R ESUMO: Neste estudo pretende-se
revisitar a difícil problemática da
distinção entre excedente cooperativo e lucro societário, de forma
a tornar claro, por um lado, que as
cooperativas não distribuem ganhos
económicos ou financeiros diretos
aos seus membros, mas excedentes,
que não são mais do que devoluções
feitas ao cooperador do que já é seu
a priori e, por outro lado, que as cooperativas não têm, a título principal,
um escopo lucrativo, mas um escopo
mutualístico. Assim, analisam-se as
relevantes diferenças de regime entre
o retorno de excedentes e a repartição
de dividendos, com particular destaque dos critérios de distribuição e o
modo como são gerados.
A BS T R AC T : This study proceeds to
revisit the difficult problem of the
distinction between cooperative surplus and company profits in order to
make clear, first, that the cooperatives
do not distribute direct fi nancial or
economic gains to its members, but
surpluses, which are no more than
returns made to the cooperator of
what is already his and, moreover,
that the cooperatives have not, primarily, a lucrative scope, but a mutualistic scope. Thus, we analyze the
relevant differences between the
regime of the return of surpluses and
that of the distribution of dividends,
with particular reference to the criteria of distribution and how they are
generated.
DEOLINDA APARÍCIO MEIRA*
Revisitando o problema da distinção entre
excedente cooperativo e lucro societário
1. A relevância prática da distinção
Este estudo tem por conteúdo a distinção entre excedente cooperativo
e lucro societário, distinção que reveste, segundo o nosso entendimento,
elevada relevância prática. Foi, aliás, a constatação desta relevância prática
que nos levou a revisitar esta problemática1.
Refira-se, em primeiro lugar, que a confusão conceitual entre excedente
cooperativo e lucro societário tem gerado no nosso ordenamento jurídico
equívocos de natureza fiscal.
Assim, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 2.º do CIRC, as cooperativas são sujeitos passivos de IRC, o qual incide sobre os excedentes líquidos
* Professora Adjunta
da Área Científica
do Direito do
Instituto Superior
de Contabilidade e
Administração do
Instituto Politécnico
do Porto
1
Esta distinção tinha sido objeto da nossa preocupação em anteriores estudos, designadamente na monografia O regime económico das cooperativas no direito português: o capital social,
Vida Económica, Porto, 2009, pp. 252-268 e «O direito ao retorno cooperativo», Revista
Cooperativismo e Economia Social, n.º 32, 2010, Universidade de Vigo, pp. 7-34.
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daquelas, equiparados para este efeito a lucro tributável. Efetivamente, do
art. 17.º, n.º 1 do CIRC resulta que o lucro tributável das pessoas coletivas
é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das
variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período
e não refletidas naquele resultado, acrescentando o n.º 2 da mesma norma
que os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultados líquidos do período.
Contudo, em sede de benefícios fiscais, o art. 66.º-A do Estatuto dos
Benefícios Fiscais2 vem estabelecer que «Estão isentas de IRC, com exceção
dos resultados provenientes de operações com terceiros e de atividades
alheias aos próprios fins as cooperativas agrícolas, culturais, consumo,
habitação e construção e solidariedade social». As demais cooperativas só
estarão isentas de IRC se cumulativamente preencherem dois requisitos:
75% das pessoas que nelas aufiram rendimentos de trabalho dependente
forem membros da cooperativa e 75% dos membros da cooperativa nela
prestem serviço efetivo.
Não esclarece o legislador fiscal porque é que estando o excedente cooperativo sujeito a tributação em sede de IRC, goza depois, relativamente
a certas cooperativas, de isenção. Poderia invocar-se a finalidade prosseguida pelas cooperativas como o fundamento da isenção, mas esta invocação depara com um obstáculo: porque é que o legislador não a estende
a todas as cooperativas, ou, por outras palavras, porque é que se isentam
alguns ramos e se tributam outros.
É nosso entendimento que estes equívocos resultam da confusão conceitual entre excedente cooperativo e lucro. Daremos conta ao longo deste
estudo que os excedentes cooperativos não são lucros e, por isso, não
deveriam ser tributados como um lucro, em sede de IRC. Os excedentes
não são incrementos patrimoniais (rendimentos), nem constituem uma
remuneração de capitais. Assim, num sistema de impostos sobre o rendimento, o retorno de excedentes não pode ser tributado como um lucro.
Esta confusão conceitual entre excedente cooperativo e lucro societário tornou-se, igualmente, manifesta em recentes diplomas legislativos,
designadamente no Dec-Lei n.º 36-A/2011, de 9 de março, que aprovou
um regime de normalização contabilística específico para as Entidades do
Sector Não Lucrativo (ESNL), e no Projeto de Lei n.º 68/XII que aprovou,
na generalidade, a Lei de Bases da Economia Social.
No primeiro diploma, o legislador, à revelia das correntes doutrinais e
legislativas europeias, excluiu as cooperativas do elenco das entidades sem
2 Artigo aditado pelo art. 145.º da L. n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, a qual revoga o
Estatuto Fiscal Cooperativo.
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fins lucrativos, assentando esta exclusão no pressuposto de que nestas se
distribuem ganhos económicos ou financeiros diretos aos seus membros,
alheando-se das especificidades desta repartição face à distribuição de
dividendos societários. No segundo diploma, o legislador, depois de reconhecer que as cooperativas integram o elenco das entidades da Economia
Social, definiu, como um dos princípios orientadores deste setor da Economia Social, a obrigatoriedade do reinvestimento final dos excedentes
obtidos na prossecução das atividades da organização, ignorando a possibilidade de nas cooperativas poder existir retorno de excedentes por força
do que dispõe o n.º 1 do art. 73.º do Código Cooperativo3 (CCoop4).
Finalmente, consideramos que a distinção assume relevância para a
adequada compreensão da qualificação da cooperativa como entidade
sem fins lucrativos. Efetivamente, não obstante o legislador cooperativo
estabelecer a ausência de fim lucrativo na cooperativa (art. 2.º, n.º 1, do
CCoop), a verdade é que o lucro está nela presente, ainda que moderadamente. Pense-se na remuneração dos títulos de capital prevista no art. 73.º,
n.º 3, do CCoop, a qual se apresenta como um rendimento de capital5, ou
nos benefícios resultantes das operações com terceiros, que são autênticos
benefícios resultantes de uma atividade lucrativa, pois estamos perante
vantagens económicas obtidas no mercado, à custa de terceiros, fora do
universo dos cooperadores6.
Assim, a qualificação da cooperativa como entidade sem fim lucrativo
terá de assentar não na ausência de fim lucrativo, mas na circunstância de
que, a título principal, a cooperativa não tem um escopo lucrativo, mas
um escopo mutualístico, e é na decorrência deste que surge a figura do
excedente cooperativo, como veremos. A título principal, a cooperativa
não distribui ganhos económicos ou financeiros diretos aos seus membros, mas excedentes, que não são mais do que devoluções feitas ao cooperador do que já é seu a priori, como daremos conta.
3
Aprovado pela L. n.º 51/96, de 7 de Setembro.
Doravante, quando for referido o Código Cooperativo Português, será usado o acrónimo CCoop.
5 V. DEOLINDA A PARÍCIO M EIRA , O regime económico das cooperativas no direito português: o capital social, cit. pp. 201 e ss..
6 V. DEOLINDA A PARÍCIO M EIRA , «As operações com terceiros no Código Cooperativo Português (Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de
2007)», Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 17, 2010, Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, pp.81 e ss..
