LITERATURA
PROFESSOR: Vinicius Rodrigues
TURMA: 301
A Canção Popular na Cultura Brasileira Contemporânea
As fronteiras da literatura brasileira com a canção popular produzida no Brasil começam a ficar cada vez mais estreitas a partir do
momento em que o trânsito pelas duas vertentes também passa a ser igualmente natural. Os jogos de intertextualidade produzidos entre
estas duas manifestações é apenas um dos pontos a serem analisados. A referência literária constante na obra de artistas como Caetano
Veloso, Cazuza, Renato Russo e Chico Buarque também é um ponto que apenas deve ser lembrado, mas não tratado como definidor.
Analisar a Canção como manifestação particular da literatura é algo que hoje ganha cada vez mais força e torna-se elemento
importante nos estudos ligados à cultura nacional, principalmente levando-se em conta a importância que tem a música para a
história do Brasil e para o brasileiro – ela dita modas, contextualiza os anseios do povo, fala pelo povo (e sobre ele) e, na história do
século XX, ganha um papel político fundamental a ser observado.
BOSSA NOVA & VINICIUS DE MORAES
É ponto pacífico que esses laços da literatura com a canção popular ficam mais evidentes com a Bossa Nova, nos anos 50, e com a
intervenção do “poetinha” Vinicius de Moraes nesse movimento musical que nascia aos poucos, fruto de uma vontade de fazer um som
verdadeiramente “brasileiro”, próprio, original. Poeta já consagrado antes de iniciar sua parceria frutífera com o maestro Tom Jobim,
Vinicius viu na música a possibilidade de expressar outros temas que o interessavam (notavelmente, a mulher, as paixões
desmedidas, o lirismo do observador urbano e objetivo e os amores impossíveis). A união com Tom iniciou com a adaptação da
peça de Vinicius, Orfeu do Carnaval, para tornar-se aquela que talvez tenha sido a mais inigualável das parcerias da música brasileira – tão
inigualável e perfeita como Lennon/McCartney ou Mick Jaegger/Keith Richards (respectivamente, as duplas formadas pelos principais
compositores das bandas inglesas The Beatles e The Rolling Stones). Com o álbum Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, que
contava com a canção “Chega de Saudade”, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, dá-se o marco inicial da Bossa Nova, nome que
simplesmente refere-se a uma nova forma de tocar o samba, uma batida, diz-se, inventada por João Gilberto, que tocava violão no
álbum de Elizeth Cardoso – uma fusão das “levadas” do jazz norte-americano ao ritmo brasileiro do samba. Muito atual à sua realidade,
“Chega de Saudade” é o que se pode chamar de canção-manifesto, que prega o fim dos chorosos sambas-canção da
década de 50 e aponta a renovação estética da música brasileira, numa nova maneira de “ver a vida”:
Vai, minha tristeza
E diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de min
Não sai
Mas, se ela voltar
Se ela voltar
Que coisa linda
Que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços, os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertados assim, colados assim, calados assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De viver longe de mim
Não quero mais esse negócio
De você viver assim.
Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim.
Esta forma de ver a vida, convém ressaltar, está amplamente relacionada ao contexto histórico geral no qual surgiu a Bossa Nova:
eram os “anos JK”, o governo do presidente Juscelino Kubitschek, e a euforia de uma nova república ecoava no imaginário brasileiro; o
sentimento de modernização e renovação do país eram latentes, mesmo após enfrentar traumas incomparáveis como o suicidio de seu
grande estadista-símbolo, Getúlio Vargas, e a derrota na final da Copa Mundial de Futebol de 1950, em pleno estádio do Maracanã. Da
mesma forma, portanto, floresceram outras manifestações artísticas renovadoras a partir desse período, como o Cinema Novo,
capitaneado por Glauber Rocha, e outros movimentos ou “levantes” musicais, sem dúvida, influenciados pela modernização da Bossa
Nova.
O otimismo e a simplicidade da linguagem do cancioneiro bossa-novista aparece também em “Samba da Benção”,
canção-chave na obra de Vinicius, recheada de metalinguagem, composta em parceria com o violonista Baden Powell:
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
Senão, é como amar uma mulher só linda...
E daí?! Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste,
Qualquer coisa que chora
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher
Feita apenas para amar
Pra sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão.
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
- Cuidado, companheiro!
A vida não é de brincadeira, não
A vida só tem uma
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me provar muito provado
Com certidão passada em cartório do Céu
E assinado embaixo: “Deus”
- E com firma reconhecida!
A vida é a eterna arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida...
