O S O N H O DE J A C O B :
SACRALIDADE E LEGITIMAÇÃO POLÍTICA
NOS L I V R O S DE L I N H A G E N S *
PEDRO PICOITO
« A m e i a m u l h e r amei a terra a m e i o m a r
amei m u i t a s c o i s a s que h o j e me é d i f í c i l e n u m e r a r
De m u i t a s d e l a s de r e s t o falei
N ã o sei t a l v e z eu me p o s s a e n g a n a r
f o r a m tantas as v e z e s em q u e me e n g a n e i
mas p o r trás da m u l h e r d a terra e d o mar
p a r e c e u - m e ver s e m p r e outra c o i s a t a l v e z o S e n h o r
E e s s e o seu n o m e e nele não c a b e t e m o r
Mas d e p o i s d e s t e s o n h o sou o b r i g a d o a c a n t a r :
e i s q u e o S e n h o r está neste lugar
P o r q u ê não sei talvez u m a p e q u e n a haste b a l a n c e
t a l v e z sorria a l g u m a c r i a n ç a
T e r r í v e l não é o h o m e m s o z i n h o na tarde
c o m o n o u t r o t e m p o de e s p l e n d o r cantei
T e r r í v e l é e s t e lugar
T e r r í v e l p o r q u ê ? Não sei bem
T a l v e z p o r q u e o S e n h o r pisa esta terra c o m os s e u s pés
( l e m b r o - m e ate de q u e m a n d o u tirar as s a n d á l i a s a M o i s é s )
L e v a n t o os d o i s b r a ç o s aos c é u s
Aqui - m u l h e r terra m a r Aqui só p o d e ser a casa de D e u s »
RUY
BELO,
« P a l a v r a s de J a c o b d e p o i s do s o n h o » . Homem
de
Palavra(s)
*
E s t e a r t i g o c o r r e s p o n d e , n o s s e u s t r a ç o s g e r a i s , a parte da d i s s e r t a ç ã o de
Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e H u m a n a s da Universidade
N o v a d e L i s b o a , e m 1 9 9 7 . c o m o t í t u l o As Musas
legitimação
lusitania
política
sacha,
nos livros
de
2" série, 10 (1998)
e a Memória.
História,
conflito
e
linhagens.
123-148
A história da h i s t o r i o g r a f i a p o r t u g u e s a a n t e r i o r a F e r n ã o L o p e s
está a i n d a por f a z e r . E x c e p t u a n d o a l g u m a s i n t r o d u ç õ e s m u i t o sum á r i a s . c o m o as de O l i v e i r a M a r q u e s 1 ou V e r í s s i m o S e r r ã o 2 , não houve da p a r t e d o s h i s t o r i a d o r e s um e s f o r ç o de s i s t e m a t i z a ç ã o s e m e l h a n te ao q u e n o t á v e i s e r u d i t o s , d e s d e A l e x a n d r e H e r c u l a n o a L i n d l e y
C i n t r a e D i e g o C a t a l á n , d e s e n v o l v e r a m d u r a n t e um s é c u l o e m e i o para as m e s m a s f o n t e s n o s d o m í n i o s da e d i ç ã o , da c r í t i c a textual e da
história da l i t e r a t u r a . R e s g a t a d o s ao pó d o s a r q u i v o s por e s t a p l ê i a d e
de b e n e m é r i t o s , t e x t o s tão i m p o r t a n t e s c o m o os d i v e r s o s a n a i s e cron i c õ e s l a t i n o s , os livros de l i n h a g e n s , as Crónicas Breves de Santa
C r u z de C o i m b r a , a Crónica da Conquista
do Algarve ou a m o n u m e n t a l Crónica Geral de Espanha de 1344 têm sido e c l i p s a d o s , no
e s t u d o d a s s u a s c o n d i ç õ e s de p r o d u ç ã o e do seu c o n t e x t o p o l í t i c o e
social, pela f i g u r a t u t e l a r do p r i m e i r o c r o n i s t a - m o r .
D e n t r o deste p a n o r a m a n ã o m u i t o a n i m a d o r , o s três livros de lin h a g e n s a c t u a l m e n t e d e s i g n a d o s por Livro Velho (LV), Livro do Deão
( L D ) e Livro de Linhagens
(LL) do C o n d e D. P e d r o de B a r c e l o s 3 f o g e m um p o u c o ao a n o n i m a t o , em v i r t u d e da c o n t í n u a e p e r s i s t e n t e
a t e n ç ã o que J o s é M a t t o s o lhes tem d e d i c a d o d e s d e há q u a s e q u a r e n ta a n o s 4 e d a s i n o v a d o r a s m o n o g r a f i a s c o m que Luís Krus e n r i q u e ceu a n o s s a visão do s i s t e m a c u l t u r a l q u e lhes deu o r i g e m 5 . Em c o n j u n t o c o m as s í n t e s e s de A n t ó n i o R e s e n d e de O l i v e i r a sobre a literatura d a s c o r t e s s e n h o r i a i s ' ' , o q u a d r o h i s t ó r i c o de que aqui v a m o s par-
'
Antologia
da Historiografia
Portuguesa
I. Das origens
a Fernão
Lopes,
L i s b o a , E u r o p a - A m é r i c a , 1 9 7 9 ; i d . « H i s t o r i o g r a f i a na I d a d e M é d i a » , in J o e l S e r r ã o
( d i r . ) . Dicionário
de História de Portugal.
IV, L i s b o a , I n i c i a t i v a s E d i t o r i a i s , 1971,
pp. 418-420.
3
Série,
A Historiografia
Portuguesa
- Doutrina
e Crítica.
I. L i s b o a , V e r b o , 1 9 7 2 .
J o s é M a t t o s o e J o s e p h Piei ( e d . ) , Portugaliae
Monumento
Histórica.
Nova
I, 11/1 c 11/2, L i s b o a , A c a d e m i a d a s C i ê n c i a s , 1980.
* C f . , p o r t o d o s , o s s e u s t r a b a l h o s m a i s r e c e n t e s e m A Nobreza
Medieval
Portuguesa.
L i s b o a , E s t a m p a , 1 9 8 0 . e Portugal
Medieval.
Novas
Interpretações,
Lisboa, I m p r e n s a N a c i o n a l - C a s a da M o e d a . 1983.
5
C f . Passado,
Memória
e Poder na Sociedade
Medieval
Portuguesa.
Redond o . P a t r i m o n i a , 1 9 9 4 . e A Concepção
Nobiliárquica
do Espaço
Ibérico
(1280-1380), L i s b o a , F . C . G . / J N I C T . 1 9 9 4 .
6
C f . « C o r t e s s e n h o r i a i s » , in G i u l i a L a n c i a n i e G i u s e p p e T a v a n i ( o r g . ) . Dicionário
de Literatura
Medieval
Galego-Portuguesa.
L i s b o a . C a m i n h o , pp. 170- 1 7 3 , e «A c u l t u r a d a s c o r t e s » , in M a r i a H e l e n a d a C r u z C o e l h o e A r m a n d o L u í s
C a r v a l h o H o m e m ( c o o r d . ) , Nova História
de Portugal.
III. Portugal
em
Definição
de Fronteiras.
Lisboa. Presença. 1996, pp. 6 6 0 - 6 8 5 .
tir é o que M a t t o s o d e f i n e para situar a e v o l u ç ã o da n o b r e z a na primeira d i n a s t i a 7 e, s o b r e t u d o , a q u e l e que K r u s a p r e s e n t a para d e s c r e ver a h i s t o r i o g r a f i a da m e s m a é p o c a , num a r t i g o i n s p i r a d o r 8 . T r a t a -se do i n t e r m i n á v e l c o n f l i t o ( u m a s v e z e s a b e r t o , o u t r a s s u b e n t e n d i d o , m a s s e m p r e p r e s e n t e ) q u e , d e s d e a f u n d a ç ã o da n a c i o n a l i d a d e e
d a s e s t r u t u r a s de um i n c i p i e n t e E s t a d o p o r t u g u ê s , o p õ e a r e a l e z a , nas
suas t e n t a t i v a s de c e n t r a l i z a ç ã o p o l í t i c a , a u m a g r a n d e a r i s t o c r a c i a
a m e a ç a d a nos s e u s p r i v i l é g i o s , na sua p o s i ç ã o , na sua i m a g e m , em
s u m a , no seu e s t a t u t o de c l a s s e d i r i g e n t e . É, p o i s , uma luta p e l o poder que c o n h e c e o seu d e s e n l a c e - para a l g u n s fatal - nos c a m p o s da
Serra d ' A i r e , n u m a t a r d e de A g o s t o de 1385.
Entre g u e r r a s c i v i s , p a z e s a r m a d a s , d e p o s i ç õ e s , d e s t e r r o s , cortes, p r o t e s t o s e i n q u i r i ç õ e s , as i n c i d ê n c i a s f a c t u a i s e c o n j u n t u r a i s d e s sa lula são b e m c o n h e c i d a s . Já n ã o o é t a n t o e s s e o u t r o e n f r e n t a m e n to d e r i v a d o e p a r a l e l o p e l o d o m í n i o d o « p o d e r s i m b ó l i c o » , para utilizar o c o n c e i t o c é l e b r e de Pierre B o u r d i e u , e n f r e n t a m e n t o a que Luís
Krus c h a m o u «o c o n f l i t o p o l í t i c o - i d e o l ó g i c o em t o r n o da q u e s t ã o d a s
o r i g e n s . » . v É no c e n t r o d e s t e c o n f l i t o que s i t u a r e m o s os l i v r o s de lin h a g e n s , u m a d a s a r m a s m a i s p o d e r o s a s de que a alta n o b r e z a se serve para f a z e r f r e n t e ao a n t a g o n i s m o c e r r a d o de q u e é o b j e c t o por parte da c o r o a . Um a n t a g o n i s m o q u e se r e v e s t e de várias d i m e n s õ e s ,
encaixadas c o m o bonecas russas. E cultural, porque opõe duas visões
da história e do m u n d o . É m e n t a l , p o r q u e o p õ e d u a s r e p r e s e n t a ç õ e s
c o l e c t i v a s do p a s s a d o e d o i s m o d o s de p r o d u ç ã o da m e m ó r i a . E liler á r i o . p o r q u e o p õ e d o i s g é n e r o s , d u a s t r a d i ç õ e s n a r r a t i v a s , d u a s gram á t i c a s do d i s c u r s o . M a s é s o b r e t u d o , e a n t e s de m a i s n a d a . p o l í t i c o
e i d e o l ó g i c o , c o m o já v i m o s , p o r q u e o p õ e d u a s f o r m a s de l e g i t i m a r o
poder.
Para c o m p r e e n d e r m e l h o r as r e l a ç õ e s e n t r e a l e g i t i m a ç ã o política e o s a g r a d o p a r t a m o s d o p r i n c í p i o , e v i d e n c i a d o por H a l b w a c h s e
p e l o e s f o r ç o i n t e r d i s c i p l i n a r de n u m e r o s o s h i s t o r i a d o r e s "'. de q u e a
7
C f . Ricos-Homens,
Infanções
e Cavaleiros,
L i s b o a . E s t a m p a , 198, c Identificação
e um País. I c II, L i s b o a . E s t a m p a . 1 9 8 5 .
* « H i s t o r i o g r a f i a M e d i e v a l » , in Dicionário
de Literatura
Medieval
Calego-Portuguesa.
pp. 312-315.
9
« I b i d . » , p. 3 1 3 .
"' M a u r i c e H a l b w a c h s . Les Cadres Sociaux
de lu Mémoire.
Paris, Albin Mic h e l . 1 9 9 4 ( P e d . D e 1 9 2 5 ) : l d . , La Mémoire
Colective.
2 a e d . . P a r i s . P . U . F . , 1 9 6 8 ( I*
e d . D e 1 9 5 0 ) ; P e t e r B u r k e , «A h i s t ó r i a c o m o m e m ó r i a s o c i a l » in O Mundo
co-
m e m ó r i a social ou c o l e c t i v a tem uma i n f l u ê n c i a l i t e r a l m e n t e prim o r d i a l na i d e n t i d a d e e e s t r u t u r a ç ã o de q u a l q u e r g r u p o . A l é m d i s s o ,
e p o r q u e n u m a s o c i e d a d e c o m o a m e d i e v a l a f o n t e de toda a legitim i d a d e é a t r a d i ç ã o , l e m b r e m o s que o c o n h e c i m e n t o h i s t ó r i c o , n e s t a s
c o n d i ç õ e s , t e n d e a m i t i f i c a r - s e , i s t o é, a t o r n a r - s e u m a n a r r a t i v a o f i cial, c a n ó n i c a , s a c r a l i z a d a e e s t i l i z a d a , t r a n s m i t i d a pelo g r u p o c o m o
património comum, sentida pelos seus membros como meio e símbolo de i n t e g r a ç ã o c o l e c t i v a .
A n o ç ã o de mito q u e u t i l i z a m o s aqui não é p r o p r i a m e n t e a de c o n to f o r j a d o ou f a l s o , n o ç ã o m u i t o c o r r e n t e no s e n s o c o m u m , mas sim a
de q u a l q u e r n a r r a ç ã o s o b r e o p a s s a d o , em p a r t i c u l a r s o b r e o m o m e n to g e n é t i c o de uma c o l e c t i v i d a d e , q u e t e n h a c l a r o s o b j e c t i v o s de c o m b a t e p o l í t i c o a o u t r a s n a r r a ç õ e s c o n c o r r e n t e s e t i d a s por i l e g í t i m a s .