4
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2. O conceito de excedente cooperativo
Na doutrina cooperativa, o excedente define-se como um valor provisoriamente pago a mais pelos cooperadores à cooperativa ou pago a
menos pela cooperativa aos cooperadores, como contrapartida da participação destes na atividade cooperativizada7. O excedente resulta, assim, de
operações da cooperativa com os seus cooperadores, sendo gerado à custa
destes, constituindo «o resultado de uma renúncia tácita dos cooperadores
a vantagens cooperativas imediatas»8.
Esta definição torna evidente que o conceito de excedente cooperativo
decorre da prossecução do escopo mutualístico pela cooperativa.
A cooperativa é uma empresa que visa o exercício de uma atividade
económica, tal como as sociedades comerciais, dispondo o art. 7.º do
CCoop que, «desde que respeitem a lei e os princípios cooperativos, as
cooperativas podem exercer livremente qualquer atividade económica».
Contudo, estamos perante um ente empresarial com muitas especificidades, destacando-se, desde logo, o facto de nele se conjugarem duas
vertentes: em primeiro lugar, a já referida vertente empresarial, surgindo
a cooperativa como uma unidade de produção ou de troca que opera no
mercado; em segundo lugar, a vertente cooperativa, ou seja, a cooperativa como entidade caraterizada por um escopo mutualístico. Para ser
«empresa» a cooperativa deve estar em condições de competir com outras
empresas presentes no mercado e, sobretudo, com a empresa lucrativa.
Para ser «cooperativa» deverá apresentar caraterísticas específicas que se
subsumem no conceito de mutualidade.
Este conceito – presente no n.º 1 do art. 2.º do CCoop, o qual dispõe que as cooperativas visarão «a satisfação das necessidades e aspirações
económicas, sociais ou culturais» dos seus membros –, reporta-se ao facto
de a atividade social da cooperativa se orientar necessariamente para os
7 A atividade cooperativizada corresponde à atividade económica desenvolvida pela cooperativa com os seus membros e terceiros, intimamente vinculada com o objeto social
da cooperativa. Assim, abrangerá: quer os atos realizados entre as cooperativas e os seus
membros; quer as operações com terceiros, desde que inseridas na prossecução do objeto
social, pelo menos do lado da cooperativa; quer, ainda e fi nalmente, as operações entre
cooperativas, mesmo sem prévio vínculo entre elas, desde que inseridas na prossecução
do seu objeto social. Para um análise desenvolvida deste conceito v. María-José Morillas
Jarillo/M ANUEL IGNACIO FELIÚ R EY, Curso de Cooperativas, 2.ª ed., Tecnos, Madrid, 2002, p. 54;
e C ARLOS VARGAS VASSEROT, La actividad cooperativizada y las relaciones de la Cooperativa con sus
sócios y con terceros, Monografía asociada a RdS, n.º 27, 2006, Editorial Aranzadi., p. 67.
8 R UI NAMORADO, Cooperatividade e Direito Cooperativo. Estudos e Pareceres, Almedina Coimbra, 2005, p. 183.
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seus membros, que são os destinatários principais das atividades económicas e sociais que esta leva a cabo. É o chamado escopo mutualístico das
cooperativas.
A prossecução deste objetivo terá como base ou pressuposto o desenvolvimento de uma atividade económica na qual os membros desse grupo
participem. Esta participação traduzir-se-á num intercâmbio recíproco de
prestações entre a cooperativa e os cooperadores, prestações que são próprias do objeto social da cooperativa.
Assim, o cooperador não estará apenas sujeitado à obrigação de entrada
para o capital da cooperativa, mas também à obrigação de participar na atividade cooperativizada. Neste sentido, o art. 34.º, n.º 2, al. c), do CCoop
estabeleceu que os cooperadores deverão «participar em geral nas atividades da cooperativa e prestar o trabalho ou serviço que lhes competir».
A realização do objeto social da cooperativa implicará, por isso, que os
cooperadores entreguem bens à cooperativa (é o caso de uma cooperativa
agrícola); produzam ou fabriquem bens ou prestem serviços no seio da
cooperativa (é o caso das cooperativas de trabalho);ou paguem à cooperativa pelos bens ou serviços que recebem da mesma (é o caso das cooperativas de consumo ou das cooperativas de habitação).
Note-se, contudo, que o nexo teleológico existente entre a cooperativa e os seus membros não deverá ser entendido de um modo absoluto,
ou seja, não deverá considerar-se a cooperativa como uma organização
fechada, centrada apenas nos seus membros.
Efetivamente, o Princípio da mutualidade, que subjaz à cooperativa e
que a distingue dos outros tipos sociais, não implica que esta desenvolva
atividade exclusivamente com os seus membros (a chamada mutualidade
pura ou interna, na terminologia italiana), atuando, igualmente, com terceiros não sócios (mutualidade impura ou externa)9.
Esta «mutualidade externa» significa, desde logo, a afirmação da sociabilidade reivindicada pela empresa cooperativa. A cooperativa satisfará,
antes de mais, os interesses dos seus membros ao trabalho e, contemporaneamente, transbordará para o exterior, difundindo os seus serviços também a favor daqueles que, apesar de não serem membros, têm as mesmas necessidades que estes últimos. Por outro lado, esta nova conceção
9
Neste sentido, A MEDEO BASSI [«Mutualità ‘esterna’ e contratto di società cooperativa», in:
La Società Cooperative: aspetti civilistici e tributari (a cura di GIORGIO SCHIANO DI P EPE/FABIO
GRAZIANO), Il Diritto Tributario (coordinato da A NTONIO UCKMAR /VICTOR UCKMAR), Serie I,
Vol. LXXXIV, CEDAM, Padova, 1997, pp. 7-9 e p. 13], o qual entende que a mutualidade interna, pura, rigorosa, corresponderia a uma visão microeconómica do fenómeno
cooperativo.
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da mutualidade permitirá às cooperativas tornarem-se mais competitivas,
passando a concorrer no mercado com outros entes empresariais, oferecendo bens e serviços a terceiros não sócios10.
Daí que hoje seja consensual, quer na doutrina, quer na legislação cooperativa, que, apesar do seu escopo mutualístico, a cooperativa não limitará a sua atividade às relações económicas com os seus membros, ou seja,
que, para o normal desenvolvimento da atividade cooperativizada com os
cooperadores, se tornará necessário que se estabeleça uma série de relações
contratuais com terceiros que, como é lógico, variarão segundo o tipo de
cooperativa.
Nesta decorrência, o CCoop, no seu art. 2.º, n.º 2, estabeleceu que
«as cooperativas, na prossecução dos seus objetivos, poderão realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis
próprias de cada ramo».
Do exposto resulta que as cooperativas se caraterizarão por «um escopo
prevalentemente, mas não exclusivamente, mutualístico»11, podendo
desenvolver operações com terceiros.
3. O retorno dos excedentes cooperativos
Este excedente poderá retornar aos cooperadores, tal como resulta do
art. 73.º, n.º 1, do CCoop, quando dispõe que «os excedentes anuais líquidos, com exceção dos provenientes de operações com terceiros, que restarem depois do eventual pagamento de juros pelos títulos de capital e das
reversões para as diversas reservas, poderão retornar aos cooperadores».
Do preceito resulta, de forma inequívoca que apenas os excedentes
resultantes de operações da cooperativa com os cooperadores poderão
retornar a estes. Já os benefícios provenientes de operações com terceiros não poderão ser repartidos pelos cooperadores. O fundamento deste
10 V., neste sentido, E NRICO TONELLI, «Scambio mutualistico e rapporto sociale: interference
e connessioni», in: Le cooperative doppo la riforma del Diritto Societário (coord. de M ICHELE
SANDULLI/PAOLO VALENSISE), Collana del Dipartimento di Scienza aziendali ed económico-giuridiche, Università degli Studi Roma Tre, FrancoAngeli, Milano, 2005, pp. 28-50. Considerando que o Princípio de exclusividade dificultaria o crescimento da cooperativa, v.
