A REDAÇÃO DO ENEM E A FORMAÇÃO DOCENTE
BORNATTO, Suzete de Paula1 - UFPR
Grupo de Trabalho - Cultura, Currículo e Saberes
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) vem ampliando sua importância na seleção de
alunos para o ensino superior, mas o formato da avaliação precisa ser objeto de crítica, na
medida em que tem impacto no ensino e referenda (ou não) práticas docentes voltadas à
produção textual. A prova de redação, embora anunciada como inovadora por exigir uma
proposta de ação, reproduz, de forma pouco elaborada, o modelo da “redação escolar”, alvo
de questionamentos dentro e fora da escola há pelo menos três décadas (PÉCORA, 1983;
BRITTO, 1997; 2003; FARACO, 1975; BUNZEN, 2006). Este texto recupera alguns eventos
da história da “prova de redação”, indica alternativas que vêm sendo construídas pelos
vestibulares de algumas instituições e finaliza com a análise das orientações aos candidatos
formuladas pelo INEP em 2012. Tal análise revela como nem o formato da proposta de texto
nem os critérios de avaliação condizem com o esforço que vem sendo feito, no âmbito da
formação de professores de português, para que a produção escrita dos alunos seja tratada
com seriedade e se constitua em trabalho efetivo com os gêneros do discurso, a partir de uma
concepção sociointeracionista de linguagem. A permanência do modelo “redação escolar” na
formulação do ENEM, enquanto outras avaliações nacionais e internacionais já o
abandonaram, é compreendida como resultante da força de uma tradição que extrapola os
muros da escola e, portanto, precisa ser também debatida pela sociedade, até o momento
ocupada, conforme o grau de profundidade empregado pela mídia, apenas com os problemas
de aplicação e avaliação da prova.
Palavras-chave: Ensino de português. Exame Nacional do Ensino Médio. Formação
Docente.
Introdução
O Ensino Médio representa um desafio – para alunos, professores e instituições. Altos
índices de evasão, desmotivação, rejeição. Estudo do IPEA divulgado em 2012 aponta para
taxas de evasão em torno de 50% - a principal causa identificada são as reprovações (em
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora Adjunta no Departamento de
Teoria e Prática de Ensino no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em História, Educação e Modernidade (NEPHEM). E-mail:
[email protected].
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2012, o país teve a maior taxa de reprovação nessa fase da escolarização desde 2000).
Segundo pesquisa feita entre alunos “cursantes e não cursantes” do Ensino Médio na rede
pública de Minas Gerais, publicada em 2010, apenas 11,6% dos que desistiram alegaram falta
de interesse, enquanto 56,6% disseram não ter conseguido conciliar trabalho com estudos. Se
o Ensino Médio deve escolher entre ser a conclusão da educação básica ou a preparação para
outros níveis de ensino, o fato é que perde metade do seu público no meio do caminho.
Por sua vez, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado em 1998, vem
ampliando, desde 2009, seu papel como selecionador de alunos para as instituições de ensino
superior (IES). Apresentado desde o início como inovador e contextualizado, o modelo de
prova do ENEM tende a impactar os materiais didáticos – ainda que boa parte destes
materiais seja mera compilação de provas já realizadas – mas, principalmente, a sinalizar
alguns caminhos e critérios para o ensino de português que, nesse caso, não apontam para
nenhuma inovação, mas para experiências desgastadas do passado.
Sem entrar nas questões inerentes à organização centralizada, às dificuldades de sigilo
e de avaliação que têm ocupado a mídia nos últimos anos, vou discutir aqui a prova de
redação e, em especial, o material divulgado pelo INEP para orientar os candidatos ao ENEM,
procurando abordá-los como demonstração de força de uma tradição escolar diante de
mudanças importantes nos referenciais teóricos e metodológicos que orientam a formação de
professores de português.
Modelo persistente
Não pretendo me deter na análise das propostas das quinze edições do exame.