Esta c o n c e p ç ã o de m i t o d e v e a l g u m a c o i s a a M i r c e a E l i a d e e aos s e u s
os Gret r a b a l h o s m a i s c o n h e c i d o s " , ao Paul V e y n e de Acreditavam
gos nos Seus Mitos? 12 e à d e f i n i ç ã o de W a l t e r Burkert s e g u n d o o
qual o c o n h e c i m e n t o m í t i c o é u m a « n a r r a t i v a t r a d i c i o n a l a p l i c a d a » ou
um « s a b e r por h i s t ó r i a s »
Mas, na v e r d a d e , a p r o x i m a - s e m a i s das
c o n c l u s õ e s f o r m u l a d a s por dois c l á s s i c o s da a n t r o p o l o g i a p o l í t i c a :
B r o n i s l a w M a l i n o w s k i e G e o r g e s B a l a n d i e r . Para o p r i m e i r o , «a história da o r i g e m c o n t é m o e s t a t u t o legal da c o m u n i d a d e » 14 e uma aut ê n t i c a «carta s o c i a l » q u e s u s t e n t a a m a n u t e n ç ã o «do p o d e r , do privilégio e da p r o p r i e d a d e » . Para o s e g u n d o , «os m i t o s p o s s u e m uma dupla f u n ç ã o : explicam a o r d e m e x i s t e n t e em t e r m o s h i s t ó r i c o s e justificam-na,
c o n f e r i n d o - l h e u m a base m o r a l , a p r e s e n t a n d o - a c o m o um
s i s t e m a l e g i t i m a m e n t e f u n d a d o . » '*.
mo Teatro, L i s b o a . D i f e l . 1 9 9 2 ; M . T . C l a n c h y . F r o m M e m o r y l o W r i l t e n R e c o r d .
E n g l a n d 1 0 6 6 . 1 3 0 7 . s.l., E d w a r d A r n o l d , s . d . ; P a u l C o n n e r t o n . Como as
Sociedades Recordam,
O e i r a s , C e l t a E d i t o r a , 1 9 9 3 ; J a m e s F e n t r e s s e C h r i s W i c h a m . Memória Social, L i s b o a , T e o r e m a . 1 9 9 4 ; J a c q u e s L e G o f f , « M e m ó r i a » in
Enciclopédia Einaudi,
I. Memória-História,
Lisboa. Imprensa N a e i o n a l - C a s a da M o e d a .
1984, p p . 1 1 - 5 1 ; P i e r r e N o r a , « M e m ó r i a c o l e c t i v a » , in J a c q u e s L e G o f f ( d i r . ) , A Nova História,
C o i m b r a , A l m e d i n a , 1990, p p . 4 5 1 - 4 5 4 .
"
S o b r e t u d o O Sagrado e o Profano,
L i s b o a . L i v r o s d o B r a s i l , s . d . ; O Mito do
Eterno Retorno,
L i s b o a . E d i ç õ e s 7 0 . 1 9 9 3 ; Aspectos
do Mito, L i s b o a , E d i ç õ e s 7 0 ,
1989.
12
Lisboa, E d i ç õ e s 7 0 , 1987.
"
Mito e. Mitologia.
L i s b o a , E d i ç õ e s 7 0 , 1 9 9 1 , p p . 17 e 18.
14
B r o n i s l a w M a l i n o w s k i , « M i t o s d e o r i g e m » , in Magia. Ciência
e
Religião,
L i s b o a , E d i ç õ e s 7 0 . 1 9 8 8 . p . 119.
15
G e o r g e s B a l a n d i e r , Antropologia
Politica,
2" e d . , L i s b o a . P r e s e n ç a , 1 9 8 7 ,
p . 123.
N e s t e c o n t e x t o , a luta p e l o d o m í n i o s i m b ó l i c o do p a s s a d o l e v a d a
a c a b o p e l o s n o b i l i á r i o s , vasta e n c e n a ç ã o em q u e se c r u z a m i n f o r m a ções g e n e a l ó g i c a s , l e n d a s de c i r c u l a ç ã o ( m u i t o p r o v a v e l m e n t e ) oral e
a c o n t e c i m e n t o s h i s t ó r i c o s m a i s ou m e n o s m i t i f i c a d o s , p o d i a s e g u i r
d u a s e s t r a t é g i a s t í p i c a s : ou i n v o c a r a p r o t e c ç ã o s a g r a d a e o m é r i t o do
p o v o a m e n t o para o início d a l i n h a g e m , ou r e c l a m a r para e s s e mom e n t o a aura de um acto de f o r ç a , de u m a v i o l ê n c i a que d e s e n c a d e i a
muitas v e z e s o s p o d e r e s m i s t e r i o s o s d a q u i l o a q u e J a c q u e s Le G o f f
c h a m o u o « m a r a v i l h o s o p o l í t i c o » l6 , c o m o se p o d e ver nas f a m o s a s
l e n d a s da D a m a Pé de C a b r a ou da D o n a M a r i n h a . D o i s c a m i n h o s dif e r e n t e s , e até de c e r t o m o d o d i v e r g e n t e s , para a t i n g i r , a f i n a l , o m e s mo, o ú n i c o , o e x c l u s i v o f i m : g l o r i f i c a r a s u p e r i o r i d a d e de uma o r i gem excepcional.
N o p r i m e i r o c a s o , q u e v a m o s a n a l i s a r a g o r a , a l e g i t i m i d a d e histórica d o s d i r e i t o s s o b r e a terra (e, p o r t a n t o , s o b r e o p o d e r ) j u s t i f i c a -se pela s a c r a l i z a ç ã o a d q u i r i d a na sua c o n q u i s t a aos i n f i é i s , no seu
p o v o a m e n t o c r i s t ã o e, s o b r e t u d o , na f u n d a ç ã o e p a t r o c í n i o de m o s teiros e c o m u n i d a d e s m o n á s t i c a s . Esta visão s u b j a z a m u i t o s d o s relatos d o s livros de l i n h a g e n s e está i g u a l m e n t e p r e s e n t e n a s f o n t e s
c r o n í s t i c a s que d e s c r e v e m o v a s t o m o v i m e n t o m i g r a t ó r i o a que c h a mamos - graças à óptica dessas mesmas fontes - Reconquista cristã.
A i n d a que a r e a l i d a d e h i s t ó r i c a t e n h a sido o u t r a , c o m o p a r e c e h o j e
a s s e n t e , essa ó p t i c a a l i m e n t o u d u r a n t e m u i t o t e m p o as c e r t e z a s de
uma h i s t o r i o g r a f i a n a c i o n a l i s t a que p o s t u l a v a a i r r e d u t í v e l o p o s i ç ã o
e n t r e os r e i n o s c r i s t ã o s do N o r t e e a c i v i l i z a ç ã o i b e r o - i s l â m i c a . a s s i m
c o m o a c o n t i n u i d a d e natural e n t r e a H i s p â n i a v i s i g ó t i c a , a m o n a r q u i a
a s t u r i a n a e o s e m b r i o n á r i o s E s t a d o s n a c i o n a i s q u e n a s c e r a m da e x p a n são i n i c i a d a em C o v a d o n g a .
Foi em t o r n o , aliás, de uma leitura d i v e r s a d a s f o n t e s e s c r i t a s e do
seu c o n f r o n t o c o m o u t r o s t e s t e m u n h o s , n o m e a d a m e n t e a r q u e o l ó g i c o s e f i l o l ó g i c o s , que se p r o l o n g o u d u r a n t e t o d o o s é c u l o X X uma
das mais apaixonadas polémicas do medievalismo ibérico: a célebre
q u e s t ã o do e r m a m e n t o l7 . N a t u r a l m e n t e que os d e f e n s o r e s m a i s radicais da tese da d e s e r t i f i c a ç ã o do vale do D o u r o , e p o r t a n t o de um rep o v o a m e n t o c r i s t ã o q u a s e ex nihilo, se s o c o r r e r a m em a b u n d â n c i a da
"' C f . O Maravilhoso
70, 1 9 8 9 . pp. 2 5 - 2 7 .
e o Quotidiano
no Ocidente
Medieval.
Lisboa. Edições
" C f . , para um p o n t o da situação, J o s é M a t t o s o , «Portugal no R e i n o Astur i a n o - L e o n ê s » . in J o s é M a t t o s o ( d i r . ) , História
de Portugal.
/. Antes de
Portugal.
Lisboa, Estampa, 1992, pp. 4 4 9 - 4 6 0 .
c r o n í s t i c a . Sem e n t r a r na p o l é m i c a , n ã o se t o r n a d i f í c i l , no e n t a n t o ,
c h a m a r a a t e n ç ã o para o f a c t o de tais f o n t e s t r a n s m i t i r e m s e m p r e a
i d e o l o g i a d o s v e n c e d o r e s , o s q u a i s , neste c a s o , e r a m j u s t a m e n t e «reconquistadores», povoadores e colonizadores.
Ora M i r c e a E l i a d e l e m b r a q u e , para uma p o p u l a ç ã o c o m f o r t e
m e n t a l i d a d e r e l i g i o s a , «um t e r r i t ó r i o d e s c o n h e c i d o , e s t r a n g e i r o , desoc u p a d o (isto q u e r d i z e r m u i t a s v e z e s : d e s o c u p a d o pelos nossos) participa a i n d a da m o d a l i d a d e f l u í d a e l a r v a r do caos. O c u p a n d o - o e, sob r e t u d o , i n s t a l a n d o - s e , o h o m e m t r a n s f o r m a - o s i m b o l i c a m e n t e em
c o s m o s m e d i a n t e uma r e p e t i ç ã o ritual d a c o s m o g o n i a . (...) Se se trata de a r r o t e a r uma terra i n c u l t a ou de c o n q u i s t a r e o c u p a r um território j á h a b i t a d o por outros s e r e s h u m a n o s , a t o m a d a de p o s s e ritual
d e v e , de q u a l q u e r m o d o . r e p e t i r a c o s m o g o n i a . P o r q u e , da p e r s p e c tiva d a s s o c i e d a d e s a r c a i c a s , t u d o o que n ã o é o nosso mundo n ã o
é a i n d a um mundo. N ã o se f a z nosso um t e r r i t ó r i o s e n ã o
criando-o
de n o v o , q u e r d i z e r : c o n s a g r a n d o - o » l8 . Por o u t r o lado, J a c q u e s Le
G o f f ' l | e Aron G u r e v i t c h 2" m o s t r a r a m c o m o a o p o s i ç ã o e n t r e e s p a ç o
h a b i t a d o e e s p a ç o s e l v a g e m (ou, m a i s c o n c r e t a m e n t e , e n t r e n ú c l e o
p o p u l a c i o n a l , c o m os s e u s c a m p o s c i r c u n d a n t e s , e o d e s e r t o - f l o r e s t a
s e m p r e p r ó x i m o ) e s t r u t u r a a i m a g e m m e d i e v a l do m u n d o .
D e s b r a v a r , p o v o a r , c o n s t r u i r e r a m a c t i v i d a d e s que g a n h a v a m ,
neste c o n t e x t o social e e c o n ó m i c o , um e s t a t u t o s a g r a d o . A i n d a imersos n e s s a t e n d ê n c i a s e c u l a r de e x p a n s ã o d e m o g r á f i c a , de c r e s c e n t e
c i r c u l a ç ã o de h o m e n s e c o i s a s , de v i g o r o s o s a r r o t e a m e n t o s e m i g r a ç õ e s i n t e r n a s que agita t o d o o O c i d e n t e e n t r e o a n o mil e a crise do
s é c u l o X I V . os n o s s o s t e x t o s r e l a c i o n a m f r e q u e n t e m e n t e os inícios
de uma f a m í l i a c o m a c o n q u i s t a e p o v o a m e n t o de um t e r r i t ó r i o d e t e r m i n a d o , ao qual se vai b u s c a r o n o m e , a l o c a l i z a ç ã o do p r i n c i p a l dom í n i o , o s d i r e i t o s que a s s e g u r a m o p o d e r e a p r o t e c ç ã o d i v i n a . E v i t a r
o e s q u e c i m e n t o de todas e s t a s i n f o r m a ç õ e s q u e , no seu c o n j u n t o e
em r e l a ç ã o u m a s c o m as o u t r a s , c o n s t i t u e m a b a s e do status da a r i s t o cracia c a e s s ê n c i a da sua i d e n t i d a d e s i m b ó l i c a , é aliás, uma d a s f i n a -
18
O Sagrado
e o Profano,
p p . 4 5 - 4 6 . C f . t a m b é m M a t t o s o , Ricos-Homens
....
p. 9 6 .
" C f . A Civilização
do Ocidente
Medieval
I. L i s b o a , E s t a m p a , 1 9 8 3 , p p . 169- 1 7 2 : Id, « O d e s e r t o - f l o r e s t a n o O c i d e n t e M e d i e v a l » , in O Maravilhoso
e o Quotidiano .... p p . 3 7 - 5 5 .
C f . As Categorias
da Cultura
Medieval.
Lisboa, C a m i n h o . 1990, pp. 59-
l i d a d e s e x p r e s s a s d o LD, e s c r i t o «por saberem os homens fidalgos
de
Portugal de qual linhagem vem, e de quaes terras e de quaes
coutos,
honras e mosteiros
e igrejas som naturaes [isto é p a t r o n o s ] , uma vez
que «muitos som naturaes e padrões de muitos mosteiros,
e de muitas
igrejas e de muitos coutos e de muitas honras e de muitas terras, que
0 perdem à mingoa de saber de qual linhagem vem» (LD [ P r ó l o g o ] 1 - 2 ) . I n t e n ç ã o p r o g r a m á t i c a q u e , e m b o r a n u m m u i t o e s c o l á s t i c o sét i m o lugar, o LL t a m b é m n ã o d e s c u r a (LL [ P r ó l o g o ] 12).