NARCISO A RCAS L ARIO, «La Sociedad Cooperativa Europea como forma de concentración
empresarial», in: La Sociedad Cooperativa Europea domiciliada em España (dir. de ROSALÍA
A LFONSO SÁNCHEZ), Thomson-Aranzadi, Navarra, 2008, p. 63.
11 GIAN F RANCO C AMPOBASSO, La riforma delle Società di Capitali e delle Cooperative. Aggiornamento della 5.ª edizione del Diritto commerciale 2. Diritto delle società, UTET, Torino, 2003,
p. 209.
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regime legal está no facto de, nas cooperativas, os resultados das operações
com terceiros serem juridicamente encarados como lucros e não como
verdadeiros excedentes cooperativos, uma vez que não foram realizados
no âmbito de uma atividade mutualista.
O retorno, entendido como o instrumento técnico de atribuição ao
cooperador do excedente, surge, então, como uma distribuição diferida do
mesmo, significando a devolução ou a restituição que se faz ao membro
de uma dada cooperativa, ao fazer o balanço e a liquidação do exercício
económico, daquilo que já é seu desde o início da atividade. O retorno
de excedentes funcionará, deste modo, como uma correção a posteriori,
através da qual se devolverá, a quem formou o excedente, a diferença entre
o preço praticado e o custo, ou a diferença entre as receitas líquidas e os
adiantamentos laborais pagos, diferença esta determinada com exatidão
no final de cada exercício.
4. Similitudes de regime entre excedente cooperativo
e lucro societário
4.1. Fundamento das similitudes
No regime jurídico do excedente cooperativo são identificáveis similitudes com o regime jurídico do lucro societário, as quais encontram,
em grande parte, o seu fundamento na circunstância de o art. 9.º do
CCoop, relativo ao direito subsidiário aplicável a situações não previstas
no CCoop, estabelecer a possibilidade do recurso, «na medida em que se
não desrespeitem os princípios cooperativos, ao CSC, nomeadamente aos
preceitos aplicáveis às sociedades anónimas». Esta remissão para o CSC
deverá, contudo, preencher duas condições: por um lado, a solução a que
se chegue não poderá desrespeitar os princípios cooperativos; e, por outro,
dentro do espaço constituído pelo CSC deverá dar-se prioridade aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas12.
12
Para uma análise desenvolvida desta questão, v. M ANUEL C ARNEIRO DA FRADA /DIOGO C OSTA
G ONÇALVES, «A acção ut singuli (de responsabilidade civil) e a relação do Direito Cooperativo com o Direito das Sociedades Comerciais», Revista de Direito das Sociedades, Ano I
(2009) – Número 4, Almedina, pp. 888-904.
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4.2. Reversões para reservas e cobertura de prejuízos transitados
Tal como nas sociedades comerciais, quanto ao lucro societário (art.
295.º do CSC), também nas cooperativas uma percentagem do excedente
de exercício, resultante das operações com os cooperadores, reverterá
para a reserva legal [art. 69.º, n.º 2, al. b), do CCoop] e para a reserva
para educação e formação cooperativa [art. 70.º, n.º 2, al. b), do CCoop],
assim como para o eventual pagamento de juros pelos títulos de capital
(art. 73.º, n.º 1, do CCoop).
Só depois de efetuadas estas reversões e pagamentos se estará em condições de apurar o retorno ( art. 73.º, n.º 1, do CCoop).
Além disso, tal como nas sociedades comerciais, nas quais se houver
reservas a formar ou a reconstituir, não poderão os sócios receber quaisquer quantias ou bens a título de lucros (arts. 32.º e 33.º do CSC), também nas cooperativas não se poderá proceder à distribuição de excedentes
«antes de se terem compensado as perdas dos exercícios anteriores ou,
tendo-se utilizado a reserva legal para compensar essas perdas, antes de se
ter reconstituído a reserva ao nível anterior ao da sua utilização» (art. 73.º,
n.º 2, do CCoop). Por outras palavras, o legislador impede a distribuição
de excedentes quando e na medida em que forem necessários para cobrir
prejuízos transitados ou para reconstituir a reserva legal.
Consagra-se, deste modo, um regime inderrogável de cobertura de prejuízos, devendo os excedentes de exercício ser afetados em primeira linha
a tal finalidade13.
Sendo assim, os excedentes entregues aos cooperadores em contravenção desta regra serão considerados «excedentes fictícios». A eles se reporta
o art. 65.º, n.º 1, al. d), do CCoop, norma que responsabiliza os membros
dos órgãos de administração responsáveis por tal infração. Os cooperadores que receberam excedentes fictícios serão obrigados a restituí-los, a
menos que estivessem de boa-fé no momento do recebimento (art. 34.º,
n.º 1, do CSC, aplicável por força do art. 9.º do CCoop).
4.3. A necessária deliberação de distribuição
Tal como nas sociedades comerciais, quanto ao lucro societário (arts.
31.º, 250.º, n.º3 e 386.º, n.º1, do CSC), também nas cooperativas as
normas não determinam uma distribuição automática dos excedentes a
13 V., neste sentido, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coord. de C OUTINHO DE A BREU, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 504-505.
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título de retorno e, por isso, a distribuição não se operará sem uma deliberação social nesse sentido. No silêncio dos estatutos, tal deliberação de
repartição deverá ser tomada por maioria dos votos emitidos, dado que é
esta a regra para a aprovação da generalidade das deliberações (art. 51.º,
n.º 2, do CCoop14; e art. 386.º do CSC, aplicável por força do art. 9.º do
CCoop)15.
Sendo assim, o retorno designará a parte do excedente repartível que a
assembleia geral decida distribuir entre os cooperadores, sendo essencial
ao seu pagamento que haja uma deliberação que tenha por finalidade promover a respetiva distribuição, deliberação esta que deverá ser precedida
da prévia aprovação das contas.
Só com a deliberação social de distribuição é que o excedente se converte em retorno, tornando-se o cooperador titular de um direito de crédito sobre a cooperativa16. Sendo certo que o direito ao retorno só existe
a partir da deliberação da assembleia geral que aprova a distribuição dos
excedentes, tal implicará que, após essa aprovação, uma eventual deliberação da assembleia geral no sentido de condicionar, restringir ou revogar
a referida distribuição será considerada nula. Na esteira do que defende
14
Resulta deste preceito que apenas será exigida maioria qualificada, de pelo menos dois
terços dos votos expressos, na aprovação das matérias constantes das alíneas g), h), i), j) e
n) do art. 49.º do CCoop ou de quaisquer outras para cuja votação os estatutos prevejam
uma maioria qualificada. A matéria relativa à deliberação de aprovação da forma de distribuição dos excedentes [(al. f)] ficará, por isso, sujeita à regra geral.
15 Neste sentido ver PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações sobre o capital social, Almedina,
Coimbra, 2009, p. 262, em especial a nota 986. Na jurisprudência, defendendo que, para a
aprovação desta deliberação, bastará maioria simples, a menos que os estatutos prevejam
diferentemente, refi ra-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Fevereiro de
1998 [Proc. n.º 9 721 016, ITIJ – Bases Jurídico-documentais (www.dgsi.pt)].
