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Processo nº 1/2004
Acórdão de: 02-12-2010
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
AA e mulher BB, intentaram, a 5 de Janeiro de 2004, a presente acção declarativa, com
processo ordinário, contra
- CC; e
- DD, pedindo que:
- se declare que são donos do prédio misto de que faz parte o prédio urbano
correspondente à sua habitação;
- se reconheça que a obra de colocação e aplicação do soalho foi da responsabilidade dos
réus e que, ao nível do 1º piso, esse soalho padece de vícios ou defeitos que, em concreto,
desvalorizam e impedem a sua normal utilização para o fim a que é destinado, mormente
por via de se encontrar podre devido às infiltrações de humidade a que foi sujeito;
- se reconheça que a habitação mandada construir deveria estar isenta de vícios ou defeitos
que a desvalorizassem, diminuíssem ou impedissem os fins a que é destinada, tendo sido
mandada construir nesse pressuposto;
- sejam os réus solidariamente condenados a procederem à execução de todas as obras
que se venham a mostrar necessárias para a aplicação de um soalho novo em substituição
do actual, ao nível do 1º piso, repondo, a final, os interiores no estado em que estariam caso
tais vícios não tivessem existido, fixando-se um prazo para execução de tais obras por parte
dos réus;
- sejam os réus solidariamente condenados a indemnizarem os autores pelos danos morais
por estes sofridos, no montante de 2.000€;
- e igualmente condenados, solidariamente, a indemnizarem-nos por todos os prejuízos que
os defeitos já lhes causaram e ainda lhes venham a causar, bem como por aqueles que lhes
venham a causar em virtude da execução das referidas obras, a apurar em liquidação
posterior.
Em fundamento desta sua pretensão alegam, em síntese, ter contratado com o réu DD a
concepção da obra de construção de uma moradia e sua direcção técnica. Só que o soalho
de madeira colocado pelo réu CC no 1º piso da casa se encontra apodrecido, sem que o
director técnico da obra e o carpinteiro tenham resolvido esse problema, apesar de lhe
terem denunciado a anomalia e o réu DD a ter reconhecido. Alegam ainda que esta situação
lhes provocou sofrimento psicológico, além de danos de natureza patrimonial.
Contestou o réu CC começando por invocar a sua ilegitimidade para a acção e alegando
ainda que se limitou a assentar o soalho e que a deficiência apresentada se deve à má
preparação da laje para o receber, facto a que é alheio.
Em sua contestação, o réu DD, por sua vez, invoca a sua ilegitimidade, bem como a
caducidade do direito dos autores, alegando, por fim, que o co-réu CC não cumpriu as
directivas que lhe transmitiu quanto ao modo de preparação da caixa de ar para
recebimento do soalho, tendo-o advertido dessa deficiência, deficiência que ele recusou
suprir. E assim conclui pela exclusiva responsabilidade deste co-réu pelos defeitos do
soalho.
Replicaram os autores pronunciando-se pela improcedência das excepções invocadas pelos
réus.
E requereram a intervenção principal de CONSTRUÇÕES EE, LDª, com o fundamento de
ser responsável pelos defeitos de construção da obra, concretamente da laje em que
assentou o soalho.
Admitida a intervenção, contestou a chamada invocando a caducidade do direito dos
autores e alegando ser estranha à execução dos trabalhos de carpintaria relacionados com
a colocação do soalho, não abrangendo o contrato de empreitada que celebrou com os
autores esses trabalhos. Conclui não poder ser responsabilizada pelos defeitos do soalho
aplicado pelo réu CC.
Replicaram os autores para defenderem a tempestividade do exercício do seu direito e
alegarem que a laje apresentava deficiências que também contribuíram para o
humedecimento do soalho.
No despacho saneador foram julgadas improcedentes as arguidas excepções de
ilegitimidade e relegou-se para final o conhecimento da invocada excepção de caducidade,
após o que se procedeu à selecção da matéria de facto, com fixação dos factos tidos por
assentes e dos controvertidos.
