois disso nunca mais a viu.
No decorrer dos atendimentos encontra um homem que o convida para beber
uma cerveja. Este homem se chama R., o nome de seu pai. (F. foi registrado pelo pai de
seus irmãos, mas sempre soube que não era filho dele). Eles conversam e ele o convida
para assistir um filme, Kill Bill, no seu apartamento. Depois disso este homem se
propõe a ajudá-lo, inclusive financeiramente. F. constrói a hipótese de que, talvez, ele
seja o seu verdadeiro pai.
Próximo ao Natal diz de um encontro. Quando criança pedia esmolas. Era noite,
véspera de Natal, e acreditava que encontraria Papai Noel. Próximo à meia-noite um
carro parou e uma mulher lhe perguntou o que ele fazia ali. Ele responde que morava
longe e não tinha como voltar para casa. Ela o convida a entrar no carro e o leva para
casa. Ao descer do carro ela lhe dá um presente. Naquele dia ele diz que entendeu que
Papai Noel é isso: “uma pessoa que não tem medo de ser roubada”.
Relata que aos 3 anos de idade foi deixado na rodoviária por sua mãe. Ele não entende
por que sua mãe o deixou. Ela foi embora com um homem, levou seu irmão e o deixou.
A polícia o achou jogado e sua avó o encontrou e cuidou dele.
Após F. ser informado pelo Juizado que sua medida fora extinta fica algum
tempo sem contato com o LA. Um telefonema do Instituto Raul Soares informa que ele
está internado. Ele estava bem, trabalhando, até o dia em que resolveu pedir um
adiantamento para seu patrão para comprar uma TV para sua mãe. Diante da indiferença
demonstrada pelo patrão retorna para casa e encontra seu irmão saindo para assaltar. Ele
vai junto para conseguir o dinheiro para a TV. Quando voltam dividem o dinheiro e os
objetos. Começa então a passar mal, um sofrimento que só cessou com o tinner.
Voltando a si viu que seu irmão o roubara e levara os objetos de metal da casa.
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Revoltado começou a revirar a casa e encontrou uma série de contas que deveriam ter
sido pagas por sua mãe, com o dinheiro de seu trabalho. Diz que foi tomado por um
ódio e que para não agredir a mãe saiu de casa e se meteu numa briga que o levou ao
IRS. Na saída da internação sua mãe lhe diz que encontrou seu pai e que eles finalmente
se conheceriam. Desse encontro diz: “sabe o que é você olhar para alguém que não tem
nada haver com você, alguém que nunca poderia ser seu pai”. “Minha mãe não tem
jeito, ela é mesmo louca, você não imagina o que ela já me fez ver”. “Eu não tenho
coragem de dizer, não tem como dizer tudo que ela já me fez passar”.
No mês seguinte demanda ser internado. Diz que estava ali caso fosse preciso
dar alguma explicação ao juiz. Mostra o pescoço, e diz que tentou se matar. Diz que
foram muitas noites cheirando tinner dentro de casa sem parar até que ficou tão
insuportável que ele pegou uma faca e se cortou. Diz: “minha mãe ficou olhando, só
depois que eu desmaiei é que ela chamou o SAMU”. “Quando voltei para casa,
perguntei para ela por que ela não disse para eu parar, por que ela não me impediu.” Ela
responde que não sabia o que fazer. Ele estaria, então, indo para uma fazenda de
recuperação para afastar-se do tinner. Antes de sair mostra tatuados em seu corpo um F
e o escrito: “desculpa mãe”.
Dias depois de sua alta, um telefonema. A avó diz que ele está muito mal, que
precisa de ajuda. F. chega acompanhado pela mãe, agarrado a um pedaço de pano e a
uma garrafa de tinner. Diz que precisa ser internado, que não suporta mais. Chora ao
dizer que não conseguiu deixar o tinner nem para vir ao atendimento. Diz que tem que
ser internado. Em contato com o CMT somos orientados a encaminhá-lo ao Galba para
desintoxicação.
Ao retornar à sala a técnica se depara com a cena - ele cheirando tinner deitado
sobre o colo de sua mãe – ambos em prantos – diante da qual intervêm firmemente
colocando um ponto de basta e interrogando a necessidade de uma decisão quanto ao
tratamento de F. A despeito da mãe de F comparecer ao programa, lamentar-se, e dizer
que quer ajudar, confessa não saber o que fazer diante das situações em que testemunha
os cortes que retalham sua pele, cortando pequenos pedaços que ele diz brotarem de seu
corpo. A técnica sugere a possibilidade de que a mãe possa dizer algo, uma palavra. Ao
que ela responde dizendo que tenta, mas sempre lhe faltam as palavras embora pudesse
dizer que F. “é inteligente, aprende as coisas que ensinam a ele”. “Ele é um menino
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bom, de coração bom.” A técnica ratifica a importância de que isso seja dito a ele, que
ela também pode, como mãe, que pare de cheirar. Diz envergonhada: “Ele tem assaltado
mulheres na avenida para comprar a droga”.
Frequentemente F. interrogava a técnica que o acompanhava se ela não tinha
medo da sua profissão. “Ficar ali numa sala com marginais”. Ela poderia ser agredida,
roubada. Ele não entende, mas sempre pensa nisso. Pensa que alguém poderia roubá-la.
Lugar que na transferência entra em cena, a mulher que dirige o tratamento e pode
acompanhá-lo em seu percurso marcado pela impossibilidade de estabelecer uma lógica
de compreensão. Ele mesmo não sabe explicar o porquê de determinadas coisas
acontecerem. São pensamentos, encontros, rupturas que num primeiro momento
pareciam fantasiosos e que vão se revelando cada vez mais fantásticos.
Vários elementos se depreendem do caso, especialmente, destaca-se o modo de
gozo do sujeito e o destino que esse modo de gozo pode ganhar na relação transferencial
que transcende as regras prescritas no ordenamento jurídico. Evidencia-se que a
ancoragem para F. pode se dar quando encontra uma mulher que dirige o tratamento ao
demandar à mãe no momento em que precisa de ajuda.“Pede pra Rachel o curso, eu
preciso do curso”. Uma mulher que não tem medo de ser roubada é o nome que se
apresenta quando falta a F.os parâmetros definidos pelo Nome-do-Pai e pela norma
fálica.
Como ensina Miller2 “se não temos o standard em nossa pratica clínica, o
analista tem como bússola o “modo de gozar” que protege o sujeito frente ao real sem
lei. Diante da rotina do modo de gozo o analista tem o dever da elaboração, lá onde
todos os standards falham.”
Recebido em Julho de 2011
Aceito em Agosto de 2011
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MILLER, Jacques-Alain. A arte do diagnóstico:o rouxinol de Lacan. In Curinga n.23. Belo Horizonte:
Escola Brasileira de Psicanálise-Seção Minas, novembro de 2006.
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