16 No âmbito do Direito das Sociedades, esta condição tem levantado algumas divergências na doutrina. Alguns autores, nomeadamente M ANUEL A NTÓNIO P ITA [Direito aos lucros,
Almedina, Coimbra, 1989, pp. 134 e ss.] e FILIPE C ASSIANO DOS SANTOS [A posição do accionista
face aos lucros de balanço. O direito do accionista ao dividendo no Código das Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 103 e ss.], têm sustentado que a deliberação
de distribuição é dispensável, argumentando que, após a aprovação do balanço, o direito
aos lucros distribuíveis se constitui independentemente de qualquer deliberação de distribuição. Ficaria, no entanto, dependente da verificação da condição negativa da não
deliberação em sentido contrário. Diversamente, A NTÓNIO P EREIRA DE A LMEIDA [Sociedades
Comerciais – valores mobiliários e mercados, 6.ª edição, Coimbra Editora/Wolters Kluwer,
Coimbra, 2011, pp. 159 e ss.], PAULO OLAVO CUNHA [Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 333] e PAULO DE TARSO DOMINGUES [Variações sobre o capital
social, cit., pp. 266 e ss.] consideram que a aprovação do balanço, ainda que seja uma
condição necessária, não será suficiente para uma lícita distribuição de resultados. Esta
dependerá sempre de uma deliberação da assembleia geral.
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Paulo de Tarso Domingues a propósito do direito ao dividendo nas sociedades comerciais, também consideramos que o direito ao retorno, tendo
origem na qualidade de cooperador, autonomiza-se dela, assumindo o
carácter de direito extra-corporativo, pelo que não poderá ser afetado contra a vontade do cooperador17.
4.4. Possibilidade de ser objeto de limitações
O direito ao retorno dos excedentes será, contudo, um direito extra-corporativo sui generis, tal como o direito ao lucro societário, podendo
ser objeto de limitações18, destacando-se a hipótese de o cooperador não
ter pago integralmente a sua entrada19 e estar em mora, caso em que o
retorno não lhe será pago, podendo, todavia, haver compensação pela
dívida de capital (art. 27.º, n.os 4 e 5, do CSC, aplicável subsidiariamente
à cooperativa por força do art. 9.º do CCoop).
4.5. Vencimento e prescrição
Tal como relativamente ao lucro societário (arts 217.º, n.º2 e 294.º,
n.º2, do CSC), este crédito do cooperador vencer-se-á no prazo de 30 dias
a contar da deliberação de distribuição. Nessa data, a cooperativa terá de
pôr à disposição do cooperador os bens que serão distribuídos a título
de retorno. Mas pode acontecer que a assembleia delibere prorrogar esse
prazo por mais 60 dias com fundamento na situação excecional da cooperativa, podendo tal prorrogação de prazo de vencimento constar da própria deliberação de distribuição, ou ser deliberada posteriormente, antes
de decorridos os 30 dias20. Pode, ainda, suceder que o próprio cooperador
consinta em que o crédito não se vença imediatamente (ou seja, decorri-
17
Ver, neste sentido, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações sobre o capital social, cit., p. 269.
V., neste sentido, FILIPE C ASSIANO DOS SANTOS, «O direito aos lucros no Código das Sociedades Comerciais (à luz de 15 anos de vigência)», in: Problemas do Direito das Sociedades,
IDET, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 190-191.
19 A possibilidade do diferimento das entradas em dinheiro está prevista no art. 21.º,
n.º 3, do CCoop. Para uma análise desenvolvida desta questão, v. DEOLINDA A PARÍCIO M EIRA ,
O regime económico das cooperativas no direito português: o capital social, cit., pp. 187-191.
20 V., neste sentido, A NTÓNIO P EREIRA DE A LMEIDA , Sociedades Comerciais – valores mobiliários
e mercados, cit., pp. 165 e ss..
18
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dos os referidos 30 dias), aceitando o seu diferimento (art. 294.º, n.º 2,
do CSC, aplicável por força do art. 9.º do CCoop21).
Em caso de incumprimento por parte da cooperativa destes prazos,
poderão colocar-se problemas de eventual responsabilidade civil da própria cooperativa perante o cooperador e dos órgãos de administração
perante a própria cooperativa.
Por aplicação, a título subsidiário, do disposto na al. d) do art. 310.º
do CC, o direito ao retorno prescreve no prazo de cinco anos. Por regra, o
prazo de prescrição começa a correr a partir do momento em que o direito
puder ser exercido (art. 306.º, n.º 1, do CC).
O cooperador poderá exercer este direito de crédito por si mesmo ou
por representação, podendo transmiti-lo a terceiros, os quais, enquanto
credores do cooperador, poderão igualmente penhorá-lo, mediante a oportuna ordem de retenção do pagamento dirigida pelo Juiz à cooperativa22.
4.6. A inexistência de um direito subjetivo ao retorno
Tal como no direito societário, no qual se destaca a inexistência de
um direito subjetivo à concreta repartição do lucro23, também no direito
cooperativo, será de defender que a inclusão, entre os direitos do cooperador, do direito ao retorno cooperativo (art. 73.º, n.º 1, do CCoop) não
supõe o reconhecimento, a favor do cooperador, de um direito (concreto)
a exigir a aplicação de parte dos excedentes disponíveis como retorno.
A utilização, pelo legislador, da expressão «poderão retornar aos cooperadores» evidencia a possibilidade de que o direito ao retorno seja derrogado por deliberação da assembleia geral24.
21
Dispõe o n.º 2 do art. 294.º do CSC que «o crédito do acionista à sua parte nos lucros
vence-se decorridos que sejam 30 dias sobre a deliberação de atribuição de lucros, salvo
diferimento consentido pelo sócio e sem prejuízo de disposições legais que proíbem o
pagamento antes de observadas certas formalidades, podendo ser deliberada, com fundamento em situação excecional da sociedade, a extensão daquele prazo até mais 60 dias,
se as ações não estiverem admitidas à negociação em mercado regulamentado». Ver, sobre
esta questão, e no que tange às sociedades comerciais, PAULO OLAVO CUNHA , Direito das
Sociedades Comerciais, cit., pp. 333 e ss..
22 V., neste sentido, F RANCISCO VICENT C HULIÁ , Ley General de Cooperativas, Tomo XX, Vol. 3.º,
Editorial Revista de Derecho Privado/Editoriales de Derecho Reunidas, Madrid, 1994, p.
354.
23 V., por todos, sobre esta questão, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações sobre o capital, cit.,
pp. 263 e ss..
24 Na Ley Estatal de Cooperativas espanhola, o art. 16.º, n.º 2, al. d), confi rma a existência
de uma simples expectativa, quando o legislador estabelece que os sócios têm direito ao
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Tudo isto está em harmonia com o Princípio da participação económica dos membros (art. 3.º do CCoop) que aponta três destinos possíveis
para os excedentes: 1.º – «desenvolvimento das suas cooperativas»; 2.º –
«apoio a outras atividades aprovadas pelos membros»; 3.º – «distribuição
dos excedentes em benefício dos membros na proporção das suas transações com a cooperativa». Daqui resultará que o retorno é um dos três
destinos admitidos pelo legislador, no caso de se colocar essa hipótese,
sendo que existe também a possibilidade de se conjugarem os três tipos
de objetivos ou dois deles.
Assim, havendo resultados positivos no exercício, será inequívoco o
espaço de discricionariedade de que disporá a assembleia geral, quanto à
aplicação dos mesmos.
Por um lado, a assembleia geral poderá optar livremente entre a distribuição pelos cooperadores ou pela formação de reservas. A assembleia
poderá considerar que a política de constituição de reservas, com vista
ao autofinanciamento (a grande opção que se contrapõe à distribuição),
poderá ser muito mais conveniente, do ponto de vista dos cooperadores e
da cooperativa.