V e j a m o s c o m o a l g u m a s das g r a n d e s l i n h a g e n s p o r t u g u e s a s proc u r a m e v i t a r tão fatal e s q u e c i m e n t o . O s de S o u s a , por i n t e r m é d i o
de « S a n t a Senhorinha,
a que jaz em Basto» (LV I A l ; LL X X I I A 3 ) ,
a p a r e c e m d e s d e m u i t o c e d o l i g a d o s ao p o d e r s a g r a d o de uma c o m u n i d a d e r e l i g i o s a , e a t r a v é s do s o b r i n h o d e s t a , «el conde dom
Échega», r e l a c i o n a d o s c o m «el conde dom Diogo que pobrou Burgos»
(LV
1 A 2 ; LL X X I I A 5 ) . A t r i b u í a - s e - I h e s t a m b é m t r a d i c i o n a l m e n t e a f u n d a ç ã o do m o s t e i r o de P o m b e i r o , « f a c t o b a s t a n t e v e r o s í m i l no c o n t e x t o da h i s t ó r i a m o n á s t i c a da r e g i ã o d u r a n t e o t e r c e i r o q u a r t e l d o séc u l o XI.» 21 C o m e f e i t o , n u m d o s s e u s r a m o s s ã o a s s o c i a d o s um c o n de q u e utiliza e s s e título ( d o m G o m e s de P o m b e i r o ) e um f i l h o d e s t e ,
«dom Fernam Gomes, que foi abade de Pombeiro»
(LV I B 5 - 6 ) . O LL
a n o t a m u i t o c u i d a d o s a m e n t e que este d o m G o m e s é f i l h o do c o n d e
N u n o de C e l a n o v a , o i r m ã o de S ã o R o s e n d o ( t a n t o o m o s t e i r o de C e l a n o v a c o m o o s a n t o e r a m c e l e b é r r i m o s na G a l i z a ) , e q u e « j a z em
Poombeiro,
na galigee (sic) aa parte dereita quando home vem de
fora» (LL X X I I B7).
Refira-se que a nobreza mais antiga patrocina «quase sempre
m o s t e i r o s de tipo f a m i l i a r , i s t o é a q u e l e s c u j a c o m u n i d a d e era c o m p o s t a p r i m a r i a m e n t e por m e m b r o s da f a m í l i a f u n d a d o r a , e n o r m a l m e n t e s u b m e t i d o s ao g o v e r n o d o s seus p a r e n t e s m a i s p r ó x i m o s » 22. O
f a c t o de esta c o r r e n t e m o n á s t i c a c o n h e c e r um c e r t o r e c u o a p a r t i r
do f i m do s é c u l o XI, em v i r t u d e da a c ç ã o c o n j u n t a das a u t o r i d a d e s
c o n d a i s e de um e p i s c o p a d o , m u i t a s v e z e s e x ó g e n o , e m p e n h a d o a levar a c a b o a r e f o r m a g r e g o r i a n a c o m o a p o i o de o r d e n s r e c e n t e m e n t e
i m p l a n t a d a s na P e n í n s u l a I b é r i c a , p o d e e x p l i c a r q u e os de S o u s a s ó
21
M a t t o s o , Ricos-Homens
.... p . 4 7 .
I b i d . . p. 9 5 . C f . Id., «A n o b r e z a m e d i e v a l p o r t u g u e s a - a s c o r r e n t e s m o n á s t i c a s d o s s é c u l o s XI e X I I » , in Portugal
Medieva!
.... p p . 1 9 7 - 2 2 3 ; Id.. Identificação
.... I, p p . 2 0 0 - 2 0 1 .
22
n o s a p r e s e n t e m m a i s um a b a d e d e P o m b e i r o no LV (l B A 9 ) e o u t r o no
LD (II Y6).
O s livros de l i n h a g e n s , c o n t u d o , n ã o d e i x a m de n o m e a r as relaç õ e s da f a m í l i a ( m u i t a s v e z e s c o n f u s a s ) c o m o s m o s t e i r o s de R e n d u fe (LV II B C 7 ; LD I C 2 ) , S a l z e d a s (LD I A 3 ; LL XXII D9), S a n t o T i r so (LD 1 C 3 ) e T i b ã e s (LD IV 12), a s s i m c o m o os s e u s m e m b r o s que
i n g r e s s a r a m no c l e r o s e c u l a r ou r e g u l a r , s o b r e t u d o o s m a i s n o t á v e i s
( p a r a n ã o ir m a i s l o n g e , LVl B 6 - 7 , J 1 0 - 1 1 . RIO, Y9, A O 10-11, A R 9 ,
A W 1 0 , AY1 l , B A 9 , B C 8 - 9 , B D 1 0 , B G 1 0 ) . N e s t e s e n t i d o , até o par e n t e s c o um p o u c o d i s t a n t e - mas de g r a n d e p r e s t í g i o - que unia a
l i n h a g e m a d o m A f o n s o T e l e s , o p o d e r o s o s e n h o r c a s t e l h a n o «que
pobrou Albuquerque»
(LD I A6; LL XXII D l 2 ) , seria r e g i s t a d o .
É de c r e r q u e este c o n j u n t o de r e f e r ê n c i a s d e s t i n a d a s a e n g r a n d e c e r a m e m ó r i a f a m i l i a r se a r t i c u l a s s e c o m as h a g i o g r a f i a s l a t i n a s
de S a n t a S e n h o r i n h a e S. R o s e n d o 23 , de o r i g e m e c i r c u l a ç ã o m a r c a d a m e n t e e c l e s i á s t i c a s , nas quais a f i g u r a de A f o n s o H e n r i q u e s recebia um t r a t a m e n t o m u i t o n e g a t i v o . N a d a , aliás, q u e d e s t o a s s e d o s nob i l i á r i o s , os q u a i s c o n t a m em a b u n d â n c i a , e c o m e v i d e n t e prazer, vár i o s e p i s ó d i o s r e v e l a d o r e s da f r a q u e z a do n o s s o p r i m e i r o rei p e r a n t e
os seus b a r õ e s . S u b l i n h e - s e que um d e s s e s e p i s ó d i o s e n v o l v e j u s t a m e n t e D. G o n ç a l o de Sousa (LV I M 7 ; LL XXII A 5 ) , um d o s p r i n c i pais r e p r e s e n t a n t e s da l i n h a g e m ao t e m p o de A f o n s o H e n r i q u e s .
Q u a n t o aos s e n h o r e s da M a i a , a e s t r a t é g i a d a s o r i g e n s s a c r a l i z a d o r a s e p o v o a d o r a s é t a m b é m c l a r a m e n t e s e g u i d a . A l é m do m i t i f i c a d o R a m i r o II de L e ã o . t a m b é m os seus f i l h o s se d e s t a c a m pelo a f ã
r e c o n q u i s t a d o s O m a i s v e l h o , O r d o n h o , «pobrou a vila de Leoni, e
veio conquerer
a Portugal, que era de Mouros, e deu a Santiago
poe Corvelham.»
Paralelarem que o ajudasse
o couto de Mouquim
m e n t e . « v e i o com ele seu irmão Alboazar.
E porque foi bem por armas, puserom-lhe
nome Cide Alboazar.
E fege uma torre no monte
de Monte Cordova, que ora chamam Pena de Cide. e guerreou dahi os
Mouros, e deitou os Mouros de São Romão, e foram-se passar
Douro
e foram-se a São Martinho de Mouros. E des i filhou o crasto
d'Aveo-
2:1
C f . M a r i a H e l e n a d a R o c h a P e r e i r a ( e d . e t r a d . ) . Vila B e a t a e S e n i o r i n a e , in
Vida e Milagres
de S. Rosendo,
P o r t o . J u n t a D i s t r i t a l , 1 9 7 0 . p p . I 12-157 e M a n u e l
D i a z y D i a z , M a r i a V i r t u d e s P a r d o G o m e z e D a r i a V i i a r i n o P i n t o s ( e d . e t r a d ), Vida y Milagros
de San Rosendo (Ordono de Celanova,
Vita et Miracula
Sancti
Rudesindi), s . l . , F u n d a c i ó n B a r r i é d e la M a z a , 1 9 9 0 .
so a Mouros e deitou Mouros de crasto de Gondomar
e de Todea e
feze-os ir a crasto Mamei de Riba de Vouga. E casou com dona Usco Godins, filha dei conde dom Godinho das Astúrias,
e ela com seu
marido fundarom
a igreja de São Nicolao em Vila de Moreira de Riba d'Ave, que ora chamam Santo Tirso de Riba d'Ave. E vierom com
ele de Galiza seus vassalos bons, convém a saber quaes foram:
dom
Guter Teles e dom Osena (sic) e dom Tructesendo
Durquides.
E cada
um deles eram senhores de mui bons cavaleiros
e outros muitos e bons
vassalos.»
(LV II A 2 ) .
Tal c o m o a n a r r a t i v a s o b r e as o r i g e n s d o s R i b a d o u r o , t a m b é m esta n o s a p r e s e n t a , de uma f o r m a m u i t o viva, um g r u p o h u m a n o c o l o n i z a d o r e g u e r r e i r o . T o d o s o s seus e l e m e n t o s , no e s s e n c i a l , s ã o retom a d o s no LL ( X X I A1 ). A l b o a z a r , o f i l h o de R a m i r o e de u m a m o u r a
«d'alto linhagem»,
é, d e s d e l o g o , uma f i g u r a n i m b a d a pela e x c e l ê n cia g u e r r e i r a e p e l a n o b r e z a de s a n g u e . A p e s a r de ser o s e c u n d o g é nito, o s s e n h o r e s da M a i a , seus d e s c e n d e n t e s , em nada d e s m e r e c e m do
t e r r i t ó r i o que lhe p e r t e n c e por h e r a n ç a m a t e r n a 24 e por d i r e i t o de c o n q u i s t a . É ele q u e m , p r i m e i r o , e x p u l s a o i n i m i g o d e s s a p a i s a g e m f o r t i f i c a d a de «castros»,
e m p u r r a n d o - o até às m a r g e n s do V o u g a (o LL
[XXI A l ] vai um p o u c o m a i s l o n g e : «foi-os tirar de contra
Coimbra»). E ele q u e m r e p o v o a a terra c o n q u i s t a d a c o m o s «seus
vassalos
bons (...) senhores de mui bons cavaleiros
e outros muitos e bons vassalos». E ele q u e m a s s e g u r a a s o m b r a p r o t e c t o r a de u m a t o r r e no alto de um m o n t e , o qual r e c e b e da t r a d i ç ã o um n o m e - s í m b o l o e n t r e
t o d o s m a r c a n t e d o n o v o d o m í n i o - d e r i v a d o da t i t u l a t u r a é p i c a d o seu
-4 L u í s K r u s c h a m o u a a t e n ç ã o p a r a o p a p e l l e g i t i m a d o r d a m o u r a A r t i g a ( o u
Ortiga) em t o d o este relato e para a i m p o r t â n c i a q u e a s u c e s s ã o por via f e m i n i n a
t e r i a n o c o n t e x t o d a s d i s p u t a s p a t r i m o n i a i s e n t r e o rei D . D i n i s e o s d a M a i a - R i b a d e V i z e l a ( C f . « O d i s c u r s o s o b r e o p a s s a d o ...» in Passado.
Memória
e
Poder....
pp. 2 0 0 - 2 0 4 . ) T a m b é m n ã o s e r á p o r a c a s o q u e a p r i m e i r a m u l h e r d e R a m i r o s e
apresenta c o m o uma adúltera que trai a sua c a s a e a sua f é - o p r ó p r i o f i l h o a
r e c o n h e c e c o m o «o d e m o » - e n q u a n t o o c a s a m e n t o do rei c o m a m o u r a , d o qual
viriam os da M a i a , m e r e c e um forte louvor d a sua corte e, portanto, da m e l h o r soc i e d a d e c r i s t ã . O L L ( X X I A l ) j u s t i f i c a tal a p l a u s o « p o r q u e d i s s e r a p o r e l a o g r a n de e s t r o l o g o A m a n que ela era pedra preciosa antre as m o l h e r e s q u e naquele tempo havia. E ainda disse mais que tanto havia de seer boa cristãa, que Deus por sua
honra lhe daria geeraçom de h o m ê e s boos c de grandes feitos e aventurados em
b e m . E b e m p a r e c e q u e A m a n disse v e r d a d e , ca ela foi de boa vida e f e z o m o s t e i r o
de S a m J u l i a m e o u t r o s h o s p i t a e s m u i t o s e os q u e d e l a d e c e n d e r o m f o r o m m u i t o
compridos do que o grande astrolego disse.»
c o n q u i s t a d o r («Efege uma torre no Monte de Monte Cordova, que ora
chamam Pena de Cide ...»). É ele q u e m , d e p o i s de instalar n o v o s sen h o r e s e c o n s t r u i r o m o n u m e n t o visível d o p o d e r t r i u n f a n t e , f u n d a ,
por f i m , o m o s t e i r o de S a n t o T i r s o c o m a m u l h e r , «filha de Dom Godinho das Astúrias»
( m a i s u m a vez, a c a r g a l e g i t i m a d o r a da R e c o n q u i s ta), a p r o p r i a n d o - s e d a terra p e l o i m p é r i o d o s a g r a d o , o mais d e f i n i t i vo de t o d o s o s i m p é r i o s . S i m , q u a t r o c e n t o s a n o s d e p o i s de A l b o a z a r
R a m i r e s , o LL b e m p o d i a d i z e r d o s seus d e s c e n d e n t e s , o r g u l h o s a e did a c t i c a m e n t e , que « e s t e s todos se chamaram
da Maia porque se gananhou peer os seus avoos, e havia-na por sua. E a Maia chamava-se
quel tempo dees Doiro ataa Lima» (LL X X I A5).
A d o c u m e n t a ç ã o c o n f i r m a - n o s a i n i c i a t i v a f u n d a d o r a do c a s a l ,
em 9 7 8 , b e m c o m o os i n t e n s o s c o n t a c t o s e n t r e S a n t o T i r s o e o s sen h o r e s da M a i a 25 . S e n d o a s s i m , p a r e c e h a v e r g r a n d e c o r r e s p o n d ê n cia e n t r e a r e a l i d a d e h i s t ó r i c a e a i m a g e m que dela nos p r e t e n d e m
dar o LL e o LV, os q u a i s p r o j e c t a m , a p a r t i r d o casal d u p l a m e n t e
f u n d a d o r , um d e s t i n o c o m u m ao m o s t e i r o e à l i n h a g e m . O s e s p e c i a l i s tas do e t e r n o , a t r a v é s da e s c r i t a e da liturgia, c h a m a r i a m a si a r e p r o d u ç ã o da m e m ó r i a f a m i l i a r e o c u i d a d o d o s s e u s m o r t o s , e os s e n h o riais p a t r o n o s , c o m o s seus b e n s e as s u a s a r m a s , t o m a r i a m a seu c a r go a s o b r e v i v ê n c i a material do p a n t e ã o e da c o m u n i d a d e m o n á s t i c a .
