EDUCAÇÃO ESCOLAR E EDUCAÇÃO INDÍGENA: SOB O VIÉS DA ANÁLISE DO DISCURSO. Nara Sgarbi (UNIGRAN)1 [email protected] Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo (UNIOESTE)2 [email protected] RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade propor uma reflexão acerca da educação escolar como fomento a discursos que constituem a imagem do sujeito indígena como incapaz. O modelo de educação escolar da maneira que é (im)posto a essa população pode ser entendido como mais um mecanismo de aculturação, no sentido de instituir ao outro uma cultura que não é sua,entretanto, todos os indícios nos levam a perceber que essa “aculturação” tende colocar o índio em situação marginal. Para essa discussão traremos trechos narrativos de professores indígenas, retirados de redações de participantes do vestibular Teko Arandu (2010). Como fundamentação teórica nos pautamos nas orientações da Análise do Discurso de linha francesa, que por seu caráter transdisciplinar nos permite evidenciar as inferências sociais presentes nos ditos discursivos . Para realizar a análise reflexiva os autores de referência utilizados como pano de fundo são Maingueneau (2008), Foucault (2009) e Pêcheux(1990). PALAVRAS-CHAVE: Educação escolar indígena, Discurso, imagem. ABSTRACT: This study aims to propose a reflection on school education as promotion to discourses that constitute the image of the indian subject as incapable. The model of school education the way it is (in)put to this population can be understood as another mechanism of acculturation in order to institute another culture that is not his, however, all indications lead us to realize that this "acculturation" tends to put the Indian in marginal situations. For this discussion we will bring narrative passages of indian teachers, taken from essays of participants in the college entrance examination (vestibular) Teko ARANDU (2010). As a theoretical background we base on the guidelines of Discourse Analysis the French approach, which in its transdisciplinary nature allows us to highlight the social inferences present in said discourses. To conduct reflective analysis the authors reference used as a backdrop are Maingueneau (2008), Foucault (2009) and Pecheux (1990). KEYWORDS: Indian school education, discourse, image. 1 Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN-MS. Professora Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Letras, Linguagem e Ensino, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná PR, UNIOESTE INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 1 INTRODUÇÃO A cidade de Dourados é o segundo maior município do Estado, localiza-se cerca de 230 km da capital. Sua população é constituída por pessoas oriundas de diversas regiões do país, além dos indígenas que aqui já viviam, isso assegura ao município uma configuração multicultural e, por conseguinte, uma região que podemos entender como sociolinguisticamente complexa. Diante desse mosaico constituído por diversos povos de diversas regiões, buscamos destacar a população indígena pertencente às etnias Guarani (kaiowá/ñhandeva) e Terena, que habitam a região de Dourados. Essa população vive nas aldeias, Jaguapiru, Bororo e Panambizinho, entretanto, com o crescimento dos centros urbanos, essas aldeias estão cada vez mais próximas ao centro urbano e esse quesito tem sido motivo de vários conflitos. A proximidade com o não índio e a necessidade de sobrevivência, tem obrigado os indígenas a dominarem cada vez mais a língua predominante, o português. Porém, esse intenso contato não tem garantido uma aquisição de língua que os permite transitar por todas as esferas sociais. Assim, apesar da existência de uma garantia legal de ensino bilíngue, diferenciado e de qualidade, estudos apontam que essa educação idealizada não se efetiva nas escolas das aldeias referidas. Contribuindo ,assim, para a manutenção de uma imagem negativa, tanto do processo ensino aprendizagem, como do sujeito indígena, uma vez que discursos como incompetente, dentre outros, são recorrentes a essa população. Vale ressaltar que a Reserva Indígena de Dourados (RID), até nos dias atuais é um território de transição, polo migratório de indígenas que vêm à procura de condições de vida melhor. Os indivíduos migram para Dourados em busca de saúde, trabalho ou para fins de estudos e formação. Esse fato tem contribuído significativamente para a formação pluriétnica do contexto populacional, linguagens e falares das aldeias Bororó/Jaguapiru, os quais ,segundo Pereira (1999), são espaços linguisticamente complexos, em território de línguas minoritárias, ou minoritarizadas, na concepção de idiomas dominantes. Com relação à educação escolar, atualmente, temos seis escolas municipais para a formação de Educação infantil e Ensino Fundamental e também uma escola do Estado para o Ensino Médio. A população estudantil está estimada em torno de 3200 alunos, do ensino fundamental e 300 do ensino médio, 120 do EJA (Educação de Jovens e Adultos), totalizando, um número em torno de 800 alunos fora dos bancos escolares, por varias razões , como falta de vagas, reprovação, evasão, defasagem em idade série, falta de documentação pessoal ou ainda necessidade de trabalhar para se autosustentarem. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 2 Diante do exposto , podemos inferir que são inúmeros os fatores que interferem não constituição da imagem desse sujeito indígena, logo, a não resposta de forma positiva, imposta pelo outro a todos esses fatores reflete na construção e cristalização de discursos que apontam para um sujeito menor, assim marginalizado. Nessa direção, para fins elucidativos de concepções de diferentes visões de mundo, traremos as observações relacionadas a questões relacionadas à diferenciação entre educação e educação escolar indígena. 1 .EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Antes de iniciar essa discussão, talvez seja necessário buscar esclarecermos as diferenças que estão subentendidas na proposta do título entre educação e ensino. Em relação à proposta de Educação, é importante destacar que a escola, independentemente de ser indígena ou não, não pode ser entendida como a principal responsável, ou seja, ela tem a prerrogativa de atender as necessidades de sua sociedade no intuito de colaborar para a formação do cidadão, mas a efetiva educação é uma construção conjunta entre escola e sociedade. Nessa direção as colocações de D‟ANGELIS sugerem que: A educação das crianças, sua socialização na comunidade, se faz na família, pelo ensinamento dos pais, pelas palavras e histórias dos mais velhos e por muitos outros meios que a comunidade possua, inclusive pela escola (ou seja, também pela escola). (D‟ANGELIS, 2001, p. 37). Por certo, podemos ressaltar que Educação indígena está relacionada à transmissão de conhecimentos tradicionais de cada comunidade indígenas às suas crianças. Na sociedade indígena não há uma forma estabelecida de ensinar, como na sociedade não indígena, assim, as crianças aprendem por observações em seu cotidiano. Os estudos de SALES(2010) na aldeia Jaguapiru de Dourados MS, retrata esse método de ensino aprendizado. Assim, quando observamos o processo de ensino/aprendizagem na aldeia Jaguapiru, no qual, crianças, jovens e mulheres se reúnem debaixo dos mangueirais para tomar tereré, ou em outras atividades corriqueiras do grupo. Percebemos que a transmissão de conhecimento do povo não passa por conhecimento escolar algum e aquelas pessoas são sujeitos índios ou “aprendizes de índio” se preparando para serem produtivos naquele grupo étnico. (SALES, 2010, p.31). Recorrendo aos documentos legais que preconizam a educação escola indígenas, temos o Referencial Curricular Nacional de Educação Escolar Indígena (RCNEI), que traz em sua proposta de ensino voltado para o respeito e valorização da diversidade cultural indígena, uma reflexão que reforçar a ideia de uma sociedade já detentora de seus próprios métodos de conhecimentos, mesmo antes da invenção da escola. Logo, uma proposta de escola de acordo com essa sociedade: INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 3 Desde muito antes da introdução da escola, os povos indígenas vêm elaborando, ao longo de sua história, complexos sistemas de pensamento e modos próprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepções sobre o mundo, o homem e o sobrenatural. (...) Esses fundamentos implicam necessariamente pensar a escola a partir das concepções indígenas do mundo e do homem e das formas de organização social, política, cultural, econômica e religiosa desses povos. (SALES, 2010, p. 22). Deste modo, podemos perceber que a questão do ensino deve ser proposta de forma diferenciada, conforme as exigências de cada sociedade e buscar mecanismos que contemplem todas suas necessidades, respeitando suas particularidades, entre elas seu modo de aprender. Portanto, fica explícito que a educação familiar é muito significativa na construção do individuo. Nesta mesma direção, ressaltamos a importância dos mais velhos na Educação indígena, em que VEIGA, (2001 p.124), assinala que “é pela imitação dos mais velhos que a criança vai construindo seu projeto de pessoa”. Ressalta ainda que, a educação formal também existe na sociedade indígena, são os ensinamentos culturais conhecidos como ritos de passagem: Que permitem às pessoas ascender a uma nova condição: como sair da condição de menino e ser admitido na categoria