AESE
Escola de Direcção e Negócios
Publicação: quinzenal
Director: J.L.Carvalho Cardoso
Editor e Proprietário: AESE
Impresso por: Cromaticamente
Depósito legal: nº 21228/88
Preço: e 1
21º Ano
CORREIO DA
AESE
DOCUMENTAÇÃO
Nº 504, 1-3-2009
A GUERRA FRIA DO GÁS
Ficaram no ar numerosos pontos obscuros na
Apareceu, além disso, um obscuro intermediário
«guerra do gás», que foi encerrada aquando da
assinatura do novo contrato entre a Gazprom e a
da compra de gás pela Ucrânia: a RosUkrEnergo.
Oficialmente, esta empresa pertence à russa
Naftogaz, as empresas de gás da Rússia e da Ucrânia.
O gás voltou a fluir para a Europa e o novo acordo
Gazprombank em 50%, em 5% a Ivan Fursin e em
45% a Dmytro Firtash, multimilionário ucraniano
tem uma validade de dez anos. Mas são poucos os
que prognosticam um longo período de tranquilidade
dono do canal televisivo Inter. É difícil demonstrar
que interesses representa o último, embora uma piada
energética.
ucraniana diga que «a pronúncia correcta do apelido
Firtash é Mogilevich», reputado boss da máfia russa,
A Ucrânia, nos tempos de Leonid Kuchma,
recebia gás pelo preço de 50 dólares por 1000 m3.
agora na prisão.
«Isso era um absurdo», afirma Oleh Krykavskyy,
especialista ucraniano em assuntos energéticos da
O que é o preço de mercado?
consultora Gide Loyrette Noeul. Nesse tempo, outros
países, como a Polónia, pagavam pelo gás 300
dólares. «O preço tinha de subir. Mas a nossa
indústria não estava preparada, especialmente a
No Inverno passado, com Yanúkovich como
primeiro-ministro, a Gazprom não achou motivos para
assinado um contrato renovável todos os anos, o
discórdia. As coisas mudaram quando, depois das
eleições de Setembro de 2007, Yuliya Tymoshenko
voltou a ocupar o cargo de primeira-ministra. Mas os
motivos expostos pela empresa de gás russa para
cortar a 1 de Janeiro de 2009 o fornecimento aos
consumidores ucranianos suscitam muitas dúvidas.
Segundo a Gazprom, a crise começou pelo não
pagamento de 2400 milhões de dólares, dívida da
qual a Naftogaz só reconhecia metade. A Rússia
ameaçou que, se a dívida não fosse paga, o preço a
partir de Janeiro seria «de mercado», com exigências
preço foi fixado em 175 dólares por 1000 m3 de um
de até 450 dólares.
química, onde o gás constitui 80% dos custos. Foi
uma maçada. A partir de então, só podíamos ser
competitivos graças aos baixos custos laborais.»
O momento escolhido para subir o preço não
foi casual. Teve lugar após a «revolução laranja» de
2004 que fez ascender Yuliya Tymoshenko a
primeira-ministra e Viktor Yushchenko a presidente,
e foi precedido de uma semana sem fornecimento,
o que obrigou os novos dirigentes a capitular: foi
cocktail de gás proveniente da Rússia e da Ásia
Pouco claros eram também o presidente da
Central e 1,7 dólares para a Ucrânia por cada
Federação Russa, Dmitriy Medvédev, e Alexey Miller,
presidente da Gazprom, quando falavam da passagem
100 km de trânsito de 1000 m3 de gás.
da Ucrânia para o «preço de mercado centro-europeu». «Não existe tal coisa», defende Oleh
mas em resolver o problema, continuava sem 80%
de fornecimento de gás, que só era recebido pelos
Krykavskyy. «Será esse o preço que paga, por
exemplo, a Alemanha pelo gás norueguês? Não há
países ligados ao gasoduto que atravessa a Bielorússia.