Por outro lado, a assembleia geral poderá determinar a retenção temporária de parte dos retornos individuais («retorno diferido», nas palavras
de Ferreira da Costa25), para obviar à falta de capitais próprios suficientes. Este diferimento do retorno constituirá um empréstimo do cooperador à cooperativa26, devendo, por isso, ser consentido pelo cooperador
(art. 294.º, n.º 2, do CSC, aplicável por remissão do art. 9.º do CCoop).
retorno «en su caso». No ordenamento italiano, tal resultará do art. 2 545 sexies, parágrafo
3.º, do CCit, quando dispõe que «a assembleia pode deliberar a repartição do retorno». O
Estatuto da Sociedade Cooperativa Europeia fala de «resultado suscetível de distribuição»
(art. 67.º, n.º 1).
25 F ERNANDO F ERREIRA DA C OSTA , Código Cooperativo. Benefícios fi scais e financeiros. Estatutos do
Inscoop, Livraria Petrony, Lisboa, 1981, p. 94.
26 JOSÉ L UÍS DEL A RCO Á LVAREZ [«Financiación de la empresa cooperativa», REVESCO, n.º 33,
Maio-Agosto 1974, p. 40] destaca esta forma de fi nanciamento a cargo do retorno. Acrescenta que se trata de uma fórmula de origem americana chamada revolving funds, traduzida
num bloqueio – durante um certo período de tempo e no fi nal de um exercício económico
– do retorno atribuível a um sócio e que implicará, para a cooperativa, um aumento dos
recursos disponíveis. O autor sustenta, deste modo, que esta fórmula corresponde, na
realidade, a um empréstimo outorgado pelo sócio à sua cooperativa. Sendo assim, à luz
do que se dispõe no ordenamento português, passado um ano, este retorno diferido passará a suprimento (art. 243.º, n.º 2, 2.ª parte,do CSC, por remissão do art. 9.º do CCoop).
Sobre o contrato de suprimento, ver DEOLINDA A PARÍCIO M EIRA , «O contrato de suprimento
enquanto meio de fi nanciamento da sociedade», Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas,
n.º 2, 2005, Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, pp. 139-166.
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O direito ao retorno será por isso um direito derrogável do cooperador, estando contudo esta derrogabilidade limitada pelo Princípio geral
do abuso de direito27. Como destaca Paniagua Zurera, esta expectativa
conta – sobretudo nos casos limite próximos do abuso de direito – com
uma tutela que permite, em situações extremas, impugnar a deliberação
de aplicação dos excedentes disponíveis e, se for o caso, exigir responsabilidades aos membros da direção28. Não poderá recusar-se a distribuição
de excedentes sem mais e, também, não poderá fundar-se a recusa em
motivos extrassociais. A assembleia geral, em obediência aos princípios
gerais de natureza contratual, designadamente ao Princípio da boa-fé,
deve pois fundamentar a deliberação que afaste a distribuição de excedentes a título de retorno. Assim, a deliberação sobre a retenção dos excedentes no património da cooperativa terá de fundamentar-se no «interesse
social», nomeadamente nas necessidades de autofinanciamento da cooperativa. Daqui resulta que tal deliberação será inválida se os cooperadores da maioria, com o seu voto, visarem prosseguir interesses extrassociais
e, simultaneamente, prejudicarem interesses da cooperativa ou de outros
cooperadores29/30.
27
Sobre o abuso de direito, v. M ANUEL C ARNEIRO DA FRADA , Teoria da confiança e responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 839 e ss..
28 M ANUEL PANIAGUA Z URERA , «Determinación y distribución de resultados en la sociedad
cooperativa», Derecho de los Negocios, n.º 66, Ano 7, março 1996, p. 9.
29 Cite-se, na jurisprudência italiana, a Sentença do Tribunal da Cassação n.º 9 513, de 8
de Setembro de 1999, na qual se afi rma que «uma obrigação deste tipo», isto é, de distribuir o retorno, «não encontra fundamento em nenhuma norma que discipline a atividade
das cooperativas, nem tal pode ser automaticamente resolvido pelo escopo mutualístico,
entendido como gestão de serviço a favor dos cooperadores. As sociedades cooperativas,
apesar das características peculiares que as distinguem, são sujeitos de direito, munidas
de personalidade jurídica, tendo exigências organizativas específicas, de eficiência e conservação da empresa, que impõem a possibilidade de impugnar a apreciação discricionária da assembleia quanto às deliberações relativas ao destino a atribuir a todos os excedentes derivados da gestão mutualista (e neles compreendidos os reembolsos resultantes
do retorno de todos os tipos), não se reconhecendo elementos idóneos que justifiquem,
para estes, um tratamento diferenciado. Na verdade, a discricionariedade da maioria da
assembleia será atenuada pelo Princípio da correção e da boa-fé na execução do contrato
de sociedade, pelo que o sócio, acionando os adequados instrumentos de tutela, poderá
obter a anulação da deliberação que nega o reembolso do retorno perante comportamentos abusivos da maioria. Mas tal não significará que os cooperadores tenham um verdadeiro direito subjetivo ao reembolso do retorno, direito que corresponda a uma obrigação
jurídica da sociedade de providenciar nesse sentido. A questão deverá passar através do
crivo dos órgãos sociais, a quem competirá estabelecer a existência, em concreto, das condições para atribuir o retorno, salvaguardada a já referida possibilidade de os cooperadoRevisitando o problema da distinção entre excedente cooperativo e lucro societário 365
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30A
este propósito, a doutrina italiana destaca que, ainda que não exista
um direito subjetivo ao retorno, existe porém um limite ao poder da cooperativa, nesta matéria consubstanciado no Princípio da paridade de tratamento31 entre os cooperadores no desenvolvimento das relações mutualistas, o qual decorre do art. 2 516 do CCit que dispõe que, «na constituição
e na execução das relações mutualistas, deve ser respeitado o princípio
da paridade de tratamento». Trata-se de um critério de paridade relativa
e não absoluta, admitindo-se um tratamento distinto perante prestações
mutualistas diferenciadas. O que é proibido é a atribuição de um retorno
diferenciado perante uma mesma prestação mutualista32.
O retorno configurar-se-á, assim, como um instrumento de atribuição
de excedentes baseado na equidade e na proporcionalidade.
5. Diferenças de regime entre excedente cooperativo e lucro
societário
A adequada compreensão das especificidades do direito ao retorno dos
excedentes impõe que se faça uma distinção entre excedente cooperativo e
lucro societário ou entre retorno e dividendo.
Efetivamente, apesar de retorno e dividendo33 terem em comum a
característica de serem somas de dinheiro periodicamente repartidas
res impugnarem a deliberação de aprovação do balanço». Sobre esta sentença, ver FRANCO
C OLOMBO/P IETRO MORO, I Ristorni nelle cooperative, Il Sole 24 ore, Milano, 2004, p. 58.
30 Sobre esta problemática, no âmbito das sociedades comerciais, v. PAULO DE TARSO DOMINGUES , Variações sobre o capital, cit., pp. 270-275.
31 Sobre o Princípio da paridade de tratamento entre os sócios, v. A RMANDO M ANUEL TRIUNFANTE , A tutela das minorias nas Sociedades Anónimas. Direitos de minoria qualifi cada. Abuso
de direito, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 50-69. O autor (pp. 61-62) sustenta que
a paridade é um dos valores fundamentais das corporações societárias, sem que tal signifique a total ausência de diversidade, mas antes a proibição de arbítrio injustificado.
O Princípio da paridade de tratamento vincula a atividade dos órgãos da sociedade, designadamente aqueles que têm competências decisórias, como a assembleia geral ou a direção. A vocação do Princípio será a proteção das minorais, face ao poder legitimamente
desenvolvido pela maioria. Assim, uma determinada deliberação dos sócios violará a
paridade de tratamento sempre que da mesma resulte um tratamento desigual de um ou
mais sócios em relação a outros, sem que para tal exista fundamentação objetiva.
32 V., neste sentido, F RANCO C OLOMBO/P IETRO MORO, I ristorni nelle cooperative, cit., pp. 58 e
ss..
