Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro
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O
Titanic não é mais um navio naufragado, e sim
um superorganismo. Essa foi a conclusão do polêmico escritor norte-americano Charles Pellegrino,
ao examinar os destroços do famoso navio que afundou em 1912, após chocar-se com um iceberg. Anos
mais tarde, essa descrição estimulou outro norte-americano, Tim Friend, um jornalista especializado
em ciência, a visitar o mesmo local, juntamente com
cientistas, e escrever um interessantíssimo livro sobre
os micro-organismos que lentamente devoram o que
restou do transatlântico. Seu livro The third domain
(O terceiro domínio), de 2007, narra, entre outras coisas, as peculiaridades das archaeas (ou arqueas), um
dos reinos mais curiosos entre os seres vivos.
O que chamou a atenção de Friend e dos pesquisadores foi o fato de os destroços agregarem muitas
espécies diferentes de arqueas, bactérias e fungos,
que se organizaram e formaram algo maior, quase
como um novo tipo de metazoário: o tal superorganismo aludido acima. Esse coletivo de micro-organismos estabeleceu, por exemplo, uma intrincada
rede interna de canais, que transportam fluidos ricos
em ferro e enxofre e fornecem até energia elétrica a
todo o conjunto. Os canais comportam-se como as
artérias e veias de animais com sistema circulatório.
E essa entidade ‘vive’ no escuro, em temperaturas
baixas e com oxigênio quase ausente.
Além de reforçar a percepção de que a vida é uma
manifestação muito plástica, a ideia de que organismos mais complexos possam ser produzidos a partir
da simples associação de espécies diferentes não
deixa de ser intrigante. Na verdade, essa parceria é
parte de nossas vidas. Nós, humanos, convivemos
harmonicamente com uma enorme comunidade de
seres microscópicos. Nosso corpo pode abrigar cerca
de 100 trilhões de células de ‘hóspedes’, de centenas
de espécies diferentes, número 10 vezes maior que a
soma de nossas próprias células. Em outras palavras,
somos – numericamente – mais bactérias do que
humanos. Só sabemos que somos humanos porque,
graças ao sistema nervoso, temos consciência disso.
Um observador externo, porém, poderia nos classificar como um superorganismo bacterio-humano.
Na verdade, as associações interespecíficas são
propósito
Franklin Rumjanek
a
Afinal, quem somos?
favorecidas pela evolução. Como nada é de graça na
natureza, a comunidade de bactérias paga um preço
pela hospedagem. Parte das vitaminas e de outros
compostos indispensáveis à nossa fisiologia e nutrição é suprida pelos hóspedes, que em troca recebem,
na maioria dos casos, generosa alimentação. Esse é
um exemplo típico de simbiose, muito comum na
natureza. No entanto, não deixa de ser notável que
as comunidades de simbiontes variem de um indivíduo saudável para outro, sugerindo que o ajuste interespecífico, no caso dos humanos, depende em
parte das fisiologias individuais. Nesse contexto, já
foi cogitado, com base em dados experimentais, que
a obesidade poderia resultar de associações anômalas
entre humanos e bactérias.
Além disso, embora não conheçamos em deta­lhe as regras desse convívio, sabemos que a popula­ção de micro-organismos também se modifica à me­
dida que envelhecemos. Em resumo, há um equilí­brio essencialmente dinâmico nas ‘regras’ de coabitação entre espécies diferentes
que constituem um superorNosso corpo pode
ganismo.
Outro exemplo de simbioabrigar cerca
se é encontrado nos cupins.
Esses insetos alimentam-se
de 100 trilhões de
de madeira, ou melhor, da
células de ‘hóspedes’,
celulose que a compõe. Mas
eles não conseguem digerir a
número 10 vezes maior
ce­lulose. Por isso, dependem
que a soma de nossas
do auxílio, em seu trato di­
gestivo, de uma grande colôpróprias células
nia de bactérias e protozoá­rios capazes de decompor a madeira e assim fornecer
ao hospedeiro os nutrientes essenciais. De modo
semelhante ao que ocorre em humanos, é o consórcio
de genomas assim estabelecido que determina a
evolução do superorganismo ‘cupins-simbiontes’.
Pensando bem, se o conceito de superorganismo
for aceito, deixa de fazer sentido a divisão entre hospedeiros e hóspedes. Nesse caso, nós, humanos, teremos que abandonar nossa forte noção de identidade. Em compensação, ganharemos a condição de
‘super’ – um prefixo que tanto nos agrada. 
agosto de 20 10 • Ciência Hoje • 19
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