1 O Regime Automotivo Brasileiro de 1995 e a descentralização
industrial: o caso da Região Metropolitana de Curitiba
Brazilian Automotive Regime of 1995 and Industrial Decentralization:
The Curitiba Metropolitan Region Case
Dr. Geraldo Augusto Pinto
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
[email protected]
Resumo
Partindo de uma revisão bibliográfica, a presente comunicação lança luz a um conjunto
de políticas econômicas empreendidas pelo Estado brasileiro na década de 1990 com o
objetivo de incentivar a indústria automotiva instalada no país a ampliar sua capacidade
produtiva. Por meio do Regime Automotivo decretado em 1995, um significativo aporte
de recursos públicos foi utilizado para atrair investimentos externos diretos, visando,
inclusive, romper com uma histórica desigualdade regional no desenvolvimento
industrial brasileiro. Contudo, segundo apontam os estudos consultados, o desenrolar
desse processo não apenas consolidou uma desnacionalização em curso do setor de
autopeças brasileiro, como desembocou em uma “guerra fiscal” entre os estados da
Federação. Perfazendo uma disputa desorganizada, pautada por ofertas crescentes de
benefícios visando atrair os novos empreendimentos, estados e municípios contribuíram
para reduzir os custos totais de investimentos dos oligopólios transnacionais da indústria
automotiva, uma vez que a ampliação de instalações no país já havia sido decidida
anteriormente e no exterior pelas próprias matrizes. Como parte desse cenário, a Região
Metropolitana de Curitiba recebeu novas plantas de montadoras, adensando o seu
parque industrial e constituindo-se em um dos pólos automotivos mais importantes do
Brasil.
Palavras-chave: Indústria automotiva – Brasil; Políticas públicas – guerra fiscal;
Desenvolvimento regional – Região Metropolitana de Curitiba; Estados nacionais e
oligopólios transnacionais; Inovação tecnológica e mudança organizacional – gestão
flexível da força de trabalho.
Abstract
Departing from a bibliographic review, this work sheds light on a set of economic
policies employed by the Brazilian State in the 90s intending to encourage automotive
industry in the country to expand its productive capacity. By means of the Automotive
Regime ruled in 1995, a significant contribution of public resources was used to attract
direct external investments, as well as aimed to break with the historical regional
inequality in Brazilian industrial development. However, according to the studies
researched, the development of this process not only consolidated an en route
denationalization of the Brazilian auto-parts sector, but it has also resulted in a “fiscal
war” between the federation’s states. Through an unorganized dispute, ruled by
increasing offers of benefits aimed at drawing new business, states and municipalities
contributed to decreasing total costs of investments of automotive industry transnational
oligopolies, since expansion of installations had been previously decided in the country,
and by the companies’ own headquarters abroad. As part of this scenario, the
2 metropolitan region of Curitiba has received new automaker plants, densifying its
industrial park and consolidating itself as one of the most important automotive poles in
Brazil.
Keywords: Automotive industry – Brazil; Public policies – fiscal war; Regional
development – Curitiba metropolitan region; National States and transnational
oligopolies; Technological innovation and organizational change – flexible management
of labour power.
Três acordos, um decreto – e vence o capital transnacional
Visando recuperar-se da crise na década de 1980, a indústria automotiva instalada
no Brasil, dada a posição crucial que ocupa na acumulação de base industrial do país,
foi palco de controversas políticas públicas. A começar pelo governo Collor (19901992) que, a par de medidas contracionistas, desencadeou uma rápida abertura
comercial, provocando elevação nos preços dos veículos, queda nas vendas e redução
no emprego em toda a cadeia, levando o governo a se reunir com empresas e
trabalhadores na Câmara Setorial Automotiva.
Dois acordos resultaram desse encontro, em 1992 e 1993, nos quais basicamente
se propuseram redução de preços em certos veículos, manutenção do emprego com
correção salarial e planos de investimentos pelas empresas, em troca da redução de
impostos e da adoção de incentivos ao crédito interno e às exportações por parte do
governo. Fora da Câmara Automotiva, o presidente Itamar Franco (1992-1994) ainda
negociou incentivos à fabricação de veículos “populares”, oferecendo isenções de
impostos.1 Tais medidas, contudo, geraram graves distorções. Diferenças nas proteções
tarifárias dadas às montadoras e às autopeças deixaram as últimas expostas à
concorrência das importações, enquanto imprecisões nas cláusulas dos acordos
permitiram às primeiras não apenas valer-se da importação de veículos médios e de
luxo, com maior tecnologia embarcada, como incluir na definição de “populares”
diversos tipos de automóveis, recebendo, com isso, incentivos governamentais nem
sempre vinculados a investimentos geradores de novos empregos (BEDÊ, 1996;
ROSANDISKI, 1996).
