A estátua O Desterrado de Soares dos Reis, por José Guilherme Abreu
1. Observações preliminares
O Desterrado de Soares dos Reis é uma obra-prima da escultura ocidental, mas como todas
as obras-primas é uma obra enigmática. Enigmática, desde logo, pela judiciosa combinação
de duas linguagens à partida tão díspares quanto opostas: a poética romântica que emana da
expressão anímica da personificação do poema de Alexandre Herculano “Tristezas do
Desterro”1 e a forma clássica que reveste o nu masculino, modelado segundo a regra de proporções preconizadas por Policleto, no seu cânone.
A par deste convívio improvável entre o classicismo e o romantismo, um outro convívio
não menos raro faz-se sentir, entre o rigor da representação naturalista – não apenas
presente no corpo da figura, mas também no pormenor da vaga que vem rebentar contra o
penhasco, onde a estátua se encontra assente – e o desalento psicológico da figura, irremediavelmente mergulhado nas profundidades abissais e desamparadas do seu próprio eu.
Encontra-se pois impresso no belíssimo bloco de mármore de Carrara cinzelado por Soares
dos Reis, durante o seu pensionato em Roma, uma equação a várias incógnitas, cuja leitura
e interpretação tem desafiado sucessivas gerações de historiadores e críticos.
2. Algumas leituras de O Desterrado
Deve-se a José-Augusto França a superação do impasse a que as leituras de base romântica
e/ou simbolista haviam conduzido as interpretações sobre a origem e o sentido desta
estátua, ao mesmo tempo que a interpretação que o historiador vem propor, não somente
corrige os desmandos daquelas leituras, como faz entrar o seu entendimento no plano
analítico e semântico da modernidade.
A leitura de França começa por fazer jus à originalidade da estátua, e lucidamente evita
tentar inscrevê-la dentro de uma única estética (ou lógica) formal, considerando-a como
uma obra de charneira. Obra de charneira, como veremos, entre os formulários
académicos, donde se desprende, e a plástica moderna, dentro da qual ainda não se integra,
emergindo como obra a todos os títulos sui generis, ascendendo a um plano de excelência
que transcende o quadro da produção nacional, para emergir como alto lugar da escultura do
Ocidente.
Na passagem seguinte, o historiador desvela o sentido da obra, e define o “lugar conceptual”
que a esclarece:
Obra “espiritual” e “natural”, o “Desterrado” tem uma carga simbólica que lhe é interior; não
nasce de uma ideia, mas de um programa vivido e exigido pela própria vivência do artista. É, por
assim dizer, uma obra “existencial”.2
A leitura expressa por Bernardo Pinto de Almeida, por sua vez, inscreve a obra no plano
do tardo-romantismo, e encontra como fundamento a tese de que a estátua reflecte o
sentimento de melancolia que moldava a sensibilidade do escultor.
Temos bastantes reservas relativamente a este entendimento, como desenvolveremos mais
adiante. Não é a melancolia que se espelha nos signos identificadores de O Desterrado, mas a
angústia. Não é a corrente elegíaca (clássica) que emana do olhar, do torso e das mãos. É a
consciência de si como motor da existência, acompanhada da percepção da impossibilidade
1
HERCULANO, Alexandre, Poesias, Viúva Bertrand e Filhos, 1860, 2ª edição, Lisboa, pp. 165-183. E-book
acessível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/25925
2
A Arte Em Portugal no Século XIX, Vol. 1, Bertrand, Lisboa, 1966, pp. 453-454.
do exercício da liberdade que a possibilita, aspecto que surge agravado no campo da criação
artística, em virtude do jugo do academismo que pesava, então, sobre a esfera das artes.
Para lá deste enunciado, esta leitura tem o mérito de introduzir um dado novo fundamental
para o entendimento da estátua: a relação de convívio e amizade com o escultor norte-americano Augustus Saint-Gaudens (1848-1907), aspecto esse que iremos analisar com algum
detalhe mais à frente, pois dele emergem novas pistas e se insinuam novas ilações.