Prosseguiu o processo para julgamento e na sentença, subsequentemente proferida, foi
julgada improcedente a invocada excepção de caducidade e a acção parcialmente
procedente e a ré Construções EE condenada:
- a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do aludido prédio misto;
- a reconhecer que a habitação por si edificada apresenta, ao nível do soalho do primeiro
piso, defeitos que a desvalorizam e impedem a sua utilização para o fim a que se destina,
por se encontrar podre em consequência das infiltrações de humidade que sofreu;
- a executar, no prazo de sessenta dias, todas as obras aludidas nas alínea j) e aj) dos
factos provados, tidas por necessárias para reposição do soalho e dos interiores da casa no
estado em que estariam caso os vícios não tivessem ocorrido;
- a pagar aos autores a quantia de 1.500 €, a título de danos não patrimoniais sofridos em
consequência dos vícios de execução da obra.
E julgada improcedente quanto ao demais peticionado.
Inconformada com o assim decidido apelou a ré Construções EE, e com sucesso, porquanto
o Tribunal da Relação do Porto, na procedência da apelação, absolveu-a de todos os
pedidos formulados.
Irresignados com o teor do acórdão é a vez de recorrem agora os autores de revista para o
Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela sua revogação.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir
II. Âmbito do recurso
A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo dos
recorrentes radica, em síntese, no seguinte:
1- Entre os recorrentes e a recorrida foi celebrado um contrato de empreitada, incumbindo
ao dono da obra apenas fazer a prova do defeito para que o empreiteiro fique onerado, se
quiser afastar a sua responsabilidade, com a demonstração de que, afinal, o defeito não lhe
é imputável.
2- A matéria de facto dado como provada foi fixada pelo Tribunal de 1ª instância e não foi
alterada, resultando desses factos que o apodrecimento do soalho se deveu a uma
deficiente execução de actos inerentes à arte de pedreiro.
3- Mesmo que se considerasse que os defeitos não são imputáveis à arte de pedreiro – o
que não foi o caso – a aqui recorrida sempre teria de provar que o defeito não padece de
culpa sua por violação das legis artis, o que também não se verificou.
4- À recorrida, enquanto empreiteira, exigia-se a preparação do solo com os requisitos
exigíveis em termos de impermeabilização de modo a evitar infiltrações e,
consequentemente, apodrecimento do soalho.
5- Os factos em que o Tribunal da Relação suporta a sua decisão de revogação da decisão
de 1ª instância são factos novos que não constam da matéria provada e, como tal, sob pena
de violação dos art°s. 3°, n°3, 3°- A, 264°, 265°, 659°, n° 3 e 664° todos do CPC, não podem
ser considerados.
6- O Tribunal da Relação refere no acórdão que a porosidade era uma “ligeira porosidade” e
que “na certeza de que o nível de porosidade a humidades que se veio o verificar na laje é
perfeitamente compatível com soluções de pavimentos ordinárias, correntes, salubres e
cómodas”, bem como “não é alegado por quem quer que seja que a chamada sabia à
partida, ou em tempo útil anterior à preparação do solo subjacente e à edificação da laje do
piso de rés-do-chão, que sobre tal laje iria assentar soalho em madeira”.
7- Porém, estes factos não são alegados pelos partes, nem se encontram provados pelo
que não poderia o Tribunal ter-se pronunciado socorrendo-se de tais factos que viciaram a
decisão.
8- Houve um erro de interpretação e determinação das normas aplicáveis e erro na
apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, ofendendo
expressamente os art°s 799°, 1208º 1221° e 1223° do CC, bem como os art°s 3°, n° 3, 3°-A,
264°, 265°, 515º, 659°, n° 3 e 664° do CPC.
B- Face ao teor das conclusões formuladas, delimitativas do âmbito do recurso, são duas as
questões controvertidas que se colocam e que se reconduzem, no essencial:
- a ponderação indevida de matéria de facto;
- se dos factos provados decorre a responsabilidade da recorrida pelos defeitos da obra.
