Repetição e a clínica
Aríete Garcia Lopes
Vera Vinheiro
pulsão, um dois quatro conceitos fundamentais colocados por Lacan, desenha
o horizonte do discurso psicanalítico. Situada aquém do inconsciente e do
recalque, ela escapa a trama da linguagem.
O objetivo da pulsão, escreve Freud, é sempre satisfação. Ela procura uma satisfação que já foi obtida um dia, na nossa pré-história individual, antes do interdito que
nos tornou humanos. A partir de então, foi inibida quanto ao seu objetivo e obrigada
à um caminho de aventuras - as vicissitudes da pulsão.
Portadora do gozo e da morte, viu-se forçada a fazer-se representar pelos seus
representantes para poder ter acesso ao mundo da subjetividade. A Vorstellung e o
afeto são seus delegados, e é sobre eles que a psicanálise nos fala. À pulsão em si
mesma deixa reservado o lugar do silêncio.
A teoria das pulsões e particularmente o conceito de pulsão de morte, nos remete
a um além que muito facilmente pode ser identificado ao misterioso e ao inefável.
Freud nos fala de uma pulsão, que seria uma força não domada e que persiste como
fundo não ordenado de todo o ser vivo.
O corpo é marcado de bordas e é a pulsão que marca o corpo, pois gira em torno
do buraco. A pulsão é diferente do narcisismo. O narcisismo é do campo do amor,
tende a fazer um, totalizar. A pulsão é do corpo, do real, marca o corpo como
impossível, como pulsional, não busca prender o objeto, se satisfaz no movimento da
repetição.
"O paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou mas expressa-o
pela atuação, ou atua-os (acts in out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como
ação, repete-os sem naturalmente saber o que está repetindo" (1). A partir de então,
Freud desdobra a sua escuta e tem a atenção voltada para esse novo mecanismo que
passa a ser o referencial privilegiado da prática clínica.
O conceito de compulsão a repetição aparece em Freud em 1914 em "Recordar,
repetir e elaborar" e significa compulsão para trazer algo de volta. Para Freud nesse
texto, a repetição está para ser interpretada e repetir é rememorar na transferência, o
paciente reproduz não como lembrança, mas como ação. Aí já se coloca uma primeira
questão. De que ação está falando, na medida em que, já apontado por Laplanche/Pontalis, o verbo usado por Freud para falar dessa ação é agieren que não é corrente na
língua alemã, ultilizando-se mas comummente, tun e wírken.
Em 1919 no texto "O estranho", Freud coloca a compulsão a repetir como algo da
pulsão, mas é em 1920 no "Além do princípio do prazer" que o tema da repetição passa
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definitivamente para o primeiro plano da teoria. Freud fala em uma força, algo da
insistência, já apontando para o real, como algo que não cessa de não se inscrever.
É a repetição que vai servir de fundamento para a explicação da pulsão de morte,
"... parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar desprazer"
(2) e que se expressa pela compulsão a repetição. A repetição é característica própria
da pulsão. Ele afirma o caráter conservador da pulsão: resistência a mudança e
repetição do mesmo. O que se repete é pois, o mais arcaico, o estado inicial do qual o
organismo se afastou por exigência de fatores externos: o inorgânico. A pulsão tende
então, a um retorno a um estado anterior, o que parece já ter sido apontado no texto
sobre o estranho, quando coloca que tudo o que é da compulsão a repetição é percebido
como estranho, e o que se repete é o estranho mais familiar, aquilo que de tão íntimo
é tão êxtimo.
Lacan em 1954 no Seminário II, trabalha principalmente a noção do simbólico a máquina (cibernética) e o jogo do fort-da, jogo do par e ímpar, mas já está colocado
nesse Seminário a questão da repetição e do real. Lacan propõe a probabilidade quando
pensa os jogos de azar. A probabilidade é a tentativa de dar explicação científica ao
acaso. Coloca a estrutura do fort-da, a repetição do jogo da presença/ausência, que na
matemática seria o (+) e o menos (-).
O sujeito repete para escapar da falta e do desamparara, mas é o intervalo que vai
garantir a repetição do significante, sendo o seu limite, mas também a sua causa.
