Portugal - Aborto clandestino diminuiu com nova lei
09/02/2008 - AO Online
As mulheres portuguesas ainda recorrem ao aborto clandestino, muitas vezes por deixarem ultrapassar
o prazo legal, mas a procura diminuiu "drasticamente", segundo parteiras que se dedicam a esta prática
e a Associação para o Planeamento Familiar (APF).
Um ano após o referendo sobre a despenalização do aborto até às 10 semanas a pedido da mulher, em
que o "sim" ganhou com quase 60 por cento dos votos, e seis meses depois da entrada em vigor da lei,
cerca de 6.000 mulheres já fizeram Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) legalmente, em hospitais
públicos e privados.
Só na Clínica dos Arcos, um dos três estabelecimentos privados oficialmente reconhecidos para praticar
a IVG, foram realizados 1.832 abortos, a maioria dos quais a mulheres enviadas pelos dez hospitais
públicos com que a unidade mantém acordos, disse à Lusa a directora da unidade, Yolanda Hernandéz.
Para o director executivo da APF, Duarte Vilar, houve uma "aplicação exemplar e muito rápida da lei",
com "um grande envolvimento dos hospitais na sua aplicação em todos os pontos do país", o que
contribuiu para a diminuição do aborto ilegal.
"Não esperávamos que a aplicação da lei acabasse de vez com as situações de clandestinidade, mas fez
reduzir drasticamente o recurso ao aborto clandestino", disse à agência Lusa Duarte Vilar.
O responsável salientou que antes da entrada em vigor da nova lei se realizavam cerca de 1.000 IVG
legais por ano em todo o país. Actualmente, fazem-se cerca de 1.000 por mês.
"Os abortos não aumentaram, o que aumentou de facto foram as interrupções voluntárias de gravidez
legais", afirmou, sublinhando: "obviamente que há aqui uma diminuição bastante significativa do aborto
clandestino".
Esta opinião é sustentada por uma enfermeira parteira, que há vários anos trabalha na clandestinidade:
"É muito raro hoje em dia quem procura abortar ilegalmente", assegurou.
Mesmo os casos em que as mulheres ultrapassaram as dez semanas de gestação diminuíram, segundo a
enfermeira, que tem uma explicação para o fenómeno.
"Muitos desses casos aconteciam porque as mulheres não tinham recursos financeiros e perdiam algum
tempo até conseguir reunir o dinheiro para fazer o aborto", explicou.
Há 36 anos a fazer interrupções de gravidez, Maria, nome fictício, disse à Lusa que "o panorama se
alterou" com a nova lei, mas também porque as mulheres recorrem ao "Cytotec", comprimido indicado
para problemas de estômago, mas que tem efeitos abortivos quando tomado em determinadas doses.
"Estes comprimidos dão dores horríveis e hemorragias", sublinhou a enfermeira, contando que muitas
mulheres lhe batem à porta de madrugada, em "pânico" com o que lhes está a acontecer.
"Deviam fazer isto sob orientação dos médicos", defendeu a parteira, que já acompanhou muitas
mulheres aos hospitais e diz que está na hora de deixar a profissão.
Yolanda Hernandéz confirmou à Lusa que chegam às vezes à Clínica dos Arcos mulheres com um aborto
já em curso devido à toma de medicamentos com capacidades abortivas e alertou para os riscos deste
método.
Explicou que muitas vezes a mulher tem hemorragias e não aborta e quando dá conta que continua
grávida já passou as dez semanas, com eventuais complicações para a criança.
As parteiras, a APF e a directora da Clínica dos Arcos apontam várias razões para algumas mulheres
ainda recorreram ao aborto clandestino, como terem ultrapassado o prazo legal de gestação, a falta de
informação ou mesmo a vergonha.
Yolanda Hernandéz considera que "ainda há muito aborto clandestino por falta de informação ou por as
mulheres terem ultrapassado as dez semanas de gravidez".
Segundo a responsável, um quinto das mulheres que procura a Clínica dos Arcos já ultrapassou o prazo
estipulado por lei.
Por outro lado, há mulheres que por desconhecimento ainda vão a Espanha abortar e outras que optam
por fazê-lo na clandestinidade porque não querem esperar os três dias de reflexão a que a legislação
obriga.
Duarte Vilar lembrou um estudo da APF divulgado em 2006 que estimava 17.000 abortos ilegais/ano.
"As estimativas apontam para que sejam feitos agora cerca de 12.000 abortos legais por ano, o que se
aproxima da projecção feita pela associação", sublinhou.
Os cerca de 5.000 que ficam de fora podem corresponder a mulheres que recorrem a uma prática ilegal
porque deixaram passar as 10 semanas de gestação ou por utilizarem o Cytotec, justificou, estimando
que "o aborto clandestino se situe mais nas classes sociais mais baixas".
A enfermeira Maria disse que há mulheres que ainda procuram os seus serviços por não quererem que
os maridos saibam o que vão fazer, apesar de a lei estipular que é uma decisão que apenas respeita à
mulher. Outro motivo é a vergonha de ir aos hospitais.
"Há ainda muita gente que me procura depois das dez semanas, mas eu não faço. Aconselho-as a irem a
Badajoz", sublinhou.
Yolanda Hernandéz considera que "não tem sentido continuar a haver aborto clandestino" e defende
que devia haver "mais informação para a mulher conhecer os seus direitos e fazer a IVG em condições
dignas".
Seis meses após a aplicação da lei, parteiras, associação e responsável da clínica são unânimes em
afirmar que foi dado um passo em frente na defesa da saúde e dignidade da mulher.
Apesar de admitir que ganhava dinheiro a fazer abortos clandestinos, Maria diz que sempre lutou pela
legalização da IVG.
"Foram muitos anos de obscurantismo e sofrimento, havia necessidade de mudar isso e de as mulheres
poderem interromper a gravidez em locais com condições e os equipamentos necessários", afirmou a
enfermeira que diz ter sido muito procurada por mulheres de poucas posses.
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