Schwartz e Oliveira (2010) apontaram o descompasso entre o modelo da prova e o que está
preceituado nos documentos norteadores da política de ensino da língua. As autoras
criticaram a frequência de fragmentos curtíssimos nos textos motivadores, mas
principalmente a insistência no gênero “escolar” da redação, na avaliação da escrita – em
detrimento da avaliação da capacidade discursiva. Concluíram que a adoção do ENEM pelas
IES, em substituição aos exames vestibulares, contribuiria para “imprimir em todo o país a
valorização de práticas de ensino e de avaliação da escrita que tomem o gênero na sua pura
forma linguística, perpetuando-se, assim, práticas de ensino artificiais em que eles são
estudados isolados das práticas sociais nas quais se constituem” (p. 14).
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As autoras aludem a diversos trabalhos que, assim como as orientações curriculares
nacionais, são fundamentados em “princípios bakhtinianos” no que se refere à concepção de
linguagem e de gêneros do discurso. Dentre eles, o de Zirondi (2006) analisa os enunciados
das provas do ENEM, com sua exigência de um texto “argumentativo” (sem gênero definido),
observando que as especificações da prova evidenciam “como preocupação maior o teor
normativo e a análise dos aspectos da textualidade, elementos centrados no texto como coesão
e coerência”(p. 6).
Infelizmente, a discussão sobre a prova se mantém na superfície, apesar de análises
como essas e da extensa produção acadêmica brasileira sobre a “produção de texto” na escola
(PÉCORA, 1983; FARACO, 1975; GERALDI, 1984, 1991), gêneros textuais, gêneros do
discurso e sua didatização (BONINI, 2002; FARACO, 2008; MARCUSCHI, 2005, 2008;
REINALDO, 2003), pra citar apenas alguns autores. Nas referências dos PCNEM (2000),
PCNEM+(2002) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) estão presentes,
também, Geraldi (1991, 1998), Kleiman (1995) e Rojo (2000).
Britto (2003) recupera o termo cunhado por Claudia Lemos em 1977 para denominar o
que constatava em redações feitas para os vestibulares: a “estratégia de preenchimento”, que
refletia as condições artificiais da produção e a ausência de reflexão. Britto reflete sobre o fato
de que “passados vinte anos de estudos e de propostas alternativas de ensino, as queixas
prevalecem, talvez com mais ênfase” (p. 180). Segundo ele, a novidade trazida por tais
estudos foi desviar o eixo das questões normativas e instrumentais para o eixo argumentativo,
com a valorização da interlocução, da audácia intelectual e do investimento subjetivo: “Não
se rompeu, contudo, com a concepção disciplinar do ensino de redação como próprio da área
de Língua Materna e, por isso, algo estritamente ligado ao estabelecimento do que se tem
chamado de ‘língua padrão’”(p. 182). As inovações metodológicas introduzidas no ensino
escolar teriam reduzido, para Britto, a preocupação estritamente normativa, mas não a
modificaram em essência.
Bunzen (2006), no artigo “Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de
produção de texto no ensino médio”, também retoma o questionamento feito, desde o final da
década de 70, quanto à validade do ensino de redação como mero exercício escolar, que servia
para o professor apontar “erros” dos alunos (p. 147). Essa prática, que esvazia a autoria e a
possibilidade de qualquer interação pela linguagem, mas é “legitimada pelas propostas de
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escrita da maioria dos concursos vestibulares e de algumas avaliações de rede, configura a
pedagogia da exploração temática” (p. 148, grifo do autor).
Seguindo a argumentação de Geraldi (1991), Bunzen defende que os alunos - na
escola – deveriam produzir textos diversos que se aproximassem dos usos extraescolares (p.
149) e sugere: “Para algumas turmas, talvez, seja muito mais importante discutir a produção
de um curriculum vitae ou de uma carta de solicitação de emprego do que produzir textos
puramente escolares.”