33 Sobre a noção de dividendo v. F ILIPE C ASSIANO DOS SANTOS, A posição do accionista face aos
lucros de balanço. O direito do accionista ao dividendo no Código das Sociedades Comerciais, cit.,
pp. 61 e ss..
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entre os sócios, não são figuras equivalentes, apresentando diferenças
relevantes34.
Assim, enquanto os dividendos são uma parte dos lucros sociais que se
distribuem entre os sócios, os retornos não são lucros sociais distribuíveis,
mas excedentes, isto é, vantagens mutualistas geradas pela gestão cooperativa, diretamente a favor dos cooperadores, como vimos.
Mas outras diferenças substanciais merecem a nossa atenção.
5.1. Diferentes critérios de distribuição
Uma das principais notas distintivas entre excedente cooperativo e
lucro societário prende-se com os citérios de distribuição destes.
Nas sociedades comerciais, os dividendos distribuem-se entre os sócios
na proporção da participação de cada um na sociedade, ou seja, na proporção da participação no capital social35. Na cooperativa, o excedente
que cada cooperador gerou foi consequência da atividade que desenvolveu com a cooperativa e na mesma proporção do intercâmbio mutualístico, pelo que a cada cooperador corresponderá um retorno, proporcional
também a esse intercâmbio.
Os lucros destinam-se a remunerar o investimento que foi feito e, por
isso, serão distribuídos proporcionalmente à parte do capital social pertencente a cada sócio. Por sua vez, os excedentes não se destinam a remunerar
o capital, mas apenas a compensar os cooperadores, na mesma medida
em que estes contribuíram para que se gerassem os excedentes em causa.
A distribuição do retorno entre os cooperadores será, então, proporcional às operações feitas por cada um deles com a cooperativa, no referido
34 Sobre a distinção entre dividendo e retorno pode ver-se: A MEDEO BASSI, «Dividendi e ristorni nelle società cooperative», Quaderni di Giurisprudenza Commerciale, Giuffrè Editore,
Milano, 1979, pp. 10 e ss.; FRANCISCO VICENT CHULIÁ , Ley General de Cooperativas, Tomo XX,
Vol. 3.º, cit., p. 350; e FRANCESCO G ALGANO, Diritto commerciale. Le società. Contratto di società.
Società di persone. Società per azioni. Altre società di capitali. Società cooperative, Quattordicesima edizione, aggiornata al febbraio 2004, Zanichelli, Bologna, pp. 477 e ss..
35 De acordo com o art. 22.º, n.º 1, do CSC, os sócios participam nos lucros da sociedade
segundo a proporção dos valores nominais das respetivas participações no capital. Este
princípio pode ser livremente derrogado pelos sócios, por unanimidade, uma vez que
a alteração da regra se traduzirá, em princípio, na atribuição de um direito especial a
um sócio. Sobre este critério, v. PAULO DE TARSO DOMINGUES, «Capital e património sociais.
Lucros e reservas», in: Estudos de Direito das Sociedades (coord. de JORGE M ANUEL C OUTINHO DE
A BREU), 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 226 e ss..
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exercício36. Sendo os excedentes, resultantes de operações da cooperativa
com os seus cooperadores, gerados à custa dos próprios membros da cooperativa, compreende-se, assim, que, quando ocorra o retorno, ele corresponda ao volume dessas operações e não ao número de títulos de capital
que cada um detenha.
A distribuição na proporção das operações feitas com a cooperativa e
não em função da participação no capital social terá, assim, a sua razão de
ser na circunstância de que esses excedentes serão as vantagens cooperativas que o cooperador obteve precisamente ao fazer uso dos serviços que
lhe presta a cooperativa, pelo que a proporção que lhe será atribuída estará
em relação direta com o uso feito desses serviços37.
Para além da orientação genérica consagrada no art. 3.º, no sentido de
uma repartição dos excedentes em «benefício dos membros na proporção
das suas transações com a cooperativa», não encontramos no CCoop qualquer critério substancial explícito que regule a distribuição dos excedentes.
36
Cite-se, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 17 de
Outubro de 2002 (Coletânea de Jurisprudência, Ano X, Tomo III, p. 101), no qual se afi rma
que «cada cooperador apenas poderá receber excedentes caso existam – tão-só na proporção do trabalho que produziu, de tal forma que, quer o trabalho de cada cooperador, quer
os eventuais excedentes que venham eventualmente, fi ndo o exercício, a verificar-se, têm
necessariamente que se reportar a cada exercício em que o cooperador participou, não
havendo, pois, direito, por parte de cada cooperador, de receber excedentes de um qualquer exercício anterior, ainda que existentes».
37 Para avaliar da lógica e razoabilidade do Princípio da distribuição de excedentes entre
os cooperadores, em função da participação na atividade cooperativizada e não em função da proporção da entrada para o capital social, atenda-se ao exemplo apontado por
A NXO TATO P LAZA [«Concepto e características da Sociedade Cooperativa (com especial
referencia à Sociedade Cooperativa Galega)», Cooperativismo e Economia Social, n.º 23
(2000/2001), Universidade de Vigo, pp. 52-53] e que se reporta a uma cooperativa agrícola.
Normalmente, este tipo de cooperativas realiza uma atividade de intermediação que consiste em receber as colheitas dos seus cooperadores e em comercializá-las, teoricamente,
em melhores condições do que as que obteriam aqueles se procedessem diretamente a
esta comercialização. Assim, no momento em que a cooperativa recebe a colheita de um
cooperador, poderá optar por não esperar pelo momento da sua comercialização para
lhe entregar o seu preço. Para este efeito, poderá realizar um cálculo prévio, atribuindo
um valor à colheita, deduzindo do mesmo os gastos previstos para a sua comercialização
e entregando a diferença ao cooperador. Nesta decorrência, se, no fi nal do exercício, o
conjunto das operações realizadas com os cooperadores refletir um resultado positivo,
esse resultado positivo significa que no momento em que os cooperadores entregaram as
suas colheitas na cooperativa, essas colheitas foram avaliadas por um montante inferior
ao que fi nalmente se obteve com a sua comercialização. Nestas circunstâncias, conclui
Tato Plaza, o lógico e razoável é que esses resultados se distribuam em função da atividade
desenvolvida pelos membros (isto é, em função do volume das colheitas entregues pelo
cooperadoro) e não em função da participação no capital social.
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O art. 73.º, que se ocupa da distribuição dos excedentes, limita-se a afirmar que estes poderão «retornar aos cooperadores». Na legislação aplicável aos diferentes ramos, também não encontramos qualquer critério
explícito de repartição, mas meras orientações genéricas. Assim, quanto às
cooperativas culturais (Dec-Lei n.º 313/81, de 19 de Novembro), dispõe-se, no seu art. 8.º, que aquela distribuição será «proporcional ao trabalho de cada membro» e que deverá obedecer «aos critérios definidos nos
estatutos ou regulamentos internos». Quanto às cooperativas de produção operária (Dec-Lei n.º 309/81, de 16 de Novembro), o art. 9.º estabelece que, após a determinação dos excedentes, se deduzirão «os levantamentos dos membros recebidos por conta dos mesmos». Finalmente, o
diploma que regula as cooperativas de serviços (Dec-Lei n.º 323/81, de 4
de Dezembro), estipula, no seu art. 9.º, que a distribuição dos excedentes,
nas cooperativas de prestação de serviços, será feita «proporcionalmente
ao trabalho de cada membro, segundo critérios definidos nos estatutos
e/ou regulamentos internos da cooperativa, nos termos do art. 73.º do
Código Cooperativo, deduzindo-se após a sua determinação, os levantamentos dos membros recebidos por conta dos mesmos».
