A SENDA DO PRONOME: EU TE AMO ou EU A AMO?
No campo dos pronomes, parece que os registros na oralidade e a língua culta não
convivem bem. Estão quase sempre em conflito! A contenda não ocorre à toa. O sistema de
pronomes do português é demasiadamente rico e bastante complexo. Se em certa região do país,
diz-se “Quero que você venha amanhã.”, em outra será possível ouvir “Quero que tu venha
amanhã.” E note que, além da fala variada, há a possibilidade de ocorrência de erros, como na
imprópria conjugação verbal da segunda frase. Melhor seria registrá-la “Quero que tu venhaS
amanhã.”
A celeuma frequenta, a olhos vistos, o dia a dia do povo brasileiro. O Jornal do Brasil
reproduziu em hilária charge, a fala despretensiosa do brasileiro, deleitando-se em seu
coloquialismo:
O brasileiro adotou – de “adoção”, mesmo, propriamente dita – a expressão “eu te amo”.
Por aqui, sempre se ouve e se diz – até com certa prolixidade – o tal “eu te amo”. A frase é clássica
e típica entre aqueles que estão enamorados e, até mesmo, entre aqueles que ainda não o estão,
porém já pretendem deixar avisado que são detentores de tal sentimento. Portanto, a expressão
serve, quanto ao amor, em si, para externá-lo, simulá-lo e, curiosamente, antecipá-lo.
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Voltando à análise da máxima “eu te amo”, faz-se necessário recapitular algumas regras de
gramática.
No sistema de pronomes, destacam-se os pronomes pessoais – aqueles que ocupam a
função de sujeito das frases, chamados de pronomes pessoais do caso reto: eu, tu, ele(a), nós, vós,
eles(as). Estes podem ser comutados por outros, intitulados pronomes pessoais do caso oblíquo:
me, te, o, a, os, as, nos, vos, lhe, lhes, comigo, contigo, consigo, conosco, convosco, e outros.
O pronome “te” (caso oblíquo) refere-se à segunda pessoa do singular “tu” (caso reto). Na
maior parte do Brasil, não se usa o pronome “tu”, preferindo-se o tratamento “você” ou
“senhor(a)” – estes, pronomes de tratamento. Nessa medida, é fundamental estabelecer a
adequada correlação com o pronome pessoal do caso reto, que se deseja empregar. Assim: “tu”
avoca a utilização dos pronomes “te”, “ti”, “teu”, “tua”, e “contigo”; por sua vez, o pronome
“você(s)” avoca o uso dos pronomes de terceira pessoa “lhe”, “seu”, “sua”, “consigo”, além
daqueles que funcionam como complementos diretos (“o”, “a”, “os”, “as”), ou como
complementos indiretos (“lhe” e “lhes”).
Frise-se, em tempo, que o pronome oblíquo “te” pode exercer a função sintática de objeto
direto ou de objeto indireto. Posso utilizar, em segunda pessoa, a forma “Falta-te juízo!”. Aqui, o
“te” é o objeto indireto do verbo faltar (falta juízo “a alguém”). Todavia, se escrevo “Ele detestate!”, o “te” é um objeto direto (detesta “alguém”). Fazendo as adaptações para a terceira pessoa,
as frases ficariam “Falta-lhe juízo!” e “Ele detesta-o/a!” O pronome “lhe”, por sua vez, assume a
função de objeto indireto na oração, sempre relacionado com a terceira pessoa. Exemplo:
”Entregue o memorando ao advogado.” Com o pronome, teremos: ”Entregue-lhe o memorando.”
O verbo “amar”, à luz das regras de sintaxe, é transitivo direto e, como tal, requer objeto
direto. Os pronomes pessoais de terceira pessoa que complementam o verbo transitivo direto são:
“o”, “a”, “os”, “as”. Houve por bem Paulinho Moska, na bela canção “Espaço Liso (o Fado)”,
quando registrou “(...) Eu amo a alma, e não a pessoa (...)/ Eu amo o meu meio, e não o meu fim”.
Nessa medida, sob a perspectiva da linguagem culta, não se deve dizer “Maria, eu te amo”, mas,
sim, “Maria, eu a amo” (ou “Maria, eu amo você”). Curiosamente, a primeira formação – “Maria,
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eu a amo” – pode fazer com que “o tiro saia pela culatra”, indicando que o falante ama uma outra
candidata...Não há dúvida: esses ditos populares são sábios....
Todavia, o brasileiro que utiliza corretamente a segunda pessoa (tu), está autorizado a
continuar dizendo “Maria, eu te amo”. Tudo dependerá de qual será a situação de comunicação
em que a frase será produzida ou exteriorizada.
Vale destacar, ainda, que as expressões coloquiais “eu te amo”, “eu te quero”, “eu te devoro” são
comuns em versos de nossa música popular. Nos versos elogiáveis da canção “Amor I love you”, de
Marisa Monte e Carlinhos Brown, encontramos, logo de início: “(...) Deixa eu dizer que te amo/
Deixa eu pensar em você (...)”.