Em 1964 no Seminário XI, ao abordar a questão da repetição, Lacan recorre a
Aristóteles e a sua teoria dos princípios (teoria das quatro causas). A questão da
causalidade é retomada, a partir da análise de Aristóteles da noção de causa acidental,
que ele divide em dois tipos: tiquê e automaton. Lacan entende o automaton como
a rede de significantes, enquanto vê a tiquê como o encontro do real. A tiquê designa
o real como encontro faltoso, para além do jogo dos signos e de seu retorno, para além
da fantasia, para além disso que é regulado pelo princípio do prazer. Aquilo que Lacan
procura esclarecer através das noções de tiquê e automaton, particularmente através
da tiquê é a função do real.
O real não é o que retorna - o que retorna são os signos - mas o que se repete como
falta.
O real não é a realidade na medida em que entendemos por esta última os objetos
do mundo, mas é o que confere realidade ao mundo enquanto realidade psíquica.
Presença irredutível, o real é o que se repete e nessa repetição funda o próprio mundo
enquanto realidade psíquica. Esta é a repetição que vai caracterizar essencialmente a
pulsão.
Há dois registros na repetição: simbólico e real. Há duas tendências: restitutiva e
repetitiva.
Lacan distingue então, desta forma o que há na repetição de retorno, insistência dos
signos, comandados pelo princípio do prazer (automaton) e o que há de inassimilá vel,
de encontro enquanto que essencialmente faltoso (tiquê). Assim pode dizer: "não há
como confundir a repetição nem com o retorno dos signos, nem com a reprodução,
ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida " (3). No entanto,
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em Freud o primeiro aparecimento do termo repetição esta vinculado a um agir
(agieren). Lacan trata disso dizendo que a verdadeira natureza da repetição está velada
na análise, pela identificação da repetição com a transferência. Efetivamente, diz
Lacan, o que se repete é sempre algo que se produz por acaso, e a transferência nos é
dada em relação a uma ausência, e o que tem que ser trabalhado é o fisgamento,
tropeção que se reencontra a todo instante, ou seja, a função do tiquê, do real enquanto
encontro sempre faltoso.
Encontro sempre faltoso, de que se trata? No Seminário de angústia, Lacan diz
que o heim, este íntimo, este ponto que é unheim, dentro da experiência humana é a
casa do homem, este lugar que se situa dentro do Outro, este lugar que representa a
ausência onde nós somos, o vazio, o buraco, o fim da cadeia significante, a falta de
significante do grande Outro. Este ponto nos revela a presença em outro lugar, nos
revela o -q> não especulárizavel, nos revela a causa.
Enquanto causa, é o que insiste, é o que pulsa como resto, é a compulsão a repetição,
é o reencontro sempre faltoso.
Na discussão sobre a compulsão a repetição, do Seminário XI, Lacan aponta pára
o ato que está no horizonte. E é pela via desse ato no horizonte que iremos nos dirigir.
Como também Freud nos diz em "Repetir, recordar e elaborar" o paciente repete
em atos, podemos pensar portanto que a repetição está intimamente ligada ao ato,
momento em que nos interrogamos sobre as três modalidades do ato na* clínica - ato
analítico, passagem ao ato e acting-out.
O ato em psicanálise não se reduz a psicomotricidade, a um simples fazer. "Um
verdadeiro ato tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um real que
não é evidente", (4) nos diz Lacan. Todo ato traz no seu bojo uma modificação de
posição no que diz respeito a uma certeza do sujeito confrontado a uma particularidade
real. A partir do ato se instaura uma diferença e se determina uma particularidade.
O ato fala de uma certeza e não de um saber, sobre o ato não se sabe, só no depois
pode haver algum saber. O ato traz a certeza, esta antecipada, como nos diz Lacan,
uma certeza antecipada que se inclui no ato. É a resposta do inconsciente ao mais radical
fora sentido e por isso não pode ser tHzível.
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Pensamos em ilustrar aa clínica a repetição através do acting-out no qual o sujeito
se precipita na ação. "Se evidencia na ação o efeito de expulsão (ausstossung aus dem
Ich) que constitui o real como fora da simbolização" (5), nos diz Eduardo Vidal.