Segundo Rui Namorado, de todos estes preceitos resulta que o legislador
se limitou a consagrar uma «orientação genérica», remetendo a sua concretização «à esfera de liberdade das cooperativas e dos cooperadores»38. Quer
os estatutos39, quer os regulamentos internos40, quer as assembleias gerais
das cooperativas poderão definir critérios de repartição dos excedentes41.
38
RUI NAMORADO, Cooperatividade e Direito Cooperativo. Estudos e Pareceres, cit., p. 189.
Esta possibilidade de, estatutariamente, se defi nirem normas de distribuição dos excedentes resulta também da al. a) do n.º 2 do art. 15.º do CCoop, quando estabelece que os
estatutos poderão, ainda, incluir «as condições de admissão, suspensão, exclusão e demissão dos membros, bem como os seus direitos e deveres».
40 Nos termos do art. 90.º, n.os 1 e 2, do CCoop, «os regulamentos internos das cooperativas vinculam os cooperadores se a sua existência estiver prevista nos estatutos» e, para
obrigarem os cooperadores, «terão de ser propostos pela direção para serem discutidos e
aprovados em assembleia geral convocada expressamente para esse fi m».
41 Poderão apontar-se outros ordenamentos em que o legislador cooperativo se fica,
igualmente, pela defi nição de orientações genéricas. Assim, no ordenamento espanhol, o
art. 58.º, n.º 4, da Ley Estatal de Cooperativas, acolhe a regra da participação nos excedentes na proporção da actividade desenvolvida na cooperativa. No ordenamento francês, o
art. 15.º, parágrafo 1.º, do Statut de la Coopération [Portant statut de la coopération (Journal
officiel du 11 septembre 1947)], dispõe que a repartição dos excedentes entre os cooperadores será feita na proporção das «operações estabelecidas com cada um deles ou do trabalho
por eles prestado». O Estatuto da Sociedade Cooperativa Europeia determina, no art. 66.º,
uma distribuição entre os membros «na proporção das operações por eles realizadas com
a SCE ou dos serviços prestados a esta última».
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Ora, a definição destes critérios poderá assentar numa repartição do
retorno efetuada em proporção, não só à quantidade, mas também à qualidade do intercâmbio mutualístico42.
Assim, a determinação do retorno numa cooperativa de trabalho
poderá ter como base, quer o trabalho prestado, quer o tipo de prestação
laboral exigida. Rui Namorado destaca que, à semelhança do que acontece
nas atividades económicas exteriores ao âmbito cooperativo, a introdução
de «critérios qualitativos na valorização do tempo de trabalho parece ser
inquestionável». Esta diferenciação, em função não apenas da quantidade,
mas também da qualidade do trabalho prestado, revelar-se-á essencial
para permitir «a fixação nessas cooperativas de trabalhadores especializados e de quadros técnicos»43. É claro que nada impedirá que uma cooperativa de trabalho decida pagar igualmente a todos os que nela trabalham,
independentemente do tipo de tarefas de que estejam incumbidos.
Este critério da qualidade do intercâmbio mutualístico será, contudo,
de difícil aplicação em alguns tipos de cooperativas, como é o caso das
cooperativas de consumo, nas quais o cooperador limita a sua participação na atividade cooperativizada à efetivação de aquisições na cooperativa.
Nestes casos, o critério possível de repartição do retorno será o baseado em
parâmetros do tipo quantitativo44. Daqui resulta um espaço de discricionariedade atribuído à cooperativa quanto aos critérios de atribuição do
retorno, cabendo a cada cooperativa a definição das regras que deverão
presidir à sua atribuição, sempre com a observância da orientação geral
resultante da lei, segundo a qual o retorno deverá reportar-se aos intercâmbios mutualísticos e não à medida da entrada para o capital social.
5.2. Os excedentes são gerados nas relações com os cooperadores e
não com terceiros
Ao contrário do que acontece com as cooperativas, as sociedades
comerciais não se constituem para negociar com os sócios, mas para tentar obter benefícios, através do estabelecimento de relações com pessoas
42 A este propósito, cumpre destacar o art. 2 545 sexies do CCit italiano que estabelece que
«o ato constitutivo determina os critérios de repartição do retorno aos sócios proporcionalmente à quantidade e qualidade dos intercâmbios mutualísticos».
43 R UI NAMORADO, Cooperatividade e Direito Cooperativo. Estudos e Pareceres, cit., pp. 191-192.
44 V., neste sentido, M ARZIA BALZANO, «La destinazione dei risultati», in: Le cooperative prima
e dopo la riforma del Diritto Societario (a cura di GIORGIO M ARASÀ), CEDAM, Padova, 2004,
p. 178.
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que lhe são alheias. Logo, nas sociedades comerciais, os lucros são obtidos
no mercado, nas transações com os clientes, fora do universo dos sócios.
Ora, nas cooperativas, como muito bem lembra Hans-H. Münkner,
«no fim de cada exercício, os excedentes realizados nas transações com os
cooperadores clientes não são o resultado de esforços que procuram acumular um lucro na empresa cooperativa, à custa dos cooperadores clientes, porque nesse caso os cooperadores estariam a tentar realizar lucros à
custa deles próprios»45. Como paradigma aponte-se o das cooperativas de
produção, nas quais os excedentes são fruto do trabalho dos cooperadores
e por eles repartidos na proporção do trabalho prestado. Mas também
nas outras cooperativas a afirmação é plenamente válida, pois se existe
excedente tal significa que o cooperador pagou ou recebeu um montante
superior ou inferior ao praticado no mercado, renunciando a uma vantagem mutualista imediata.
Assim, nas sociedades comerciais a vantagem económica é gerada à
custa de terceiros, enquanto nas cooperativas é gerada à custa dos próprios
membros46.
5.3. Inexistência de mediação do património social no caso dos
excedentes
Na doutrina societária distinguem-se no lucro duas vertentes: a objetiva e a subjetiva. O lucro é um incremento patrimonial que é criado diretamente na esfera jurídica da sociedade (lucro objetivo), que se destina a
ser posteriormente repartido pelos sócios (lucro subjetivo)47. A vertente
subjetiva do lucro societário é uma das notas distintivas mais relevantes
desta figura face ao excedente cooperativo48.
45 H ANS -H. MÜNKNER , Principes coopératifs et droit coopératif, Friedrich-Ebert-Stiftung, Bona,
1986, p. 75 – citado por RUI NAMORADO, Cooperatividade e Direito Cooperativo. Estudos e Pareceres, cit., p. 181.
46 Sobre esta nota distintiva, v. M ANUEL A NTÓNIO P ITA , Direito aos lucros, cit., pp. 44-45.
47 V. PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações sobre o capital social, cit., p. 264.
48 Há doutrina e jurisprudência que negam o carácter de sociedade à cooperativa
apoiando-se no argumento de que o lucro social, tal como está concebido na noção geral
de sociedade desenhado no ordenamento português (art. 980.º do CC), exige a sua prévia
aquisição pela sociedade, ou seja, o ingresso do benefício no património social como prius
operativo para a sua posterior repartição entre os sócios. Assim, fica excluída, quer a poupança de despesas (que, em princípio, não parece suscetível de repartição), quer aqueles
casos em que o sócio recebe diretamente (sem a aparente mediação do património social)
o possível ganho ou benefício. Como defensores desta posição, v. VASCO DA G AMA L OBO
X AVIER [Sociedades Comerciais. Lições aos alunos de Direito Comercial do 4.º Ano Jurídico, Ed.
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De facto, as vantagens inerentes ao funcionamento das cooperativas
projetam-se, à partida, na esfera jurídica de cada cooperador, enquanto os
benefícios auferidos por uma sociedade se projetam, em primeira linha,
no património desta, para só depois serem repartidos pelos sócios.
