Fato gerador da obrigação tributária: noção fundamental
Kiyoshi Harada*
Costumo dizer que quem domina a teoria geral do fato gerador da
obrigação tributária conhece 80% do direito tributário. O conhecimento
restante poderá ser completado por conta própria.
O grande mal é que o fato gerador não é estudado nas Faculdades
de Direito em todos os seus aspectos. Costuma-se ensinar apenas o seu
aspecto nuclear enquanto norma jurídica que define em abstrato uma
situação que, uma vez ocorrida concretamente no mundo fenomênico,
enseja, ipso facto, o surgimento da obrigação tributária.
Dessa forma, o aluno aprende, desde logo, a decorar o seguinte
discurso: fato gerador é a situação genérica e abstrata descrita em lei
que uma vez concretizada faz surgir a obrigação tributária. Não faz ideia
de que já aprendeu as noções de obrigações em suas variadas
modalidades na disciplina de direito civil.
Essa noção é transmitida ao longo do tempo como se fosse uma
categoria jurídica exclusiva do direito tributário. Decorar definições sem
compreendê-las acaba limitando o horizonte de quem estuda. É preciso
acostumar o aluno a estudar, desde logo, essa matéria em conexão com
o direito civil, cuja imprescindibilidade ao tributarista salta aos olhos
pela só leitura do art. 110 do CTN.
Se a ocorrência do fato gerador faz surgir a obrigação tributária,
essa obrigação não deve diferir da obrigação do direito comum senão
pelo seu objeto e sua fonte.
De fato, objeto da obrigação tributária principal é o pagamento do
tributo ou da penalidade pecuniária, ao passo que, no direito comum a
obrigação pode ter por objeto bens moveis ou imóveis, direitos,
semoventes etc. e até mesmo o pagamento de tributos por força do
contrato de locação em que o inquilino assume a obrigação de pagar os
tributos incidentes sobre o prédio locado de responsabilidade legal do
proprietário-locador. Quanto à fonte, no direito tributário, a obrigação
1
só deriva da lei (princípio da legalidade tributária), enquanto que no
direito civil a obrigação pode resultar, tanto da lei, como da convenção
das partes, sendo certo que a maioria delas resulta do acordo de
vontades, onde vige o princípio da licitude ampla. Por isso, não pode o
fisco aparelhar a execução fiscal contra o inquilino que assumiu
contratualmente o encargo tributário como uma de suas obrigações.
Em tudo o mais, a obrigação tributária nada difere da obrigação
de direito comum. A obrigação, como um vínculo jurídico que se
estabelece entre o credor e o devedor, pressupõe a existência de um
sujeito ativo (Fazenda) e de um sujeito passivo (contribuinte ou
responsável tributário). Tem um objeto que no caso é o pagamento do
tributo ou penalidade pecuniária, além das obrigações acessórias. Essa
obrigação deve ser mensurável: é o aspecto quantitativo da obrigação
tributária (base de cálculo e alíquota). Ela surge em determinado
momento: é o aspecto temporal do fato gerador que define a legislação
aplicável
em
cada caso
concreto. E
essa
obrigação surge
em
determinado lugar: é o aspecto espacial do fato gerador que define o
sujeito ativo do tributo, salvo determinação em contrário da norma legal
competente, excepcionadora do princípio da territorialidade das leis.
Tendo o domínio da teoria geral do fato gerador em seus diversos
aspectos pode-se facilmente divisar os posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais equivocados.
Citemos alguns exemplos.
A exigência do IPI na operação de simples revenda do produto
industrializado importado do exterior, cujo fato gerador ocorreu por
ocasião do desembaraço aduaneiro (art. 46, I do CTN). Ora, novo fato
gerador do IPI só pode ocorrer se houver nova industrialização, do
contrário esse imposto confundir-se-ia com o ICMS que incide a cada
etapa de circulação jurídica.
Por desconhecer o fato gerador do IPI, o governo pretende, como
parte do ajuste fiscal,
tributar com o IPI o setor de cosméticos,
incluindo como contribuinte o simples distribuidor que não pratica
2
qualquer ato de industrialização.1 Se isso acontecer, os tribunais
consumirão alguns lustros para pacificar a tese, n’um ou n’outro
sentido.
Ainda com relação ao IPI,
formou-se uma forte corrente
doutrinária e jurisprudencial em torno da não incidência do imposto na
importação de produto industrializado pela pessoa física na condição de
consumidora final, sob o fundamento de que se exigido for o IPI no
caso, restará prejudicado o exercício do direito a não cumulatividade
desse imposto constitucionalmente previsto.