Ele observa, no entanto, que a adoção da concepção do texto como unidade de
ensino/aprendizagem, por volta do início dos anos 90, teve como consequência a inclusão dos
aspectos da textualidade como critério de avaliação em vestibulares e como objeto de ensino
nos livros didáticos. Por outro lado, a diversificação das atividades de produção textual parece
focar mais a estrutura composicional do que as situações de produção – de forma que os
alunos continuam a escrever apenas para o professor.
Bunzen (idem, p. 160) ressalta que é preciso o professor observar o “grau de
interferência (o efeito retroativo) dos concursos vestibulares e das avaliações em rede como o
ENEM”. De fato, a interferência de concursos e avaliações no currículo não pode ser
desprezada – e a história da disciplina é rica em exemplos.
Não custa lembrar que no início da institucionalização da disciplina de língua
portuguesa no Brasil, no final do século XIX, está também uma prova, ou melhor, o conjunto
dos exames de ingresso para os cursos superiores. Conforme Razzini (2010, p. 9), foi a partir
de 1870, após a inclusão do exame de Português nos exames (em 1869), que a disciplina
ganhou espaço no currículo do Colégio Pedro II, tomado como modelo para o ensino
secundário da época. Com essa medida, houve aumento da carga horária e de conteúdos nos
programas de Português, além da extensão de seu ensino às três séries do secundário.
Cerca de cem anos depois, a partir dos anos 1970, o aumento do número de obras
destinadas ao ensino de redação tem também nos vestibulares sua causa principal.
Em 1977, um decreto do governo viria obrigar as instituições federais de ensino
superior a incluir uma prova de redação em seus vestibulares. A medida é justificada por
Magda Soares (1978, p. 53), então membro da comissão responsável por estudar o assunto,
como resposta às denúncias de “uso incorreto, ineficaz e inadequado do português escrito”.
A prova de redação teria o objetivo de apurar a seleção, mas também de impactar o
ensino de 1º. e 2º. graus. A comissão preparou um documento com 26 recomendações, mas,
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segundo Oliveira (1985, p. 4), só foi adotada esta, da inclusão da redação nos exames
vestibulares.
Alguns anos antes, Carlos Alberto Faraco (1975, p.7) já denunciava, na revista
Construtura, as “sete pragas”do ensino de português – a terceira eram as “Redações-tortura”:
Queremos que nossos alunos escrevam, mas não lhes criamos as condições para tal.
O processo rotineiro de orientar a redação tem sido mais ou menos assim: damos um
título (silencioso por excelência porque coisa alguma lhes sugere!) ou aumentamos o
sofrimento deles, deixando o tema livre e esperamos tranqüilos o fim da aula para
recolher o produto suado daqueles angustiados minutos. Todos sabemos o quanto
nos custava atingir os limites mínimos de linhas (estes limites são indispensáveis
neste processo, do contrário ninguém escreve nada!). Mas, assim mesmo,
continuamos a submeter nossos alunos a essa tortura monstruosa que é escrever sem
ter idéias. Conseqüência: Os alunos deixam a escola sem saber redigir, sem ter
desenvolvida a capacidade de escrever (escrever é muito mais que desenhar letras no
papel...), incapazes de preencher, de modo inteligível, algumas poucas linhas.
A análise de Faraco incide sobre o processo de ensino, falho, que não desenvolvia nos
alunos a capacidade de escrita; difere, nesse sentido, das habituais acusações à capacidade
mental dos alunos, de que é exemplar a abordagem de Maria Theresa Fraga Rocco, como se
verá adiante.
Magda Soares (1978) estava certa quando, reticente em relação aos benefícios que a
obrigatoriedade da redação no vestibular traria para a correção e a justiça do processo
seletivo, previu que a experiência permitiria, ao menos, “uma série de estudos e de reflexões”
que levariam a decisões “mais solidamente fundamentadas” sobre os caminhos para a
superação dos problemas do ensino e da aprendizagem do português. Os estudos, de fato, se
multiplicaram.