C o m o m u i t o bem viu Luís Krus, S a n t o T i r s o , f u n d a d o por A l b o a z a r ,
r e i v i n d i c a v a a s s i m , à e s c a l a r e g i o n a l , um p r o t a g o n i s m o r e l i g i o s o e
p o l í t i c o s e m e l h a n t e ao que S a n t i a g o de C o m p o s t e l a , p r o t e g i d o p e l o
seu i r m ã o O r d o n h o , d e t i n h a na história da r e c o n q u i s t a h i s p â n i c a 26.
O r e l a t o f u n d a c i o n a l d o s de R i b a d o u r o a s s o c i a v a t a m b é m a conq u i s t a do t e r r i t ó r i o à sua c o n s a g r a ç ã o . A t r a v é s d o s d o i s i r m ã o s do
f u n d a d o r M o n i n h o V i e g a s , a m b o s b i s p o s e c o n t e m p o r â n e o s de Ram i r o II de L e ã o , a l i n h a g e m fica l i g a d a a o s m o s t e i r o s em que eles estão e n t e r r a d o s : Vila Boa do B i s p o ( a s s i m c h a m a d o j u s t a m e n t e por
c a u s a de um d e l e s ) e T u i a s (LL [ P r ó l o g o ] ; LL X X X V I A l ) . N a s g e r a ç õ e s s e g u i n t e s , o LL n ã o se e s q u e c e de r e f e r i r as r e l a ç õ e s - m a i s u m a
vez p o u c o claras, p o r q u e e n v o l v e m o u t r a s f a m í l i a s - c o m T i b ã e s ,
25
C f . M a t t o s o , Ricos-Homens
.... p p . 5 0 - 5 1 ; l d . , « O m o s t e i r o d e S a n t o T i r s o e a c u l t u r a m e d i e v a l p o r t u g u e s a » in Religião
e Cultura na Idade Média
Portuguesa. 2* e d . . L i s b o a , I m p r e n s a N a c i o n a l - C a s a d a M o e d a . 1 9 9 6 . p p . 4 9 1 - 5 0 9 ; Id.,
«A f a m í l i a d a M a i a no s é c u l o X I I I » in A Nobreza
.... p p . 3 3 1 - 3 4 2 .
26
C f . Passado.
Memória
e Poder
..., p. 2 0 2 .
S a l z e d a s e P o m b e i r o ( X X X V I A 5 - 6 ) , para a l é m de s u b l i n h a r o par e n t e s c o d i r e c t o da m u l h e r de E g a s M o n i z , o V e l h o , f i l h o do p r i m e i ro r e p r e s e n t a n t e da l i n h a g e m , c o m o rei R a m i r o . S e m r e c u a r t ã o longe no t e m p o , o LD, por seu t u r n o , cita e n t r e o s m e m b r o s da f a m í l i a
«dom Pero Troitosendes
de Paiva e de Riba do Douro, que
começou
a fazer o Paaço de Sousa» ( V I I I ) , e d o n a M o r P a i s , a p r i m e i r a mulher de E g a s M o n i z , s u p o s t o aio de A f o n s o H e n r i q u e s , « f i l h a que foi
de dom Paio Guterres,
que fez Tivães, e da filha de dom Suer Gueendes, que fez a Varzea» (IX A 2 ) .
N ã o d e i x a , p o r é m , de ser s u r p r e e n d e n t e a a u s ê n c i a , n o s t r ê s nob i l i á r i o s , de q u a l q u e r m e n ç ã o ao m o s t e i r o de C á r q u e r e , q u e , s e g u n d o
uma l e n d a r e c o l h i d a na Crónica de 1419 ( c a p . 2 do r e i n a d o de A f o n so H e n r i q u e s ) teria s i d o c o n s t r u í d o por e s s e m e s m o E g a s M o n i z em
a g r a d e c i m e n t o p e l a c u r a m i r a c u l o s a do seu p u p i l o , a i n d a c r i a n ç a , de
uma d e f o r m a ç ã o nas p e r n a s . A o b s c u r i d a d e do e p i s ó d i o , q u e M a t t o s o
hesita em i n c l u i r 110 n ú c l e o inicial d a « g e s t a de E g a s M o n i z » pres u m i v e l m e n t e c r i a d a p o r J o ã o S o a r e s C o e l h o 27 , t a l v e z se e x p l i q u e
pela p r ó p r i a o b s c u r i d a d e d a s o r i g e n s do s a n t u á r i o , um p o u c o e x c ê n trico ao e i x o g e o g r á f i c o d o s m o s t e i r o s p a t r o c i n a d o s p e l a f a m í l i a e, a
a v a l i a r pela sua f r a c a p r e s e n ç a d o c u m e n t a l , de r e d u z i d a a c t i v i d a d e e
d i m e n s ã o 28. P o r q u ê , e n t ã o , a e s c o l h a de C á r q u e r e c o m o c e n á r i o de
u m a t r a d i ç ã o tão i m p o r t a n t e ? O e s t a d o a c t u a l da i n v e s t i g a ç ã o n ã o
nos p e r m i t e r e s p o n d e r a esta p e r g u n t a , que n e c e s s i t a r i a de um e s t u d o
m o n o g r á f i c o , c r u z a n d o d a d o s s o b r e a « g e s t a de E g a s M o n i z » , as f o n tes da Crónica de 1419, a h i s t ó r i a do p r ó p r i o m o s t e i r o e a g e n e a l o g i a
dos de R i b a d o u r o .
Da p a r t e d o s de B a i ã o e d o s de B r a g a n ç a , as o u t r a s d u a s l i n h a g e n s
e n t r e as c i n c o i n i c i a i s a p o n t a d a s p e l o LV, o r e t r a t o que n o s foi transm i t i d o e n c o n t r a - s e num e s t a d o f r a n c a m e n t e m a i s e s q u e m á t i c o . D e s de logo, p o r q u e se p e r d e r a m os c a p í t u l o s d o LV q u e lhes e r a m d e d i c a d o s , m a s , a l é m d i s s o , p o r q u e a sua p o s i ç ã o de m e n o r p r o e m i n ê n c i a
na c o r t e d o s p r i m e i r o s reis p o r t u g u e s e s terá p r o v o c a d o uma m e n o r
d i s p o n i b i l i d a d e de r e c u r s o s m a t e r i a i s e s i m b ó l i c o s para a l i m e n t a r a
21
C f . Ricos-Homens
.... p p . 5 6 - 5 7 ; l d . , « J o ã o S o a r e s C o e l h o e a g e s l a de
E g a s M o n i z » in Portugal
Medieval
.... pp. 4 0 9 - 4 3 5 ; Id., « E g a s M o n i z » , in J o s é
C o s t a P e r e i r a ( e o o r d . ) . Dicionário
Ilustrado
da História
de Portugal,
I, L i s b o a , P u blicações Alfa, 1985, pp. 4 9 0 - 4 9 1 .
28
C f . M a t t o s o , Identificação
..., 1, p. 169.
m e m ó r i a f a m i l i a r . Ou e n t ã o , m u i t o s i m p l e s m e n t e , p o r q u e a p e r d a de
poder e f e c t i v o d e s t a s f a m í l i a s ao l o n g o do t e m p o terá p e r m i t i d o aos
s e u s rivais d e n t r o da p r ó p r i a n o b r e z a - ou aos d e s c e n d e n t e s d e s t e s u m a c e n s u r a s i s t e m á t i c a de m e m ó r i a s q u e o statu quo d o s s é c u l o s
XIII e X I V t o r n a r a p o l i t i c a m e n t e i n c o r r e c t a s .
Ainda a s s i m , s a b e m o s que o s B r a g a n ç ã o s f a z i a m r e m o n t a r as
s u a s o r i g e n s à r o c a m b o l e s c a h i s t ó r i a de «dom Alam, que foi
clérigo
filho d'algo e filhou a filha d'el rei de Armênia quando foi em oração a Santiago, e foi sa hospeda em Sam Salvador de Crasto de Avelâas» (LV [ P r ó l o g o ] 3). O LD, t a l v e z por um e f e i t o c a r a c t e r í s t i c o do
r e g i s t o de uma t r a d i ç ã o oral, d á - n o s o u t r o f u n d a d o r , q u e p a s s a a ser
«Mendo Alão de Bargança»
( f i l h o d o «Alam» o r i g i n a l ou s i m p l e s corr u p t e l a do n o m e d e s t e ? ) , m a s m a n t é m a i d e n t i d a d e da sua m u l h e r
(XXI 1). Q u a s e s e diria que, e n q u a n t o para o LV - ou para a t r a d i ç ã o
c o n t e m p o r â n e a que r e c o l h e - era f u n d a m e n t a l m a r c a r a p r e s e n ç a da
f a m í l i a no m o s t e i r o de C a s t r o de A v e l ã s d e s d e o p r i m e i r o m o m e n t o ,
j á para o LD a e v o c a ç ã o de u m a p r i n c e s a que v e m de l o n g e em per e g r i n a ç ã o a C o m p o s t e l a p a r e c e , por si só, m a i s p r e s t i g i a n t e . M u d a n ça de s e n s i b i l i d a d e ou p e r d a de i n f o r m a ç ã o ? Não s a b e m o s .
O q u e s a b e m o s , a s s i m o i n d i c a o LD i m e d i a t a m e n t e a s e g u i r , é
que o h e r d e i r o do c a s a l , F e r n ã o M e n d e s , o V e l h o , «casou com filha
d'el rei dom Afonso de Castela, o que ganhou Toledo» (XII 2). Esta lig a ç ã o a um m o n a r c a j á e n t ã o m i t i f i c a d o e q u e o c u p a no LD , de c e r to m o d o , o lugar de p o n t o de p a r t i d a na i d e o l o g i a o r d e n a d o r a do t e m p o
39
( u m p o u c o c o m o R a m i r o II de L e ã o no LV e n o LL), era, à
falta de o u t r a s c o n q u i s t a s e a par do acto de f o r ç a que o r i g i n a r a a lin h a g e m . o m a i o r título de n o b r e z a q u e o s s e n h o r e s de B r a g a n ç a pod i a m r e i v i n d i c a r . Até p o r q u e u m a r e f e r ê n c i a tão s i m p l e s l e m b r a v a à
casa real d u a s c o i s a s : p r i m e i r o , que h a v i a e n t r e o s s e u s s ú b d i t o s q u e m
se p u d e s s e o r g u l h a r de um p a r e n t e s c o i g u a l m e n t e d i r e c t o c o m o imp e r a d o r A f o n s o VI; d e p o i s , que o m a i s g l o r i o s o s o b e r a n o d o seu tempo, o h o m e m q u e a r r a n c a r a a o s m o u r o s a a n t i g a c a p i t a l da H i s p â n i a
g o d a , o a v ô do p r i m e i r o rei p o r t u g u ê s , c o r t e j a r a os B r a g a n ç ã o s a i n d a
29
B a s t a ler o P r ó l o g o p a r a o c o m p r o v a r : « d ê l o t e m p o d ' e l rei d o m A f o n s o ,
o que ganhou T o l e d o , acá, forom feitos os mais dos mosteiros e das igrejas e dos
c o u t o s e d a s h o n r a s . C a e m t e m p o d e s t e rei q u e r e i n o u l o n g a m e n t e f o r o m m u i t o s r i c o s
h o m e n s e i n f a n ç o e n s que ora p o r e m o s por p a d r o e n s o n d e d e s c e n d e m os filhos d ' a l g o . » ( L D | P r ó l o g o ] 2).
a n t e s da n a c i o n a l i d a d e , p r o c u r a r a a sua a l i a n ç a , c e d e n d o - l h e s u m a
filha, e t e n t a r a a t r a i r para a á r e a de i n f l u ê n c i a c a s t e l h a n o - l e o n e s a o s
domínios destes magnates, nunca docilmente submetidos a qualquer
d a s duas c o r o a s 30 .
Se as n a r r a t i v a s f u n d a c i o n a i s d o s de B r a g a n ç a e d o s de B a i ã o
n ã o e x i s t e m ou em p a r t e p e r d e r a m as r e f e r ê n c i a s s a c r a l i z a d o r a s e
p r e s t i g i a n t e s , i s t o a c e n t u a - s e n a t u r a l m e n t e nas l i n h a g e n s c o l a t e r a i s e
mais r e c e n t e s . N e s t a s , c o m o n a q u e l a s , n ã o há p r o p r i a m e n t e r e l a t o s
s o b r e as o r i g e n s , s o b r e o seu papel na R e c o n q u i s t a (pelo m e n o s a n t e s
da f u n d a ç ã o de P o r t u g a l ) ou s o b r e o p a t r o c í n i o de m o s t e i r o s . Há, isso
s i m . r e f e r ê n c i a s e s p a r s a s a i n d i v i d u a l i d a d e s n o t á v e i s por t e r e m
p r o m o v i d o este ou a q u e l e c e n ó b i o , r e f e r ê n c i a s e s s a s q u e são c o m p a r t i l h a d a s por d i v e r s a s f a m í l i a s ( c o m o , aliás, seria de e s p e r a r , t e n d o
em c o n t a a i n t r i n c a d a r e d e de c r u z a m e n t o s m a t r i m o n i a i s ) .