As hostilidades atingiram o auge, e Putin exigiu o
um preço único de mercado. A Alemanha, por
exemplo, paga um preço inferior à Gazprom por ser
envio de observadores europeus à Ucrânia.
um cliente que consome muito. A Eslováquia e a
Hungria pagam mais, porque as suas necessidades são
muito menores. A Ucrânia deveria ter também um
preço acessível, porque compra grandes quantidades
de gás e é o principal país de trânsito.» Além disso,
«o gás natural não é um artigo de mercado livre, mas
de preço regulamentado. Pode-se falar de mercado
livre nos Estados Unidos e Canadá, mas não aqui»,
conclui.
Entretanto, a situação nas ruas e fábricas de toda
a Ucrânia era da mais completa normalidade, ao
contrário do que ocorria nessa mesma altura na
Eslováquia, na Bulgária, na Hungria e na Moldávia.
«A Ucrânia estava muito bem preparada, tinha
enchido os seus depósitos de gás e, mais, os russos
estavam conscientes disso. A Ucrânia foi apenas um
pretexto para fechar a torneira», comenta Alexander
Huppal, redactor da revista especializada Energo-Biznes.
A Ucrânia não teve problemas em enviar gás em
Não houve gás roubado
Depois de cortar o gás aos ucranianos a
1 de Janeiro por uma suposta falta de pagamento de
dívidas, vários dias depois, numa cena teatral gravada
pelas principais cadeias televisivas russas, Putin
mandou que Miller suspendesse totalmente o
fornecimento de trânsito por terras ucranianas. A
desculpa era desta vez que o país vizinho roubava
gás dirigido a outros países, e a ordem significava
deixar sem líquido azul vários países europeus.
A Naftogaz rejeitou as acusações e alegou que
continuava a cumprir a entrega de gás a países
terceiros e que o único gás que se «perdia» era o
chamado «gás técnico», que serve para fazer pressão
no gasoduto e tornar possível o trânsito. A Gazprom
pretendia que a Naftogaz comprasse esse gás a 230
dólares, e a empresa ucraniana defendia que não
pode pagar por um gás que serve o negócio russo,
não a Ucrânia, e que, além disso, esse preço seria
direcção à União Europeia até à interrupção definitiva
do envio de gás por parte da Rússia, e pôde
inclusivamente abastecer-se a si própria e à Moldávia.
A Rússia queria demasiado
A impressão que dá, uma vez terminado o
conflito, é que a Rússia pretendia conseguir
demasiados objectivos em simultâneo, e alguns deles
eram contraditórios: humilhar a Ucrânia pela
tendência ocidental que os «laranjas» de Yuliya
Tymoshenko e Viktor Yushchenko continuam a
impulsionar; mostrá-la à Europa como um companheiro de negócios pouco fiável; assumir o controlo
dos gasodutos que percorrem a Ucrânia com a ajuda
de um consórcio «europeu» em que estivessem
envolvidas as suas filiais na UE; mostrar os dentes à
Europa e conseguir ao mesmo tempo apoio para os
seus projectos de gás (os gasodutos North Stream e
absurdo se se mantivesse o preço de trânsito de 1,7
dólares por 1000 metros cúbicos cada 100 km.
South Stream).
Muito menos são sustentáveis as acusações do
Kremlin de roubo, se tivermos em conta as enormes
conflito a 19 de Janeiro, também levanta numerosas
reservas de gás da Ucrânia. De qualquer forma, Putin
continuou o jogo e procurou montar um consórcio
com Tymoshenko, Putin assegurou que as dívidas
europeu que comprasse esse gás técnico, o que lhe
serviria para conseguir o controlo sobre os gasodutos
no bolso?», graceja Huppal. Não falta quem, a
ucranianos. Não alcançou este objectivo, e a Europa,
que não estava interessada em encontrar o culpado,
acordo entre a Gazprom e a Naftogaz constitui uma
Correio da AESE
A última cena do drama, a da resolução do
suspeitas. Depois da reunião definitiva em Moscovo
estavam já saldadas. «Levaria Tymoshenko o dinheiro
começar pelo presidente Yushchenko, afirme que o
capitulação perante Moscovo. Não lhe falta razão,
2
pois no primeiro trimestre deste ano irão pagar 360
se falarmos apenas das televisões) podem considerar-
dólares por 1000 m3, com um desconto de 20%. Isso
-se russófonos. E não só isso, pois dispunham do
explicaria as felicitações do primeiro-ministro russo
potente lobby da Gazprom em países da UE.