3. O pensionato em Roma
Depois de uma estadia em Paris, onde Soares dos Reis teve como mestres na Escola Imperial
de Belas Artes de Paris, François Jouffroy (1806-1882), professor de escultura, Adolphe Yvon
(1817-1893), professor de Desenho e de Pintura Histórica, Léon Heuzey (1831-1922),
professor de Arqueologia e ainda de Hippolyte Taine (1828-1893), professor de História da
Arte, o artista regressou a Portugal, afastado pelos horrores da Guerra Franco-Prussiana,
tendo obtido autorização para terminar o seu pensionato em Roma, onde estudou sob a
orientação do escultor Giulio Monteverde.
Assim, depois de uma breve passagem por Portugal, entre Agosto de 1870 e Janeiro de
1871, Soares dos Reis no dia 7 desse mês, arrancou para Roma, vindo a instalar-se, numa
primeira fase, na Via de S. Nicolo da Tolentino.
Este aspecto parece-nos de grande relevância, tanto mais que a filiação da obra de Soares dos Reis
com o Verismo não tem sido referida, à excepção de uma nossa referência anterior, onde
sutentamos ser “um dado entendimento do verismo [aquilo] que distingue a obra de Soares dos Reis.”3
Afinidade, mas não transcrição. Soares dos Reis não é um epígono de Monteverde, e nenhuma
razão havia na insinuação lançada pelo pintor Francisco Rezende de que “o Desterrado era
mais obra do escultor italiano Monteverde, seu suposto mestre em Roma, do que pròpriamente sua.”4
Senão vejamos, comparando ambas:
Fig. 1- G. Monteverde, Colombo, 1870, Génova Fig. 2- S. dos Reis, Desterrado, 1874, Porto
3
ABREU, José Guilherme, A Estatuária Novecentista entre dois Paradigmas de Monumentalidade, In, MATOS, Lúcia
Almeida (coord.), Encontros de Escultura, FBAUP/MUSEU, Porto, 2005, p.
4
AZEVEDO, António, Soares dos Reis, In, EBAP (org), Soares dos Reis: In Memoriam, 1948, Porto, p. 84
Se é verdade que se verifica uma certa similitude relativamente à pose, no que respeita ao
tratamento plástico, são notórias as discrepâncias, visto em Monteverde nos encontrarmos
perante uma figuração neo-florentina, como convinha à interpretação verista do jovem
Colombo, enquanto em Soares dos Reis nos encontramos pertante uma figuração clássica,
evidenciada pelo nu masculino.
Mas os contrastes não se restringem ao domínio da iconografia. De igual modo, o
tratamento expressivo é totalmente distinto, quer relativamente à expressão do olhar, quer
relativamente à posição das mãos, como se verifica pelas imagens:
Fig. 3- G. Monteverde, Colombo, 1870, pormenor do olhar
Fig. 4- S. dos Reis, Desterrado, 1872-74, pormenor do olhar
Analisando as imagens, verifica-se o contraste absoluto da deteminação premonitória de
uma expressão que visa um horizonte distante, mas indubitavelmente focada no devir, no
caso de Colombo. Já no Desterrado, observa-se a expressão vazia, ou perdida no abismo
interior de quem não tem futuro, nem sequer presente.
Olhar firme, determinado e seco, na antecipação do devir, no Colombo. Olhar absorto,
desanimado e ausente, no Desterrado.
Em síntese, podemos afirmar que do ensinamento dos mestres que teve em Paris e em
Roma, Soares dos Reis colheu maior influência em Giulio Monteverde, do qual aproveitou
o verismo plástico e expressivo que lhe permitia superar a frivolidade formal, a frieza do
desenho e o convencionalismo da composição dos estatuários franceses que reduziam a estatuária do terceiro quartel do século XIX, a redundantes exercícios meramente retóricos
de grandiloquência.
