Entrevista com Cristiane Knijnik (CRP 05/39275), psicóloga integrante do programa de
Residências Terapêuticas do município de Paracambi
1) Por que é preciso desinstitucionalização da saúde Mental?
Primeiro, ela não é precisa, ela é uma escolha ética e política que fazemos. Dentro dessa
perspectiva, eu posso dizer por que essa é uma escolha importante que eu afirme e defenda. A
desinstitucionalização não é um processo só para as pessoas institucionalizadas, as que estão
dentro dos hospitais psiquiátricos. A desinstitucionalização é um processo que abarca tanto
essas pessoas quanto as pessoas que trabalham nesses hospitais e também a cidade, que é o
lugar onde essas pessoas vão circular, só que de outra maneira. Muitas vezes falamos: vamos
inserir essas pessoas na cidade, mas se elas estão nos hospitais psiquiátricos elas também
estão inseridas, embora estejam enclausuradas. A cidade funciona desse jeito e só pode
funcionar assim porque as pessoas estão lá enclausuradas. Não é simplesmente uma questão
de inserir, mas é uma questão de como vamos transformar essa cidade com a chegada dessas
pessoas de outra maneira que não mais enclausuradas.
Então, o que eu queria dizer é que desinstitucionalizar é desinstitucionalizar uma prática de
trabalho e um modo de vida. Porque a chegada dessas pessoas faz a gente repensar algumas
coisas, como, por exemplo: uma pessoa que tem dificuldade para andar, porque ficou
enclausurada um tempão e andava pouco... então, quando ela sai para pegar um ônibus, ela
precisa de um tempo maior para descer do ônibus. Essa questão é só dela ou podemos pensar
que
outras
pessoas
podem ter a mesma dificuldade?
É
para pensarmos
na
desinstitucionalização como uma questão para todos nós.
2) O que a desinstitucionalização representa para as pessoas que, atualmente, estão
internadas?
Houve uma pesquisa com usuários em uma cidade do Sul e a resposta deles foi: isso é bom
porque quando eu quero comer, eu como, quando eu quiser dormir, eu durmo, a hora que eu
quero sair, eu saio. Então, há uma primeira questão que tem a ver com a libertação, porque
não é liberdade - não é porque saiu do hospital que tem liberdade, mas certamente tem muito
mais condições de ter um grau maior de liberdade fora do hospital do que dentro dele. Dentro
do hospital, eles têm hora para tudo, para comer, tomar banho etc. E tem um ambiente muito
árido também, onde nada entra e nada sai; não tem aquilo que chamamos de porosidade: não
circulam coisas, não circula a vida, não circula nada. A questão central é a liberdade para eles.
Eu sempre escuto isso deles: o que muda é poder, em alguma medida, cuidar da sua própria
vida, e não delegar a outro que cuide dela. A vida dentro do hospital vai se restringindo à
dimensão funcional: não se come para sentir o sabor da comida, se come para se manter vivo;
não se toma banho para ficar cheiroso porque vai encontrar alguém, mas para se limpar etc.
Essa também é uma questão para se pensar.
3) Que papéis desempenham a rua e a cidade no contexto da Reforma?
A rua e a cidade não são, ao contrário do que pensamos e idealizamos, locais de acolhimento.
Poderiam ser, mas não são. A rua é a possibilidade de nos livrarmos da própria saúde mental.
Achamos que, se essas as pessoas viveram em hospitais psiquiátricos, então quem tem que
estar em contato com elas e dar conta dessa questão são os profissionais da saúde. A vida é
muito grande e restringimos o ambiente de circulação dessas pessoas e o contato delas só a
profissionais de saúde, e isso é uma forma de criarmos outro manicômio, só nosso.
Então, a cidade é o principal, se não fizermos na cidade, não tem Reforma Psiquiátrica. Só que
a cidade não está pronta ainda, ela não é uma entidade que está querendo acolher as pessoas.
Não é assim. Como é que podemos ocupar, habitar a cidade, sem ficar nesse discurso “ai
coitadinhos, pobrezinhos deles, por favor, recebam eles”. Porque, com isso, ficamos no
assistencialismo. Eles não são pobrezinhos, eles têm muita cosia para nos dizer, inclusive sobre
nós mesmos, sobre a nossa cidade, sobre como ela funciona. É por isso também que lutamos
para as pessoas estarem nas ruas. Eu acho que intervimos na cidade quando estamos com
eles. Enfim, fazemos muita coisa acontecer.
4) Que outros elementos estão inseridos nesse contexto, tais como cultura, trabalho etc.?
O manicômio é uma construção de um modo de vida para todos nós. Então, sair do manicômio
é a construção de um outro modo de vida para todos nós. E todas as invenções que podemos
pensar da vida, como a cultura, a economia, a arte, enfim, tudo isso está em questão. Quando
falamos, por exemplo, de morar, que é uma coisa importante na desospitalização: como essas
pessoas nunca tiveram uma casa, elas não moram como moramos nós, que sempre tivemos
uma casa. Por mais que cada casa seja diferente, é como se houvesse uma linha que perpassa
todos nós que moramos em uma casa. Essa linha não perpassa essas pessoas, porque muitas
nasceram em uma casa, mas passaram muito mais tempo em um hospital. Toda a referência
de morar é uma referência que a maioria deles não tem. Por isso, a maioria que não volta para
a casa de familiares vai para as residências terapêuticas. Não adianta chegar em uma casa para
começar a morar, porque morar é habitar uma casa, ocupá-la, e isso envolve uma relação com
a casa, que é, por exemplo, poder cozinhar, poder se deitar na rede, poder criar um espaço
que seja o seu espaço, que você possa arrumar da sua maneira. Tudo isso vai ser construído
com eles, mas não vai ser construído do mesmo modo que a gente habita, porque eles vivem e
habitam de uma outra maneira. Então como é que a gente pode fazer isso junto, fazer com
que essa casa possa ser a casa deles? Isso não é fácil.