Não por acaso, a indústria automotiva vivenciou um boom de crescimento no país,
puxado pelas vendas internas e, sobretudo, pelos “populares” (CONCEIÇÃO, 2001).
No que diz respeito ao emprego, contudo, o estudo de Rosandiski (1996) nas autopeças
1
Cf. Anderson (1998), Bedê (1996), Conceição (2001) e Satomi e Rodrigues (1997).
3 e montadoras do Estado de São Paulo (onde está a maior concentração dessa indústria),
sugere ter havido uma substituição de quadros, tendo as empresas aproveitado a crise de
1989-1992 para demitir operários antigos, substituindo-os por jovens mais escolarizados
e sem experiência entre 1993-1994, quando a economia já dava sinais de recuperação.
As importações, por sua vez, dada a sobrevalorização e congelamento do câmbio,
continuaram em alta, prejudicando severamente o setor de autopeças nacional,
tornando-se assim ponto de pauta num terceiro acordo automotivo, no início de 1995
(CONCEIÇÃO, 2001).
O governo, entretanto, descontente com as intervenções da Câmara Automotiva,
provocou dissensões internas e a desativou em 1995 (ANDERSON, 1998), decretando,
sem seguida, um Regime Automotivo Brasileiro. Consolida-se, então, um processo que
tornou explícito o apoio do Estado brasileiro ao projeto de concentração de capital e
expansão global dos oligopólios transnacionais da indústria automotiva. De fato, tal
Regime instituiu novas reduções tarifárias de importação sobre veículos, autopeças,
equipamentos e insumos industriais, em um grau de abertura ainda não conhecido no
país: por exemplo, às chamadas newcomers2, permitiu-se a aplicação de (zero) 00% à
importação de autopeças e insumos de países oriundos do Mercado Comum do Sul
(Mercosul) e cujos valores fossem compensados com exportações (PINHEIRO;
MOTTA, s. d.).
O resultado foi uma avalanche de importações de autopeças, que somente entre
1989-1996, atingiram 383,5% (SATOMI; RODRIGUES, 1997). O movimento tomou
corpo: Costa e Queiroz (1998) apontaram que a participação das importações no
consumo aparente de autopeças no Brasil passou de 5,0% para 32,5% entre 1989-1999,
produzindo um déficit na balança comercial brasileira do setor no triênio 1997-1999,
contrariamente aos saldos superavitários médios de US$ 1,3 bilhões obtidos entre 19891993. Se a abertura comercial já prejudicava as empresas de autopeças instaladas no
país, àquelas de capital nacional a adversidade era ainda maior, haja vista a dificuldade
que enfrentaram em obter créditos para financiar ampliações e inovações, pois, salvo o
biênio 1990-1991 e o ano de 1999, as taxas de juros reais foram superiores à margem de
rentabilidade operacional desse ramo industrial durante a década de 1990. Sem saída,
muitas endividaram-se junto à rede bancária, indo à falência ou acordando contratos de
aquisição por grupos transnacionais (ALVES, 2000; COSTA; QUEIROZ, 1998).
2
Plantas de montadoras e de autopeças que venham a se instalar no país e novas plantas ou linhas
completas de produção das empresas já presentes, com introdução de famílias novas de modelos. 4 Assim, no intervalo entre 1994-1999, 21,3% do faturamento total do setor de
autopeças do Brasil saiu das mãos do capital nacional e foi para o estrangeiro, que
passou a dominar cerca de 70,0% desse faturamento setorial ao final do período
(CONCEIÇÃO, 2001). Por outro lado, com o fechamento de plantas, adveio um
desemprego estrutural, sobretudo porque as fabricantes de autopeças empregam,
proporcionalmente, mais trabalhadores que as montadoras (BEDÊ, 1996). Dados de
Conceição (2001, p. 143) mostram que 309,7 mil trabalhadores estavam empregados no
setor de autopeças no Brasil em 1989, gerando um faturamento de US$ 15,5 bilhões. Do
início da abertura comercial em 1990 até 1994, eliminaram-se 17,04% desses empregos
e, nos cinco anos seguintes (1995-1999), mais 22,03%, chegando-se a 167,0 mil
empregados em 1999.