4- Os condiscípulos
Antes de mais, importa recordar que enquanto Soares dos Reis se encontrava em Roma,
encontravam-se lá também colegas seus portugueses, como o escultor José Simões de
Almeida (1844-1926), que enquanto bolseiro do Estado Português teve o mesmo trajecto e
foi aluno dos mesmos professores que Soares dos Reis, tanto em Paris como em Roma.
Mas as repercussões da produção dos seus colegas portugueses na obra de Soares dos Reis
é nula, e de todos os colegas que teve durante o seu pensionato, aquele com quem
estabeleceu mais fortes laços de amizade foi com o norte-americano Augustus SaintGaudens (1848-1907), que fez um percurso igual, tendo estudado em Paris e em Roma, e
cuja amizade de resto perdurou ao longo dos anos5, tendo-se iniciado o convívio de ambos,
5
Existe uma carta de Soares dos Reis dirigida a Augustus Saint-Gaudens, datada de 1885, cujo micro-filme se
encontra na Dartmouth College Library, guardada no espólio Augustus Saint-Gaudens, cota, Saint-Gaudens,
Augustus, Papers 1874-198, Identification: ML-4, cuja descrição é a seguinte: Soares dos Reis, Antonio -- One
letter from Soares to Augustus Saint Gaudens. 1885. FRAME : 41-53, Society of American Artists -- One
letter
from
Augustus
...
http://ead.dartmouth.edu/html/ml4.html,
In,
http://ead.dartmouth.edu/html/search_results.html?cx=017180522165740084141%3Av1wbqwoih_k&as_q
=more%3Aead&cof=FORID%3A10%3BNB%3A1&ie=UTF-8&q=soares+dos+reis&sa=Search#140
logo em 1868, durante o mestrado de Jouffroy, tendo-se aprofundado durante o
pensionato de ambos em Roma6, segundo John Dryfhout, biógrafo de Saint-Gaudens.
De acordo com o mesmo autor, em Outubro de 1873, Soares dos Reis acompanharia SaintGaudens num “Walking tour of Naples and Capri”7, sabendo-se inclusive que dessa viagem a
Capri resultou o desenho da mesma vaga que fustiga o rochedo sobre o qual se apoia o
Desterrado, consensual que tem sido considerar que a angustiada figura se ergue sobre uma
dos rochedos de Capri, que Soares dos Reis teria, na mesma viagem, visualizado, ou pelo
menos a que a estátua pretendia aludir.
Eis como John Dryfhout se refere à passagem de Saint-Gaudens por Roma:
During his early days in Rome, however, in order not to lose sight of the ideal, not to stray from his true
artistic purpose, Saint-Gaudens began to model the Hiawatha. The subject was safe, following a neoclassically correct theme from mythology and Literature. He modeled the figure in the nude, the favored
expression of ideal beauty; the pose and style of the work certainly derived from his French training. A cast
of Francisque Duret’s Chactas Meditating on the Tomb of Atala, a romantic figure of 1836 based on the
poem by Chateaubriand, was in the Villa Medici, the French Academy in Rome. Saint-Gaudens choice of
the theme, based on the poem by Longfellow, brings to the figure a particular national flavor. He shared a
studio on the via Tolentino with the Portuguese sculptor Soares dos Reis, a fellow student from the École des
Beaux-Arts who was also modeling an ideal work called The Exile.8
Este depoimento é importante, na medida em que avança dois factos determinantes.
Em primeiro lugar, mostra-nos que a decisão de esculpir a estátua de O Desterrado, não
decorreu de uma decisão solitária, fruto do afastamento doloroso do escultor de Portugal,
mas antes decorreu de uma decisão muito provavelmente partilhada, tomada em paralelo
com Augustus Saint-Gaudens, perseguindo ambos os escultores, a partir de propostas
diferentes, a síntese dos ensinamentos colhidos em Paris e em Roma.