5) O que são essas residências terapêuticas?
As residências terapêuticas são inexplicáveis, e é por isso que elas são bacanas. Não damos
conta de explicar totalmente o que elas são, e elas são para isso mesmo, para inventarmos
sempre uma nova maneira de morar. Grosso modo, elas são casas, apartamentos ou quartos
onde as pessoas que perderam seus vínculos com hospitais psiquiátricos vão morar. A Lei
10.216/2001, que cria e diz como devem ser essas residências, diz que não pode haver mais do
que oito moradores e que deve haver um incentivo do Ministério da Saúde para cada
residência que abre. O financiamento se dá da seguinte forma: quando se fecha um leito no
hospital psiquiátrico, o dinheiro, chamado de IH, que o governo pagava para o hospital passa a
ir para a residência. Esse seria, a princípio, o financiamento da residência, mas nem todas são
financiadas assim, porque cada uma tem as suas especificidades.
As residências são casas que a prefeitura da cidade aluga para essas pessoas morarem,
geralmente com o que chamamos de cuidadores. Cada cidade do Brasil tem suas
especificidades e eu acho melhor falar daquela para a qual eu trabalho, que é Paracambi. Lá,
temos cuidadores que são pessoas leigas, sem qualquer formação, pessoas da comunidade
que ajudam esses moradores – que são os ex-internos de um hospital – a cuidarem de uma
casa. Há também a questão do dinheiro. Por exemplo, há uma história de uma senhora que
viveu só no campo antes de ser internada no hospital. Por isso, ela não conhece o dinheiro, só
sabe que existe. Então, ela precisava de um reconhecimento mínimo das notas para poder sair
e eu tive que mostrar a ela. Quando eu mostrei uma nota de dois reais, ela ficou olhando e eu
me perguntei o que ela deveria achar de tão interessante. Então, ela disse: “olha só, quantos
filhotinhos de tartaruga!” Para ela, o dinheiro é uma pintura. Os cuidadores são pessoas
contratadas pela prefeitura para fazer esse trabalho. Geralmente, é preciso um cuidador por
casa, mas eles não moram nas residências - eles fazem plantão, trabalham um dia e folgam
dois. Há casas que, às vezes, precisam de mais cuidadores. Por exemplo, há uma paciente que
acabou de sair do hospital e é um “furacão”. Para ela, não é fácil ficar fora do hospital porque
agora ela não tem mais toda aquela contenção que o hospital causava nela. Então, neste
momento, ela está precisando de uma cuidadora só para ela. Há essas peculiaridades. Há casas
em que a pessoas já não precisam mais de um cuidador à noite, por exemplo. Então, o mais
bonito é pensarmos que isso não é fixo e que estamos sempre rediscutindo as residências.
6) Como funciona o preconceito com relação à loucura? Como poderia ser diminuído?
Esse é um tema doloroso. Preconceito é uma coisa muito ruim porque muitas vezes ele não
aparece na fala das pessoas, mas no jeito de olhar. Ele é um jeito de olhar, um jeito de se
afastar, e imagino que seja muito duro para quem o vive. Ontem, por exemplo, eles
resolveram comprar um móvel para a casa e me ligaram da loja perguntando se eu autorizava
a compra. É dureza!
Há também essa ideia do perigo, esse enfrentamento hoje, de ter que encontrar uma pessoa
louca - ainda mais quando a pessoa é claramente louca, acabou de sair do hospital, tem
marcas no corpo etc. Que perigo é esse que aparece? O que eu vou fazer com isso, com essa
criatura que viveu sempre longe dos meus olhos e agora, de repente, está aqui em frente, na
minha padaria? Temos que nos colocar também no lugar dessas pessoas, porque eles
realmente são esquisitos. Alguns não sabem, por exemplo, reconhecer uma padaria e entra
em uma loja de CD para pedir pão. Mas as pessoas ficam com muito medo desse estranho –
“Como assim existe uma pessoa que na sabe onde comprar pão?”. Eu acho que o preconceito
está muito ligado ao que é desconhecido ou talvez até, por um outro lado, ao que é
demasiadamente conhecido, ao que a gente já até pressupõe. Já pressupomos que é perigoso,
sujo etc.
Para enfrentar o preconceito, temos que poder criar coisas juntos, coisas bacanas, e não é ficar
fazendo pulseirinha para vender para os pobres loucos. Temos que poder dar visibilidade, criar
essa expressão, que é uma expressão de uma vida fechada. Para mim, o caminho mais
interessante, por enquanto, é o da arte mesmo – e, com arte, quero dizer expressão, não
necessariamente música, teatro etc. Por exemplo, há uma senhora que faz doces em compota
deliciosos. Ela tem todo um jeito de fazer os doces, todo um ritmo e, não sei por que, eles têm
um sabor especialíssimo. Ela gosta de distribuir esses doces, e é por aí que caminham as
coisas.
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Cristiane Knijniki - CRP-RJ