III. Fundamentação
A- Os factos
Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:
1. Existe um prédio misto sito no lugar de ............., freguesia de Santa Maria de ..........,
concelho de P..., do qual faz parte um prédio urbano, omisso na matriz e descrito na
Conservatória de Registo Predial de P... sob o n.º 000000000, composto por casa de
habitação de dois pavimentos, com área coberta de 919 m2, registado a favor dos autores.
2. Os autores negociaram com o réu DD os seus serviços técnicos de arquitectura, incluindo
a concepção da obra e sua direcção técnica, por forma a terem uma habitação limpa,
asseada, agradável e isenta de vícios que a desvalorizassem e que diminuíssem a
realização do seu fim.
3. Naquele prédio urbano, o réu CC colocou, nos dois pisos da habitação, um soalho
macheado maciço em madeira de Pau Marfim.
4. De fls. 52 consta documento correspondente a carta datada e remetida em 24/2/2003
pelo autor ao réu DD de onde consta, designadamente, que o soalho da referida habitação,
nomeadamente no rés-do-chão, se encontra em estado deplorável.
5. Os 1º e 2° réus constataram a existência destes vícios, mas não procederam à sua
eliminação, nem substituíram o soalho podre por outro igual e da mesma qualidade.
6. Do fax junto a fls. 47, remetido pelo réu DD ao autor, em 10 de Março de 2003, consta,
além do mais, o seguinte: “Para esclarecer V. Exª posso afirmar que sempre, e nas funções
de Director Técnico da execução da empreitada de construção da habitação do SC, dei
instruções precisas relativamente ao modo de aplicação do soalho em questão, tendo
alertado o carpinteiro para a inexactidão do trabalho efectuado aquando da construção da
referida habitação. Posteriormente, e aquando do aparecimento das primeiras
manifestações de humidade no soalho na zona da sala, tendo-se verificado então que,
contrariamente às indicações dadas, a parte correspondente à caixa do ar que deveria estar
completamente preenchida com aglomerado negro de cortiça só parcialmente se encontrava
preenchido, possibilitando assim e devido à diferenciação térmica que se produz no inverno
com o aquecimento central em acção, a formação de películas de água de ressoamento na
superfície inferior do soalho, sendo esta absorvida pelo soalho e resultando na possibilidade
de apodrecimento do mesmo, conforme se veio mais tarde a verificar (…) O carpinteiro
assumiu a reposição parcial do soalho, teimando no entanto que o procedimento adoptado
não seria o mais correcto. Apontei por várias vezes as razões de facto da aplicação correcta
desta tecnologia, tendo encontrado sempre alguma relutância na aplicação apontada por
parte do carpinteiro.
7. Após a conclusão da obra, o réu CC repôs parcialmente o soalho por uma outra vez.
8. Em 25 de Março de 2003, através do fax junto aos autos a fls. 24/26, o 2º réu enviou ao
mandatário dos autores um parecer técnico que concluiu que o isolamento do espaço de ar
– ou seja a caixa de ar – referente à caixa de soalho, feito com preenchimento de granulado
de cortiça tem como objectivo a estabilidade térmica e a eliminação de ressonâncias, não
possuindo assim as características de impermeabilidade.
9. A fls. 57/59 encontra-se junto um documento emitido pela sociedade “S...- Decorações e
Revestimentos, Lda., em 3/12/2003, do qual consta, designadamente, o seguinte:
“Fornecimento e aplicação de soalho macheado maciço em madeira de Pau de Marfim
Imperial, com a espessura de 22 mm.
1. Aplicação de massa betuminosa em 2 camadas, para isolamento capilar de
condensações, funcionamento como a 1ª barreira de vapor. A aplicação será feita sobre as
mestras de cimento existentes e toda a restante laje, onde se encontra aplicado o soalho de
madeira.
2. Aplicação de manta de polietileno em manga dupla. Esta aplicação é feita em duas
camadas cruzadas e coladas entre si, nas sucessivas camadas. Esta operação será 2ª
barreira de vapor e irá canalizar as condensações e humidade existente para as paredes
exteriores.
3. Abertura de furos de diâmetro a determinar, nas paredes exteriores com caixa-de-ar de
forma a permitir uma maior evaporação e mais rápida, pela acção do movimento do ar, que
circula na caixa-de-ar.