Ora, a não cumulatividade, seja como princípio, seja como mera
técnica de tributação, como quer o STF, não tem a menor pertinência
com o fato gerador do IPI que, nos termos do art. 46 do CTN, ocorre
alternativamente: (a) no desembaraço aduaneiro, quando o produto for
de procedência estrangeira;2 (b) na saída do estabelecimento industrial
ou a ele equiparado. (c) na arrematação em leilão, quando se tratar de
produto apreendido.
A natureza cumulativa ou não cumulativa do imposto, assim
como a habitualidade ou não do contribuinte não integram a definição
do fato gerador do IPI. E se o fato gerador ocorreu concretamente, a
obrigação tributária surgiu ipso facto. Somente a existência de uma
norma legal que exclua o crédito tributário, como a isenção ou anistia
(art. 175 do CTN) teria o condão de dispensar o pagamento do imposto
pela importação de produto estrangeiro pela pessoa física ou jurídica,
contribuinte habitual ou não do imposto.
Na área do IPTU e do ITBI a confusão reina em relação ao aspecto
quantitativo do fato gerador da obrigação tributária. Vários Municípios
frequentemente aumentam os valores unitários expressos nas PGVs por
meio de Decreto, bem acima da inflação verificada no período
“corrigido.” A apuração da base de cálculo do ITBI, em São Paulo, como
todos sabem, não obedece a PGV aprovada por lei. Servidores
1
O distribuidor não procede à alteração substancial do produto ou de sua finalidade, nem o aperfeiçoa
para o consumo.
2
Na hipótese, o contribuinte do imposto é o importador nos termos do art. 51, I do CTN sendo
irrelevante o aspecto da habitualidade ou não, bem como a destinação final do produto importado.
3
burocratas agrupados em torno da Comissão de Valores Imobiliários,3
procedem periodicamente pesquisas de mercado4 e vão inserindo no
computador da Secretaria de Finanças valores que constituem o Valor
Venal de Referência, uma terminologia inventada por jejunos em direito
para driblar o conceito de Valor Venal referido no CTN.
Ora, a base de cálculo é um dos elementos do fato gerador da
obrigação tributária
e como tal está inteiramente submetido ao
princípio da reserva legal (art. 146, II, a da CF e art. 97, IV do CTN).
Valor encontrado na base do achismo ou de impressões do mercado
imobiliário, refletido na mente de burocratas da Secretaria das Finanças
em determinado momento que eles próprios estabelecem, não pode
fazer as vezes de Valor Venal mencionado no Código Tributário
Nacional. Mas, a jurisprudência não dá a mínima para a vinculação do
aspecto quantitativo do fato gerador ao princípio da legalidade.
Na área do ISS, também, as discussões jurisprudenciais em torno
do local do surgimento da obrigação tributária e consequente eleição do
Município competente para tributar é praticamente interminável.
Quando se pacifica o entendimento em relação a um determinado
serviço, logo começa a discussão em torno de outro serviço constante da
lista de serviços. Atualmente, a discussão está centrada no local da
ocorrência do fato gerador do leasing. Antes, era no local da prestação,
depois no local do estabelecimento prestador,5 agora, no local onde de
perfectibiliza o financiamento bancário, apegando-se ao aspecto nuclear
do fato gerador distanciando-se de seu aspecto espacial. O correto
entendimento do aspecto espacial do fato gerador, vinculado ao
princípio da territorialidade das leis, com as flexibilizações previstas no
art. 102 do CTN seria o suficiente para livrar os tribunais de tantas
discussões sem fim.
3
Um órgão nebuloso, sem participação de peritos e sem tradição na doutrina que atuam de forma
empírica.
4
As pesquisas são feitas sem a observância de critérios científicos, ou sejam, na orelhada, como se diz
na gíria.
5
Com a elasticidade de conceito permitida pelo art. 4º da LC nº 116/03.
4
É preciso repensar o estudo do fato gerador da obrigação
tributária que deve ser compreendido em todos os seus aspectos, com
auxílio das noções de direito civil naquilo que for pertinente. A
discussão em torno da terminologia positivada, apesar de frequente e
considerável, não tem a menor relevância jurídica.
SP, 23-2-15.
* Jurista, com 29 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20
(Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.
Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da
Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira
nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito.
Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. ExProcurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Site: www.haradaadvogados.com.br
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