de guerreiro. Esses ritos de passagem normalmente estão ligados á adolescência, quando a vida floresce em toda sua exuberância. Nesse momento essa energia é canalizada par produzir pessoas aptas a manter a sobrevivência do grupo. (VEIGA, 2001, p. 124). Corroborando ao já dito anteriormente, CARDOSO(2004), (índio Terena da aldeia Limão Verde no Município de Aquidauana MS), relata que na sociedade indígena o indivíduo é inserido nas práticas culturais ainda na infância, essas práticas incluem também o cultivo da terra, ou seja, a partir da observação ao que é feito pelos mais velhos a criança aprende. Nesse aspecto, é importante destacar que, desde o nascimento, os pequenos indígenas já são envolvidos em práticas culturais como, ritos, cantos, cerimônias que marcam as fases de sua vida, no sentido de ter sua cosmovisão formada a partir dos valores que possui o grupo ao qual pertence. Em cada fase do individuo são acrescidos outros componentes que o legitimarão enquanto pertence aquela etnia. (CARDOSO, 2004, p.45). A prática de inserção da criança nas atividades adulta, justifica as observações de SCHADEN, (1974, p.60) ao relatar que a presença da cultura infantil entre os indígenas da etnia Guarani é quase nula. Poucos são os brinquedos que não se reduzem à imitação de atividades dos adultos. Assim o lúdico é um reflexo do cotidiano de seus pais, ainda INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 4 sob as observações de CHADEN (1974, p. 60) “O menino Mubuá já na idade de três anos começa a exercitar-se no manejo de arco e flecha, cedo também constrói o seu mundeuzinho de jiçara”. Talvez isso explique o fato de a criança guarani assim que desenvolve suas capacidades físicas e mentais, além de participar das atividades dos adultos, também fazem parte das discussões dos problemas de sua comunidade. A criança indígena, se caracteriza por notável espírito de independência e isso é respeitado pelo seu povo, não há interferência no processo de formação da personalidade, nem no sentido educativo nem punitivo. De acordo com a cultura indígena não há método educativo capaz de contribuir com formação do individuo, ela já nasce com suas características determinadas. é o respeito pela personalidade humana e a noção de que esta se desenvolve livre e independente em cada indivíduo, sem que haja possibilidade de se intervir de maneira decisiva no processo. (....) O extraordinário respeito à personalidade e à vontade individual, desde a mais tenra infância, torna praticamente impossível o processo educativo no sentido de repressão. As tendências da criança nada mais são, na opinião do Guarani, do que manifestação de sua natureza inata. (CHADEN, 1974, p. 60). Dentro dos costumes da cultura indígena o ato de deixar as crianças em casa sozinhas é muito comum, uma vez que o pai sai para caçar e a mãe vai trabalhar em roças distantes de casa. Esse contexto permite que as crianças aprimorem suas características de um individuo autônomo e independente. Em relação à escola, a comunidade indígena não atribui nenhum valor no sentido de considerá-la como transmissora de saber, visto entenderem que o saber é uma benção vinda diretamente de Deus, ou seja, não há necessidade de um ensino escolar para aquisição do conhecimento. Nesse sentido, desprezam qualquer forma de educação intelectual, como pode ser observado no relato de um indígena rezador: Criança não precisa de escola, porque o saber vem de Deus. (Rezador Miguel, apud, CHADEN, 1974, p.62). Talvez essa narrativa venha contribuir para entendermos o porquê da resistência em relação à educação escolar do não índio. É preciso destacar aqui que estamos tratando, antes de tudo de culturas diferentes, e sua diversidade, assim, mesmo antes de entender como funciona é preciso estabelecer uma relação de respeito, visto que, todas têm seu valor, independente de sua etnia. Nesse sentido INNERARITY(2004), sugere que; “Aprender a valorizar essa diversidade não equivale a uma deserção, mas a um enriquecimento do próprio”, pois há singularidades que são imprescindíveis para a compreensão de como se constrói seus valores, costumes, crenças e também sua educação e seu processo de ensino aprendizagem. Neste caso, em especial da sociedade indígena, é necessário lembrar que, primeiramente, sua base histórica é de tradição oral, assim a prática da escrita, como a INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 5 escola, é uma invenção do não índio. As diferenças entre os povos devem ser consideradas como soma e não subtração de valores. Nossa pedagogia deve ser capaz de apresentar um mostruário das diferenças, articular experiências de contraste, assinalar a arbitrariedade das convenções sociais, contingência dos hábitos