e de todos os meios de comunicação social depen-
Fundamental neste ponto foi a hábil negociação em
dentes do Kremlin à dama-de-ferro ucraniana, que
Bruxelas de Borys Tarasiuk, ex-ministro dos negócios
até há pouco tempo se encontrava na lista de inimigos
estrangeiros da Ucrânia, que agora preside à comissão
públicos da Rússia.
ucraniana de integração europeia.
Embora seja verdade que, no momento de mais
Foi também evidente o cinismo dos dirigentes
elevada tensão, o presidente e a sua primeira-ministra
russos. Acusaram a Ucrânia de utilizar a sua posição
mantiveram a mesma posição, não há unanimidade
de país de trânsito para chantagear a União Europeia.
de opiniões sobre o acordo entre os próprios políticos
Pode ser o caso, mas poucos chegaram à conclusão
ucranianos. É difícil que seja de outra forma, se
de que é inclusivamente pior o jogo que eles praticam
tivermos em conta a complexa situação política do
na Ásia Central com países como a Turqueménia, por
país a menos de um ano das eleições presidenciais e
exemplo: quem queira comprar o gás a este país não
com os três principais candidatos (Yushchenko,
pode fazê-lo directamente, pois a Rússia adquire todo
Tymoshenko e Yanúkovich) imersos numa luta política
o seu gás na fronteira, ditando o preço de compra, e
em que vale tudo. Yushchenko não podia ver com
a seguir vende-o a terceiros, igualmente à sua
bons olhos que a sua rival regressasse ao país com a
discrição.
glória de ter resolvido sozinha o conflito. Nos últimos
tempos, o presidente ucraniano chegou a acusar a
primeira-ministra de trair o seu país com um contrato
humilhante e caro, talvez em troca de apoio na
campanha eleitoral.
Mas o próprio Yushchenko não fica livre de
suspeitas, e, de qualquer forma, Yuliya Tymoshenko
tem ideias claras: «A RosUkrEnergo serve aos russos
para corromperem o establishment ucraniano. É uma
Sem dúvida, a reputação de ambos os países foi
muito afectada por estes acontecimentos, mas é
inegável que Kiev, contra todos os prognósticos,
resistiu a esta prova de força. E mais, talvez, tentando
humilhar o inimigo, Putin tenha disparado no seu
próprio pé.
Os que mais sofreram as consequências da
contenda foram precisamente os que eram até esta
altura os mais leais sócios da Federação Russa na
estrutura do mercado negro que corrompeu os mais
Europa: Eslováquia, Sérvia, Hungria... «É malhar nos
altos funcionários da Ucrânia.» Acusa igualmente de
teus amigos para que os estranhos se assustem»,
receberem dinheiro da RosUkrEnergo, tanto membros
comenta Huppal, citando um conhecido provérbio
do partido «azul» do russófono Viktor Yanúkovich,
eslavo. Desta vez, talvez o golpe tenha sido
como pessoas do círculo do presidente Yushchenko.
demasiado forte, e especialmente a Hungria passou
Para ela, desfazer-se do intermediário no novo
a engrossar a lista dos fervorosos defensores da
contrato foi um êxito pessoal.
construção do gasoduto Nabuco, que transportaria gás
desde a Ásia Central para a Europa, passando pela
Quem chantageia?
Turquia, e reduziria a dependência do gás russo.
De qualquer forma, na Gazprom estão
A contenda teve um importante factor
mediático. Parecia que neste ponto os cálculos não
saíram bem ao duo Putin-Medvédev, apesar de partir
perfeitamente conscientes de que a realização dos
projectos North Stream e South Stream é cada vez
menos provável, devido ao seu elevado custo e pouca
fiabilidade, sobretudo em tempos de crise económica.
com uma grande vantagem: todos os principais meios
de comunicação social russos estão ao seu serviço,
enquanto que na própria Ucrânia metade (e até mais,
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H. P.