4. Aplicação de regranulado negro de cortiça tratado, em toda a área a assoalhar, para
isolamento térmico e acústico.
5. Aplicação de soalho macheado maciço em madeira de Pau Marfim Imperial, com
pregagem ao barrotamento existente.
6. Raspagem, lixagem e envernizamento de soalho macheado, com aplicação de três
demãos de verniz extra-duro, vitrificado da marca CIN, refª Durocin Cera dois
componentes”.
10. Os autores contrataram com a chamada Construções EE, Lda., com sede em F..., P...,
parte da execução da obra do prédio aludido em 1, a qual se iniciou em Maio de 1998 e foi
entregue e aceite em Outubro de 2000.
11. A fls. 181 encontra-se uma carta datada de 24/2/2003, remetida pelo advogado dos
autores à chamada Construções EE, Lda., de onde consta como assunto “reclamação de
danos e interpelação.
12. A fls. 183 encontra-se uma carta remetida em 6/3/2003 pela chamada Construções EE,
Ldª, ao advogado dos autores, de onde consta, designadamente, que declinava “qualquer
responsabilidade pelos serviços de carpintaria incluindo o fornecimento, preparação,
colocação e execução do soalho, uma vez que estes serviços não fazem parte do contrato
entre o Sr. AA e esta firma” .
13. A presente acção deu entrada em 5 de Janeiro de 2004.
14. Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio aludido em 1.
15. O soalho do 1º andar do prédio referido em 1 encontra-se apodrecido numa área
aproximada de 130 m2.
16. O apodrecimento do soalho também se ficou a dever à ausência de isolamento na laje e
ao facto de a madeira estar desprotegida à acção de humidades.
17. Para eliminar os vícios aludidos em 15 é também necessário retirar o soalho podre e
colocar um novo, de acordo com o expresso em 9, com uma espessura de 22 mm.
18. Por causa dos vícios aludidos em 15 os autores vêem-se constrangidos em convidar
amigos e familiares para sua casa, atenta a falta de sossego e conforto decorrentes das
humidades por eles causadas.
19. O estado do soalho é perigoso para a circulação de pessoas em geral e do filho dos
autores de 5 anos.
20. E os autores e o seu filho sentem-se envergonhados e retraídos em receber em sua
casa amigos e familiares, porque sentem que não têm uma casa agradável e sentem-se
tristes, envergonhados, angustiados e revoltados.
21. O réu CC procedeu apenas à encomenda do soalho e ao seu assentamento.
22. Quando executou estes trabalhos, o réu CC estava convicto de que poderia assentar o
soalho porque o grau de humidade apresentado no chão assim o permitia.
23. O réu CC constatou mais tarde que inexistia preparação da obra para receber o soalho.
24. Os defeitos referidos em 15 ficaram a dever-se também à falta de drenagem do solo e
da sua impermeabilização.
25. Aquando da substituição parcial do soalho a que se refere em 7, foram feitos
encanamentos para drenagem em redor do alpendre da casa, existindo, nessa data,
humidade no 1º piso, num vestíbulo em comunicação directa com o terraço exterior.
26. O réu CC colocou uma camada de granulado de cortiça no espaço entre as ripas do
soalho da caixa-de-ar, não a preenchendo completamente.
27. Isso foi verificado quando se procedeu ao levantamento do piso, que se encontrava
enegrecido e apodrecido, após a entrega e do aceite da obra pelos autores, tendo o réu CC
procedido à substituição parcial do pavimento do soalho a que se refere em 7.
28. Apesar das instruções que lhe foram dadas nessa altura pelo réu DD para que
preenchesse toda a restante caixa-de-ar com o referido granulado de cortiça, o réu CC não
o fez.
29. Parte do soalho enegreceu e apodreceu.
30. A aplicação de granulado de cortiça destina-se a obter estabilidade térmica do soalho e
a eliminar ressonâncias e não a impermeabilizar a caixa-de-ar.
31. A impermeabilização do soalho é assegurada pela execução de uma placa de
pavimento, separada do assentamento no solo por uma caixa-de-ar ventilada, que é
reforçada com a utilização de hidrófugos que impossibilita a migração por capilaridade da
humidade para o interior da habitação.