Só para t e r m o s um e x e m p l o c o n c r e t o e e x a u s t i v o , v e j a m o s as cel e b r i d a d e s de o u t r a s p a r e n t e l a s c o m q u e m o s B a i õ e s , p e l a l i n h a g e m
de «Goido Araldes de Baiam e Riba de Doiro» (LL XLI1 tít.), se rel a c i o n a v a m : seu f i l h o T r u t e s e n d o G u e d e s , a i n d a de R i b a d o u r o , f u n d a d o r d o P a ç o de S o u s a (LD XIV A l ; LL X L I I A l , C 4 2 , W 2 ) ; o irm ã o d e s t e , S o e i r o G u e d e s , «.que fundou o mosteiro da Varzea do Cavado» (LD X I V A l e 25 tít.; LL XLII A l e W 2 ) , t a m b é m i n v o c a d o
p e l o s da M a i a (LV II A5; LD VI B 2 ; LL X X I A 5 ) e de R i b a d o u r o (LD
IX A 2 ) ; Pero T r u t e s e n d e s de P a i v a , f i l h o do p r i m e i r o e s o b r i n h o d o
s e g u n d o , c e l e b r a d o i d e n t i c a m e n t e c o m o f u n d a d o r d o P a ç o de S o u s a
por este r a m o c o l a t e r a l d o s R i b a d o u r o e d o s B a i õ e s (LD V I I I ) ; «dom
Ero Mendes, que fez Santa Ovaia (...) onde vem os de Moles e os Ramirãos» ( L D X I V A 3 e X V C 1 ; LL LVI A1); «dom Godinho Viegas de
Azevedo, que fez Vilar de Frades» (LD X I V B3), n a t u r a l m e n t e c o n t a d o e n t r e os s e u s p e l o s A z e v e d o (LL LI1 A l ) ; «dom Toure
Çarnão,
que fez Vairão e Roriz» (LD XIV C 3 ; LL XLII A 3 ) , c i t a d o no P r ó l o go do LD c o m o «Travea»;
«dom Pero Paes Escacha, que coutou Tibães» (LD X I V C 5 ; LL X L I I A5), um S i l v a ( L D X V I I I A 2 ) c a s a d o entre o s S o u s a (LD IV 12 e LL L V I I I A 2 ) ; «Fernão Guiela, o
bemfeitor
de Vila Nova de Muhia e de outras duas igrejas de Sabadim»
(LD
X I V X7; LL XLII B 7 ) ; «Pero Afonso
de Dordães, que fez
Manhente» (LD XV C 2 ; LL LVI B2), a r r o l a d o t a m b é m p e l o s R a m i r ã o s ( L D
XVI A 1; LL LVI B3); «o mestre dom Gualdim Paes do Templo»,
que
3,1
C'f. M a t t o s o . Ricos-Homens
..., p. 6 7 ; I d , Portugal
MedievaI...,
p . 180.
«fez Tomar e Pombal e Castelo de Almoirol
e pobrou outros
muitos
lugares que ganhou à Ordem, e foi muito forte em armas, e leixou ao
Templo o que agora há em Abelamar»
(LD X V D4 e LL LVI F5),
p a r e n - t e d o s R a m i r ã o s p e l o pai e d o s C o r r e i a pela mãe (LL LVI C 4 ) .
No e n t a n t o , c o n v é m ter p r e s e n t e q u e o s n o b i l i á r i o s n ã o e s g o t a v a m o r e c u r s o à l e g i t i m a ç ã o pelo s a g r a d o r e l a c i o n a n d o - o c o m o pov o a m e n t o ou c o m a c o n q u i s t a , no s e n t i d o m a i s material d e s t e s a c t o s .
E m b o r a tal s e n t i d o f o s s e um a r q u é t i p o d o m i n a n t e na c u l t u r a arist o c r á t i c a m e d i e v a l , e m u i t o p a r t i c u l a r m e n t e n e s s e s livros de linhag e n s da H i s p â n i a da R e c o n q u i s t a , h a v i a f o r m a s m a i s s o f i s t i c a d a s de
invocar o favor divino.
Uma d e l a s era a r e l a ç ã o « t o t é m i c a » e n t r e u m a l i n h a g e m ou dinastia e u m a p e s s o a s a g r a d a - a n j o , s a n t o ou até o p r ó p r i o C r i s t o que teria s i d o e s p e c i a l m e n t e e n c a r r e g a d a , por d e s í g n i o p r o v i d e n c i a l ,
de as p r o t e g e r e a u x i l i a r . E s t r a t é g i a q u e c o n s t i t u í a um ó b v i o e f o r t í s s i m o e l e m e n t o de l e g i t i m a ç ã o p o l í t i c a , p o i s a p r o p r i a v a - s e d i r e c t a mente do incontestável poder do sagrado sobre os homens. Atentar
c o n t r a o g r u p o social a s s i m d e f e n d i d o p e l a s f o r ç a s d i v i n a s era a t e n t a r
c o n t r a e s s a s m e s m a s f o r ç a s d i v i n a s . A l ó g i c a que está por trás d e s t a
relação - a que chamámos totémica porque decalca, quase exactam e n t e , os l a ç o s e x i s t e n t e s e n t r e uma t r i b o e o seu t ó t e m , f a c t o j á a p o n t a d o por D u r k h e i m 31 - p o d e a p l i c a r - s e a uma f a m í l i a , c o m o e x e m p l i f i c a r e m o s para o s livros de l i n h a g e n s , a uma c i d a d e ( V e n e z a e
S. M a r c o s , as polei g r e g a s e as s u a s c í v i c a s d i v i n d a d e s , C a r t a g o e os
seus d e u s e s s a n g r e n t o s ) o u a uma n a ç ã o ( P o r t u g a l e C r i s t o no « m i l a gre» de O u r i q u e 32 , a E s p a n h a e S a n t i a g o , a F r a n ç a e S. D i n i s , a Ing l a t e r r a e S. J o r g e ) . Em t o d a s e s t a s s i t u a ç õ e s , b e m c o n h e c i d a s d a ant r o p o l o g i a política, «a r e l a ç ã o e n t r e o p o d e r e a s o c i e d a d e é e s s e n c i a l m e n t e c a r r e g a d a de s a c r a l i d a d e p o r q u e toda a s o c i e d a d e a s s o c i a
a o r d e m q u e lhe é p r ó p r i a a u m a o r d e m q u e a u l t r a p a s s a , e x p a n d i n d o -se até ao c o s m o s no c a s o das s o c i e d a d e s t r a d i c i o n a i s . O p o d e r é sac r a l i z a d o p o r q u e toda a s o c i e d a d e a f i r m a a sua v o n t a d e de e t e r n i d a d e
" C i t . B a l a n d i e r , Antropologia
Política,
p. 107.
"
C f . A n a I s a b e l B u e s c u , « U m m i t o d a s o r i g e n s da n a c i o n a l i d a d e : o m i l a g r e d e O u r i q u e » , in F r a n c i s c o B e t t e n c o u r t e D i o g o R a m a d a C u r t o ( o r g . ) A Memória da Nação. L i s b o a . S á d a C o s t a , 1 9 9 1 , pp. 4 9 - 7 0 . e B e r n a r d G u e n é e .
L'Occident
aux XIV' et XV' siècles.
Les Etats, P a r i s , P . U . F . , 1 9 7 1 , p p . 1 2 1 - 1 2 3 .
e r e c e i a o r e t o r n o ao c a o s c o m o r e a l i z a ç ã o da s u a p r ó p r i a m o r t e . » 33
Por o u t r a s p a l a v r a s , o r e c u r s o à l e g i t i m a ç ã o r e l i g i o s a a t r a v é s da inv o c a ç ã o e x p r e s s a de um p a d r o e i r o t e n d e n c i a l m e n t e e x c l u s i v o é, a l é m
de um s í m b o l o de i d e n t i f i c a ç ã o c o l e c t i v a , u m a f o r m a de g a r a n t i r a
c o n t i n u i d a d e e a p e r m a n ê n c i a d a c o m u n i d a d e , que a s s i m se vê d e f e n dida c o n t r a q u a l q u e r a m e a ç a .
O e x e m p l o m a i s f l a g r a n t e d e s t e tipo de l e g i t i m a ç ã o n o s livros de
l i n h a g e n s é - n o s a p r e s e n t a d o pela c a s a de L a r a , na p e s s o a do c o n d e
N u n o G o n ç a l v e s d ' A v a l o s . T r a t a - s e de um d o s m a i s a n t i g o s a n t e p a s s a d o s da l i n h a g e m , a l g u é m de q u e m o LL diz: «porque era mui boo
cristão, teve Deus por bem de seer sempre vencedor em todalas
batalhas.» E s t e p e q u e n o q u a d r o de r e t ó r i c a n ã o p a s s a de uma i n t r o d u ç ã o
ao r e l a t o q u a s e h a g i o g r á f i c o que v e m i m e d i a t a m e n t e a s e g u i r , relato
e s s e que, p e l a sua e s t r u t u r a e s c r i t a e p e l o d o m í n i o de a l g u n s m o d e l o s
b í b l i c o s , d e n o t a uma o r i g e m - ou p e l o m e n o s uma f o r t e i n f l u ê n c i a literária e c l e r i c a l . V e j a m o s o t e x t o : «E ua noite, ante que
morresse,
veo a ele o angio u el jazia orando, ante sa cama, e vio ua
craridade
mui grande e uu homem vestido em vestiduras
brancas, e
preguntou
quem era, e ele lhe disse que era angio que viinha a ele per
mandado
de Deus, e que pedisse uu dom, qual tevesse por bem, e que Deus lho
outorgaria.
E el disse que louvado fosse Deus por quanta mercee lhe
fazia, e que. lhe pedia salvaçom pera alma. E ele lhe dissi que esto lhe
era outorgado
com tanto que nom fezesse peores obras do que ele
ata 'ali fezera, mais que pedisse al. E ele lhe pedio que o seu solar
nunca fosse destroido.
E o angio lhe disse que pedia bem, e que Deus
lho havia outorgado.
E por esto cuidam os homees que o solar de
Lara nunca ha de ser destroido.»
{LL X A 3 ) .
V a l e a p e n a a t e n t a r em a l g u n s p o r m e n o r e s desta n a r r a t i v a . A n t e s
de m a i s n a d a a sua e v i d e n t e f i l i a ç ã o num c o n h e c i d o e p i s ó d i o v e t e r o t e s t a m e n t á r i o , c o n t a d o no Primeiro Livro dos Reis ( 3 , 4 - 1 3 ) , em que
o p r ó p r i o D e u s a p a r e c e ao g r a n d e rei S a l o m ã o «de noite em um sonho», em G á b a o n , « q u e era o maior dos altos lugares sagrados» e o n d e
este «ofereceu
mil holocaustos».
Salomão recebe a proposta divina
de p e d i r o q u e q u i s e s s e , f o s s e o q u e f o s s e , c o m a c e r t e z a de ser a t e n d i d o . H u m i l d e m e n t e , p o i s «era ainda muito jovem» e tinha a c a b a d o de
s u c e d e r a D a v i d , seu pai, à f r e n t e do r e i n o de Israel, S a l o m ã o a p e n a s
p e d e a D e u s «um coração sábio para poder governar o Vosso povo e
"
B a l a n d i e r , Antropologia
Política,
p. 107.
distinguir
entre o bem e o mal», r e c e b e n d o e m troca esta p r o m e s s a :
«Uma vez que Me fizeste esse pedido e não pediste para ti largos
dias,
nem riquezas,
nem a vida dos teus inimigos, mas só sabedoria
para
exercer a justiça, hei-de agir conforme a tua súplica. Vou dar-te um
coração judicioso
e inteligente,
como ninguém teve antes de ti, nem
depois de ti alguém terá. E dar-te-ei
também o que não pediste:
riqueza e glória tais que, durante a tua vida não haverá entre os reis
nenhum como
tu.».
Os p a r a l e l i s m o s , m a i s ou m e n o s e x p l í c i t o s , deste f r a g m e n t o da
h i s t ó r i a s a g r a d a - p r o p r i a m e n t e dita - c o m a n a r r a t i v a d o LL r e f e rente a N u n o G o n ç a l v e s d ' A v a l o s s ã o r e v e l a d o r e s . S a l o m ã o é o prim e i r o rei de Israel a r e c e b e r o t r o n o por via h e r e d i t á r i a ( t a n t o David
c o m o Saul, o s s e u s a n t e c e s s o r e s , t i n h a m sido d i r e c t a m e n t e e s c o l h i d o s por D e u s ) . O c o n d e N u n o G o n ç a l v e s é f i l h o e h e r d e i r o do f u n d a d o r da l i n h a g e m , o «mui boo cavaleiro d'armas, muito honrado e mui
boo cristão» M u d a r r a . S a l o m ã o o f e r e c e s a c r i f í c i o s no «maior dos lugares sagrados»
a n t e s d a a p a r i ç ã o n o c t u r n a de D e u s . O c o n d e reza
«ante sa cama» - s u p o m o s que j u s t a m e n t e no seu s o l a r - a n t e s d a apar i ç ã o n o c t u r n a do a n j o , a p a r i ç ã o q u e c o n v e r t e ipso facto e s s e solar
num v e r d a d e i r o lugar s a g r a d o p a r a a l i n h a g e m de L a r a , tal c o m o G á baon o era para o p o v o de Israel. S a l o m ã o p e d e a q u i l o q u e j u l g a ser
a c a u s a da s o b r e v i v ê n c i a do seu r e i n o e da s a l v a ç ã o da sua a l m a : um
c o r a ç ã o j u s t o e sábio. O c o n d e p e d e a q u i l o que j u l g a ser a c o n s e q u ê n c i a de um c o r a ç ã o j u s t o e s á b i o : a s a l v a ç ã o da sua a l m a e, o b t i da esta, a s o b r e v i v ê n c i a da sua c a s a , c o r p o r i z a d a na i n d e s t r u t i b i l i d a d e d o solar.
Se, c o m o t o m á m o s por h i p ó t e s e , e s t a l e n d a se f o r m o u n u m m e i o
e c l e s i á s t i c o , o n d e a c o n t i n u a ç ã o da b i o g r a f i a de S a l o m ã o no Primeiro Livro dos Reis seria c e r t a m e n t e b e m c o n h e c i d a , p o d e m o s ir até um
p o u c o m a i s longe nas i m p l i c a ç õ e s s i m b ó l i c a s do p a r a l e l i s m o e n t r e um
t e x t o e o o u t r o . T a l c o m o o m o n a r c a i s r a e l i t a c o n s t r u í r a o T e m p l o de
J e r u s a l é m , c e n t r o do j u d a í s m o , sob u m a e s p e c i a l p r o t e c ç ã o d i v i n a ,
t a m b é m N u n o G o n ç a l v e s c o n s e g u i r a de D e u s a g a r a n t i a de e t e r n i d a de para o solar de L a r a , c e n t r o da l i n h a g e m . O q u e , em ú l t i m a análise, e q u i v a l i a a c o m p a r a r I s r a e l , o p o v o e l e i t o de D e u s , à casa d e Lara, t a m b é m p r o v i d e n c i a l m e n t e p r o t e g i d a , por via da a p r o x i m a ç ã o entre S a l o m ã o e o seu T e m p l o e o c o n d e e o seu solar.