Conquanto se saiba que a canção é dotada de beleza singular, tais versos não teriam
andado bem, na trilha da gramática tradicional. O primeiro verso indica o interlocutor “tu”,
enquanto o segundo verso encerra-se com menção ao pronome “você”. Faltou a uniformidade de
tratamento, isto é, o emprego de pronomes que pertencem à mesma classe gramatical. Todavia,
com a franqueza necessária, é possível assegurar a ocorrência de um “erro” na bela canção
musical?
No âmbito da linguagem formal, em que se prima pelo nível de língua mais cuidado, há de
haver registros que se coadunem com os padrões exigidos pela gramática de rigor, quanto à
uniformidade de tratamento. Por outro lado, na língua do cotidiano, o uso dos pronomes tende a
se afastar dos padrões recomendados pela língua culta. Além disso, nos melódicos versos
transcritos, estamos diante do que se costuma intitular “licença poética”, que, desde os remotos
tempos dos parnasianos, outorga ao poeta a permissão para veicular certos “desregramentos”,
com a suficiente vênia. Diz-se, não sem razão, que, na defesa da licença poética, a excessiva
liturgia da forma pode prejudicar a espontaneidade do sentimento, artificializando a expressão, e
disso não se pode discordar.
Assim, no confronto de padrões de fala, teremos:
Padrão coloquial: Você deve comprar o que te pedi.
Padrão culto: Você deve comprar o que lhe pedi.
Padrão culto: Tu deves comprar o que te pedi.
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Ou:
Padrão coloquial: Eu te considero como um grande amigo, pai!
Padrão culto: Eu o considero como um grande amigo, pai!
Note que, no primeiro exemplo de uso do padrão culto, estabeleceram-se as correlações
“você – lhe” e “tu – te”, enquanto no padrão coloquial desponta a associação “você – te”. Por sua
vez, no segundo exemplo, o padrão culto recomenda que se substitua o pronome “te” pelo
pronome “o”. Diante disso, a indagação não merece resposta simplista, que separe o “certo” do
“errado”. A expressão “eu te amo” é dita aqui e acolá, dia a dia. Encontra-se cristalizada na mente
do povo brasileiro que, deixando de lado a gramática tradicional, exterioriza tal sentimento por
meio da (quase sempre) espontânea frase. É a presença do português “vivo”, que, afastando a
“ditadura dos pronomes”, substitui com facilidade a forma “você” por “tu, aderindo-se à máxima
“eu te amo”. E isso não é de hoje! Machado de Assis, Artur de Azevedo e tantos outros escritores
já adotavam a substituição da forma “você” por “tu”. Manoel Bandeira até se valeu de curiosa
invenção, na sublime criação lexical na poesia “Neologismo”, incorporando o pronome “te” ao
verbo “adorar”, em benefício do aspecto lúdico da poesia, ao burilar a ímpar formação verbal
“teadorar”, em contraponto ao nome próprio da pessoa a quem se exprimiu o amor – a Teadora!
O amor é um dos sentimentos mais sublimes e triviais das pessoas, apreensível até pelos
menos capazes, e há de se questionar se o respeito irrestrito às regras, neste caso, não retiraria a
naturalidade que deve marcar a sua exteriorização, em menor ou maior escala. Além disso, à luz
das normas cultas de rigor, os versos, perdendo a expressividade e coloquialismo necessários,
assim ficariam: “(...) Deixa-me dizer que te amo/Deixa-me pensar em ti (...)” ou “(...) Deixa-me
dizer que a amo/ Deixa-me pensar em você (...)”. Sobraria rigor; faltaria leveza...
O mesmo raciocínio, penso estender-se às demais ocorrências em nossa música popular
brasileira. A propósito, são incontáveis as canções, em cujos versos – e até em títulos! – aparecem
as formas coloquiais “eu te amo” ou “eu te quero”. A licença poética dá guarida a nossos
eminentes poetas. Não se deve duvidar da capacidade ímpar de compositores como Cartola,
Arnaldo Antunes, Djavan e Alceu Valença, que, nos títulos das canções, “Verde que eu te quero
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rosa”, “Que te quero”, “Te devoro” e “Eu te amo”, respectivamente, adotaram o padrão coloquial.
De modo idêntico, tal padrão pode ser encontrado em trechos de belas canções, como
“Conquero”, de Jorge Ben Jor[“(...) Quero te ver quero te ver/ Quero te ver, amor/ Te quero te
quero/ te quero, amor (...)”]; “Espanhola”, do 14 Bis [“(...)Te amo espanhola/ Te amo espanhola/
Se for chorar/ Te amo (...)”]; e, em outra canção de Marisa Monte (“A Sua”) [“(...) Que eu te adoro
cada vez mais/ E que eu te quero sempre em paz (...) E como eu te quero tanto bem (...)”].
Sendo assim, cabe ao falante a tolerância desejável perante as particularidades dos padrões
da fala – se culto ou se coloquial. A tolerância com que aceitamos o “erro” acaba por nos moldar à
complacência, incentivando a familiarização com as inúmeras particularidades de nossa língua.
Entre “eu te amo” ou “eu a/o amo”, fique com Olavo Bilac: “Amo-te, ó rude e doloroso idioma
(...)”.
PROF. EDUARDO SABBAG
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eu te amo - Professor Eduardo Sabbag