Fraga Rocco (1981) toma por base as redações no vestibular para falar de “crise na
linguagem”. Após estudar exaustivamente uma amostra de 1500 redações do vestibular da
FUVEST em 1978 – cuja prova, segundo ela, rompia com “estereótipos pedagógicos” ao
pedir que o aluno redigisse “um texto em prosa” (e não uma dissertação) – conclui que os
textos não demonstram “consciência crítica” e que a grande maioria dos candidatos à
universidade apresentava “pelo menos momentaneamente, um atraso quanto à idade mental
em que teoricamente deveriam se encontrar” (p.258). Sua proposta fora a de abordar os textos
“sem qualquer intenção purista, sem qualquer tipo de atitude normativa, mas apenas com
uma preocupação com o normal” (p. 30) – mesmo assim, concluía que “algo de estranho”
estava ocorrendo com grande parte dos textos, em que havia carência de nexos, de
continuidade e quantidade de informação, ausência de originalidade etc.
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Em outra linha, Alcir Pécora (1983) desenvolve as análises que resultariam no livro
“Problemas de redação”, apontando a inconsistência da concepção de linguagem que
alimentava a prática da redação na escola.
Também no início dos anos 80, em dissertação pioneira sobre ensino de português e
livros didáticos, Bittencourt (1981, p. 144) problematiza os tipos de proposta de redação
presentes nos livros adotados pelos professores, de que identifica os seguintes: 1) nenhuma
sugestão, 2) tema para discussão, 3) tema para pesquisa, 4) plano de ideias, 5) sugestão de
títulos diversos, 6) título único, e 7) conceitos para interpretar. Eram, portanto, várias
alternativas – envolvendo discussão, pesquisa, escolhas - em um começo de década marcado
por “imenso mal-estar”, conforme a análise de Rodolfo Ilari ([1984], 1990):
Provavelmente, para muitos professores de Português, não há exercício escolar
menos gratificante que a redação: trata-se de uma atividade pedagógica
aparentemente fundamental no processo de formação dos educandos, na qual se
gastam um esforço e um tempo considerável, sem que os principais interessados
demonstrem, em compensação e em contrapartida, um progresso efetivo.[...] Essa
situação é relativamente antiga, e tem motivado reflexões pedagógicas que
condicionam uma prática eficiente da redação à satisfação de três exigências: leitura,
observação e motivação (p. 69-70).
Segundo o linguista, as concepções correntes na escola estavam equivocadas porque
ou visavam obter uma expressão correta; ou encaravam a redação como ajuste de contas sobre
temas gramaticais (p. 73).
Durante cerca de duas décadas, os vestibulares consagraram um modelo de texto seja a partir de coletâneas de variada extensão, de imagens ou de complexos temas
“motivadores” – a redação de vestibular.
No início dos anos 90, porém, o vestibular da Universidade Estadual de Campinas, já
permitia que o aluno escolhesse entre três possibilidades de texto - dissertação, narrativa ou
carta – a mesma UNICAMP introduziu em 2011 um novo modelo, em que são solicitados
três textos de gêneros diversos, variáveis a cada nova edição da prova. O documento da
Comissão Permanente para os Vestibulares (COMVEST, 2012) traz as justificativas para a
mudança:
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buscamos não apenas reafirmar a importância da escrita e da leitura para o aluno de
nossa Universidade, mas, antes de tudo, adequar a prova aos Parâmetros
Curriculares Nacionais e à proposta da Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo, que propõem o trabalho com a noção de gêneros desde o ensino fundamental.
A longa tradição dos exames vestibulares, voltada, de maneira geral, para a
avaliação da dissertação, tem sido responsável por um engessamento do ensino de
redação nas escolas de ensino médio, interrompendo o trabalho com gêneros sob a
alegação de que é preciso preparar os alunos para os vestibulares.