A u t ê n t i c a h i p o t e c a sobre o p o d e r l e g i t i m a d o r do s a g r a d o , este rec u r s o h i s t ó r i c o - p o l í t i c o da m e m ó r i a l i n h a g í s t i c a só se t o r n a v a p o s s í vel num c o n t e x t o i n t e l e c t u a l em que «as r e m i n i s c ê n c i a s e c i t a ç õ e s [da
BíbliaJ se a c o t o v e l a m em tão g r a n d e n ú m e r o nos e s c r i t o s d o c l e r o q u e
é m u i t a s v e z e s d i f í c i l d i s t i n g u i r o que p r o v é m da sua própria inspiração e o q u e p e r t e n c e ao t e x t o s a g r a d o . Este é ao m e s m o t e m p o int e r i o r i z a d o e a c t u a l i z a d o , a p o n t o de se i n t e g r a r na e x p e r i ê n c i a pessoal. Na v e r d a d e , a E s c r i t u r a n ã o é c o n s i d e r a d a c o m o um s i m p l e s relato da história da s a l v a ç ã o . Para além do s e n t i d o h i s t ó r i c o e v i d e n t e ,
uma e x e g e s e s u b t i l , q u e tem por v e z e s a t e n d ê n c i a de d e s l i z a r p a r a o
a l e g o r i s m o , d e s c o b r e em c a d a e p i s ó d i o , ou até em c a d a p a l a v r a , um
s i g n i f i c a d o m o r a l e e s p i r i t u a l a p r o p r i a d o . » 34.
N ã o m u i t o longe d e s t e a m b i e n t e i d e o l ó g i c o , e m b o r a c e r t a m e n t e
n a s c i d o s n o u t r o c o n t e x t o de p r o d u ç ã o c u l t u r a l , p a r e c e m e s t a r as mem ó r i a s que c o n t a m c o m o um herói g l o r i o s o , s í m b o l o da sua l i n h a g e m , leva a c a b o f e i t o s de a r m a s s u p e r i o r e s às f o r ç a s h u m a n a s g r a ç a s
ao a u x í l i o s o b r e n a t u r a l . S ã o q u a t r o os e x e m p l o s que p o d e m o s d e s c o brir nos n o b i l i á r i o s , t o d o s e l e s c o n t i d o s no LL e t o d o s eles r e l a c i o n a d o s c o m o c o m b a t e por e x c e l ê n c i a q u e é a g u e r r a ao i n f i e l , i n i m i g o
a t á v i c o , a d v e r s á r i o da fé c r i s t ã e u s u r p a d o r do t e r r i t ó r i o h i s p â n i c o .
N e s t e s c a s o s , a b a t a l h a t r a v a d a r e v e s t e - s e de u m s i g n i f i c a d o que ultrap a s s a o t e r r e n o e s t r i t a m e n t e m i l i t a r ou p o l í t i c o , para a t i n g i r , c o m a
m a i o r d a s n a t u r a l i d a d e s , a d i m e n s ã o r e l i g i o s a d e c o r r e n t e d a intervenção divina.
O p r i m e i r o c a s o a ver de p e r t o é o de Rui D i a s de B i v a r , o Cid
C a m p e a d o r , p r o l i x a m e n t e b i o g r a f a d o n o título VIII do LL ( B 8 ) . Este
texto, d e p o i s de e n u m e r a r as s u a s b r i l h a n t e s c o n q u i s t a s e v i t ó r i a s , dá- n o s a n o t í c i a s u c i n t a de u m a lenda de o r i g e m d u v i d o s a , m a s já e n t ã o
m u i t o d i f u n d i d a , s e g u n d o a qual o Cid teria v e n c i d o o seu ú l t i m o c o m bate do m o d o p r o d i g i o s o que a s e g u i r se n a r r a : «E depois que o Cid
morreo, veticeo Rei Bucar outra vez, com todo o poder que pode ajuntar d'A frica. E esto foi per a vertude de Deus, que lhe enviou o apostolo Sam Tiago em sa ajuda. E Nosso Senhor mandou dizer ao Cide
em sa vida, per Sam Pedro, per qual guisa havia de
vencer.».
O s p o r m e n o r e s f a c t u a i s da h i s t ó r i a s ã o aqui o m i t i d o s , p r o v a v e l m e n t e p o r q u e s e r i a m do c o n h e c i m e n t o p ú b l i c o . N ã o nos p o d e r e m o s a l o n g a r , p o r t a n t o , s o b r e a f o r m a de que se r e v e s t i u a a c t u a ç ã o
"
A n d r é V a u c h e z , La Spiritualité
du Moyen Age Occidental,
Paris. Presses
U n i v e r s i t a i r e s d e F r a n c e , 1975, p p . 1 5 7 - 1 5 8 . S o b r e o p a p e l d a B í b l i a e d o c l e r o na
cultura m e d i e v a l , e na óbvia i m p o s s i b i l i d a d e de a p r e s e n t a r uma b i b l i o g r a f i a m i n i m a m e n t e e x a u s t i v a , c f . , p o r t o d o s , J a c q u e s P a u l , Histoire
Intellectuelle
de
l'Occident Médiéval,
Paris. A r m a n d Colin. 1973. pp. 10-13 e 35-36.
da «vertude de Deus» neste c a s o c o n c r e t o . P a r e c e m a i s i m p o r t a n t e a
d i m e n s ã o s i m b ó l i c a que f a z do C a m p e a d o r o herói é p i c o p o r a n t o n o m á s i a , d i m e n s ã o r e f o r ç a d a pela n a r r a t i v a a t r a v é s de três f i g u r a s
i m p r e s s i o n a n t e s . E m p r i m e i r o lugar, a de S a n t i a g o , o a p ó s t o l o g u e r reiro, p a t r o n o e e v a n g e l i z a d o r d a s E s p a n h a s , c u j a i n t e r v e n ç ã o c o n f i r m a o d e s t i n o h i s p â n i c o do herói e, d e s t e m o d o , a c a u ç ã o d i v i n a à
e m p r e s a bélica q u e esse d e s t i n o c o r p o r i z a : a r e c o n q u i s t a c r i s t ã da terra ibérica. D e p o i s a f i g u r a de S ã o P e d r o , p r í n c i p e d o s a p ó s t o l o s , prim e i r o P a p a , s e n h o r d a s c h a v e s do C é u , que n ã o só c o n f e r e ao C i d a
d i m e n s ã o universal da C r i s t a n d a d e , c o m o lhe a s s e g u r a t a m b é m a certeza de uma m i s s ã o p r o v i d e n c i a l , s e m e l h a n t e t a l v e z à q u e levara o
m e s m o P e d r o a ser o b j e c t o p r i v i l e g i a d o da a t e n ç ã o de D e u s . Finalm e n t e , a f i g u r a do p r ó p r i o herói q u e , d e p o i s de m o r t o , v e n c e uma
b a t a l h a d e c i s i v a , f e i t o i n a u d i t o q u e p r o j e c t a o seu n o m e até a o s confins da h i s t ó r i a , a t r i b u i n d o a s s i m à sua vida, e por a r r a s t a m e n t o ao
e m p r e e n d i m e n t o c o l e c t i v o em que e s s a vida se c o n s o m e , a d i m e n s ã o
heróica por excelência.
É fácil v e r que este triplo p a t a m a r é p i c o , que o t e x t o a m p l i f i c a
c o m a r e f e r i d a e n u m e r a ç ã o e x a u s t i v a d o s f e i t o s de Rui Dias de B i v a r ,
d i t o o C i d C a m p e a d o r , tem o o b j e c t i v o m u i t o c l a r o de a l c a n d o r a r ao
c u m e da glória a R e c o n q u i s t a m i l i t a r da H i s p â n i a , r e c o r r e n d o aos
a l e g a d o s f a v o r e s c e l e s t i a i s para j u s t i f i c a r i d e o l o g i c a m e n t e esse s e c u lar m o v i m e n t o de c o l o n i z a ç ã o do Sul m u ç u l m a n o pelo N o r t e c r i s t ã o .
A l v a r o Pires de C a s t r o , que «foi mui boo fidalgo e muito
honrado, e lidou muitas vezes com os Mouros, e houve contra eles mui boas
aventuiras»
(LL XI C 9 ) , p r o t a g o n i z a o p a i n e l s e g u i n t e d e s t e p o l í p tico. A c o m p a n h a - o n o v a m e n t e S a n t i a g o . O c e n á r i o é J e r e z de S a d o r nim. o n d e se dá um r e c o n t r o e n t r e f o r ç a s c r i s t ã s e m u ç u l m a n a s «em
tempo de el rei dom Fernando Ide Castela]»,
ou s e j a , d u r a n t e o s e g u n do quartel do s é c u l o XIII. O LL d e s c r e v e o e m b a t e c o m h i p e r b ó l i c o
s o b r e s s a l t o , de m o d o a s u b l i n h a r o e x t r a o r d i n á r i o m i l a g r e b é l i c o e o
v a l o r de Á l v a r o Pires d i a n t e de t a n t o s reis e e x é r c i t o s , v a l o r ao qual
se atribui, a f i n a l , o m é r i t o de D e u s ter a c t u a d o a f a v o r d o s c r i s t ã o s ,
enviando o santo Mata-Mouros:
«E os mouros eram bem XV mil de cavalo, e os de pee nom
viam conto, e os cristãos nom chegavam
a mil de cavalo e os de
nom chegavam
a dous mil e quinhentos.
E com esforço deste
Alvar Pirez de Castro, que ia na dianteira,
houveram
a lidar
eles e vence-los.
E teve Deus por bem de mandar i o Apostolo
Tiago, que virom i os Mouros e alguus dos cristãos, para seerem
hapee
dom
com
Sam
os
Mouros vencidos assi como o forom. Este dom Alvar Pirez era tam
grande e tam gordo, que nom pode ter em aquela lide senom ua falifa
delgada e ua vara na mão; mais tantos exemplos boos deu aos seus e
tamanho esforço disse, que lhes fez cobrar os corações, porque
ijouverom a seer os mouros vencidos.»
(XI C9).
É de n o t a r que a g r a n d e z a da v i t ó r i a se a c e n t u a pela d e s p r o p o r ç ã o
das f o r ç a s em p r e s e n ç a e, s o b r e t u d o , p e l a d e s p r o p o r ç ã o e n t r e o «tamanho esforço» e o s «tantos exemplos boos» do h e r ó i c o A l v a r o Pirez
de C a s t r o e a sua q u a s e total v u l n e r a b i l i d a d e f í s i c a , p o i s «nom pode
ter em aquela lide senom ua falifa delgada e ua vara na mão». Por o u tro lado, o r e l a t o a s s e g u r a a c r e d i b i l i d a d e d e s t a s u c e s s ã o de f a c t o s
p r o d i g i o s o s , i n v o c a n d o o m a i o r i t á r i o t e s t e m u n h o d o s p r ó p r i o s venc i d o s , o s q u a i s t e r i a m s e n t i d o , p o r v e n t u r a m a i s p e r t o do que o s venc e d o r e s , a p r e s e n ç a do a p ó s t o l o c o m b a t e n t e . A f r a s e p o s t u l a u m a c e r teza s u b t i l , m a s n ã o d e i x a de se servir d a i n s u s p e i t a f i a b i l i d a d e do
i n i m i g o c o n t r a o s c r i s t ã o s q u e d u v i d a s s e m da d i v i n a i n t e r v e n ç ã o em
f a v o r da c a s a de C a s t r o .
N ã o d e v e m o s m e n o r i z a r e s s e p o s s í v e l s e n t i d o c r í t i c o a c e r c a de
acontecimentos sobrenaturais - bem menos frequentes nos nossos
t e x t o s , aliás, do q u e n e s s a s vidas de s a n t o s q u e c o m p u n h a m o g r o s s o
da h i s t o r i o g r a f i a m o n á s t i c a - p o r q u e o o u t r o e p i s ó d i o do LL que envolve S a n t i a g o m o s t r a que tal d ú v i d a p o d i a e x i s t i r , m e s m o que f o s s e
m a i s r e f l e x o d a s r i v a l i d a d e s p o l í t i c a s e n t r e l i n h a g e n s d o que do imp r o v á v e l c o m b a t e e n t r e a r a z ã o e o m i t o . O q u a d r o desta p o s s i b i l i d a d e , bem c o n h e c i d o d o s l e i t o r e s de A l e x a n d r e H e r c u l a n o , é a c é l e bre n a r r a t i v a da m o r t e de G o n ç a l o M e n d e s da M a i a , o L i d a d o r , n o s
c a m p o s do B a i x o A l e n t e j o , o n d e «foi adeantado
por el rei dom Afonso Anriquez en a fronteira»
(LL X X I G 6 ) . Aí, «uu dia, indo a correr
a par de Beja, houve duas lides, ua com Almoliamar
e outra
com
Alboacem,
rei de
Tanjar».