O acting-out constitui uma resposta a modos de intervenção do analista. O sujeito
lança mão e "se precipita no acting, numa tentativa de retificar a intervenção do
analista" (6) e poder avançar na trilha do desejo. O sujeito ao mostrar sua causa, o
essencial do que nos mostra é o festo, sua queda, que é o traço que sempre temos que
encontrar no acting-out, nos fala Lacan.
Ilustraremos com um caso de uma enfermeira nascida em uma cidade do interior
de Minas, de 47 anos, sujeita a uma grande angustia e a uma extrema escrupulosidade
ligada a religião. Recordava nas sessões as orações que fazia em Minas (com Deus me
deito, com Deus me levanto, com a alma de Deus e o Espírito Santo) e ainda frases
ditas por sua mãe e pela padre. "É melhor morrer do que pecar ". "Não pode tocar o
corpo, pois é a casa de Deus e é profanação ".
Disse:
- "A religião me fez muito mal O pecado me ronda".
Ou ela ronda o pecado?
Em criança queria morrer e ir para o céu, antes que crescesse e pecasse. Aproveitando que tinha comungado, estando pois em estado de graça, fez uma salada de frutas
e esperou a morte. A mãe dizia que se misturasse as frutas poderia passar mal e morrer.
Na adolescência, antes do pecado chegar pensou em entrar para o convento, não
podendo concluir o ato porque ficou doente.
Antes de chegar a análise fez quatro cirurgias. Duas nos seios para tirar nódulos e
duas na barriga. Uma para tirar o útero e outra no nervo simpático (simpavasectomia).
"Nada" e "Pecado" eram os significantes que mais se repetiam. "Eu não sinto
mais nada. Não tenho mais nada. Como se eu tivesse oca, sem sentimentos sem nada ".
Depois da cirurgia no útero, não menstrua mais. Da menstruação a mãe dizia: "É
quando a criança deixa de ser pura. Menstruação é coisa imunda é a descargadaquela
imundície toda ".
Quando adolescente não queria que meus seios apatecessem, por- causa do pecado
e enfaixava-os.
Sonha muito com ladrão. Um dia diz:
- "Mas não acontece nada ", (ela acorda sempre antes da ladrão chegar até eia).
Outro dia ela diz:
- "Meus sonhos tem ligação com o sexo ". Diz que, sonhou cem órgãosigenitais e
que é coisa do pecado É a segunda vez que sonho com prostituta, mas nada nunca
acontece.
O analista diz:
- Na vida real também nada acontece.
Depois dessa sessão, falta para ir ao médico examinar seu seio.
Disse que os nódulos voltaram, fez uma punção e terá que tomar hormônios
femininos, mas que ela não quer porque pode infartar (ouviu palestras no hospital que
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alertam para esse efeito colateral do hormônio feminino). Pensa portanto tirar o seio e
colocar silicone.
Digo muito séria, com muito espanto que não se pode tirar o seio assim, que procure
o médico que da outra vez não viu necessidade cirúrgica e peço que associe.
Ela diz:
—"Não gosto, me incomoda ver uma criança mamando no peito, não sei explicar
porque". - A\é que lembra outra frase da mãe: "Qualquer parte do corpo, que pode
levar ao pecado é melhor ser cortada".
Efala:
- "Me diz como eu vou fazer se eu começo a pensar que foram as coisas que
acreditei que me fizeram tudo isso, esse monte de cirurgia ".
Digo:
- Não dá para sair cortando os pedaços do corpo que levam ao pecado.
Eduardo Vidal em seu trabalho sobre passagem ao ato e o acting-out diz: - "A
abolição e o desconhecimento da junção do desejo na cura não oferece outra saída
para o sujeito senão a da realização do acting-out, definidoporLacan como um salto
impulsivo no real através do aro de papel do fantasma". (7)
Suprimida a dimensão simbólica o sujeito pula no real através das formas imaginárias de seu fantasma.
Eu não tenho nada frase mais falada. A frase da paciente é "tenho nada " e é o
que ela repete com suas cirurgias incessantes, com sua não menstruação e com a não
aparição dos seios, pois amarrava-os.
Tenho nada é construção fantasmatica com a qual ela respondia a frase superegóica
de sua mãe: - "Qualquer parte do corpo que leve ao pecado é melhor ser cortada".