Cinco anos depois, em 2005, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos
Automotores (ANFAVEA, 2006, p. 73) comemorava ter o setor atingido o faturamento
recorde de US$ 24,2 bilhões “[...] com um quadro de 197 mil colaboradores, 10 mil a
mais do que no ano anterior”. Uma comemoração muito contestável para a classe
trabalhadora, pois, retrospectivamente, embora o setor tenha fechado 1989 com um
faturamento 35,95% menor que o de 2005, contava à época com 57,2% a mais de postos
de trabalho – o que demonstra, aliás, que o faturamento por trabalhador empregado
nessa indústria se elevou em 139,96% no país entre 1989-20053, muito provavelmente
em decorrência dos processos de “enxugamento” pela via da automação e da introdução
dos métodos da gestão flexível do trabalho, como os do Sistema Toytota de Produção.
Enquanto as empresas de autopeças nacionais amargavam a crise, as montadoras
aqui instaladas, todas transnacionais, aproveitaram para ajustar, num curto espaço de
tempo e com um mínimo de esforço, suas classes de produtos à demanda dos diversos
segmentos de mercado, pois, com a abertura comercial e o câmbio sobrevalorizado,
adquiriram facilmente componentes mais sofisticados para renovar seus veículos sem
arcar inicialmente com riscos e custos de uma produção totalmente local. Aproveitaram,
ademais, para investir em novas unidades, mesmo porque o Regime Automotivo
também incentivou a vinda de concorrentes.
De fato, após 1997, treze novas marcas de montadoras inauguraram, pelo menos,
onze plantas no país. Todavia, com exceção da Land Rover, que em 1998 se instalou em
3
Considerando-se os valores de US$ 50,191 mil em 1989, apontado por Conceição (2001, p. 143), e US$
122,842 mil por empregado/ano em 2005, por nós calculado a partir das informações fornecidas pelo
estudo da ANFAVEA (2005, p. 73 et seq.).
5 São Bernardo do Campo – região do ABC paulista, a velha “Detroit brasileira” –, todas
as demais investiram fora do Estado de São Paulo, evitando enfrentar a forte militância
sindical metalúrgica, ao passo que se angariavam valiosos benefícios fiscais concedidos
pelas administrações públicas locais (CONCEIÇÃO, 2001). Eis outra conseqüência do
Regime Automotivo: desorganizado e inconsistente em sua coordenação federal, o
Regime acabou permitindo que governos estaduais e municipais entrassem diretamente
em disputa pela recepção dos novos investimentos, originando-se uma “guerra fiscal”
cuja conseqüência imediata foi uma redução de custos às próprias montadoras, pois a
ampliação de suas instalações no país já havia sido acertada no exterior pelas próprias
matrizes (ARBIX, 2002).
Renault: o Complexo Ayrton Senna e a largada para a disputa fiscal
O Paraná inaugurou esse movimento, quando, em 1996, o governo estadual, na
gestão de Jaime Lerner (PFL), o município de São José dos Pinhais, na Região
Metropolitana de Curitiba, e o Fundo de Desenvolvimento Econômico, assinaram um
protocolo com a Renault. O Brasil e, de modo mais amplo, o Mercosul, já eram
prioridades da matriz desde 1995: sendo pólos importantes de crescimento nas vendas
de automóveis, são especialmente valiosos para uma empresa cujo faturamento de US$
37 milhões, em 1998, dependeu da própria França, seu país de origem e maior mercado
(GUEDES; FARIA, 2002).
Ao todo, a construção do que veio a ser o “Complexo Ayrton Senna” deveria
consumir US$ 670 milhões numa primeira fase, mais US$ 330 milhões num segundo
momento, visando uma produção de 120 mil veículos ao ano (ainda no primeiro
estágio). A Renault concordou em iniciar as obras da planta, de 105 mil metros
quadrados construídos, para ser inaugurada até 1999, arcando com 60% do capital e
gerando pelo menos 1500 empregos diretos – além de arcar, caso fosse desativada em
menos de vinte anos, com uma multa de R$ 50,5 milhões. Mais do que concordar, a
Renault comemorou o empreendimento ao saber que receberia dos “parceiros” públicos
acima referidos: 40% do capital (num teto de US$ 300 milhões); empréstimos (que,
embora vinculados aos seus níveis de produção, começariam a ser pagos somente dez
anos após o início de suas operações e sem qualquer correção inflacionária); um terreno
de 2,5 milhões de metros quadrados, para a construção de um “condomínio industrial”
no qual abrigasse fornecedores, com acessos rodoviários e ferroviários construídos; uma
6 área exclusiva no Porto de Paranaguá (a 60 km de distância); energia a uma taxa 25%
inferior ao preço de mercado; e, ainda, uma isenção de impostos locais por dez anos
(assim como aos fornecedores que viessem a se instalar no seu condomínio) (ARBIX,
2002; GUEDES; FARIA, 2002).