e estilos de vida, pôr-se no lugar de outros. Aprender a valorizar essa diversidade não equivale a uma deserção, mas a um enriquecimento do próprio. (INNERARITY, 2004, p.6). Esses apontamentos teóricos realizados até o momento indicam a necessidade de se discutir questões relevantes como essas para a elaboração de uma Educação Diferenciada que realmente contemple as necessidades da comunidade indígena e, sobretudo, respeitando-se as diferenças culturais. Diferenças essa que estão em constantes transformações e que necessitam de olhares desprovidos dos preconceitos já estabelecidos socioculturalmente, que visam sempre determinar o lugar do outro. Na atualidade é pertinente esta problematização entre o nós e o outro, uma vez que as bases que sustentavam essas categorias, como uma composição transparente, e absoluta não se sustentam mais, permitindo a visibilidade de um tipo de identidade que segundo INNERARITY, (2004), pode ser considerada como flexível, porosa e múltipla, com capacidade de se articular a partir de vários pontos de referências. Pensar na composição de uma sociedade justaposta de maneira similar é irreal, no mundo atual, pois o que fundamenta esta sociedade é justamente o seu contrário, ou seja, a relação de comunidades com variados modos de vidas não uniformes. Esta não uniformidade pode ser entendida como resultado do processo de globalização mundial, caracterizado por relacionar um número maior de pessoas de culturas diferenciadas. Assim, idealizar uma identidade homogênea como resultado desse processo globalizado seria uma ilusão. Nesta direção, INNERARITY(2004)assinala que. Tudo o que possa surgir em ternos de unidade e identidades o fará a partir da diferença e produzido por ela. Mas, ao mesmo tempo, a diferença não tem por que ser entendida como negação do parecido, como o seu contrario. (INNERARITY, 2004. p. 61). Diante dessa configuração complexa em que o outro está cada vez mais presente precisamos, desenvolver a habilidade de convivência no mesmo espaço com esse outro. Obviamente que o percurso dessa convivência com múltiplas identidades levará o sujeito á um múltiplo pertencimento, ou seja, uma identidade dupla. Assim, tentar determinar uma classificação étnica, juntamente a esse processo de globalização é cada vez mais complicado. Portanto, podemos considerar esse processo heterogêneo como uma oportunidade para romper com as delimitações e não como um obstáculo. Os discursos que descrevem os modos culturais precisam sair desse reducionismo que limitam as coisas buscando determinar uma homogeneidade, precisam ser ampliados, INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 6 no sentido de permitir espaços às exceções, ao estranho, considerando se tratar de uma realidade móvel. Em consonância a tudo isso, ainda sob as considerações de INNERARITY, podemos inferir que. A cultura não representa uma unidade fechada, algo fundamentalmente próprio, que só estaria enfrentando o perigo de desfazer-se em suas margens pela modernização e imigração. Um sistema cultural é uma realidade móvel e porosa, cuja vitalidade depende de que se saiba gerenciar sua pluralidade interna e dialogar com a estranheza exterior. (INNERARITY, 2004, p. 67). Podemos então, perceber que são inúmeros os benefícios de se viver em uma sociedade multicultural, uma vez que, temos a oportunidade de reconhecer o pluralismo existente dentro de uma base que julgava ser compacta. Portanto, insistir em determinar identidade como algo definitivo, não tem muito sentido diante do cenário complexo em que vivemos. Complexidade essa que necessita de um olhar especial para com aquele que consideramos estranho, visando se distanciar, possibilitando questionar suas verdades, tornar o seu familiar estranho, aprender a considerar o outro, acima de tudo, estabelecer uma relação de respeito com aquilo que não se conhece. Se permitir uma experiência cultural com o estranho, pode ao mesmo tempo, possibilitar um confronto, de forma positiva, que permitirá uma avaliação das próprias limitações e consequentemente, um enriquecimento pessoal, visto que o outro é sempre uma soma. Para os povos indígenas a questão da identidade é algo forte e se mistura com cultura, com a tradição dos povos, com preservação da língua de berço. 