Observem-se a seguir as imagens das estátuas de Chactas, de Hiawatha e de O Desterrado:
Fig.5- Francisque Duret, Chactas, 1836, Musée de Lyon
Fig. 6- Saint-Gaudens, Hiawatha, 1872, Met., New York Fig. 7- Soares dos Reis, Desterrado, 1872
6
DRYFHOUT, J, The Work of Augustus Saint-Gaudens, University Press of New England, 1982, Lebanon, p. 3
7
Idem, p. 4.
8
Idem, p. 26.
Eis o modelo donde provém a iconografia do Hiawatha, de Saint-Gaudens e, em paralelo,
de O Desterrado, de Soares dos Reis. Uma iconografia que se forma a partir de uma cruz,
cujos pólos são a literatura romântica, a plástica neoclássica, a aprendizagem académica, e a
História-Pátria.
A análise de O Desterrado, de Soares dos Reis, em paralelo com o Hiawatha, de Saint-Gaudens, torna-se assim, em nossa opinião, particularmente esclarecedora, desde logo porque
faz jus à génese simultânea de ambas as estátuas, tal como refere Kathryn Greenthal,
corroborando os factos que John H. Dreyfhout havia já avançado:
Ele encontrou-se com o escultor António Português Soares dos Reis (1847-1889), um colega seu da École,
e os dois decidiram compartilhar um estúdio nos jardins do Pallazzo Barberini. Como ambos, por serem
estrangeiros, não eram elegíveis para receber treinamento formal na Academia Francesa em Roma, eles
tinham que estudar por conta própria. Seguindo uma tarefa prevista num dos estágios mais avançados de
formação na Academia Francesa, cada jovem começou a produzir uma estátua em tamanho real. SaintGaudens escolheu Hiawatha, como tema.9
Mais adiante, Kathryn Greenthal, acaba mesmo por referir:
As estátuas dos dois jovens têm mais do que apenas uma origem literária comum, o posicionamento das
pernas e a forma em que os braços estão cruzados sobre elas são também semelhantes. Eles partilham ainda
uma qualidade meditativa e isolamento; que cada um contém uma referência pessoal pode ser prontamente
deduzida.10
O Desterrado não é, assim, nem o produto de uma alma melancólica, torturada pelo exílio da
Pátria amada, nem o espelho de uma raça teluricamente marcada por uma mística da
Saudade. Não sendo conhecido pelos excessos da vida boémia durante o seu pensionato
em Paris, Soares dos Reis, terminada a sua bolsa em Roma, não regressa, no entanto,
directamente à Pátria, para aliviar o seu sofrimento. Em vez disso, como já vimos, ruma a
Paris, atravessa a Mancha e visita Londres, e na viagem de regresso, não deixa de visitar
Lyon, Arles, Nîmes e Marselha, ainda tendo tempo para passar por Madrid.
A saudade não parece fazer-lhe apressar o passo para regressar à ditosa Pátria amada.
Para ensaiar uma resposta a esta pergunta, parece-nos necessário identificar os signos
diferenciadores de O Desterrado, para de seguida os interrogar e analisar.
5- Elementos para uma leitura
A leitura que propomos, começa inicialmente por aqui. Por um lado, existe a estrutura (o
modelo) que é comum a Saint-Gaudens e a Soares dos Reis. Por outro, existe a interpretação desse modelo, que é única e original em ambos os acasos, na medida em que se
constroem a partir de signos bem diferenciados.
No Desterrado, esses signos são o olhar vazio (que já vimos), os dedos entrecruzados, o
torso dobrado sobre si mesmo, e a onda que vem rebentar no rochedo junto ao mar.
Coloquemos esses signos lado a lado:
9
GREENTHAL, Kathryn, Augustus Saint-Gaudens, master sculptor, Metropolitan Museum of Art, 1985, New
York, p. 65.