Tratou-se de um acordo tão desproporcionalmente vantajoso ao capital estrangeiro
que, provavelmente por isso, foi mantido em sigilo pelo governo do Paraná. Aliás, até
mesmo a inviabilidade posterior dos empréstimos inicialmente prometidos à Renault
(devido aos entraves gerados pela Lei de Responsabilidade Fiscal criada pelo governo
federal em 2000) foi contornada pelo governo paranaense, concedendo este à montadora
– como também à Volkswagen/Audi (VW/Audi), instalada na região logo depois – mais
cinco anos para que começasse a pagar o Imposto sobre o Comércio de Mercadorias e
Serviços (ICMS), para além dos quatro anos de carência já acertados no acordo inicial
(ARBIX, 2002).
É possível, contudo, que o sigilo de documentos do acordo com a Renault também
esteja relacionado com os questionamentos à construção do Complexo Ayrton Senna,
pois o terreno cedido em São José dos Pinhais era uma Área de Preservação Ambiental,
abrigando mananciais de abastecimento de água da Região Metropolitana de Curitiba.
Levantamentos feitos à época pela Universidade Livre do Meio Ambiente (Unilivre)
apontaram, contudo, que a área se encontrava degradada, o que auxiliou líderes do
governo local a rebater as críticas e afiançar, inclusive, que a própria Renault iria
revitalizar o lugar (GUEDES; FARIA, 2002).
A Renault, por seu turno, enfrentou dificuldades na contratação de força de
trabalho qualificada na região, o que lhe exigiu uma adaptação de elementos do sistema
de gestão flexível utilizado pela matriz francesa de Flins, como as Unidades
Elementares de Trabalho (UET). Trata-se de uma organização na qual os trabalhadores
são agrupados, no caso da França, em equipes com 25 membros em média, sendo um
deles eleito líder pelos demais. De todos é exigido o nível médio e um diploma
profissionalizante. São submetidos a uma rotatividade contínua entre diferentes funções,
com o fim de se consolidar a polivalência, assumindo não apenas a operação de
máquinas, mas sua manutenção preventiva, bem como o controle de qualidade dos
produtos, a limpeza e o descarte – ou retrabalho – de refugos. Implantadas
paralelamente às células de produção (em substituição às antigas linhas de série
dedicadas), as UETs geraram em Flins um salto de produtividade de 25%, permitindo à
planta demitir, em 1997, 30% dos gerentes de chão de fábrica e cerca de trezentos
7 operários, revoltando o Comitê de Fábrica e o sindicato, com os quais negociara um ano
antes a implantação de tal sistema (ROLDAN; SEGRE, 2002).
Diferentemente da planta francesa, contudo, em São José dos Pinhais as UETs são
menores, agregam entre seis e quinze trabalhadores, sendo o líder (operador sênior)
escolhido pelas gerências, desde que possua, no mínimo, o ensino médio e saiba
executar todas as operações atribuídas à equipe. Os trabalhadores também não assumem
tarefas de limpeza e manutenção, embora sejam responsáveis por controles de qualidade
e segurança no trabalho. Também diversamente da matriz não podem decidir mudanças
de posto e nem mesmo parar a linha de montagem por detecção de feitos, sem uma
autorização prévia do líder da UET. Chama a atenção, por fim, que no primeiro
processo seletivo de operadores da planta brasileira, o ensino médio era uma exigência
mínima – preferencialmente em formação técnica, como a ofertada pelo Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) ou pelos Centros Federais de Educação
Tecnológica (CEFET); a partir de 2000, porém, tal exigência foi reduzida ao ensino
fundamental completo (ROLDAN; SEGRE, 2002).
