Ruth
A HISTÓRIA não anda para a frente. Aliás, ela não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos.
Ou não vamos. No final de 1999, o responsável pelas relações do Banco Mundial com a
sociedade civil, freqüentador assíduo de nossas atividades, me dizia, num restaurante no
aeroporto do Galeão, que Ruth fazia um trabalho extraordinário, mas não seria bem
compreendida porque estava dez anos à frente da sua época. O que diria ele agora, quando
depois de Ruth fomos parar em algum lugar do passado, 20 anos atrás? A morte não tem
sentido. A menos aquele que os vivos lhe emprestamos.
É uma característica dessa qualidade da alma que chamamos humanidade buscar na morte
um sentido para a vida. Eis a origem do elogio fúnebre. No passamento de Ruth vejo o sentido
daquelas coisas que não quero que passem: o apego à força da verdade e a rejeição a
qualquer forma de manipulação do outro, sobretudo as formas hierárquicas de poder que
exigem obediência.
Em quase uma década de convivência, Ruth jamais nos disse, a nós, que trabalhávamos com
ela como conselheiros da Comunidade Solidária, o que deveríamos fazer. Nunca tomou uma
decisão em assuntos nos quais estivéssemos envolvidos sem antes nos consultar. Recusava o
mando, o controle que transforma colaboradores em objetos ou em instrumentos de qualquer
propósito pessoal ou coletivo de que não compartilhassem como pares, sempre como iguais.
Curiosamente, era fácil irritá-la. Bastava elogiá-la para tentar captar-lhe a confiança com vistas
a obter dela algum favor ou benefício. Bastava, aliás, chamá-la de primeira-dama. Se
começasse assim, o interlocutor já podia desistir do seu intento. Nossa professora o
desqualificaria antes mesmo da prova. Por sua banca pessoal não passavam os interesseiros.
Ruth conseguia promover essa unidade, estranha para muitos nos tempos que correm, entre
vida pessoal e vida política. Embora nunca tenha misturado a esfera privada com a pública, era
sempre a mesma pessoa, estivesse numa recepção palaciana a um chefe de Estado,
conversando com agricultores no São Francisco ou almoçando conosco, seus parceiros, em
um restaurante em São Paulo.
Mas tinha opinião, ah!, isso ela tinha. Não acreditava no velho sistema político que agora se
derrama em exaltações póstumas. Durante os oito anos da Comunidade Solidária, jamais vi na
sua agenda aqueles célebres atendimentos clientelistas a parlamentares, nem mesmo aos do
partido do marido. Sei bem, pois minha sala ficava ao lado da sua.
Seu comportamento inédito causava irritação, é óbvio, mas a serenidade e a firmeza moral que
emanavam de seus gestos e atitudes desestimulavam qualquer protesto. E ela em privado ria à
solta quando vinham lhe dizer que um deputado, senador ou dirigente partidário tentou
apadrinhar ou aparelhar algumas das ações que promovíamos.
Ruth era suave, tinha aquele poder "doce" que os velhos alquimistas percebiam na natureza,
mas era também muito crítica, inclusive em relação ao governo Fernando Henrique, ao qual,
aliás, nunca pertenceu formalmente.
Quando dizíamos isso, as pessoas não acreditavam: mas como? Ela não é a mulher do
presidente? Como se o fato de ser esposa do governante a tornasse também uma funcionária
do governo: o que não era, nem nunca auferiu nenhuma remuneração por seu trabalho.
Fosse diferente a relação que nossa cultura ocidental estabeleceu com a morte, seria melhor
reconhecer que a experiência humana que presenciamos sob o nome de Ruth Corrêa Leite
Cardoso foi uma vida realizada e emprestar-lhe um sentido para a caminhada que continuamos
do que lamentar o seu desaparecimento.
Claro, todos nós sentimos a perda, que, a mim, em particular, me afeta profundamente, depois
de dez anos de trabalho conjunto, muitos diálogos e convivência praticamente cotidiana. Dez
anos não são dez dias. A gente sofre porque é como se perdesse uma parte do próprio corpo.
Mas Ruth cumpriu bem seu tempo nesta terra, com elegância e, mais do que isso, com
sublimidade. Sofreu, sim, nos últimos anos, ao assistir ao derruimento sistemático das bases
de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade que tanto se esforçou por construir.
Passou-se a tempo de não sofrer mais. Foi poupada do que ainda virá.
Pobres de nós, que teremos de agüentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos
associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar.
AUGUSTO DE FRANCO, 57, escreve no blog 24 horas ( www.vintequatro.com ) e é autor,
entre outros livros, de "Alfabetização Democrática" (2007). Foi conselheiro e, com Ruth
Cardoso, integrou o Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante o
governo Fernando Henrique (1995-2002).
FRANCO, Augusto de. Ruth. Folha de S.Paulo, 26 jun. 2008.
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