Não será n e c e s s á r i o s a l i e n t a r o d e s e q u i l í b r i o d o s e x é r c i t o s e m
c o n f r o n t o n e m , m a i s uma vez, a c r u e z a e i n t e n s i d a d e d a s b a t a l h a s ,
c o n v e n c i o n a l m e n t e g a n h a s pelos c r i s t ã o s . A l é m d i s s o , t a m b é m aqui o
herói p r o v o c a a a d m i r a ç ã o d o s c o n t e m p o r â n e o s e a l e m b r a n ç a d o s vind o u r o s , g r a ç a s a a c t o s de v a l o r - l i t e r a l m e n t e - s u p e r i o r e s às s u a s próprias f o r ç a s e que a c a b a m por l e v á - l o à m o r t e , «chagado
de chagas
mortaes». O seu f i m em p l e n o c o m b a t e , p o r é m , t o r n a - s e no LL a m a i s
e l o q u e n t e e x o r t a ç ã o a e s s e g r u p o de f i d a l g o t e s d e s g a r r a d o s na f r o n teira, na sua m a i o r i a f i l h o s s e g u n d o s e m busca de f o r t u n a , c o m o o
p r ó p r i o G o n ç a l o M e n d e s , mas que a luta c o n t r a o I s l ã o e a e v o c a ç ã o
literária c o n v e r t e m para todo o s e m p r e na f i n a - f l o r da c a v a l a r i a da
Cristandade - essa Cristandade perpetuamente ameaçada pelo infiel e
p e r p e t u a m e n t e d e f e n d i d a pela n o b r e z a h i s p â n i c a .
N a r r a n d o o e m b a t e , diz o t e x t o , num b e l o tom d e c l a m a t ó r i o que
l e m b r a p r e c i s a m e n t e a leitura em voz alta de um r o m a n c e c a v a l e i r e s c o : «Ali se espedaçavam
capelinas
e bacinetes,
e talhavam
escudos e esmalhavam
fortes lorigas. E ferirom-se
de tam dura força e de
tamanhos golpes, que os cristãos da Espanha, e os Mouros que desto ouvirom falar, dos talhos das espadas que naquel logar forom
feitos, disseram que taes golpes nom podiam seer dados por homees. E
esto nom foi maravilha por assi teerem, ca houve golpes que derom
por cima dos ombros que fenderom
meetade dos corpos e as selas em
que iam e gram parte dos cavalos e outros talhavam per meio, que as
meetades se partiam cada ua a sa parte. E disseram que Sam Tiago os
fezera com sa mão, pero a verdade foi esta: eles forom dados por os
mui boos fidalgos
com ajuda de Sam Tiago.» (LL X X I G 6 ) .
C o m o se vê, há neste ligeiro e m e n d a r de m ã o - a p r e c i s ã o de q u e
n ã o foi S a n t i a g o a c o m b a t e r , m a s q u e se c o m b a t e u c o m o a u x í l i o de
S a n t i a g o - um c e r t o e s t a d o de e s p í r i t o que n ã o v i s l u m b r a r í a m o s no
e p i s ó d i o a n t e r i o r , e m que A l v a r o Pires de C a s t r o v e n c e c o m o c o n c u r so d i r e c t o e i n e q u í v o c o do a p ó s t o l o . C o r r e s p o n d e r á esta d i f e r e n ç a a
uma c u l t u r a um p o u c o m a i s c é p t i c a , a um m e i o social m e n o s p r o p e n so a a c r e d i t a r em a p a r i ç õ e s , a c o n d i ç õ e s de p r o d u ç ã o m a i s « r a c i o n a l i s t a s » ? É m u i t o d i f í c i l r e s p o n d e r c o m um m í n i m o de s e g u r a n ç a . A
c h a m a d a h i s t ó r i a d a s m e n t a l i d a d e s , e em p a r t i c u l a r a história intelectual da a r i s t o c r a c i a m e d i e v a l p o r t u g u e s a , que está p o r f a z e r , a c o n s e l h a m - n o s p r u d ê n c i a q u a n d o p e r g u n t a m o s p e l a s e s t r a n h a s c o i s a s em
que a c r e d i t a v a m e s s e s h o m e n s que j u l g a m o s c o n h e c e r tão b e m , e q u e
afinal n o s s u r p r e e n d e m tantas v e z e s . T a l v e z a m e l h o r r e s p o s t a s e j a ,
n o v a m e n t e , uma d a s c o n s i d e r a ç õ e s que Paul V e y n e n o s o f e r e c e a prop ó s i t o d a s m o d a l i d a d e s de c r e n ç a na m i t o l o g i a a n t i g a . «A d e p u r a ç ã o
do m í t i c o p e l o logos n ã o é um e p i s ó d i o da luta e t e r n a - d a s o r i g e n s a
V o l t a i r e e R e n a n - e n t r e a s u p e r s t i ç ã o e a r a z ã o , que f a r i a a glória d o
g é n i o g r e g o ; o m i t o e o logos n ã o se o p õ e m c o m o o e r r o e a r e a l i d a de. O m i t o era um t e m a de r e f l e x õ e s g r a v e s e o s G r e g o s a i n d a n ã o o
t i n h a m d a d o por c o n c l u í d o , s e i s s é c u l o s a p ó s esse m o v i m e n t o d o s S o f i s t a s que se diz ter s i d o o seu Aufklarung.
L o n g e de ser um t r i u n f o da
r a z ã o , a d e p u r a ç ã o do m i t o p e l o logos é um p r o g r a m a m u i t o d a t a d o ,
c u j o a b s u r d o s u r p r e e n d e : p o r q u e é q u e o s G r e g o s se d e r a m a t a n t o
t r a b a l h o para nada, q u e r e n d o s e p a r a r o t r i g o d o j o i o , em vez de ati-
r a r e m , de uma p e n a d a , para a t a b u l a ç ã o , t a n t o T e s e u c o m o o M i n o t a u ro, t a n t o a p r ó p r i a e x i s t ê n c i a de um c e r t o M i n o s c o m o as i n v e r o s i m i l h a n ç a s que a t r a d i ç ã o atribui a e s s e f a b u l o s o M i n o s ? » C o n c l u s ã o
de V e y n e , q u e f a z e m o s n o s s a : «A q u e s t ã o de s a b e r se as f á b u l a s têm
um c o n t e ú d o a u t ê n t i c o n u n c a se põe em t e r m o s p o s i t i v o s : para s a b e r
se M i n o s e x i s t i u , é p r e c i s o p r i m e i r o s a b e r se os m i t o s n ã o p a s s a m de
c o n t o s v ã o s , ou se s ã o história a l t e r a d a ; n e n h u m a c r í t i c a p o s i t i v i s t a
liquida a f a b u l a ç ã o e o s o b r e n a t u r a l . » 35 .
À f a l t a de o u t r a s c e r t e z a s , p o d e m o s d i z e r o m e s m o do e p i s ó d i o
que nos o c u p a . A c r e d i t a r i a r e a l m e n t e o a u d i t ó r i o d o LL que a c o n t e n da f o r a v e n c i d a «por os mui boos fidalgos
com ajuda de Sam Tiago»'?
E, a a c r e d i t a r , e m q u e t i p o de a j u d a a c r e d i t a r i a ? Não s a b e m o s . ( V e y ne: «A r e s p o s t a é d i f í c i l , p o i s a c r e d i t a r q u e r d i z e r t a n t a s c o i s a s ...») O
i m p o r t a n t e é q u e , no s i s t e m a mental q u e dá o r i g e m a e s t e r e l a t o - ou
à l e n d a de G a i a , ou à l e n d a da D a m a Pé de C a b r a (LL IX A 4 ) , ou à lenda de D o n a M a r i n h a (LL L X X I I I A l ) - tais o c o r r ê n c i a s r e p r e s e n tavam um e n o r m e capital de p r e s t í g i o c o l e c t i v o e, p o r t a n t o , u m a f o n te de l e g i t i m i d a d e s u s c e p t í v e l de e v i d e n t e s u t i l i z a ç õ e s p o l í t i c a s .
Neste c o n t e x t o , o t e r c e i r o p a i n e l do t r í p t i c o levanta p r o b l e m a s
p a r t i c u l a r e s , p o i s r e m e t e - n o s s i m u l t a n e a m e n t e para a m e m ó r i a de u m a
f a m í l i a em r á p i d a a s c e n s ã o no s é c u l o X I V - o s Pereira - e para a
i d e o l o g i a de c r u z a d a n a s c i d a no s e i o d a s o r d e n s m i l i t a r e s ,h . T r a t a sse da c é l e b r e n a r r a t i v a da b a t a l h a do S a l a d o i n c l u í d a no título XXI,
t í t u l o q u e terá s i d o r e f u n d i d o , em 1380, s e g u n d o d e m o n s t r o u A n t ó nio José S a r a i v a
c o m o i n t u i t o l a u d a t ó r i o de b i o g r a f a r o prior d o
H o s p i t a l D. A l v a r o G o n ç a l v e s P e r e i r a .
Os P e r e i r a , r e c o r d e - s e , p r e t e n d i a m ser o s h e r d e i r o s d o p a t r i m ó nio s i m b ó l i c o d o s s e n h o r e s da M a i a (o título XXI é j u s t a m e n t e o desta l i n h a g e m g r a n d i o s a , e n t r e t a n t o d e s a p a r e c i d a ) , e a r e f u n d i ç ã o do
LL de 1380 tem por p r i n c i p a l o b j e c t i v o j u s t i f i c a r tal r e i v i n d i c a ç ã o .
Uma t r a n s f e r ê n c i a de m e m ó r i a s m u i t o s e m e l h a n t e à q u e , c e r c a de um
"
Acreditaram
.... p. 14.
"
S o b r e o p e r c u r s o s o c i a l e p o l í t i c o d o s P e r e i r a , c f . M a t t o s o . «A n o b r e z a e a
r e v o l u ç ã o d e 1 3 8 3 » , in Fragmentos
de uma Composição
Medieval,
Lisboa. Editorial E s t a m p a , 1 9 8 7 , p p . 2 7 7 - 2 9 3 . S o b r e a R e c o n q u i s t a e as o r d e n s m i l i t a r e s , c f .
M a t t o s o , Ricos-Homens
.... p p . 2 2 7 - 2 3 9 .
37
« O autor da narrativa da batalha d o S a l a d o e a r e f u n d i ç ã o do Livro do C o n d e
D . P e d r o » in Boletim
de Filologia,
X X I I , 1971, pp. 1 - 1 6 ; cf. t a m b é m M a t t o s o ,
Introdução
ao LL, p p . 4 1 - 4 2 .
s é c u l o a n t e s , t i n h a m l e v a d o a c a b o o s de Riba de V i z e l a em r e l a ç ã o
a o s s e n h o r e s de S o u s a , t r a n s f e r ê n c i a q u e , s e g u n d o J o s é M a t t o s o e
Luís K r u s , está na o r i g e m do LV, o p r i m e i r o n o b i l i á r i o q u e c h e g o u até
nós ,8 . A n o v i d a d e do título X X I r e s i d e , p o r é m , na aliança e n t r e a
g l o r i f i c a ç ã o de uma casa em plena e m e r g ê n c i a , por via da b i o g r a f i a do
seu m e m b r o q u e m a i s alto c h e g a r a na e s c a l a s o c i a l , e o p r o t a g o n i s m o
a t r i b u í d o às o r d e n s m i l i t a r e s na s o c i e d a d e c r i s t ã , p o r via do seu papel - a p r e s e n t a d o c o m o d e c i s i v o - na «lide de Tarifa», e t a p a n ã o
m e n o s d e c i s i v a da R e c o n q u i s t a h i s p â n i c a . É e s t a a l i a n ç a que f a z do
t e x t o do LL «o m a i s a d m i r á v e l r e s u m o (...) da i d e o l o g i a s e n h o r i a l
p o r t u g u e s a m e d i e v a l » , c o m o d i z A n t ó n i o J o s é S a r a i v a M , e q u e «lhe
c o n f e r e u m a d i m e n s ã o í m p a r , e n t r e nós, ao nível d o s r e g i s t o s h i s t o r i o g r á f i c o s » , c o m o a c r e s c e n t a B e r n a r d o V a s c o n c e l o s e S o u s a 40 .
T e n d o em c o n t a e s t a p a r t i c u l a r i d a d e , e até o c a r á c t e r c r o n o l o g i c a m e n t e m a i s m o d e r n o d o título XXI em c o m p a r a ç ã o c o m o s e p i s ó d i o s atrás a n a l i s a d o s , seria de e s p e r a r u m a a b o r d a g e m d i f e r e n t e do
s a g r a d o e d a s s u a s r e l a ç õ e s c o m a g l ó r i a h u m a n a . E a s s i m é. D e s d e
l o g o , do p o n t o de vista e s t r i t a m e n t e literário. F a z e n d o p a r t e da vida de
A l v a r o G o n ç a l v e s , à qual se c o n s a g r a uma a t e n ç ã o j á de si c o n s i d e r á v e l , o relato do S a l a d o é de u m a d i m e n s ã o m u i t o p o u c o usual n o s
n o b i l i á r i o s (só c o m p a r á v e l à lenda de G a i a , que inicia o m e s m o título X X I e p o d e r á d e v e r - s e , p o r t a n t o , à m e s m a p e n a ) . A l é m d i s s o , a p r e s e n t a um grau de e l a b o r a ç ã o d r a m á t i c a que o t o r n a um q u a d r o à parte do r e s t o do LL, u m a a u t ê n t i c a n a r r a t i v a f e c h a d a , i n d e p e n d e n t e d o
que v e m a n t e s e d e p o i s . E s t a m o s m u i t o l o n g e da s i m p l i c i d a d e de rec u r s o s n a r r a t o l ó g i c o s u t i l i z a d o s p e l a v e r s ã o d a l e n d a de G a i a do LV,
por e x e m p l o , ou das a p a r i ç õ e s de S a n t i g o a A l v a r o Pires de C a s t r o e
d o a n j o a N u n o G o n ç a l v e s d ' A v a l o s . Para o c o m p r o v a r , b a s t a ver o
u s o m a g i s t r a l do d i s c u r s o d i r e c t o , ou a f o r m a c o m o se c o n t a a e v o l u ç ã o da b a t a l h a , ou a d e s c r i ç ã o a p a i x o n a d a das t é c n i c a s m i l i t a r e s de
muçulmanos e hospitalários.
M a s o n d e se nota m a i s e s s a d i f e r e n ç a de m e i o s é, s o b r e t u d o , na
c o n s t r u ç ã o i d e o l ó g i c a do texto. Já n ã o se p r o c l a m a a p a r t i c i p a ç ã o directa d o s p o d e r e s s a g r a d o s na c o n q u i s t a do t e r r i t ó r i o ou na d e f e s a do
C f . n o t a s 3, 5 e 8.