2. DISCURSO3 INDÍGENA NAS MALHAS DA AD A denominada Análise do Discurso da Escola Francesa (AD) surge na década de 60, em oposição a duas significantes tendências no campo da linguagem, o estruturalismo e a gramática gerativa transformacional. Nesse novo paradigma, o estruturalismo linguístico, foi visto como ponto de motivação. No ano de 1969, com a obra, Análise Automática do discurso de Michel Pêcheux, a AD tem seu marco na história da análise 3 Os recortes narrativos utilizados nesta sessão foram retirados de redações realizadas por professores indígenas participantes do Processo Seletivo para a Licenciatura Intercultural Indígena de 2010, oferecida pela Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD. As referidas redações são parte dos arquivos documentais do Projeto Investigações em Linguística Aplicada: entre Política Linguística à Educação Bilíngue – O caso dos Tekohá Kuera no MS, aprovado e financiado pela CAPES/MEC/INEP através do edital destinado ao Observatório da Educação Escolar Indígena, 2009. A fim de atender as prerrogativas éticas da pesquisa, foram omitidas as identificações dos autores das redações. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 7 dos discursos e busca trazer esse sujeito até então invisibilizado pelos estudos estruturalistas. Um sujeito constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia, atravessado pela interação social, não origem de seu dizer, nesse sentido, a AD, rompe com os pensamentos estruturalistas, nasce numa perspectiva de inversão ao contexto atual. A AD propôs um campo de estudo de entremeio, buscando estabelecer um diálogo entre a história, a psicanálise e a linguística. Assim, pode ser entendida também como interdisciplinar, permitindo a busca de subsídios que fundamentem os discursos e seus efeitos de sentidos, a partir das condições de produção. Nesse sentido, trabalha com conceitos como o de formação ideológica (FI), e formação discursiva, (FD). As FIs constituem um componente dentro dos aspectos da luta nos aparelhos ideológicos althusserianos, “suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica, característica de uma formação social em dado momento” (PÊCHEUX; FUCHS, 1993, p. 163 ). Enquanto que as FDs determinam o que pode ou deve ser dito a partir de uma certa conjuntura, a qual deriva das condições de produção (PÊCHEUX; FUCHS, 1993). Assim, nem tudo pode ser dito em qualquer lugar, isso vem corroborar no sentido de que não há um sujeito centralizador do sentido de tudo que diz, como estabelece Pêcheux (1997) no que chamou de esquecimento nº 1, o qual não é acessível ao sujeito, pois é de cunho do inconsciente e do ideológico, o lugar constitutivo da subjetividade. O esquecimento nº 2 se completa na ilusão de transparência da língua, do sentido; concretiza-se nos processos enunciativos, nas escolhas e seleção linguística, na relação de paráfrase ou ocultamento de uma ou outra palavra. Assim, os indivíduos são interpelados em sujeitos por meio da ideologia e se constituem em relação a outros sujeitos, numa estruturação de inconscientes. O sujeito é clivado, uma vez que há um consciente e um inconsciente e, por mais que os sujeitos se entendam como origem do sentido, retrocedem aos seus assujeitamentos, pois, ao sair de uma FD, entra-se em outra. Assim, as FDs podem adquirir novos sentidos de acordo com os lugares sociais em que estiverem ingeridas. Logo, mesmo sendo pronunciadas em momentos históricos diferentes, podem tratar do mesmo assunto mesmo que de forma diferenciada. Porém, o efeito de sentido produzido pelas FDs é dependente da aceitação dos falantes, uma vez que estão sujeitas as relações de classes para sua constituição, como sugere Pêcheux (1990): Uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas relações de classes; pode fornecer elementos que integram em novas formações discursivas, constituindo-se no interior de novas relações ideológicas, que colocam em jogo novas formações ideológicas (PÊCHEUX, 1990, p. 168). INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 8 Nesse sentido, os ditos de hoje são ecos de um já dito anteriormente que se sustentam em novos dizeres, formando uma rede, como indica a orientação a seguir: O discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar qualquer enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros enunciados que são comentados, parodiados, citados, etc. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 55). Entretanto, os discursos não possuem apenas um sentido, os mesmos são passivos de múltiplos sentidos, uma vez que são de origens diversas, são contextualizados, assim seu sentido está atrelado ao contexto em foi produzido, logo, é preciso articulações discursivas que o sustente, como sugere Pêcheux (2009): ..suporte do pensamento contido em uma outra proposição, e isso por meio de uma relação de implicação entre duas propriedades, α e β, relação essa que enunciamos sob a forma “o que é α é β”. Daremos a essa relação o nome efeito de sustentação, destacando que é ela que realiza a articulação entre as proposições constituintes. (PÊCHEUX, 2009, p.101). Ainda no intuito de respaldar a ideia de que os discursos não surgem