Lembre-se que a finalidade económica da cooperativa (em função do
ramo cooperativo) consiste na satisfação dos interesses dos seus membros
em obter determinados bens a preços inferiores ao do mercado, ou em
vender os seus produtos eliminando intermediários no mercado, ou obter
o pagamento do equivalente ao trabalho prestado. Deste modo, os cooperadores pretendem obter ganhos ou poupanças de despesas, que surgirão
nos seus patrimónios e não no das cooperativas.
5.4. A inexistência de limites quantitativos na atribuição do retorno de
excedentes
Sublinhe-se, ainda, uma outra nota distintiva entre dividendo e retorno:
a atribuição do retorno não está, por norma, sujeita a limites quantitativos, nem a nenhum coeficiente de estabilidade e de equilíbrio financeiro
do património social, o que já acontece com o direito ao dividendo49.
Com efeito, relativamente ao direito ao dividendo haverá sempre que
atender às limitações resultantes do art. 32.º do CSC, designadamente as
resultantes do princípio da intangibilidade do capital social que impede
que o património líquido da sociedade desça abaixo da cifra do capital
social em virtude da atribuição de bens aos sócios50.
policopiada, Coimbra, 1987, pp. 21-23] e JORGE M ANUEL C OUTINHO DE A BREU [Da empresarialidade. As empresas no Direito, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 174 e ss.]. Em sentido contrário,
v. M ANUEL C ARRASCO C ARRASCO [«La empresa cooperativa actual: ni mutualidad ni ausencia
de lucro. La justificación de una protección fiscal», CIRIEC españa – Cuadernos de trabajo,
n.º 14, Publicación del Centro de Investigación e Información sobre la Economía Pública,
Social y Cooperativa, Valencia, 1991, p. 14.], para quem a diferença entre excedente e lucro
é de carácter meramente formal, defendendo um conceito de lucro em sentido amplo e
a sua plena compatibilidade com os princípios e ideais do cooperativismo. No mesmo
sentido, v. A NTÓNIO M ENEZES C ORDEIRO [Manual de Direito das Sociedades, Vol. I – Das Sociedades em geral, Almedina, Coimbra, 2004, p. 352], defendendo que economicamente o
excedente é um lucro, ainda que a sua captação e distribuição sejam feitas «por técnicas
específicas e sob reconversões linguísticas».
49 Nota distintiva apontada por FRANCESCO C ASALE , «Scambio e mutualità nella Società
Cooperativa», Quaderni di giurisprudenza commerciale, 271, Giuffrè Editore, Milano, 2005,
pp. 105-106.
50 Sobre o Princípio da intangibilidade do capital social, v. PAULO DE TARSO DOMINGUES,
Variações sobre o capital social, pp. 250 e ss..
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5.5. A irrepartibilidade do património na cooperativa
Na cooperativa, também não poderemos falar de lucros finais ou de
liquidação51, como nas sociedades comerciais (nestas, no direito a quinhoar nos lucros, está englobado o direito dos sócios a participarem nos
lucros finais ou de liquidação) porque uma parte do património cooperativo será irrepartível.
Este regime encontra o seu fundamento no Princípio da distribuição
desinteressada que aparece enunciado no art. 79.º do CCoop, consagrando a impossibilidade de distribuir o património residual em caso de
liquidação da cooperativa, o que deriva da função social que esta é chamada a cumprir e que implica que o destino daquele património, após a
liquidação, seja a promoção do cooperativismo.
Neste sentido, estabeleceu-se no n.º 1 do art. 79.º do CCoop que, no
momento da liquidação do património da cooperativa, o montante da
reserva legal – não afetado à cobertura das perdas de exercício e que não
seja suscetível de aplicação diversa – «pode transitar com idêntica finalidade para a nova entidade cooperativa que se formar na sequência de
fusão ou cisão da cooperativa em liquidação».
Mas, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo do CCoop dispõe-se que
«quando à cooperativa em liquidação não suceder nenhuma entidade
cooperativa nova, a aplicação do saldo de reservas obrigatórias reverterá
para outra cooperativa, preferencialmente do mesmo município, a determinar pela federação ou confederação representativa da atividade principal da cooperativa».
O n.º 4 foi ainda mais longe ao dispor que «às reservas constituídas
nos termos do art. 71.º deste Código é aplicável, em matéria de liquidação
e no caso de os estatutos nada dizerem, o estabelecido nos números 2 e 3
deste artigo», o que significa que este regime poderá abranger, igualmente,
as reservas livres, caso os estatutos sejam omissos52.
Assim, em caso de dissolução da cooperativa, o cooperador só terá
direito a recuperar as suas entradas para o capital social e os juros que lhe
correspondam (art. 79.º do CCoop).
51 Os lucros fi nais ou de liquidação são aqueles que resultam de se apurar, no termo da
liquidação da sociedade, um excesso do ativo sobre o passivo (arts. 156.º e ss., do CSC).
Considerando que um dia a sociedade pode ter um fim, no direito a quinhoar nos lucros,
que resulta do art. 21.º, n.º 1, al. a), do CSC, está englobado o direito dos sócios a participarem nos lucros fi nais ou de liquidação. Para uma análise desenvolvida deste conceito,
pode ver-se Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, cit., p. 339.
52 V., sobre esta questão, DEOLINDA A PARÍCIO M EIRA , O regime económico das cooperativas no
direito português: o capital social, cit., pp. 170-174.
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6. As diferenças como evidência das distintas funções que o capital
social desempenha na cooperativa e na sociedade comercial
Estas diferenças entre excedente cooperativo e lucro societário, o
mesmo é dizer entre retorno e dividendo, evidenciam as distintas funções
que o capital social desempenha na cooperativa e na sociedade comercial.
Em ambas as figuras, deparamos com um conjunto de pessoas que se
obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de
uma certa atividade económica.
Todavia, numa e noutra é diversa a função do capital social.
Na sociedade comercial, a empresa é concebida como «um instrumento
de valorização do capital, de multiplicação da riqueza dos sócios»53.
A repartição de dividendos surge como o instrumento graças ao qual o
capital social, formado pelas entradas dos sócios, será remunerado.
Nas cooperativas, pelo contrário, o capital formado pelas entradas
dos cooperadores surge, não como um investimento que irá proporcionar um lucro, mas como uma contribuição que irá possibilitar o gozo de
um determinado serviço – não constituindo o retorno dos excedentes o
resultado de uma lógica de remuneração do capital, limitando-se a ser o
resultado de uma renúncia a vantagens mutualistas imediatas, por parte
dos cooperadores54.
Finalmente, na sociedade comercial, a vitalidade da empresa e os resultados da mesma aferem-se essencialmente pelo confronto entre o capital social e o património líquido. Diversamente, na cooperativa, para se
determinar se existem excedentes não se toma como referência a existência
de um património líquido superior ao capital mais as reservas, ou seja, a
situação económica da cooperativa não se afere pela sua capacidade de
gerar excedentes.
53
FRANCESCO G ALGANO, Diritto commerciale. Le società. Contratto di società. Società di persone.
Società per azioni. Altre società di capitali. Società cooperative, cit., p. 478.
54 V., neste sentido, A SSOCIAZIONE DISIANO P REITE [Il nuovo diritto delle società. Società di capitali e cooperative (a cura di GUSTAVO OLIVIERI/G AETANO P RESTI/FRANCESCO VELLA), Il Mulino,
Bologna, 2003, p. 308], os quais sustentam que o retorno não representa a remuneração
do capital investido, no que se distingue do dividendo da sociedade lucrativa, refletindo
unicamente a relação (quantidade de bens e serviços adquiridos ou cedidos) que o cooperador estabelece com a cooperativa.
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