32. O soalho referido em 3 foi assente sobre laje de pavimento de betão, sobrelevada em
relação ao terreno subjacente, com uma segunda câmara-de-ar entre esse terreno e a laje,
na qual existem aberturas nas paredes limites que comunicam com o exterior.
33. A câmara-de-ar existente entre o soalho e a laje do pavimento levou apenas uma
camada de granulado de cortiça, sem ter sido completamente preenchida com aquele
granulado.
34. Os autores denunciaram os defeitos aludidos em 15 à chamada Construções EE pela
carta aludida em 11, a que esta respondeu através da carta referida em 12.
35. O contrato a que alude em 10, realizado entre os autores e a chamada Construções EE,
Lda., não inclui a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do
soalho.
36. Os autores contrataram com o réu CC a colocação por sua conta e risco de todo o
soalho dos dois pavimentos da habitação do prédio identificado em 1.
B- O direito
1. ponderação da matéria de facto
Embora o juiz não esteja sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação
e aplicação das normas jurídicas, já só pode, em regra, socorrer-se dos factos alegados
pelas partes (art.664º C.Pr.Civil), sendo esta uma emanação do princípio dispositivo que
domina a nossa lei processual.
Equivale isto por dizer que o juiz é livre na aplicação das regras de direito, estando já
limitado, quanto a essa aplicação, aos factos que as partes hajam articulado no processo.
Para além disso, é permitido ao julgador extrair ilações de um facto conhecido para firmar
um facto desconhecido (art. 349º C.Civil). Estas ilações, presunções judiciais, mais não são
que meios lógicos firmados em regras da experiência, traduzindo um juízo de facto.
As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da
matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos
comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos
decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas.
Mas essas deduções hão-de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes.
Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja,
de uma realidade processualmente não adquirida. Por isso mesmo exige-se, como se refere
no ac. STJ, de 2004/03/25 (1), que a base da presunção esteja provada, que os factos dela
integradores sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as
provas podem proporcionar. Trata-se, evidentemente, de uma exigência garantística
elementar, sem a qual a actividade jurisdicional correria o risco de se volver em puro
arbítrio.
Nessas circunstâncias a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no citado art.
349º e, como tal, é passível de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça na conformidade
do estatuído no nº 2 do art. 722º C.Pr.Civil.
O que vem verdadeiramente questionado pelos recorrentes é precisamente a indevida
ilação factual de que a Relação lançou mão, servindo-se de factos como base dessa ilação
que ou não foram alegados ou não se mostravam provados.
Dos factos dados como assentes, com relevância para aquilatar da responsabilidade da
sociedade recorrida nos defeitos da obra, temos expressamente que:
15. O soalho do 1º andar do prédio referido em 1 encontra-se apodrecido numa área
aproximada de 130 m2.
16. O apodrecimento do soalho também se ficou a dever à ausência de isolamento na laje e
ao facto de a madeira estar desprotegida à acção de humidades.
21. O réu CC procedeu apenas à encomenda do soalho e ao seu assentamento.
24. Os defeitos referidos em 15 ficaram a dever-se também à falta de drenagem do solo e
da sua impermeabilização.
35. O contrato … realizado entre os autores e a chamada Construções EE, Lda., não inclui
a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do soalho.
No acórdão recorrido assinala-se que a porosidade da laje a fenómenos de humidade
ascendente não chega a ser defeito no contexto que resulta provado, sendo a porosidade
em causa compatível com muitas, muitíssimas soluções construtivas de acabamento do
piso que facultariam aos autores o uso de uma habitação limpa, asseada, agradável e isenta
de vícios que a desvalorizassem ou que diminuíssem a realização do seu fim.
Para seguidamente afirmar que a porosidade da laje de rés-do-chão, mesmo nos períodos
do ano em que o nível freático no solo térreo subjacente é elevado, conciliada que fosse
com soluções construtivas no acabamento do pavimento, correntes e perfeitamente
ordinárias, facultaria uma utilização salubre e confortável das divisões do rés-do-chão.