10
Idem, p. 68.
Fig. 8- S dos Reis, Torso;
Fig. 9- S. dos Reis, Desterrado, detalhe Fig. 10- S. dos Reis, Desterrado, detalhe;
Fig. 11- S dos Reis, desenho
Importa assinalar, que todos estes signos são raros na iconografia da estatuária académica.
É isso que os torna precisamente signos diferenciadores, pois normalmente a estatuária
oitocentista tende a ser glorificante, ou pelo menos exaltante. Ora cada uma destes signos é
o contrário da exaltação. Senão vejamos: a acentuada curvatura do torso, reflecte o
abatimento do espírito da personagem; os dedos entrecruzados11 parecem denotar uma
crispação, e ao mesmo tempo desenhar uma grade, como se o sujeito se encontrasse
aprisionado; o olhar fixo e vazio mais a lágrima que do olho direito se desprende parece
sugerir um profundo e constante sofrimento; o rochedo batido pelas ondas do mar, parece
indicar a ideia de terminus, de beco sem saída e, portanto, de problema sem solução.
Um dos mais marcantes filósofos oitocentistas da angústia foi Søren Kierkegaard (18131855). Kierkegaard usa o exemplo de um indivíduo que se detém junto à borda de um
edifício alto ou precipício. Quando o indivíduo olha para baixo, ele sente o medo de cair,
mas, ao mesmo tempo, sente um impulso terrível para se atirar, borda fora.
Não cabe aqui obviamente desenvolver este aspecto, mas somente através de uma incursão
na psicologia das profundezas poderá esclarecer-se o que existia de patológico em Soares
dos Reis, e que o que existia de mesquinho e tacanho no meio social que o rodeava,
sabendo-se de antemão que a mistura de ambos os termos só poderia ser fatal.
Soares dos Reis após o regresso a Portugal encontrava-se, no entanto, bem activo, e era
uma figura influente, tendo concorrido para o lugar de professor da Cadeira de Escultura
da Academia Portuense de Bellas-Artes, e sido aceite, por unanimidade.
Mas isso não é tudo, já que em 1884 Soares dos Reis viria a criar um prémio destinado a
premiar os seus melhores alunos.
É, justamente, a partir de 1886, que Soares dos Reis cai em profunda depressão, como
desabafa num postal dirigido a Serafim Neves, em 17 de Junho de 1887:
... Da minha saúde nada posso adiantar a não ser que tenha ainda a fortuna de o meu amigo e distincto
médico Dr. Rebello da Silva faça um milagre, se é que no estado em que estou ainda é susceptível de cura
pronunciadamente radical…12
É precisamente nesse ano que Soares dos Reis desenhou um monumento funerário, onde a
sua assinatura aparece riscada num obelisco encimado por uma cruz de guerra, sobre o qual
um anjo choroso se debuça.
Parece-nos claro que se trata do desenho do monumento que Soares dos Reis projectara,
antevendo a sua própria e iminente morte.
11
Importa referir que os dedos entrecruzados são um dos atributos da iconografia de Santa Madalena.
12 BALDAQUE, Mónica e ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento,
MNSR, 1988, Porto, p. 55
Fig. 12- Monumento Funerário, 1887
Fig. 13- J.J. Teixeira Lopes, Máscara mortuária de S dos Reis
A frustração do artista era portanto irrevogável. Aos seus olhos, tudo na sua vida falhava.
Falhara o projeto de Reforma do Ensino de Escultura, falhara o Centro Artístico Portuense, com a
revista Arte Portugueza a não publicar mais do que doze números, e falhava a sua carreira de
escultor, com a derrota dos concursos aos monumentos aos Restauradores e a José
Estêvão, e sobretudo com a rejeição do busto de Mrs. Elisa Leech, em 1888.