™ « O a u t o r d a n a r r a t i v a d a b a t a l h a d o S a l a d o . . . » , p. 15.
40
« V e n c e r o u m o r r e r . A b a t a l h a d o S a l a d o ( 1 3 4 0 ) » , in A Memória
p. 506.
da
Nação,
g r u p o social, c o n s i d e r a n d o - s e , em t r o c a , a p e r d a da vida e m c o m b a t e
ao m e s m o nível do m a r t í r i o , i n v o c a n d o , p o r ela e para ela, as r e c o m p e n s a s e t e r n a s . Há u m a m u d a n ç a de p e r s p e c t i v a r e l i g i o s a , q u e , e m
certa m e d i d a , j á v e r i f i c á m o s no r e l a t o da m o r t e de G o n ç a l o M e n d e s
da M a i a e que c o l o c a p r o b l e m a s s e m e l h a n t e s . E m b o r a seja m u i t o
p o u c o p r o v á v e l q u e e s t e s dois e p i s ó d i o s t e n h a m a m e s m a o r i g e m ( u m
teria n a s c i d o da p r o d u ç ã o é p i c a q u e g r a v i t a v a em t o r n o da g r a n d e
casa s e n h o r i a ] da M a i a , o o u t r o seria f r u t o do e s p í r i t o c r u z a d í s t i c o
que m o t i v a v a a e x i s t ê n c i a d a s o r d e n s m i l i t a r e s ) , n ã o há d ú v i d a que a
r e f u n d i ç ã o de 1380, e a sua i n c l u s ã o no m e s m o t í t u l o , os a p r o x i m a r i a ,
e i s t o é b e m visível ao nível f o r m a l .
M a i s i n t e r e s s a n t e é, p o r é m , a j u s t i f i c a ç ã o i d e o l ó g i c a do c o m b a t e
da n o b r e z a h i s p â n i c a , e em p a r t i c u l a r d o s p o r t u g u e s e s , e c o r r e l a t i v a m e n t e do tipo de i n t e r v e n ç ã o i n d i r e c t a a e s p e r a r de D e u s . O u ç a m o s pois é de o u v i r q u e se trata - A f o n s o IV que se d i r i g e aos s e u s s ú b ditos: « M e u s naturaes
e meus vassalos,
sabedes bem em como esta
terra da Espanha foi perduda por rei Rodrigo e ganhada pelos
Mouros, e em como outra vez entrou Almançor,
e em como os vossos
avoos, donde descendedes,
por gram trabalho e por mortes e lazeira,
ganharom o reino de Portugal. Em como el rei Dom Afonso
Anrequiz,
com que a eles guanharom,
Ihis deu honras e coutos e liberdades
e
contias por que vivessem honrados,
e nom tam solamente fez esto a
eles, mais por a sua honra dava os maravedis aos filhos que jaziam
nos
berços, e os padres serviam por eles; em como os reis, que
depôs
el veeram, aguardarom
esto. Eu, depois que viim a esto logo, fiz aquelo que estes reis fizerom;
e, se algua cousa i ha pera emendar, eu o
corregerei
se me Deus daqui tira. Olhade por estes Mouros que vos
querem guanhar a Espanha, de que dizem que estam forçados, e hoje,
este dia, a entendem de cobrar se nós nom formos vencedores.
Poede em vossos corações de usardes do que usarom aqueles donde viindes, como nom percades
vossas molheres nem vossos filhos e o em
que ham-de viver aqueles que depois vós veherem, os que i morrerem
e viverem seeram salvos e nomeados pera sempre.»
(LL XXI G 1 5 ) .
As mudanças do discurso reconquistador habitual são bem evid e n t e s . É v e r d a d e q u e a v i s ã o do p a s s a d o p r o l o n g a a do 1 c a p í t u l o da
Crónica Geral de Espanha de 1344, n o m e a n d o o s g r a n d e s m a r c o s
d e s s a h i s t ó r i a s e c u l a r de «como esta terra da Espanha foi
perduda
por rei Rodrigo e ganhada pelos Mouros».
É v e r d a d e que o p r ó l o g o
do LV e c o a na p r e t e n s ã o a r i s t o c r á t i c a de n a r r a r a R e c o n q u i s t a c o m o
um p r o c e s s o em que «os vossos avoos, donde descendedes,
(...) ganharom o reino de Portugal.»
É v e r d a d e que a m e n t a l i d a d e p a s s a dista d o s f i d a l g o s p o r t u g u e s e s n ã o d e i x a de r e l a c i o n a r uma m e m ó ria i d e a l i z a d a da r e a l e z a - m i t i f i c a d a na p e s s o a do seu f u n d a d o r - c o m
um t e m p o de a b u n d â n c i a em q u e «el rei dom Afonso Anrequiz, com que
a eles guaharom,
lhes deu honras e coutos e liberdades
e contias
por
que vivessem
honrados.».
M a s há uma g r a n d e o r i g i n a l i d a d e na f o r m a c o m o o s a g r a d o irr o m p e no m e i o d e s t e d i s c u r s o de clã e de c l a s s e . Em p r i m e i r o lugar,
p o d e d e p r e e n d e r - s e um c e r t o n a c i o n a l i s m o i n c i p i e n t e , a p o n t a d o p o r
B e r n a r d o V a s c o n c e l o s e S o u s a , no p r ó p r i o f a c t o de que «do e p i s ó d i o
n u c l e a r da V e r a C r u z n ã o e x i s t e q u a l q u e r e s p é c i e de v e s t í g i o na Crónica de Alfonso XI, o q u e atribui uma e s p e c i f i c i d a d e própria a o s relatos da batalha e l a b o r a d o s e m P o r t u g a l e à t r a d i ç ã o q u e , s o b r e t u d o , o
p a s s o do Livro de Linhagens o r i g i n o u e n t r e n ó s . » 41 A o m e s m o t e m - p o ,
é de n o t a r que a e l e v a ç ã o e e x p o s i ç ã o da r e l í q u i a , « a c t o p e l o qual se
c u m p r e a c o m p l e t a i n t e g r a ç ã o no d o m í n i o do s a g r a d o » ' 2 , n ã o faz
d e p e n d e r o f a v o r s o b r e n a t u r a l de um s í m b o l o f a m i l i a r , c o m o o a n j o
d o s L a r a . ou m e s m o h i s p â n i c o , c o m o S a n t i a g o , mas de um o b j e c t o q u e
se liga u n i v e r s a l m e n t e ao p r ó p r i o C r i s t o . U m o b j e c t o , l e m b r e m o - l o ,
que s e i d e n t i f i c a v a em p a r t i c u l a r c o m as o r d e n s m i l i t a r e s e c o m e s s a
n o v a e s p i r i t u a l i d a d e , b e m r e p r e s e n t a d a por S. B e r n a r d o de C l a r a v a l ,
que via na C r u z a d a o d e s t i n o mais e x c e l s o do miles Christi e em T e m p l á r i o s e H o s p i t a l á r i o s a p e r f e i ç ã o da c a v a l a r i a e s p i r i t u a l 43 .
Estas i n c i d ê n c i a s de s e n t i m e n t o r e l i g i o s o até aqui d e s c o n h e c i d o
d o s livros de l i n h a g e n s , m a s j á p r e s e n t e no c i c l o a r t u r i a n o que c h e g a
à c o r t e c o m a Demanda do Santo Graal44, d ã o - n o s uma i m a g e m m a i s
41
« V e n c e r ou morrer ...», p. 5 1 2 .
l d „ «Ibid.», p. 511.
41
C f . F r a n c o C a r d i n i , « O g u e r r e i r o e o c a v a l e i r o » , in J a c q u e s L e G o f f ( d i r . ) ,
O Homem Medieval.
L i s b o a , P r e s e n ç a . 1 9 8 9 . pp. 6 3 - 6 7 .
42
44
C f . Ivo d e C a s l r o . « S o b r e a d a t a d a i n t r o d u ç ã o n a P e n í n s u l a I b é r i c a d o
c i c l o a r t u r i a n o d a P o s t - V u l g a t a » , in Boletim de Filologia,
X X V I I I . 1 9 8 3 , pp. 8 1 - 9 3 :
Id., « I n t r o d u ç ã o » a J o s e p h - M a r i a Piei e I r e n e F r e i r e N u n e s ( e d . ) , A Demanda
do
Santo Graal. L i s b o a , I m p r e n s a N a c i o n a l - C a s a d a M o e d a , 1 9 8 8 : A n t ó n i o J o s é S a r a i v a , O Crepúsculo
da Idade Média em Portugal,
Lisboa, Gradiva, 1990, pp. 58- 7 3 ; l d . e Ó s c a r L o p e s . História
da Literatura
Portuguesa.
14", P o r t o , P o r t o E d i t o r a , 1 9 8 7 , p p . 9 4 - 9 7 ; A n t ó n i o R e s e n d e d e O l i v e i r a . «A c u l t u r a d a s C o r t e s » , in Nova História
de Portugal.
Hl. pp. 6 8 1 - 6 8 3 .
s u b l i m a d a d a s r e l a ç õ e s e n t r e a g u e r r a ao i n f i e l e o a u x í l i o d i v i n o . As
motivações que iornam o confronto necessário, e igualmente necessária a p r ó p r i a e x i s t ê n c i a da n o b r e z a c r i s t ã , m a n t ê m - s e v i s í v e i s , m a s
há um f e n ó m e n o n o v o n e s t e s p a n f l e t o s de c l a s s e tão f o r t e m e n t e m a r c a d o s pela h i s t ó r i a da l i n h a g e m , p e l a c o n t i n u i d a d e da f a m í l i a , pela
p r e o c u p a ç ã o de 1er nos sinais d o s t e m p o s um d e s t i n o c o l e c t i v o . F e n ó m e n o n o v o a q u e M. D. C h e n u deu o n o m e de « d e s p e r t a r da c o n s c i ê n cia» 4 \ r e l a c i o n a n d o , num c o n t e x t o d i f e r e n t e , m a s que tem n o t á v e i s
p o n t o s de c o n t a c t o c o m a e v o l u ç ã o q u e t e m o s v i n d o a d e s c r e v e r , o
n a s c i m e n t o de um c e r t o i n d i v i d u a l i s m o moral e r e l i g i o s o c o m a obrig a t o r i e d a d e da c o n f i s s ã o a u r i c u l a r , d e c r e t a d a p e l o IV C o n c í l i o de
L a t r ã o em 1215.
R e p a r e - s e no m o d o c o m o «os Portugueses
andavam per a lide
ferindo e derribando,
e diziam uus contra outros: 'Senhores,
este é o
nosso dia, em que havemos de escrarecer,
e este é o dia da vitoria e
honra dos fidalgos.
Este é o dia da salvaçom
de nossas molheres
e
filhos e daqueles que de nós defenderem.
E este é o dia em que havemos semelhar nossos avoos, que ganharom a Espanha. Este é o dia
da salvaçom das nossas almas: nom se perca hoje per nossa
fra-queza.
Feiramo-los
de toda crueldade.
'».
A p a r e n t e m e n t e , j á o u v i m o s toda esta r e t ó r i c a e m q u a l q u e r lado.
«Vitoria e honra dos fidalgos»'? A g l ó r i a . «Salvaçom
das nossas
molheres e filhos»?
A l i n h a g e m . «Semelhar
nossos avoos, que
guanharom a Espanha»?
A R e c o n q u i s t a . « S a l v a ç o m das nossas almas»? Isto é q u e é novo. A s a l v a ç ã o por m e i o da m o r t e em c o m b a l e n u n c a
h a v i a s i d o t ã o c l a r a m e n t e a f i r m a d a . E n t r e o u t r a s c o i s a s , p o r q u e até
aí se vira a g u e r r a c o m o ela era: um i n s t r u m e n t o p o l í t i c o q u e pont u a v a as r e l a ç õ e s q u o t i d i a n a s e n t r e c r i s t ã o s , e n ã o só (ou m a i s até d o
q u e ) e n t r e e s t e s e os i n i m i g o s da f é .
S ó um g r u p o social v o c a c i o n a d o em e x c l u s i v o ( t e o r i c a m e n t e , p e l o
m e n o s ...) para a C r u z a d a , para a luta sem t r é g u a s ao i n f i e l , poderia p r o c u r a r na g u e r r a a s a l v a ç ã o da a l m a . O r e l a t o da b a t a l h a d o
S a l a d o t e s t e m u n h a o m o m e n t o em q u e este e s p í r i t o a t i n g e o p r i n c i pal m e i o de e x p r e s s ã o i d e o l ó g i c a da a r i s t o c r a c i a p o r t u g u e s a .
A h i s t o r i o g r a f i a q u e t r i u n f a c o m a r e v o l u ç ã o de 1 3 8 3 - 1 3 8 5 ,
n o m e a d a m e n t e a Crónica do Condestabre
e a Crónica de D. João / ,
45
L'Éveil
de la Conscience
tut D ' E t u d e s M é d i é v a l e s , 1 9 6 9 .
dans
la Civilisation
Médiévale,
Montréal, Insti-
148
PEDRO
Picon
O
registará o m o d e l o de c a v a l e i r o cristão, d o qual o e x e m p l o mais acab a d o será j u s t a m e n t e N u n ' Á l v a r e s , f i l h o de Á l v a r o G o n ç a l v e s Pereira. E m u l o de Galaaz no valor militar e na c a s t i d a d e , o Santo C o n destável c o n s e g u e a vitória m i r a c u l o s a de A l j u b a r r o t a contra o castelhano S a n t i a g o e por i n t e r m é d i o da mais intimista de todas as almas: a o r a ç ã o privada. Galaaz c o n t r a S a n t i a g o , a c a s t i d a d e c o m o valor, a d e v o ç ã o individual ... D e c i d i d a m e n t e , os t e m p o s e s t a v a m a
mudar.
Download

sacralidade e legitimação política nos livros de linhagens