E avançando conclui que a ligeira porosidade da laje à ascensão de vapor e à infiltração de
humidade por osmose não infringe requisitos específicos de conformidade da obra com o
projecto e não passa de inconveniente que não chega a ser defeito, mantendo o valor da
obra na especialidade de pedreiro e trolha e facultando as utilidades ordinárias, dentro de
fase de semi-acabamento, que a obra de pedreiro e trolha normalmente têm.
Com base nesta dedução factual afasta a Relação a responsabilidade da sociedade
recorrida pelos problemas de humidade que afectam o soalho do rés-do-chão.
Porém, esta ilação extraída pela Relação conflitua frontalmente com os factos dados como
assentes.
Na verdade, está expressamente provado que o apodrecimento do soalho também se ficou
a dever à ausência de isolamento na laje e ao facto de a madeira estar desprotegida à
acção de humidades (nº 16 da matéria de facto assente) e que o apodrecimento do soalho
se ficou a dever também à falta de drenagem do solo e da sua impermeabilização (nº 24).
Daqui decorre linearmente que a falta de drenagem do solo e de impermeabilização da laje
do rés-do-chão da habitação concorreram para o aparecimento de humidades e,
consequentemente, para o apodrecimento do soalho.
E carece de suporte factual, quer por não se estribar em factos provados quer por nem
sequer ter sido alegado no processo, a afirmação de que uma boa técnica de aplicação do
soalho afastaria esta deficiente impermeabilização da laje, ou seja, a existência de
humidades a nível do soalho.
Aliás, questionando-se no ponto controvertido nº 2 da base instrutória se à eliminação do
apodrecimento do soalho bastava que ele fosse colocado de acordo com as regras
apropriadas a este tipo de soalho, respondeu-se restritivamente dizendo-se que para
eliminar esses vícios é também necessário retirar o soalho podre e colocar um novo de
acordo com aquelas técnicas.
A ilação extraída pela Relação, não só não se apresenta como o desenvolvimento lógico e
natural dos factos assentes como, por outro lado, não se suporta em factos que tenham sido
dados como provados ou sequer alegados.
Logo, os factos presumidos e, como tal, integrantes da matéria de facto não se podem
considerar provados e, enquanto tal, fundamentarem a solução jurídica a alcançar.
2. responsabilidade da recorrida pelos defeitos da obra
De acordo com a factualidade apurada, os autores contrataram com a ora recorrida
Construções EE parte da execução da obra do seu prédio de habitação. Porque o rés-dochão apresentava infiltrações de humidades, foi a sua reparação reclamada pelos autores,
tendo, porém, a sociedade declinado qualquer
responsabilidade nessas deficiências
Entre autores e sociedade Construções EE foi celebrado um contrato de empreitada, tal
como decorre do estatuído no art.1207º C.Civil.
O principal direito do dono da obra é que ela seja realizada, no prazo estabelecido, segundo
os moldes convencionados -art. 1208º C.Civil e, concomitantemente, o principal dever do
empreiteiro é a realização da obra, em conformidade com o acordado e sem vícios.
Se o empreiteiro deixa de efectuar a sua prestação em termos adequados, dá-se o
inadimplemento da obrigação com a sua consequente responsabilidade. O não
cumprimento ou o cumprimento defeituoso das obrigações a que o empreiteiro está adstrito,
as mencionadas no art. 1208º, dá lugar a várias sanções: pode ser compelido à eliminação
dos defeitos - art. 1221º-, ou ficar sujeito à redução do preço ou à resolução do contrato –
art. 1222º, e/ou a indemnização pelos danos causados – arts. 1223º e 1225º.
Da factualidade assente decorre que o solo sob a placa do rés-do-chão não foi drenado
nem impermeabilizado, assim como a laje não foi isolada. Tudo isso contribuiu e continua a
contribuir para o apodrecimento do soalho colocado a nível desse piso.