Daí que, no ano seguinte, na manhã do dia 26 de Fevereiro, depois de uma entusiástica
tertúlia, na véspera, em torno do projecto para o Monumento ao Infante D. Henrique no
Porto, a cuja comissão organizadora Soares dos Reis pertencia, com dois tiros certeiros, o
eminente artista abreviava o seu desterro na Terra.
Arriscando uma “interpretação de fundo”, a estátua o Desterrado representa o terminus de
uma filosofia da arte. Inserindo-se na linha evolutiva – na genealogia – da História da Arte
Ocidental, como já judiciosamente observara José-Augusto França, o Desterrado não somente é uma obra-prima da arte ocidental, como representa o seu auge: a pedra-de-fecho que
coroa a abóbada do que poderíamos designar como o entendimento clássico da arte, que
em sintonia com entendimento clássico da ciência – a física newtoniana – começava, em 1888,
a sofrer os primeiros abalos, com os trabalhos do matemático Henri Poincaré (1854-1912).
Nesse sentido, sendo o Desterrado o alter-ego do artista verista que Soares dos Reis foi, ao
mesmo tempo é o ícone paradigmático do terminus da escultura clássica, correspondendo,
por isso, a distância que separa o Desterrado de Soares dos Reis, de o Pensador de Auguste
Rodin, à distância que separa a escultura clássica da escultura moderna.
Fig. 14- O Desterrado
Fig. 15, Rodin, O Pensador
E é interessante verificar que com o Pensador, de Rodin, não se desmorona apenas o Classicismo, como também se desfaz o Romantismo.
Um elo de ligação, todavia, os une: a meditação em torno da condição existencial do ser
humano, cuja iconogafia ambos magistralmente definem, a partir de pressupostos estéticos
distintos, que a discrepância do material em que ambas as estátuas são produzidas, também
ajuda a evidenciar, com a técnica industrial de fundição em bronze, a substituir a técnica
ancestral do talhe e afeiçoamento do mármore.
Para finalizar, e fazendo jus ao valor artístico da estátua o Desterrado, acrescentamos a estas
notas, uma nota porventura romântica: a sugestão que anteriormente várias vezes já avançámos13 de fazer uma réplica, em pedra, de O Desterrado, e colocar esta no jardim do Palácio
de Cristal, eventualmente a rasar a superfície do lago.
Fig. 16- Soares dos Reis, O Desterrado no Palácio de Cristal, 2007, montagem fotográfica, José Guilherme Abreu
Estamos certos de que isso contribuiria para um maior visibilidade da estátua Soares dos
Reis, que é a bem dizer um dos tesouros escondidos da Cidade Invicta.
José Guilherme Abreu
Bibliografia:
ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto no Século XX. Inventário, História e Perspectivas de Interpretação, Universitat de
Barcelona, e-Polis, 2005, Barcelona.
ARROYO, António, Soares dos Reis e Teixeira Lopes. Paginas de critica d’arte, Typographia de José da Silva Mendonça, 1899, Porto.
BALDAQUE, Mónica e ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento, MNSR, 1988, Porto.
DRYFHOUT, J, The Work of Augustus Saint-Gaudens, University Press of New England, 1982, Lebanon
EBAP (org), Soares dos Reis: In Memoriam, 1948, Porto.
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HERCULANO, Alexandre, Poesias, Viúva Bertrand e Filhos, 1860, 2ª edição, Lisboa.
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2009, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
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TAINE, Hippolyte, Philosophie de l’Art en Italie. Lessons Professés à L’École des Beaux-Arts, Germer Baillière, 1866, Paris.
13 Vide, Conferência Jardins de Escultura ou Escultura em Jardins? Proferida na Biblioteca de Almeida Garrett, em
7 de Julho de 2007, inserida no Programa Ciclos & Trânsitos, 2ª edição, organizado pela Associação Portuguesa
de Historiadores da Arte. Mais informação em http://www.apha.pt/ciclos.php
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