Correio da AESE
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A guerra do gás entre a Rússia e a Ucrânia, e
as suas repercussões noutros países, puseram em
relevo a situação de dependência energética em que
se encontra hoje a União Europeia. Longe de
diminuir, esta dependência aumentará no futuro, a
menos que a Europa desenvolva uma nova estratégia
de segurança energética. Num artigo publicado no
boletim da Fundación Ciudadanía y Valores
(9 de Janeiro de 2009), Mercedes Canseco, técnica
da Comissão Nacional de Energia, explica os
caminhos através dos quais a Europa está a procurar
reduzir essa dependência.
Com o corte do fornecimento de gás à Ucrânia,
a Rússia demonstrou que «tem nas suas mãos a
hegemonia do sector, tanto por ser um dos principais
proprietários das matérias-primas, como por gerir de
acordo com os seus interesses as condutas necessárias
para abastecer o resto do continente europeu», diz
Canseco.
Enquanto que «os países da União Europeia são
altamente dependentes dos combustíveis e matéria-prima proveniente do exterior», a Rússia consolida-se como o principal fornecedor de energia dos países
europeus. Actualmente, 42% do gás e 33% do petróleo que há na Europa vêm da Rússia.
«Estima-se que esta percentagem aumentará
substancialmente no futuro.» Concretamente, pensa-se que, em 2013, a Europa precisará de 100 000
milhões de metros cúbicos adicionais, e provavelmente a procura continuará a aumentar até 2030, pelo
menos.
Canseco também adverte sobre «a falta de
condutas directas de outros países que não a Rússia,
para a Europa, o que implica uma maior dependência, não só material, como também estratégica». Isto
levou a que a União Europeia busque uma estratégia
de segurança energética.
Como primeira medida, a União Europeia
elaborou um plano de acção com o qual pretende
melhorar as relações com a Rússia, os países bálticos
e os outros que estão a desenvolver actualmente
novas vias de trânsito de combustível. Canseco pensa
que isto não é suficiente e defende que se «abram
novas condutas que sirvam de alternativa à via russa».
Associação de Estudos Superiores de Empresa
l
Neste sentido, existem vários projectos de
realização de condutas e oleodutos para o transporte
do gás que melhorariam a segurança na obtenção de
matérias-primas do exterior. O caso mais próximo de
Espanha é o do gasoduto do projecto MEDGAZ,
proveniente da Argélia, que está a ser feito por uma
empresa em cujo corpo accionista participam as
empresas do sector energético espanhol.
Também se iniciou a construção do gasoduto
South Stream, que unirá a Rússia e a Bulgária e,
através de diversas ramificações, levaria gás à Itália e
Europa Central. Outro gasoduto possível é o Nabuco,
que uniria a Turquia, a Bulgária, a Roménia, a
Hungria e a Áustria.
Uma medida que melhorará a segurança de
fornecimento é a introdução de gás natural, não só
mediante gasodutos, como também através de barcos
especializados no transporte de gás. A União Europeia
aconselha que esta forma de fornecimento e
armazenamento de gás se realize em todos os países
membros, seja directamente, seja através de outros
países membros, via acordos de solidariedade entre
eles.
Igualmente, na própria NATO foi redigido um
documento especial relativo à segurança energética,
onde se insistia na possibilidade de a organização vir
a intervir no caso de estar em perigo a segurança
energética nos países da aliança.
Mas o objectivo prioritário a longo prazo,
segundo Canseco, é que os países europeus tenham
«os recursos autóctones necessários para serem
capazes de gerar a electricidade que consumimos,
sem a elevada dependência de combustíveis fósseis
e gás, provenientes do exterior. Neste sentido, a UE
convida os países membros a reduzir a sua dependência energética do exterior, promovendo a
eficiência energética, assim como impulsionando as
energias renováveis».
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