No Paraná, a UFPR aboliu o texto dissertativo único em 1996, substituindo-o por
diversos textos, de diferentes gêneros – atualmente são solicitados cinco textos, de extensão e
finalidades variadas. A tendência, no entanto, é de que as universidades federais venham a
adotar o ENEM como processo seletivo, abrindo mão de suas políticas próprias de avaliação.
Conforme reportagem da Gazeta do Povo em fevereiro de 2013, o Brasil é ‘nota 5’ em
redação: 73% dos candidatos obtiveram notas ruins ou, no máximo, razoáveis em 2012.
Segundo especialistas, apesar das críticas dos candidatos aos avaliadores, o resultado ‘nota 5’
do Brasil em redação evidencia “falhas na formação dos estudantes.”
De modo geral, a mídia demonstra interesse na avaliação que o ENEM faz dos
estudantes, mas não parece ver problemas no modelo de avaliação. Nesse sentido, Cristóvão
Tezza foi objetivo em sua crônica de 26/03/13:
Antes, porém, de atacar o aluno debochado, os corretores, o método ou a logística do
Enem, seria bom voltar os olhos a esse dinossauro didático das aulas de Português
que vem resistindo há séculos como exemplo cristalino do texto ornamental ou
linguagem inútil: a célebre “redação escolar”. É um gênero que não serve para
rigorosamente nada, e não tem nenhum uso concreto na vida real do estudante – dáse um tema, com ou sem texto de apoio, o que é irrelevante, e convida-se a vítima a
“desenvolver” três ou quatro parágrafos sobre ele. [...]
Nascida para “tirar nota”, a redação escolar é um convite irresistível ao lugar
comum, ao chavão, à frase feita, à platitude. As frases se emendam sem rumo, em
direção à mágica última linha, que dará fim ao suplício e, com sorte, uma boa nota.
O principal, entretanto, é reconhecer que as ideias dos estudantes não fazem diferença,
que não se está interessado, de fato, nas soluções que venham a apresentar – a redação é
apenas um exercício de exibição linguística. Ainda nas palavras de Tezza:
O que se quer avaliar? Ora, o domínio que o aluno tem da língua padrão do
português escrito no Brasil, o que inclui um conjunto bastante complexo de
habilidades, indo da capacidade de leitura, pressuposto fundamental, às ferramentas
técnicas da frase escrita (coesão entre as partes, uso de relatores, adequação
vocabular etc.). Não são as “ideias”, essa nuvem vaga e sem contorno que costuma
alimentar a “redação escolar”, o que de fato interessa, mas o domínio técnico da
escrita. E, para que tal avaliação seja minimamente objetiva, é preciso implodir o
velho modelo.
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Por que o INEP - “Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais” - mantém
como “instrumento de avaliação” do Ensino Médio uma prova de redação nesses moldes?
Segundo o presidente do INEP, Luiz Cláudio Costa, o Enem é "um processo em
aprimoramento" e, por isso, críticas à correção são bem-vindas e ajudam a enriquecer o debate
técnico. Para ele, a redação é importante, “pois o cidadão deve saber articular suas ideias em
um texto e apresentar soluções aos problemas" (YAMAMOTO, 2013). Segundo informa o
mesmo texto, “não há intenção alguma de o Inep retirar a redação da avaliação”.
Orientações para a redação – critérios para o ensino
Depois da longa exposição pela mídia de problemas de avaliação das redações
(divergências radicais na atribuição de notas, incompreensão dos critérios, processos judiciais
contra a “correção”), o INEP publicou “Redação no Enem 2012 – Guia do Participante”,
documento que descreve as competências avaliadas, indicando a quantidade de pontos
atribuída a cada tipo de desempenho; explica a proposta de redação de 2011 e as expectativas
dos avaliadores; e apresenta e comenta seis redações “nota 1000” (duas de São Paulo, duas do
Rio de Janeiro e duas de Minas Gerais).