O acting-out consiste numa cena montada na margem da transferência. Quando a
paciente falta a sessão, vai ao médico e quer tirar o seio. Não é disso que se trata?
Cabe-nos agora pensar:
Qual a intervenção do analista a ser retificada?
A cena é, para Freud, cenário onde a realidade, a psíquica, toma corpo. É o lugar
onde as coisas do mundo emergem pela existência do discurso.
A intervenção a ser retificada é justamente aquela, em que o analista traz a realidade
das coisas, quando o de que se tratava era da realidade psíquica. O analista com sua
intervenção "mas na vida real também não acontece nada" faz com que o paciente
pule para o real para que a realidade psíquica tome corpo.
"O acting-out é a solução apontada a sua insolúvelposição: montagem numa cena
para o Outro com o valor de demonstração por uma falsa pista da causa negligenciada". (8)
A paciente tendo retificado a intervenção do analista com seu acting-out seda conta
que suas cirurgias tiveram intervalos de quatro anos. Quando interrogada sobre o que
aconteceu aos quatro anos lembra da cena do fantasma na qual via seu pai bater em
um sobrinho, nas pernas, coisa da qual gostava, pois sendo a caçula tinha ciúmes desse
sobrinho que chamava sua mãe de mãe.
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O acting-out, ação de repetição no limite do rememorar, possibilita apreender na
transferência algo que não se articula à palavra. O acting-out, que os analistas tem
tanto medo, recupera a trilha do desejo e faz com que o analista possa escutar o que da
primeira vez não foi escutado.
A passagem ao ato é uma tentativa do sujeito de cair fora da cena. O sujeito que
passa ao ato sem saber o que faz, libera uma causa mas por vias alheias a essa causa.
O sujeito na vertigem da ação, pretende sair da marca que o condena e o faz pela via
imaginária caindo da cena. Querendo escapar à repetição é a própria repetição que age
nele.
O acting-out e a passagem ao ato, são reveladores dos desvios da causa que sustenta
o sujeito, mas também do ponto de repetição do analista, nos diz Eduardo Vidal.
De que repetição aqui se trata?
O analista repete enquanto que não opera com a sua falta a ser, engana-se, enquanto
que intervém acreditando na consistência de um Outro, desconhecendo a função do
desejo, enquanto des-ser, enquanto corte. Já o ato analítico é o que se produz só a
posteriore, podemos saber dele enquanto que introduz a pulsão em sua função de puro
corte, trazendo ao sujeito a certeza de sua divisão e a sua causa.
Citações
(1) FREUD, S. - "Recordar, Repetir e Elaborar" vol. XII - pag. 196
(2) FREUD, S. - "Mais Além do Princípio do prazer" vol. XVIII - pag. 48
(3) LACAN, J. - SeminárioXI - pag. 56
(4) LACAN, J. - SeminárioXI- pag. 52
(5) VIDAL, E. - "Passagem ao ato e acting-out" - pag. 251
(6) VIDAL, E. - "Passagem ao ato e acting-out" - pag. 252
(7) VIDAL, E. - "Passagem ao ato e acting-out" - pag. 253
(8) VIDAL, E. - "Passagem ao ato e acting-out" - pag. 256
Bibliografia
FREUD, S - "Recordar, Repetir e Elaborar" - vol. XII - (1914) Ed. Standard Brasileira - (1976)
FREUD, S - "O Estranho" - vol. XVIII - (1919) Ed. Standard Brasileira - (1976)
FREUD, S - "Mais Além do Princípio do Prazer" - vol. XVIII - 1920 Ed. Standard Brasileira (1976)
FREUD, S - "A Pulsão e suas Vidssitudes" - vol. XIV - 1 9 1 5 Ed. Standard Brasileira - (1976)
GARCIA ROSA, LA - Acaso e Repetição em Psicanálise - uma introdução à teoria das pulsões
Jorge Zahar Editor - (1986)
LACAN, J -O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise - livro 2 - (1954-55) Jorge Zahar
Editor-(1985)
LACAN, J-OsquatroconceitosfundamentaisdapsicanáUse-livroll (1964) Jorge Zahar Editor (1985)-2a. Edição
VIDAL, E - "Passagem ao ato e acting-out" - livro Direção da Cura publicação números 3/4 interna'
da Letra Freudiana
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