Espaço Urbano
Quando se fala em espaço público1 é necessário reflectir sobre o espaço social
como território geográfico inserido nas coordenadas espácio-temporais que determinam o
quotidiano da vida humana. Ora, se temos um espaço mais ou menos definido, no âmbito
da sociologia como topologia do social, a paisagem humanizada é definida e
caracterizada pela arquitectura e o urbanismo. Espaço social define-se, então, como
campo de inter-relações que se desenrolam num espaço físico construído, cuja percepção
e representação constituem o imaginário individual ou colectivo da cidade e dos seus
lugares que se relacionam com o viver em conjunto, bem como com os aspectos
socioculturais que alimentam a memória colectiva. O espaço é relacional e, baseado nas
coexistências, define o fenómeno da concepção das dicotomias que compreendem a
percepção da realidade, segundo um sistema bipolar que caracteriza as noções de
interior-exterior, de público-privado.
Gordon Matta-Clark, nas suas vertiginosas intervenções urbanas, explora questões
ligadas a esta temática. Tomando como exemplo os seus recortes arquitectónicos, este
artista coloca o observador dentro de um edifício, num ponto de vista que permite,
através dos recortes nos diferentes andares dos prédios, a contemplação de sequências de
espaços. Num registo de continuidade, a separação dos compartimentos deixa de existir
para dar lugar à interligação que remete para questões de ordem social e económica. As
suas excisões, por se constituírem aberturas para o espaço, traduzem-se em passagens
visuais pelos edifícios, e se tornam metáforas para a fluidez num contexto capitalista. Por
outro lado, os cortes que o artista efectua nas paredes exteriores dos edifícios traduzem-se
na violação do espaço privado, e oferecem a quem está fora um ponto de vista para
dentro.
A dimensão psicológica e social acaba por relacionar as antinomias como
dentro-fora, fechado-aberto, interior-exterior, no que diz respeito às vivências. A noção
de espaço interior remete sempre para a habitação, como prolongamento do ser que vive
em busca da harmonia e a encontra na casa, o refúgio e a meditação. A acumulação de
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A questão do espaço público prende-se também com o conceito de esfera pública.
experiências, através dos objectos recolhidos e distribuídos pela casa, torna-se
testemunho do sonho e da recordação. Este reservatório da memória, constituído pela
acumulação de cenas passadas, encontradas em sótãos ou em caves, acaba por ligar-se ao
espaço que deixa fugir o sonho ou a figuração, promovendo uma identidade que
transcende a arquitectura. O carácter poético da casa encontra-se nas imagens e na
intimidade do homem que nela reside e nela se recolhe. No entanto, este carácter
intimista perde-se, no decorrer das aceleradas transformações das cidades, com a
construção de habitações em série no âmbito da reformulação urbana.
O ritmo urbano, definido pela agitada vida diurna, obriga o regresso ao
silêncio e à intimidade do homem citadino. A dicotomia noite-dia revela o pulsar da
cidade, fazendo adormecer ou despertar o indivíduo que se movimenta e se relaciona com
o espaço, de uma forma cada vez mais abstracta. O controlo da identidade de grupo é
mediado pelos bairros populares, característicos das sociedades tradicionais, que
determinam a fronteira entre o interior e o exterior. Por outro lado, a relação abstracta
com o espaço, por ligar-se à multiplicidade de lugares e às realidades homogéneas,
provoca uma crise identitária, associada ao desaparecimento da oposição interiorexterior, originando assim a progressiva desterritorialização e à perda do sentido de
morada. O espaço urbano, organizado mediante concepções ligadas a questões diversas,
torna a cidade pensada como objecto, e não em si mesma. As constantes reformulações
urbanas são associadas à construção de residências em série e/ou à demolição de prédios
ou quarteirões.
A título de exemplo, Rachel Whiteread, na sua obra House (1993), construiu, a
partir de uma casa vitoriana, o seu inverso. Tudo o que tinha sido ar agora é sólido
excepto as escadas e os soalhos que separam os andares. Tornou-se uma escultura
estranha com as proporções de uma casa, onde se observa a replicação das janelas, das
portas. Toda a casa ficou em negativo, completamente impenetrável... O espaço e a
memória, presentes nesta escultura-arquitectura, relacionam-se com o exterior e interior,
na fronteira entre o público e o privado. Este trabalho foi projectado para ficar, durante
um ano, numa zona marcada pelo vazio resultante da reformulação urbana e, construído a
partir de uma casa em vias de demolição, materializou o invisível no meio de outras
tantas que foram demolidas. Não sendo compreendido por todos, este molde
arquitectónico, confrontou o público com o momento entre o objecto escultórico e a sua
demolição efectiva.
O espaço apropriado, e a sua representação, relaciona-se com a dicotomia
público-privado. O privado relaciona-se com o habitat ou lugar de familiaridade,
enquanto que o público liga-se à multidão e ao anonimato. Sendo a cidade tradução
histórica da reprodução do social, o ordenamento urbano responde a uma estratégia de
classe que, tendo como objectivo a privatização, traduz-se na fragmentação do espaço
urbano. Deste modo, a morfologia urbana é responsável pela promoção de interacções,
pautadas pelo sentido de pertença ou não pertença, pela inclusão ou exclusão, associadas
à diferenciação social. Por outro lado, a heterogeneidade produz um espaço urbano
ambíguo pela apropriação simbólica ligada ao imaginário colectivo e à teatralidade dos
centros urbanos, bem como pela sua dimensão política, na esfera da representação
ideológica da cidade. A par da apropriação física do espaço, o carácter vivencial urbano
torna-se sinónimo da apropriação do lugar público, “privatizado” pelo habitante que
passeia pela cidade, e a frui.
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