Aparentemente, se espera que os textos “nota 1000” sirvam de modelo para os
estudantes – mostrando-lhes estruturas e escolhas linguísticas valorizadas na avaliação; no
final, o Guia ainda sugere que o estudante crie um “Clube de Leitura” – com pessoas que
“amam a leitura” e se reúnem para comentar um mesmo livro lido por todos2.
Proponho ao leitor ou à leitora que acompanhe as orientações do Guia:
Nessa redação, você deverá defender uma tese, uma opinião a respeito do tema
proposto, apoiada em argumentos consistentes estruturados de forma coerente e
coesa, de modo a formar uma unidade textual. Seu texto deverá ser redigido de
acordo com a norma padrão da LínguaPortuguesa e, finalmente, apresentar uma
proposta de intervenção social que respeite os direitos humanos.
A prova exigirá a produção de um texto em prosa, do tipo dissertativo-argumentativo,
sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou política; não precisa de título. A
redação pode ser anulada se fugir ao tema, desobedecer à estrutura, tiver menos do que 7
linhas (!), incluir impropérios (se os estudantes souberem o que é isso), desenhos ou outras
2
Pela proposta, os interessados devem se reunir na casa de alguém ou “sempre em um mesmo bar, café/livraria,
restaurante, confeitaria, clube, por exemplo” e todos devem comprar os livros. Se pensarmos na carência
vergonhosa de bibliotecas e acervos escolares e públicos no Brasil, esse clube é uma proposta surreal – e reforça
o mito de que ler livros (e não jornais, por exemplo) melhoraria a performance argumentativa dos estudantes.
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formas propositais de anulação (teriam os impropérios intenção de anulação?), ou ainda se
desrespeitar os direitos humanos ou não for passada “a limpo”.
A avaliação terá por base cinco “competências” – medidas em pontos de 0 a 200: 1)
Domínio da norma padrão da língua escrita; 2) Compreensão da proposta, aplicação de
conceitos das várias áreas do conhecimento e respeito aos limites estruturais do texto
dissertativo-argumentativo; 3) Seleção, organização e interpretação de fatos, opiniões e
argumentos em defesa de um ponto de vista; 4) Domínio dos mecanismos linguísticos
necessários à construção da argumentação; e 5) Elaboração de proposta de intervenção para o
problema abordado, respeitando os direitos humanos.
No detalhamento das “competências”, se pede ao estudante para “procurar ser claro,
objetivo, direto; empregar um vocabulário mais variado e preciso do que o que utiliza
quando fala e seguir as regras prescritas pela norma padrão da Língua Portuguesa”. Além
disso, deve seguir requisitos básicos como: ausência de marcas de oralidade e de registro
informal, precisão vocabular, obediência às regras gramaticais de concordância, regência,
pontuação, flexão, colocação de pronomes átonos, grafia das palavras, acentuação, emprego
de maiúsculas e minúsculas e divisão silábica na mudança de linha (INEP, 2012, p. 7-12).
Ora, “usar um vocabulário mais variado” não é um conselho preciso, e “precisão
vocabular” não é conceito muito frequente em materiais didáticos, embora importante; as
regras da “norma padrão” duas linhas depois já são identificadas com “regras gramaticais”
(gerais, “da língua”), o que também é impreciso. A colocação de pronomes átonos, por
exemplo, é tema controverso - nesse caso (exemplar, mas não único), seguir prescrições
gramaticais fiéis ao padrão lusitano ou à norma padrão brasileira atual não é a mesma coisa (o
personagem Aldrovando Cantagalo, de Monteiro Lobato, é emblemático dessa distinção).
Nas páginas 12 e 13, o Guia classifica as “inadequações do uso linguístico ao registro
formal escrito” (é ainda a norma padrão? pode perguntar o estudante) que serão “penalizadas”
em desvios “mais graves”, “graves” ou “leves”.