Ponha um pouco de amor na sua vida!
Como no seu samba...
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Após o grande estouro da Bossa Nova, seus integrantes apontaram para caminhos diferentes, mas sempre dentro de uma
estética brasileira, nunca se distanciando completamente das raízes bossa-novistas. As parcerias que Vinicius angariou após o encontro
com Tom Jobim são também fundamentais para entender a herança desse movimento: após Tom, houve Carlos Lyra (onde predomina a
temática urbana), Baden Powell (com quem compôs os afro-sambas – talvez uma das mais ricas experiências musicais da
história, de profunda pesquisa nas raízes do Candomblé e da Umbanda) e, por fim, Toquinho – com quem fundiu todas as
vertentes e agregou uma nova faceta: o cancioneiro infantil (com a obra A Arca de Noé).
Não fosse João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes e a Bossa Nova, talvez não existisse também a geração de
compositores geniais que veio posteriormente. Entre eles, certamente, estão Caetano Veloso e Chico Buarque, por exemplo, artistas do
cânone da nossa canção.
CAETANO VELOSO & TROPICÁLIA
Caetano Veloso sempre teve uma produção voltada para a questão da inovação estética. Desde os seus primórdios, no final dos
anos 60, passando pelas tentativas de reinvenção dos anos 80 até os anos 2000, à época do lançamento de seu disco Cê (2006), um disco
de rock, puro e simples. Em sua obra sempre houveram as profundas análises filosóficas que tornaram célebres e, ao mesmo tempo,
herméticos seus discursos acerca da alma humana. As referências ao mundo baiano (pois nasceu no estado da Bahia), sempre o
identificaram como um artista muito ligado às suas origens, uma vez que imperam em seu texto as imagens nordestinas e ritmos
característicos, como os adaptados do Candomblé, o xote, entre outros. Entretanto, nas letras deste grande representante da MPB (a
Música Popular Brasileira) apresentam-se aqueles temas clássicos, caríssimos à poesia, como o amor que, em Caetano, sempre se revela
em tom profundamente confessional.
O surgimento para a posteridade de Veloso data da segunda metade da década de 60, com o estouro da música “Coração
Vagabundo” e a grande repercussão de “Alegria, Alegria”, grande sucesso de 1968. De profunda observação do cotidiano, “Alegria,
Alegria” tornou-se uma referência para aquela geração e para entender aquela época.
Aproveitando-se dessa exposição e a de seu outro grande parceiro, Gilberto Gil (que havia estourado no mesmo ano com a
música “Domingo no Parque”), Caetano viu que esse era o propício momento para colocar em pauta a sua visão de cultura e arte, uma
visão nova, que ressoava elementos do Modernismo de 1922 (de Oswald e Mário de Andrade), à qual angariou outros parceiros que
compartilhavam essa nova proposta. Assim nasceu a Tropicália, movimento cultural de profundas raízes na música, mas que também
teve participação nas artes plásticas, com Hélio Oiticica, no cinema (um exemplo bem pontual é “Macunaíma”, adaptação da obra
de Mário de Andrade, pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade) e no teatro, com o grupo do Teatro Oficina (que adaptou “O
Rei Da Vela”, peça esquecida do modernismo brasileiro, escrita por Oswald de Andrade).
Tropicália ou panis et circences (1968)
Tropicália ou Panis et Circences é o nome do LP que, em forma de manifesto cultural, deflagrou
o movimento tropicalista.
O Tropicalismo tinha, como base, as novas tendências das artes pós-modernas que vinham
de fora do país e que também guardavam manifestações ainda tímidas em território nacional – como a
poesia concretista e o rock que se tornava, com cada vez mais força, uma manifestação de massa, de
proporções gigantescas. Além disso, os tropicalistas visavam muito a idéia de mistura, de colocar todos
os elementos favoráveis à vista para que se produzisse uma arte original, mas que também estivesse
aberta tanto à tradição e ao diálogo com o passado, quanto à modernidade, sem fazer distinção entre
erudito e popular, valendo-se, em grande parte, justamente do popular e da indústria cultural massiva.
Daí a idéia de misturar Beatles, Carmen Miranda, samba, rock n’ roll e regionalismo brasileiro, numa
espécie de releitura do conceito de antropofagia dos modernistas brasileiros do início do século XX.