A Chrysler: uma curta e custosa trajetória
Outra montadora atraída para a Região Metropolitana de Curitiba foi a Chrysler,
cuja planta, instalada em 1998 em Campo Largo, foi projetada para fabricar quinze mil
automóveis ao ano, entre os quais o comercial leve Dakota, gerando 400 empregos
diretos. Um projeto que, também contestado por ambientalistas, custou cerca de US$
315 milhões de investimentos e para o qual o governo concedeu dez anos de isenção de
impostos, além de infra-estrutura e acesso aos recursos do Fundo de Desenvolvimento
Econômico. Aponta-se que o aporte do governo, novamente mantido em sigilo, foi de
tal envergadura que atingiu o dobro da soma despendida pela empresa, mesmo sob o
alerta de setores da sociedade a respeito da obsolescência tecnológica do projeto e seus
riscos de desativação futura. De fato, perto de dois anos de funcionamento e após uma
última injeção de US$ 20 milhões da Chrysler em 2000, a planta foi fechada em 2001
por decisões internas estratégicas da matriz, encerrando contratos com 190 assalariados
e saldando débitos fiscais com o estado da ordem de US$ 55 milhões (GUEDES;
FARIA, 2002).
Esse caso atesta não só a compulsão causada nas empresas pelos irrecusáveis
benefícios públicos concedidos em uma região estratégica no âmbito do Mercosul,
8 como, e principalmente, o despreparo técnico das autoridades governamentais. Foi um
desastre, certamente, pois embora a empresa tenha honrado os custos de encerramento,
não há estudos oficiais a respeito das perdas que o Paraná assumiu com os recursos
públicos investidos. Sem contar os impactos sobre a cadeia produtiva da região, a
começar pelas empresas de autopeças como a Dana, principal fornecedora da Chrysler e
para a qual havia desenvolvido um sistema especial de montagem das caminhonetes
(ARBIX, 2002).
A VW/Audi e a maior greve da sua história
A VW/Audi, também atraída pelo governo paranaense à mesma época, não sofreu
questionamentos de ambientalistas, pois sua fábrica de automóveis foi instalada em uma
área já utilizada para fins agropecuários em São José dos Pinhais. Tratou-se de um
investimento inicial de US$ 375 milhões, visando uma produção de 140 mil veículos ao
ano. Entretanto, já em plena inauguração em 1999, um ato público organizado por
sindicatos denunciou a ausência de medidas de segurança na construção da planta e o
descumprimento de direitos trabalhistas pelas empreiteiras contratadas. Dois anos
depois, em 2001, oscilações nas vendas causaram um encerramento de um turno e a
VW/Audi logo lançou um plano, muito contestado, de demissão voluntária (GUEDES;
SEGRE, 2002).
Todavia, a maior manifestação nessa planta ainda estava por vir e atingiria um
ponto nevrálgico: a isonomia de condições entre, de um lado, os trabalhadores do novo
pólo automotivo paranaense, cujas empresas foram regadas de benefícios estatais, e, de
outro, os trabalhadores empregados em plantas de regiões tradicionais como o ABC
paulista. No primeiro semestre de 2011, os 3,1 mil metalúrgicos da VW/Audi iniciaram
uma greve cujo estopim foi a reivindicação da PLR igual à paga pela Renault. Diante da
recusa da montadora, a luta desencadeou a elaboração de um dossiê pelo Sindicato dos
Metalúrgicos da Grande Curitiba (SMC), que, além de denunciar o alto índice de
doenças ocupacionais nessa fábrica, recuperou a sua história, com dados sobre a sua
produção, sobre os incentivos fiscais recebidos, sobre sua produtividade e as diferenças
entre os salários e benefícios nela pagos em relação às plantas em São Paulo (SMC,
2011a).
O dossiê foi entregue a deputados estaduais do Paraná, ao governador Beto Richa
e ao Secretário Estadual do Trabalho, solicitando providências no sentido de garantir
9 aos trabalhadores paranaenses condições, no mínimo, iguais às dos trabalhadores
paulistas. Entre as informações consta que a montadora já recebeu R$ 2 bilhões em
incentivos fiscais dos cofres públicos estaduais, praticando, contudo, salários 50%
menores em comparação aos pagos em São Paulo. Nas palavras do presidente do SMC,
Sérgio Butka:
Considerando o volume de recursos recebidos pela Volks desde 1999, ano de
sua instalação, nós, trabalhadores, entendemos que esta não é uma questão
restrita ao universo metalúrgico: mais que isso, essa é também uma questão
de interesse público, pois uma empresa que recebe incentivos de tal ordem
tem sim uma dívida a saldar com todo o povo do Paraná (SMC, 2011a).