Chama a atenção que o uso incorreto de minúscula é desvio muito grave (então, se
usar letra de forma, o estudante não corre riscos), assim como a presença de gíria (se a gíria
for dicionarizada, vale? as gírias são sempre reconhecíveis como tais?). Entre os desvios
graves, ao lado de problemas de concordância e regência, está a falta ou uso inadequado do
acento indicativo da crase - o que, por um lado, é muito frequente nos textos de estudantes e
também em textos que circulam fora da escola (aparentemente, muitos redatores acentuam o
5692
“a” quando entendem que cumpre função de preposição), por outro lado, dificilmente
compromete o entendimento de um texto. Também são desvios graves a escrita não
ortográfica de palavras de grafia complexa (se a grafia é complexa, por que o desvio é grave?)
e as “marcas de oralidade”. O problema aqui é que, para alguns, “pra”, “num” ou “a gente”
são marcas de oralidade, pra outros não.
O texto prossegue com recomendações para a utilização dos “textos motivadores”,
lembra que “cada parágrafo deve desenvolver um tópico frasal” (resquício das técnicas de
redação dos anos 70?) e que o redator deve “utilizar
informações de várias áreas do
conhecimento”, demonstrando que está atualizado em relação ao que acontece no mundo (e
quantos adultos conseguem isso hoje em dia?). Deve ainda evitar “recorrer a reflexões
previsíveis, que demonstram pouca originalidade no desenvolvimento do tema proposto”
(mas como saber sozinho o que é previsível?).
O Guia explica o que é um texto dissertativo-argumentativo, “um texto opinativo que
se organiza na defesa de um ponto de vista sobre determinado assunto”, alertando que a “não
obediência à estrutura dissertativo-argumentativa será apenada3 com nota 0 (zero), mesmo
que a redação atenda às exigências dos outros critérios de correção” (p. 18, grifo meu).
A estrutura, portanto, assim como o respeito aos direitos humanos, é essencial para
que o aluno não tenha sua prova anulada. Se os alunos discorrem sobre o tema, recorrendo à
“estratégia de preenchimento” e concluem pela necessidade de conscientização sobre este ou
aquele problema social, estão demonstrando grande competência - no gênero “redação
escolar”.
Considerações finais
Como devem trabalhar os professores de português do Ensino Médio diante das
exigências para a redação do ENEM? Sua formação acadêmica idealmente orienta para o
estudo dos gêneros do discurso, para a leitura de textos autênticos e para a produção de textos
significativos, escritos em função de uma interlocução. A prova, porém, referenda a tradição
da dissertação sobre um tema – essa tradição não é mantida por uma vontade da escola ou por
forte pressão política dos docentes, mas por sua dificuldade em enfrentar as imposições que
lhe vêm de fora, dos que saíram da escola, da sociedade que paga as contas de todos esses
3
Aqui parece ter havido mudança de redator do documento, o termo “penalizada”, corrente mas só recentemente
dicionarizado nessa acepção, foi substituído por “apenada”, forma arcaica e desusada, certamente mesmo entre
professores de português.
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processos avaliativos da educação brasileira. A tradição seletiva, de que fala Raymond
Williams (2003), aponta o que a sociedade julga importante conservar.
A universidade, como instituição de formação dos docentes, não pode se limitar a
obedecer as decisões do INEP; as universidades públicas, em especial, deveriam condicionar
a adoção do ENEM como processo seletivo à adoção de outro modelo de prova.
O ENEM precisa deixar de enganar o aluno, pedindo que se manifeste sobre isso ou
aquilo – e ainda resolva os problemas do Brasil. Se como classificador de candidatos para o
ensino superior, está dando resultados, reduzindo custos, promovendo justiça, não cabe
avaliar aqui, mas se um dos objetivos da prova de redação é que o ensino precedente seja
melhor, essa prova precisa ser excelente, modelar, abandonar o conforto das práticas escolares
esvaziadas de sentido e encorajar aquelas formas de avaliação que, menos pretensiosas, são
também mais honestas.
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