A canção “Geléia Geral”, composta por Gilberto Gil e pelo poeta Torquato Neto (outro entusiasta do movimento) é um
exemplo pontual do que os tropicalistas queriam comunicar, cheia de símbolos e referências importantes:
Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o jornal do Brasil anuncia
Ê bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
Ê bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi
"A alegria é a prova dos nove"
E a tristeza é teu Porto Seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Super poder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade, jardim
Convém lembrar, entretanto de outro texto fundamental: a canção-título do álbum, “Tropicália”, de Caetano, que, na verdade,
encontra-se em álbum anterior a Panis et Circences, solo do próprio compositor, e que também, por sua vez, sintetiza as diretrizes
desse emergente movimento, como num manifesto, além de referir-se ao seu próprio tempo como um momento de real
transformação cultural no Brasil, onde, inclusive, a Jovem Guarda é citada:
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada de uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira entre os
girassóis
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
No pulso esquerdo bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre mim
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Domingo é o Fino da Bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
Do álbum Tropicália, ainda faziam parte Os Mutantes, uma das principais bandas da história do rock nacional, os cantores Tom
Zé, o maestro Rogério Duprat, entre outros. É d’Os Mutantes outra canção memorável, porém composta também por Caetano Veloso:
“Baby”, que mistura, em seu arranjo musical, elementos da batida da Bossa Nova, mas que, principalmente, marca o valor
dado ao consumo e ao que é importado tão lembrados pela Tropicália (o que também justifica, por sua vez, o valor que os
tropicalistas davam à Jovem Guarda). “Baby” não é um apelo ao consumismo desenfreado, muito menos uma negação às tradições de
matriz brasileira, mas uma canção que mostra que uma cultura jovem está se impondo e, às vezes, convém relaxar e experimentar o que
essa cultura de massa pode proporcionar.
Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby, baby
Eu sei que é assim
Baby, baby
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete
Andar com gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby, baby
Há quanto tempo
CHICO BUARQUE
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais...
Não sei
Comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Você precisa...
Não sei
Leia na minha camisa
Baby, baby
I love you
Filho ilustre de uma família com tradição intelectual consolidada no Brasil (os Buarque de Holanda), Chico gradualmente migrou
da música para outras esferas de cultura e de literatura: tornou-se dramaturgo e ficcionista, sempre arrancando muito sucesso de público
e crítica em todos os âmbitos. Buarque representa, entre outras coisas, o comportamento de uma geração na música
brasileira. Depois do sucesso da Bossa Nova, a realidade política e social propiciou o surgimento de uma nova concepção
musical na qual o artista tem o papel não só de divertir, mas de alertar e denunciar, do qual são fruto a Tropicália e a canção
de protesto. A partir de então, há uma espécie de racha na música brasileira, entre os artistas que procuravam lirismo e os que
procuravam engajamento. O primeiro hit de Buarque, “A Banda”, reflete um comportamento inicial do autor ainda pacífico e
omisso diante da problemática social, num louvor à contemplação passiva:
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor (...)
Na letra, entretanto, já observamos um desprendimento moderado, apontando que a alegria é também uma necessidade
diante da adversidade.
Todavia, a postura de Chico só viria a concretizar-se num comportamento revolucionário e provocador a partir de
“Roda Viva”, canção-título da peça de sua autoria que havia sido censurada:
(...) A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá... (...)
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá... (...)
Tomando partido nesse momento histórico crucial do Brasil, Buarque torna-se um bastião da liberdade de expressão, é
exilado, censurado, mas sempre tenta “driblar” a adversidade, chegando a criar um pseudônimo para compor: Julinho de
Adelaide.
Acorda Amor
(Julinho de Adelaide)
Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o
ladrão
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão
Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão,
chame o ladrão
Não esqueça a escova, o sabonete e o
violão
Acorda amor
A temática social e o comportamento subversivo de Chico Buarque, entretanto, nunca esconderam um compositor voltado à
tradição. Seus sambas e seu modo de criar melodias sempre foram voltados a estilos musicais tidos como “antiquados” pela vanguarda da
época – enquanto os tropicalistas e a Jovem Guarda faziam rock, Chico estava muito mais alinhado com os artistas da
Bossa Nova, por exemplo. Claro que nada impedia que o autor criasse pequenas obras-primas extremamente inovadoras, como
“Construção”, canção que traz tanto a temática social quanto o foco quanto à inovação estética:
Construção
(Chico Buarque)
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
Deus lhe pague
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
(Chico Buarque)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE, Mario. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.
ANDRADE, Oswald. “Manifesto antropófago”. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro: apresentação e
crítica dos principais manifestos vanguardistas . Petrópolis: Vozes, 1978.
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Ed. 34, 1997.
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Vai, minha tristeza E diz a ela Que sem ela não pode ser Diz