O presidente da VW no Brasil, Thomas Schamll, veio à imprensa declarar que
preferia a greve a ter de negociar. Tal inflexibilidade custou caro, pois a greve se
prolongou por 39 dias, a maior de toda a história da VW no mundo, provocando,
segundo informações da própria montadora, um prejuízo superior a R$ 1,1 bilhão sem
contar o impacto no faturamento das concessionárias do país pela falta de reposição dos
produtos (o grupo Corujão teve prejuízo de 12%). Mais de 20 mil trabalhadores
sentiram os tremores da mobilização, quando firmas terceirizadas, fornecedoras e
distribuidoras da VW decretaram férias coletivas. Mas, os metalúrgicos da VW/Audi de
São José dos Pinhais receberam grande apoio de várias partes do país e do mundo, e a
paralisação se encerrou com um saldo relativamente positivo (a nosso ver, mais pela
questão simbólica dos apontamentos que pelos benefícios materiais): equiparou-se a
PLR ao valor pago nas plantas paulistas; houve, também, um reajuste salarial de 15% a
20% e um adiantamento da 1ª parcela do 13º salário de 2012; por fim, a empresa
negociou as reposições dos dias paralisados comprometendo-se a não demitir por causa
da greve (SMC, 2011b).
Considerações finais – ou um balanço crítico
Desde o início do Regime Automotivo até a ofensiva dos lances paranaenses
inaugurada em 1996, as ofertas públicas de benefícios para a atração de investimentos
nos estados brasileiros moviam-se dentro de padrões mais estáveis, época, por exemplo,
em que a VW instalou sua fábrica de caminhões e ônibus em Resende, RJ, bem como
sua nova planta de motores em São Carlos, SP, assim como a planta que a MercedesBenz montou em Juiz de Fora, MG, para produzir o modelo Classe A.
10 Quebrando esse padrão e ampliando substancialmente, em quantidade e
qualidade, as ofertas ao capital, o Paraná, ao atrair, entre os anos de 1996 e 2000, a
Chrysler, a Renault, a VW/Audi, a Tritec (inicialmente Chrysler/BMW, mas, após 2008,
Fiat) e o consórcio Renault/Nissan, criou o que atualmente é o terceiro pólo automotivo
do Brasil, na Região Metropolitana de Curitiba. Ao custo, no entanto, de recursos
valiosos que advieram de processos internos de privatização no estado. Além,
evidentemente – como demonstrou o prosseguimento da “guerra fiscal – de fixar os
demais lances dos estados da Federação em um patamar subserviente diante do capital
externo (ARBIX, 2002).
Afinal, segundo Roldan e Segre (2002, p. 07), “o Mercosul representa um volume
anual de vendas de 2,3 milhões de automóveis novos, disputados pelos maiores
construtores mundiais do setor: Volkswagen, Fiat, GM e Ford”. Foi com base nisso que,
certamente, que entre 1995 e 2000 as montadoras investiram cerca de US$ 17 bilhões
no Brasil, ampliando em 25% a capacidade industrial instalada (ARBIX, 2002, p. 112).
Todavia:
Ao entrar na disputa sem definir a contraparte das empresas e tampouco os
custos e o retorno para o setor público; ao participar das negociações com as
empresas sem estabelecer relações de reciprocidade; sem indicar os meios de
controle sobre os planos apresentados; sem se preocupar com a prestação de
contas à população; e sem se perguntar pelos direitos do Estado e das
cidades, os governadores, de titeriteiros, transformam-se em marionetes (Id.
Ibid., p. 124).
Ou seja, disputando, mediante a “sangria” de verbas públicas, investimentos já
predestinados pelas próprias estratégias do capital oligopolista transnacional ao Brasil,
“[...] contribuíram para aumentar a cota de transferência de recursos públicos para o
setor privado” (ARBIX, 2002, p. 125). Um processo, enfim, do qual o governo federal
não pode ser isentado, haja vista o vazio institucional sob o qual permitiu ter o Brasil se
tornado “[...] uma ‘terra de oportunidades’ não somente para grupos internacionais mas
também para membros de governos locais, particularmente de municípios” (GUEDES;
FARIA, 2002, p. 60).
Agradecimentos
Parte dos dados aqui apresentados resultou de uma pesquisa de doutorado realizada no
DS/IFCH/Unicamp sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Antunes e com o apoio da
FAPESP, aos quais manifesto meus agradecimentos.
11 Referências
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2011a.
SMC – Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba. Metalúrgicos da Volks
encerram greve com pacotão de R$ 21.680,00 e até 20% de aumento salarial. Notícias,
16
jun.
2011.
Disponível
em:
<http://www.simec.com.br/index.php?area=ler_noticia&id=1555>. Acesso em 04 jul.
2011b.
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O Regime Automotivo Brasileiro de 1995 e a