Fantasmas e Anjos
Angela Dal Pos
Acordo num sobressalto no meio da noite, tentando enxergar na
escuridão. Mamãe não deixou a luz do corredor acesa como eu pedi. Papai
deve ter apagado. Espera eu dormir e apaga. A sombra dos móveis apavora.
Vou me encolher na cama e me concentrar para afastar os pensamentos maus.
Não me importo de dormir sozinha, desde que alguma luz na casa fique acesa.
Esse é o trato. E agora, como vou sair daqui no escuro, atravessar o corredor
até o quarto dos meus pais? Tive um pesadelo, estou com uma sensação ruim.
Abro e fecho os olhos, e as cenas continuam. E se o anjo mal, igual àquele
pintado no teto da Igreja São Pelegrino, aparecer? Se eu fizer o sinal da cruz,
pode ser que ele não venha. Papai do Céu, me proteja. Santo Anjo do Senhor,
meu zeloso guardador... Uma casinha branca no campo... Não, branca não,
lembra cemitério. Uma casinha verde, árvores em volta, uma rede, um
cachorro. As cenas do sonho de novo. Vou abrir os olhos para fazer sumirem.
Ui, o escuro é pior, que medo! Quero chamar minha mãe, estou sem coragem.
Mãaaaaae! Chamo três vezes pela mamãe, e ela não vem. Menti no colégio,
disse que o casaco era meu. Não era. Perdi o meu outro dia, alguém deve ter
pegado, então, peguei o de alguém. Eu sei, por isso estou sendo castigada, o
anjo mau quer controlar meu sonho. Pensa que sou menina má. Eu não sou.
Sou menina bonita. Espio o ambiente de novo. A sombra das bonecas de
cabelos cortados, quase carecas, não conforta. Eu quis imitar o trabalho da
mamãe, pensava que os cabelos cresciam. Não foi por mal. Será que papai já
chegou? Gostaria que ele chegasse, acendendo as luzes. As outras vezes que
ele chegava, no meio da noite, eu não gostava. Quando preciso abrir a porta,
porque mamãe tranca por dentro com o trinco, muito menos. Eles discutem. Às
vezes mamãe chora. Só essa noite, eu não ia me importar. Quem mandou
mentir para a professora e cortar o cabelo das bonecas? Tinha apanhado e
tudo e ainda o sonho e se algum fantasma aparecesse! Sinto meu coração
pulando perto da garganta. Quando respiro, o ar faz barulho, entrando e
saindo, bem ligeiro. Parece que ficou mais grosso. Se fosse a menor, poderia
dormir no quarto deles, lá tem um berço. A mana é quem dorme nele. Queria
dormir no meio. Não gosto de apanhar. Tem vezes que mamãe não se importa;
tem vezes que briga. Papai não diz nada. Uma casinha verde, com árvores,
muitas árvores, uma janela, com flores... Está muito escuro, não está
adiantando. Papai ensinou a pensar em coisas boas quando tenho pesadelos.
Meu pai é engraçado, minha mãe é braba, mas gosto deles igual. Tenho mais
medo da minha mãe do que do meu pai. Já apanhei de chinelo dela, não do
papai. Talvez fosse melhor chamar meu pai. Não sei se ele está em casa. Já
ouvi mamãe dizer que quer se separar, que vai ser bom, porque vou morar com
ela numa casa com piscina. Eu gosto de piscina, não no inverno. Diz que papai
vai nos visitar. Uma vez, quando eu era bem pequena, eu e minha mãe
moramos no hotel por um tempo. Eu gostei porque meu pai me levava passear
todas as terças e quintas à tardinha. Queria um cachorro; mamãe não deixa.
Aqui em casa tem parquet no chão, e estala quando a gente pisa. Quando não
pisa, também, como agora, e assusta. Eu quebro os brinquedos. Meus amigos
me visitam, e não os faço arrumar os brinquedos depois. Eles saem, e preciso
arrumar sozinha. Mamãe me xinga e diz que sou boba, pois, na casa deles,
sou obrigada a arrumar antes de ir embora. Tenho vergonha de pedir que me
ajudem. Um pouco é porque quero aproveitar todo o tempo brincando. Tudo
bem arrumar sozinha. É só colocar dentro da caixa, assim, bagunçado mesmo.
Minha prima tem os brinquedos todos inteiros, a mãe dela não deixa brincar. As
bonecas estão nas caixas, com os cabelos e as roupas limpas. Eu queria ter
meus brinquedos inteiros e limpos. As bonecas são bonitas quando novas, e os
cabelos brilham. Mamãe diz que os brinquedos são feitos para brincar, não
para ficar nas caixas. Não tenho coragem de contar para as amigas que tenho
medo do escuro. Não sei se elas têm, acho que não me contariam. Outra prima
dorme de luz acesa. Se eu for correndo para o quarto da mamãe, acordo ela e
digo que sonhei. Azar se eu apanhar, pelo menos não fico aqui sozinha,
pensando coisa ruim. Pode ser que papai não tenha chegado, e mamãe me
deixe dormir com ela. Se a mana já estiver lá, não tem problema, porque nós
duas cabemos. Se papai chegar, nos leva para nossa cama no colo, porque já
acordei várias vezes de volta no meu quarto. Basta um salto, corro e já estou
no corredor. Acendo a luz e pronto. Nenhum fantasma me pega. Um, dois três
e já! Oh não, a porta está fechada. Agora estou em pânico. Não quero ficar só.
Quando a porta está fechada, não é para entrar. É para bater ou chamar.
Menina bonita não chora. As lágrimas são salgadas. O parquet está frio sob
meus pezinhos. Mãããe! Ninguém me escuta. A porta abriu. É o papai, quer
saber o que houve. Não consigo falar, estou chorando muito. Ele me pega no
colo. Olho em direção ao lugar vazio da mamãe na cama e me abraço com
força ao pescoço do papai. Fecho os olhos. Não quero lembrar que mamãe foi
morar com os anjos.
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