do nada e que os mesmos possuem uma inter-relação a outros já ditos, considerando que discurso é uma rede de enunciados ou de relações que possibilitam haver significantes, Foucault indica que: A lei dos enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma e única mesma coisa; o que não é paradoxal, já que a formação discursiva se caracteriza não por princípios de construção, mas por uma dispersão de fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidades, mas uma lei de coexistência, e já que os enunciados, troca, não são elementos intercambiáveis, mas conjuntos caracterizados por sua modalidade de existência. (FOUCAULT, 1969, p. 135). A citação acima assinala que as FDs asseguram os efeitos de sentidos de determinados enunciados, amparadas pelo contexto de produção que estabelece o dizer, que é assegurado por formações imaginárias que determinam os lugares dos interlocutores e reflete a imagem que se fazem do seu próprio lugar e o lugar do outro. Logo os discursos não se caracterizam por simples trocas de informações entre A e B, mas sim em efeitos de sentidos entre seus interlocutores, que são constituídos a partir das relações de poder inerentes aos lugares sociais. [.....] esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se encontra aí representado, isso é, presente, mas transformado; e outros termos, o que funciona nos processos discursivos é uma serie de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro .(PÊCHEUX, 1990, p. 82). INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 9 Logo as formações imaginárias designam os lugares e os discursos entre A e B, assim o sujeito modaliza seu dizer a partir da imagem que possui do outro, assim a interpelação do sujeito se efetua a partir da identificação deste com a formação discursiva que o domina, assim ele reproduz um discurso tendo a ilusão de ser seu, porém o mesmo está sendo atravessado por outros discursos que já o constituíram. A narrativa abaixo pode ser entendida como um discurso atravessado. Talvez porque naqueles tempos a civilização ocidental lhes era desconhecida, não tinham a necessidade de serem instruídos através de escola e universidades; talvez porque talvez ainda tivessem suas florestas preservadas, seus rios límpidos e abundantes, suas terras férteis, animais e frutas silvestres que lhes servisse de alimentos; não conheciam a política, não precisavam desenvolver-se economicamente, enfim, eram parte da natureza, não precisavam da Educação. (Índio Guarani). O dizer que “naqueles tempos a civilização ocidental lhes era desconhecida, não tinham a necessidade de serem instruídos através de escola e universidades”, o sujeito indígena reproduz um discurso muito forte na atualidade em relação a comunidade indígena, principalmente a de Dourados, visto suas especificidades, é comum a veiculação de discursos que eles não podem mais ser tratados como antigamente e que essa questão de que não é de sua cultura não cabe mais na atualidade. O dito “não conheciam a política, não precisava desenvolver economicamente” remete aos discursos de um índio preguiçoso que não gosta de trabalhar ou que prefere viver na condição de pedinte nos centros urbanos, pois essa é uma prática cristalizada no contexto em questão. Assim, são discursos que se inter-relacionam e fomentam uma imagem desse sujeito conforme as formações ideológicas dominantes. [...] propomos chamar de interdiscurso a esse „todo complexo com dominante‟ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade contradição subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1997, p. 162). Considerando que para pertencer a mesma FD, os discursos não têm a obrigação de seguir a mesma posição, ou seja, de ser favoráveis, pois os discursos contrários também conhecido como contra discursos, pertencem as mesmas FDs. Desse modo, a narrativa abaixo pode ser entendida como um contra discurso, porém proveniente da mesma FD. Antes da chegada do Europeus aqui no continente Americano. A educação indígena eram diferente dos europeus. Depois da chegada dos colonizador mudou esse sistema, colonizador fez colégio para alfabetizar, catequizar e ensinar a cultura dos europeus. Aprender a falar a língua do colonizador e converter índios para á igreja católico. Ser como branco. Que objetivo o colonizador fez colégio para os índios, mudar cultura deles, transformar como branco, negar suas maneira de ser, deixar de ser índio. Não estava a buscar o interesse dos índios mas sim dos brancos. (Índio Guarani).* INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 10 O discurso acima é decorrente da FD pertencente a história da chegada dos colonizadores no Brasil, momento em que a aproximação da população indígena se deu forma „aparentemente amigável, em que lhe eram oferecidos espelhos como uma demonstração de “bondade”. A escola aqui nesse contexto exercia outro significado, não era de propiciar ao indígena uma emancipação política e cidadã, muito pelo contrário, era no sentido de extrema dominação do outro. Isso não implica afirma que a escola inserida em comunidades indígenas na atualidade possuem interesses muitos distintos, visto que o modelo de educação escolar que o indígena mencionado nesse texto, possui é um modelo de educação escolar do não índio, ou seja, “Não estava a buscar o interesse dos índios mas sim dos brancos”. Toda a história, desde seu início, direciona para entendimentos de uma história de pura segregação, por a margem tudo que não condiz com o consenso da sociedade dominante ou tentar integrar a normalidade imposta por esse outro. Desde o início ao índio não lhe foi permitido ser ele mesmo, tinha que ser igual ao outro, uma busca constante em deslocá-lo de seu eu, como pode ser observado na narrativa abaixo. A educação escolar para os povos indígenas remonta uma longa história. Desde a colonização nos povos indígenas tivemos uma educação de forma integracionista, ou seja, de tal forma que nos povos indígenas se integrasse numa só cultura, deixar tudo o que é nosso, a nossa cultura. (Professor indígena Guarani, MS). Isso no remete a entender que esses discursos dialogam, ou seja, são “interdiscurso” que para Pêcheux (1997), causa as formações discursivas, condicionadas e exercida pelo complexo das formações ideológicas. Logo, o efeito do pré-construído e o efeito da articulação do “ já lá” e “processo de sustentação”) são determinados materialmente na estrutura do interdiscurso. Assim, o que é dito anteriormente garante a sustentação dos sentidos e a articulação dos discursos. Desse modo, Pêcheux (1997) assinala que a mudança de sentido das palavras, possibilitada pela substituição dos elementos dentro de uma formação discursiva dada e explicada anteriormente, é a concepção de “efeito de sentido”. Diante disso, na questão dos discursos indígenas dialogarem com outros discursos ao longo da história, podemos perceber que há um deslizamento de sentidos determinado pelo efeito de sustentação, manifestado principalmente na produção ideológica no enunciado do sujeito. Assim, o sujeito indígena tem seu sentido deslocado para um índio incapaz, por não atender as imposições de um modelo de escola que não condiz com sua realidade, em seguida, de incapaz também para um índio sem interesses, preguiçoso, dependente, dentre outros que os colocam em situação marginal junto a sociedade não indígena. Esse deslocamento de sentidos que reflete a imagem indígena INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 11 de forma negativa prova uma ilusão que evidencia novos discursos como legítimos, verdadeiros, ocultando a voz do sujeito índio e naturalizando-os como incapaz. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo do pressuposto que a educação escolar indígena é uma invenção do não índio, evidenciar o que esse sujeito tem a dizer em relação a algo que em sua cultura tem outros significados, pode contribuir para promoção de políticas linguísticas mais adequadas às singularidades dessa população e corroborar para a não naturalização de discursos preconceituosos que os identificam como incapazes. A veiculação de apenas um discurso propicia a manutenção de um status quo. Desse modo, é preciso possibilitar outros dizer. Portanto vale ressaltar que, é nesse momento de apropriação da voz do outro que esse individuo é interpelado ideologicamente, uma vez que ao tornar-se sujeito enunciativo a partir se sua forma – sujeito, que inevitavelmente, determinará seu dizer, seu discurso será resultado de uma ideologia dominante. Assim, mais uma vez o dependente e incapaz, como é figurado socialmente, pode continuar sem voz, pois ao tomar o discurso do outro como seu, em uma sociedade em que seu dizer não tem valor, só lhe cabe repetir o que já foi dito. A não voz desse individuo é reforçada pela sua representação social, ou seja, a imagem veiculada do mesmo é sempre de um ser dependente e incapaz, que a todo momento está a espera de uma ajuda do não índio para suprir suas necessidades básicas, pois não é capaz de viver a cultura do não índio e nem de ser índio. Desse modo, são vistos como aqueles que não se enquadram a assimilação imposta. Nesse sentido, se apropriar da voz do outro, pode ser entendida como uma tentativa de ser ouvido, visto que falar a mesma coisa, seria de certa forma estar na mesma ordem discursiva do dominante. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Ministério da Educação. 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