É um facto notório que qualquer construção, e principalmente uma construção destinada a
habitação, deve ser feita de modo a proporcionar o devido conforto aos seus ocupantes,
desde logo sem infiltrações de humidades. Se uma habitação é permeável a humidades não
assegura o bem-estar e comodidade exigíveis, tornando-a desconfortável e sem a qualidade
de utilização que lhe tem de estar associada.
Esta deficiência na estrutura da obra, acarretando uma sua utilização menos satisfatória,
diminui a sua aptidão enquanto habitação.
Vale isto por dizer que esta deficiência integra indubitavelmente um defeito da obra
construída pela sociedade recorrida, que não usou presuntivamente (nº 1 do art. 799º
C.Civil) das correctas técnicas de construção para obstar a estas infiltrações.
Ora, segundo o disposto no nº 1 do art. 1221º C.Civil assiste ao dono da obra o direito
preferencial à eliminação deste defeito, o que já reclamou da recorrida, mas que ela se
recusou a satisfazer, apesar de a tal estar obrigada.
Assente que a obra foi executada com defeitos, impõe-se seguidamente determinar a
extensão dos defeitos da responsabilidade da recorrida, sabendo-se que a falta de
drenagem e de impermeabilização do solo, bem como o não isolamento da placa apenas
foram uma das causas do apodrecimento do soalho, a par da incorrecta preparação da
caixa-de-ar para aplicação desse mesmo soalho e que a prestação da recorrida não incluía
a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do soalho.
Estando comprovado que, no âmbito do contrato de empreitada celebrado com a recorrida,
não se incluíam os trabalhos de carpintaria e de aplicação do soalho e que a deficiente
preparação da caixa-de-ar para aplicação do soalho também contribuiu para o
apodrecimento deste, é evidente que a recorrida não pode ser responsabilizada por esta
deficiência e sua consequente reparação, já que de obra autónoma e distinta da por si
contratada e realizada se trata.
A deficiência da obra realizada pela recorrida, com repercussões no apodrecimento do
soalho, é a que se prende apenas e tão-somente com a falta ou indevida drenagem e
impermeabilização do solo e isolamento da laje do rés-do-chão. Este o defeito que a obra
feita pela recorrida apresentava e que há que eliminar. E sendo estas obras necessárias, e a
efectuar previamente, à aplicação de um novo soalho em substituição do actual, cabem
perfeitamente no pedido formulado pelos recorrentes, em sua petição, afigurando-se ainda
aceitável o prazo de sessenta dias fixado na sentença da 1ª instância para a sua realização.
Assistia ainda aos autores o direito a serem ressarcidos dos danos que esta actuação da
recorrida lhes possa ter causado -art.1223º C.Civil.
Este ressarcimento, e a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, foilhes arbitrado na sentença da 1ª instância, mas afastada no acórdão recorrido.
Ainda que a absolvição deste pedido tenha sido uma decorrência do entendimento de que a
recorrida não executou a obra com defeitos, o certo é que os autores recorrentes, em suas
conclusões de recurso, não atacam este segmento absolutório do acórdão.
Por isso, tem de se concluir que deixaram cair esta sua pretensão, não se podendo agora já
apreciá-la e, consequentemente, ressarci-los desses eventuais danos.
IV. Decisão
Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se, na parcial procedência da revista, em
condenar a recorrente Construções EE, Ldª:
- a reconhecer que a habitação por si edificada apresenta, ao nível do soalho do primeiro
piso, defeitos que a desvalorizam e impedem a sua utilização para o fim a que se destina,
por se encontrar podre em consequência das infiltrações de humidade que sofreu;
- a executar, no prazo de sessenta dias, as obras de drenagem e impermeabilização do solo
e isolamento da laje do rés-do-chão, obras necessárias e prévias à reposição do soalho e
dos interiores da casa no estado em que estariam caso os vícios não tivessem ocorrido;
- manter, no mais, o decidido no acórdão recorrido;
- condenar nas custas recorrentes e recorrida, na proporção de metade.
Lisboa, 02 de Dezembro de 2010
Alberto Sobrinho (Relato)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lopes do Rego
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(1) in RLJ, 135º, pág. 113
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Acórdão do STJ - Base de Dados Jurídicos da DATAJURIS